Breve Crítica aos Fundamentos para a Imunidade Tributária dos Templos de Qualquer Culto

Brief Criticism to the Foundations for Tax Immunity of Religious Entities

Thiago Batista da Costa

Mestre em Direito pela UFRGS. Procurador da Fazenda Nacional em Caxias do Sul/RS. E-mail: tigocosta@yahoo.com.

Recebido em: 16-5-2021

Aprovado em: 25-10-2021

Resumo

Artigo que se propõe a analisar, com apoio no direito comparado, a pertinência da regra da imunidade dos templos religiosos com os motivos que a justificam. Resgata os componentes históricos da instituição da regra desde o período do Egito antigo e do Império Romano, identificando, além das razões principais para tal proceder, o desenvolvimento das relações entre a igreja e o Estado. Disserta brevemente sobre a regra isentiva prevista no Direito norte-americano, cujas características, nesse tocante, de certo modo se assemelham à experiência brasileira, inclusive em relação aos conflitos existentes entre as igrejas e a autoridade tributária. Assevera inexistir liame necessário entre a garantia constitucional da liberdade de culto e a imunidade dos templos, inclusive pelo fato de a liberdade religiosa ter sido veiculada não antes da isenção de impostos para as igrejas, e ressalta que tal imunidade estaria mais bem associada à ideia de laicidade, ainda que com ressalvas, e à caridade. Denuncia a ocorrência de possíveis violações ao princípio da isonomia tributária, defendendo com isso mudanças na legislação brasileira, na medida em que reclama maior controle da autoridade tributária em relação à aplicação das receitas dos templos religiosos, tal como se dá com as entidades beneficentes que igualmente gozam de imunidade tributária.

Palavras-chave: direitos fundamentais, liberdade religiosa, Estado laico, imunidade tributária, princípio da isonomia.

Abstract

This article proposes to analyze, with support in comparative law, the pertinence of the rule of immunity of religious temples with the reasons that justify it. It rescues the historical components of the institution of the rule from the period of the ancient Egypt and the Roman Empire, identifying, in addition to the main reasons for this, the development of relations between the church and the State. It briefly describes the exempt rule foreseen in American Law, whose characteristics, in this respect, to a certain extent resemble the Brazilian experience, even in relation to the conflicts existing between the churches and the tax authority. Asserts there should be no necessary link between the constitutional guarantee of freedom of worship and the immunity of the temples, including the fact that religious freedom was introduced not before tax exemption for churches, and points out that such immunity would be better associated with the idea of laicity, although with reservations, and with the charity. It denounces the occurrence of possible violations of the principle of tax isonomy, thereby defending changes in Brazilian legislation, insofar as it demands greater control by the tax authority in relation to the application of religious temple revenues, as it does with charities that also enjoy tax immunity.

Keywords: fundamental rights, religious freedom, laic State, tax immunity, principle of isonomy.

Introdução

É objeto do presente trabalho trazer apontamentos e reflexões, com apoio no Direito comparado e na História do Direito, acerca da regra prevista no art. 150, VI, “b”, da Constituição Federal (CF), que veicula a imunidade dos “templos de qualquer culto” em relação à instituição de impostos, o que compreende, conforme o § 4º do mesmo artigo, “somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades”. Este trabalho visa, sobretudo, abrir debate acerca dos fundamentos de existência e validade da imunidade dos templos e questionar seu escasso regramento infraconstitucional.

Embora a discussão que ora se apresenta não seja assunto exatamente inédito, ela é pouco recorrente nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial, geralmente debruçados na análise da extensão de significado do termo “finalidades essenciais” das entidades religiosas: diante de novos usos e aplicações do patrimônio e rendas de algumas igrejas, juristas e tribunais são instados a manifestar-se sobre a inserção desses variados bens e serviços sob a proteção da imunidade, o que é reflexo da cada vez maior tomada de espaço das religiões e respectivas igrejas no palco da sociedade brasileira, quadro um tanto diverso do testemunhado quando da transformação do Brasil numa nação independente, em 1822.

No Império do Brasil, a Constituição outorgada em 1824 não continha dispositivo expresso veiculando a imunidade tributária dos templos religiosos, mas em seu art. 5º reconhecia o catolicismo como a religião oficial do império – o que fazia da Igreja Católica Apostólica Romana, a rigor, parte do Estado, ou no mínimo uma entidade associada a esse, compartilhando de seus bens e receitas. As outras religiões, segundo o mesmo artigo, eram permitidas “com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”, o que equivale dizer que, desde que se mantivessem informais, seriam toleradas e não sofreriam interferência de qualquer espécie – e justamente porque não existiam formalmente, não se cogitava tributá-las.

Foi com a primeira Constituição republicana, em 1891, que as imunidades recíprocas entre os entes federados (art. 10) e, com menos clareza, para os cultos religiosos (art. 11, § 2º) ganharam previsão expressa no texto constitucional, cada qual pelas suas supostas razões – respectivamente, a adoção do federalismo (art. 1º) e a laicidade do Estado (art. 72, § 7º). Nas constituições posteriores essas imunidades não apenas foram mantidas como ganharam a companhia de algumas outras, até alcançar o panorama hoje defendido pela Constituição de 1988.

Assim, a fim de se lançar bases críticas ao sistema vigente, na primeira seção deste trabalho resgatar-se-á as origens históricas da isenção de tributos outorgada às igrejas e a evolução dessa experiência no decorrer dos tempos, sobretudo nos países ocidentais. A realidade atual em sistemas estrangeiros será neste trabalho representada pela experiência norte-americana, a qual prevê a isenção das igrejas de modo semelhante à imunidade vista no Brasil, porém não a salvo de polêmicas.

Essas críticas voltadas contra o sistema tributário dos Estados Unidos são, na segunda seção deste artigo, aliadas a argumentos extraídos da análise de nossa própria experiência constitucional, com o que procurar-se-á investigar se a imunidade tributária dos templos de qualquer culto1 está, de fato, alicerçada na liberdade religiosa, como aponta substanciosa doutrina e também o Supremo Tribunal Federal (STF), ou mesmo na separação entre a Igreja e o Estado – se é que essa separação existe efetivamente, tal como proclamada.

Ao final, far-se-á um confronto das regras da imunidade tributária religiosa com a isonomia, tendo à luz sobretudo as exigências do art. 14 do Código Tributário Nacional (CTN), a princípio dirigidas exclusivamente às entidades assistenciais, sindicatos e partidos políticos – seria justificável o tratamento favorável às organizações religiosas mesmo em face dos demais entes que gozam de imunidade tributária?

É o que se passa a analisar.

1. Sobre as relações entre Estado e religião no mundo

1.1. Reminiscências históricas

Dentre os primeiros povos organizados da antiguidade, a simbiose entre poder político e religioso era a tônica: desde os sumérios, passando por egípcios e hebreus, até os chineses, o Estado e a religião eram profundamente identificados2, de tal forma que, em vez de imunes, as organizações eclesiásticas eram, a rigor, elas próprias as destinatárias dos tributos pagos pelos cidadãos. Um bom exemplo disso se vê no livro bíblico de Deuteronômio, cujo capítulo 18 nos informa acerca da destinação dos dízimos oferecidos a Yahweh pelo povo de Israel: serviam como um pagamento aos levitas pelo serviço religioso prestado. Já dentre o povo chinês, cuja religião tradicional conserva um caráter mais filosófico, fruto do confucionismo e do taoísmo, os imperadores possuíam “uma espécie de direito divino, dependente do Mandato do Céu”, à semelhança dos faraós e reis ocidentais, mas com a diferença de que estariam sujeitos à perda do poder se governassem de forma opressiva. Tal como para o povo hebreu, mas por influência de Confúcio, vigorava na China a regra do recolhimento de 10% como sistema ideal de tributo3.

No Egito, por sua vez, registra Charles Adams que, após a tentativa frustrada do faraó Akhenaton de instituir uma religião monoteísta, centrada no deus Aton, os novos governantes, ao resgatar o politeísmo, acabaram por instituir imunidade tributária para os templos e seus sacerdotes4, os quais passaram também a receber numerosos bens da parte dos faraós que se sucederam no trono. Tal comportamento, por conferir ao clero um poder secular talvez inédito na história, contribuiu decisivamente para a fragmentação do império egípcio, mas não deixou de ser reproduzido por outros governantes nos séculos seguintes.

Com efeito, um dos mais conhecidos registros de isenção de tributos para igrejas tem origem no Império Romano: o Édito de Tolerância, de 311 d.C., e o Édito de Milão, assinado em 313 pelos tetrarcas Constantino e Licínio, conferiram ao cristianismo, inicialmente, os mesmos direitos que eram dados aos cultos pagãos, e em seguida devolvendo aos cristãos locais de culto e propriedades que haviam sido confiscados. Todas essas ações, incluindo a conversão do próprio Constantino Magno ao cristianismo, redundaram no estabelecimento dessa religião como a oficial do império, precedente que influenciou a política das nações ocidentais por muitos séculos, inclusive chegando até o Brasil império5.

Em suma, a isenção ou imunidade tributária das religiões constituiu quase sempre uma regra nos primórdios da civilização porque o Estado e a Igreja, muitas das vezes, se confundiam num mesmo corpo. Assim, a religião não somente era isenta de tributos, mas geralmente era mantida pelo próprio Estado, isso porque estava sob sua esfera de influência, ou vice-versa – por exemplo, na Inglaterra de Henrique II (1154-1189), foi instituído tributo para financiar as Cruzadas, que foi uma guerra de causa genuinamente religiosa6. Por consequência, com a separação do Estado e a Igreja e a promoção da liberdade de culto religioso, o que se verifica é a necessidade de se manter, tanto quanto possível, os privilégios fiscais detidos pela religião antes oficial, estendendo-os agora às demais religiões em razão da liberdade de culto promovida, no exemplo brasileiro, desde a Constituição de 1891.

Note-se que, antes de se progredir até o estado de liberdade atual, foram inúmeros os conflitos ocasionados por diferenças religiosas – em verdade, esses conflitos infelizmente persistem, ainda, em algumas regiões do planeta. A evolução da ideia do Estado laico teve seu curso por, pelo menos, os últimos cinco séculos da história ocidental, mais claramente a partir da reforma protestante, através de Hugo Grócio7. O modelo clássico para o conceito de laicidade teria sido formulado pelo Marquês de Condorcet em 1791, para quem não importaria a condição religiosa do indivíduo: para ser cidadão seria tão somente necessário submeter-se às leis que o Estado promulga, sendo que o Estado, por seu turno, não poderia professar quaisquer crenças8. A partir disso ocorreria, nos dizeres de Gustavo Lacerda, uma privatização da fé, “no sentido de que a fé torna-se um assunto particular, de foro íntimo, e deixa de ser um tema organizador da discussão pública”9. Nada obstante, o fato de as preferências religiosas deixarem de ser uma questão de interesse público não fez com que as entidades religiosas passassem a ser tratadas como sujeitos de capacidade contributiva: as igrejas, um tanto por sua história, outro tanto pela atividade que desenvolvem, são agraciadas com tratamento tributário favorecido em boa parte dos países ocidentais.

Além do contexto histórico a envolver as relações entre Estado e Igreja, um outro argumento a favorecer a imunidade tributária religiosa é a relação da Igreja com a caridade10. Vaughn E. James, além de mencionar um caso da Inglaterra entre os séculos XVII e XIX11, lembra que algumas passagens bíblicas acerca do dízimo arrecadado pelos levitas obrigam esses a destinar uma parte dos bens e valores aos pobres e viúvas, fora aquilo que é destinado à manutenção dos próprios levitas e ao uso nas festas e sacrifícios12.

Assim, pode-se dizer que o tratamento diferenciado que ainda hoje se confere às religiões pelos Estados, a despeito de eventuais perseguições a grupos minoritários, tem por razão o reconhecimento, por parte do soberano, nobreza ou governo, da importância que o assistencialismo organizado pelas entidades religiosas possui para o bem-estar social13, isso sem contar a relevância da espiritualidade mesma ou da busca pelo transcendental, que eram e continuam sendo, em regra, a razão de existência das religiões – por isso, à exceção dos casos em que o soberano ou governante arvora-se a si próprio como um deus, abrir conflito com a religião de seus cidadãos seria, para o Estado, uma grande temeridade, pois em última instância tal disputa aberta seria uma afronta a um ser superior contra o qual aquele não teria qualquer poder.

1.2. O sistema de isenções norte-americano

A escolha do sistema norte-americano de isenções para ser objeto de análise neste artigo, em detrimento de outros sistemas jurídicos, não se dá por acaso: é que a laicidade ali surgiu com o próprio nascimento do país – não custa dizer que os ideais iluministas franceses foram adotados nos Estados Unidos antes mesmo da França, e nenhuma instituição religiosa jamais teve precedência na ex-colônia inglesa, nem sequer influência comparável à vista, no passado e até nos dias de hoje, em outros países ocidentais. Isso, porém, não significa dizer que as igrejas norte-americanas são absolutamente alheias aos feitos e fatos políticos.

Nos Estados Unidos, o Internal Revenue Code (IRC) é o diploma legal responsável por disciplinar a tributação da União. A seção 501, ao disciplinar sobre as isenções, especifica, dentre as entidades isentas (subseção “c”), aquelas voltadas a propósitos religiosos, caritativos, científicos, literários, educacionais, esportivos, de defesa dos animais e de apoio à segurança pública14.

No mesmo dispositivo que enumera tais entidades, são explicitados três requisitos a serem por elas observados. O primeiro é a proibição de participação de acionista ou qualquer outro indivíduo na renda líquida da entidade. O segundo e o terceiro proíbem às entidades: (a) a participação substancial (substantial part) em propaganda ou lobby junto a atores do Legislativo; e (b) a participação ou intervenção em qualquer nível em campanhas políticas, seja a favor ou contra qualquer candidato – proibições que coroariam a separação entre Igreja e Estado.

A separação entre a Igreja e o Estado é, deveras, um problema não totalmente resolvido nos Estados Unidos. Vaughn E. James, após mencionar inúmeros casos em que igrejas efetivamente promoveram lobby no Legislativo ou fizeram ostensiva manifestação a favor ou contra políticos, lembra que numa única situação houve a suspensão da isenção tributária de entidade religiosa, porque teria ela publicado uma advertência em jornais de grande circulação questionando o caráter moral do então candidato à presidência Bill Clinton15 – em diversos outros casos, apesar de investigações empreendidas pelo Internal Revenue Service (IRS), não houve registros de cancelamento da isenção. Diante da falta de clareza da vedação constante do § 501(c)(3) do IRC, sobretudo no que se refere ao termo “substantial”, sugere o autor uma mudança do texto legal, de maneira a tornar claro que as “igrejas poderiam se engajar em atividades de influência ao legislador” (por exemplo, defendendo suas posições históricas contra o aborto), desde que não mantenham contato direto ou indireto com parlamentares16.

O entendimento de James, porém, encontra certa oposição em Johnny Buckles. Esse, ao criticar investigações conduzidas pelo IRS em relação a discursos políticos de bispos e pastores ou participação de candidatos em eventos religiosos, por ocasião da campanha eleitoral norte-americana em 2007/2008, defende que a separação entre Igreja e Estado não pode implicar num amordaçamento das organizações religiosas, impedindo-as de manifestar, por meio de seus líderes, suas preferências políticas17. A questão, porém, é identificar até que ponto essa manifestação política das igrejas (fora dos muros dos templos, principalmente) pode ser considerada razoável sem que se repute invasora do âmbito de atuação estatal, diante do que tornar-se-ia a organização inapta a obter isenção ou imunidade tributária. Esse assunto voltará a ser tratado mais adiante.

Nada obstante, talvez ainda mais polêmica que a questão das relações entre Estado e Igreja nos Estados Unidos seja a que sobressai da regra da proibição de distribuição de lucros e resultados das entidades a qualquer particular. Isso porque a seção 6.033 do IRC, ao demandar das entidades isentas uma declaração de rendimentos e despesas, exclui as igrejas de tal obrigação18, o que é tachado por John Montague como incompatível com as atuais exigências de transparência e responsabilidade, pois, em vez de promover a liberdade de culto, essa exceção legal na verdade a inibe, “permitindo que charlatães escondam seus delitos financeiros inescrupulosos sob uma capa de fervor religioso”19.

Ora, assim como sucedia com os templos antigos, não é raro observar-se nas instituições religiosas atuais indícios de riqueza e opulência. Além da isenção tratada acima, é possível ao fiel, assim nos Estados Unidos como também em alguns países europeus, deduzir doações ou destinar parte do imposto de renda para manutenção de igrejas20-21, faculdade que a Suprema Corte norte-americana já admitiu ser “uma forma de subsídio que é administrada através do sistema tributário”22. Diante disso, é de se questionar se a imunidade religiosa tem de fato a feição de uma regra de proteção à liberdade de culto ou se, em verdade, assumiu a posição de promoção dessa liberdade23 – e isso não apenas no exemplo norte-americano, mas também e especialmente no Brasil, na medida em que, muito além de afastar da tributação os templos, a jurisprudência atual do STF torna imunes bens e atividades econômicas de igrejas sem uma evidenciada relação com os propósitos religiosos.

Como se vê, sem embargo de a isenção tributária das entidades religiosas nos Estados Unidos estar assentada em bases que, até certo ponto, também são vistas em nosso ordenamento, ela está muito distante de se ver isenta de críticas, sendo mister reconhecer que as censuras lançadas àquele sistema são, em grande parte, igualmente aplicáveis ao sistema brasileiro – assunto do qual se cuidará mais detidamente na seção seguinte.

2. Sobre a imunidade dos templos no Brasil

A regra de imunidade hoje encontrada na Constituição, e especialmente a interpretação dada pelo STF, dá ensejo a distorções em sua aplicação, não apenas por dispensar as entidades religiosas da tributação por atividades materialmente distanciadas do culto religioso (a renda obtida de aluguéis, aplicações financeiras e da prestação de serviços – inclusive a prestação em si mesma – está, segundo a jurisprudência dominante, imune de impostos24, desde que se destine à manutenção das atividades religiosas25), mas também por conferir tratamento mais gravoso – e, portanto, anti-isonômico – a instituições de caráter assemelhado, mas que não se colocam como religiosas, como é o caso da maçonaria26.

Muito da proteção quase irrestrita hoje conferida às entidades religiosas vem da amplitude que a doutrina majoritária e a jurisprudência do STF conferem ao preceito das liberdades de crença e culto religioso, previstas no art. 5º, VI, da Carta Magna. Nada obstante, é possível correlacionar, de maneira direta, essas liberdades com a imunidade tributária dos templos? É o que se passa a investigar.

2.1. A imunidade religiosa é projeção da liberdade de culto?

Antes de mais nada, é crucial assentar que não é objetivo deste trabalho perscrutar se o constituinte de 1988, ao prescrever as liberdades de crença e de culto religioso, também tinha por intenção protegê-los de qualquer investida estatal sobre seu patrimônio e renda. Todavia, parece de rigor verificar se a proteção a tais liberdades implica ignorar por completo a eventual capacidade contributiva27 das entidades – há de se tomar por premissa que a liberdade religiosa é decorrente do princípio da laicidade do Estado brasileiro, e que essa laicidade, grosso modo, indica que o Estado não professa nem favorece nenhuma religião28, inclusive o ateísmo – que é também uma posição religiosa, ainda que num sentido negativo. Merece, pois, ser investigado se a neutralidade do Estado em assuntos religiosos implica, ao menos no Brasil, também o dever estatal de se furtar da cobrança de tributos das igrejas.

Tendo em vista o breve exame histórico realizado na seção inicial deste trabalho, não parece correta a afirmação de que a imunidade tributária seria corolário do direito previsto no art. 5º, VI, da atual CF29, visto que, a rigor, o tratamento tributário favorecido precedeu a instituição da liberdade de culto – não poderia uma liberdade garantida em tempos tão recentes justificar um benefício concedido desde a Antiguidade, ainda que em termos bem distintos dos atuais. Discorda-se, pois, do entendimento registrado pelo STF no julgamento da ADI n. 93930, em que foi declarada a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 03/1993 no trecho em que afastou a imunidade religiosa quanto à cobrança do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira. Ainda que tenha a Corte Suprema reputado tal imunidade como cláusula pétrea, por força do art. 60, § 4º, IV, da CF, há de se entender que a imunidade religiosa possui, quando muito, relação de pertinência com a liberdade de culto, sem ser imprescindível para realização dessa, pois, do contrário, seria também necessário reconhecer, por exemplo, a imunidade tributária de órgãos de imprensa – e não apenas dos livros, jornais e periódicos – em suposta proteção à liberdade prevista no inciso IX do art. 5º da CF.

Com efeito, a imunidade tributária dos templos de qualquer culto nada mais é que um favor estatal, fruto, a priori, das relações históricas entre Estado e Igreja ao longo dos séculos e que culminou na disposição do Estado em não mais estabelecer, subvencionar31 e nem embaraçar a realização de atividades religiosas (art. 19, I, da CF). Porém, tal imunidade não é condição sine qua non para a proteção da liberdade religiosa, como se as confissões religiosas simplesmente não pudessem ser obrigadas a custear o Estado32, pois que, além de diversas outras liberdades dos indivíduos serem garantidas pela Constituição sem que se cogite de semelhante privilégio, não se pode olvidar, por outro lado, que a defesa da liberdade religiosa – tal como qualquer outra – tem um custo, arcado pela sociedade por meio dos tributos33. O Estado, nessa linha de ideias, protege a liberdade de culto sem pedir nada em troca dos entes religiosos diretamente interessados.

Dessa feita, para se buscar o mais coerente fundamento da imunidade religiosa – independentemente de essa imunidade ser legítima ou não – é preciso fazer uma investigação mais profunda, não no campo histórico, já antes retratado neste trabalho, mas na relação jurídica existente entre o poder político e o religioso.

2.2. A separação entre Igreja e Estado é real?

O conceito da separação entre o poder político e o poder religioso, embora evidenciado em Hugo Grócio e Condorcet, adquiriu de fato suas primeiras contribuições já no período clássico da Grécia antiga. Com efeito, desde Sócrates34, Platão e Aristóteles encontram-se os vestígios de uma preocupação com o afastamento do governo dos cidadãos face a qualquer “componente mítico-místico-religioso”35, permitindo assim o afloramento da democracia como exercício do poder político independentemente da crença ou não em um deus. Até mesmo nas famosas palavras de Jesus Cristo – “dai a César o que é de César”36 – é possível entrever essa distinção de poderes.

Nesse contexto, é importante frisar que a laicidade esboçada pela filosofia grega não continha o anticlericalismo observado no discurso de Condorcet. Em verdade, o modelo laico do iluminismo francês – e, de certa forma, visto até hoje ali – fundava-se no império da razão e no condicionamento das manifestações religiosas aos ambientes privados, naquilo que se apelidou de laicismo, ou seja, uma relação de indiferença ou mesmo de hostilidade do Estado para com as religiões37. A essa postura se opôs Louis de Bonald, filósofo católico e crítico da Revolução Francesa, o qual defendia que a constituição de uma sociedade religiosa ou política está além das capacidades do homem, o qual poderia, no máximo, “retardar o sucesso dos esforços que ela [a sociedade] faz para chegar à sua constituição natural”38.

Tal introito se mostra útil para demonstrar, ainda que brevemente, a falta de consenso na filosofia política acerca de um modelo absolutamente justo de relação entre o poder político-estatal e o religioso. Embora seja possível admitir que o poder religioso, para muitos, estaria constituído num plano metafísico, fora deste mundo, também é verdade que ele influenciou e continua a influenciar diversos momentos da história humana e do poder político, para o bem e para o mal.

Como se sabe, o Estado brasileiro optou por um modelo de laicidade por meio do qual, em vez de se postar combativamente, adota-se um gesto colaborativo com o poder religioso. O art. 19, I, da CF disciplina que:

“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”

Pelo visto acima, assim como ocorre com as disposições constitucionais acerca da liberdade de culto (art. 5º, VI), são estabelecidas obrigações aos entes federativos de não intervenção nas atividades religiosas, visto que, diferentemente do que se observava na Antiguidade, as organizações religiosas não podem estar contidas no Estado que se diz laico, ficando assim livres para “trilhar o caminho do cultivo do espírito do ser humano em busca do bem comum de forma independente, paralela e concomitante ao Estado”39. Embora haja poucas dúvidas acerca do papel que as religiões exercem perante a sociedade, há de se perquirir se a regra constitucional da não intervenção seria dirigida tão somente ao poder político ou se, ao invés, constituiria uma via de mão dupla, havendo igualmente um dever do poder religioso em não se intrometer em assuntos de Estado – preocupação que remete à filosofia de Sócrates que determinou sua condenação em Atenas e ainda bem presente nos dias atuais, como revelado pela doutrina norte-americana antes citada neste trabalho.

Ao menos no Brasil, a existência no Congresso Nacional de uma Frente Parlamentar Evangélica composta por 195 deputados signatários e 8 senadores com o declarado propósito de influir no processo legislativo desde as comissões temáticas do parlamento, “segundo seus objetivos, combinados com os propósitos de Deus, e conforme Sua Palavra”40, por si só indica que a separação rígida entre Igreja e Estado possui, se não traços utópicos, certamente alguma fragilidade, reforçando a opinião de Carl Schmitt de que é impossível “separar, na realidade histórica, motivos e objetivos religiosos e políticos como dois âmbitos determináveis substancialmente”41. Ainda que se possa dizer que o Estado, nos dias atuais, não interfere nos rumos e decisões tomados pelas organizações religiosas, é impossível afirmar que a recíproca é verdadeira – há um indicativo claro em certas tomadas de decisão política de que o poder religioso, mesmo que de origem transcendente, assume na representação humana um caráter secular, civil, cuja influência não pode ser desprezada.

Observe-se, porém, que os templos de qualquer culto se encontram inseridos numa realidade social e possuem uma existência no tempo – ainda que a divindade ali adorada não se condicione a tal. Ora, seria até indecoroso exigir dessas organizações um comportamento de total alienação no que respeita às ações do Estado: a separação aqui apregoada não alcança tal extremo, sendo admissível que igrejas, por meio de seus líderes, manifestem-se sobre aspectos observados no cotidiano, incluindo o terreno da política. Não poderiam, no entanto, fazer de tal manifestação uma notória interferência, diretamente ou através de representantes patrocinados pelas igrejas, nos rumos ditados pelo Estado para a nação, diante do que não há separação ou laicidade verdadeiras.

Nessa linha de ideias, se a separação entre Estado e Igreja configura o fundamento central da imunidade tributária religiosa, não se enxerga tal separação, ao menos no Brasil, em contornos tão nítidos, exatamente porque o poder religioso exerce influência (contundente ou limitada, a depender do ponto de vista) sobre o poder político, em especial por meio de congressistas que possuem notória identificação com igrejas. Por conseguinte, se a regra da não intervenção deve constituir uma via de mão dupla para fins de legitimação da imunidade tributária das organizações religiosas, conclui-se que o fundamento da imunidade careceria de base empírica na medida em que se verificar a intromissão da religião na política.

Ainda assim, é necessário frisar que, entre Estado e Igreja, alguma separação, sim, há: se há uma boa justificativa ao tratamento tributário favorável às organizações religiosas, é pelo fato de elas promoverem o bem, tal como o Direito, mas num âmbito destacado, em que o ser humano, buscando aprimorar-se, dialoga com o místico, transcendental ou espiritual – haveria, assim, um dever do Estado de, por meio da imunidade tributária, não apenas proteger as atividades religiosas, mas mais precisamente promover os valores sociais que a religião preserva, inclusive a caridade. Ao fim e ao cabo, estaria a Igreja, pois, atuando como auxiliar do Estado na estabilização das relações sociais – seja num plano metafísico, seja por meio de ações assistenciais –, ficando superado o argumento de que Estado e Igreja atuam em planos completamente distintos, como se as entidades eclesiásticas não tivessem qualquer relação com o que acontece de rotineiro na Terra, inclusive no que se refere a obrigações sociais.

Em suma, não se vislumbra com indiscutível nitidez a propagada separação do poder religioso em face do poder político, seja pela forte influência de um no outro, seja pelo fato de que a Igreja possui um componente mundano do qual não pode se desvencilhar, inclusive beneficiando-se, mesmo que indiretamente, de serviços prestados pelo Estado, como já dito anteriormente. Por isso, o tratamento tributário favorável aos templos de qualquer culto necessita estar justificado não meramente pela história das relações entre Igreja e Estado, mas sim pelo papel de promoção do bem comum que a Igreja assume frente aos demais atores sociais – mesmo se tratando de benefício previsto constitucionalmente, com uma justificação apoiada na isonomia tributária, cuja abordagem será feita a seguir.

3. A imunidade tributária religiosa e a isonomia

A questão da imunidade dos templos de qualquer culto e a observância do princípio da isonomia tributária42 pode ser vista sob dois prismas externos: primeiro, o ponto de vista das entidades imunes descritas na alínea “c” do art. 150, VI, da CF; segundo, a posição das pessoas jurídicas que não se beneficiam de qualquer espécie de imunidade, mas que guardam alguma semelhança com as igrejas, como é o caso das lojas maçônicas, centros de tradições culturais, dentre outros.

Com efeito, a menos que as lojas maçônicas estejam compreendidas na regra que declara imunes as entidades assistenciais, não poderão elas gozar de qualquer benefício, ainda que suas atividades em muito se assemelhem às de uma entidade religiosa. Nas igrejas, assim como nas lojas maçônicas e em associações de finalidades filosóficas e culturais, um grupo de pessoas, movidas por interesses comuns, se reúne com vistas à promoção do próprio bem-estar. Ainda que nos cultos religiosos, para assim serem chamados, se exija um mínimo de “espiritualidade e transcendentalidade”43, não se pode conceber que, para fins tributários, essa seja a nota diferenciadora entre entidades imunes e contribuintes, não sobrevivendo essa orientação a um correto juízo de igualdade44 – para os fins em questão, não parece ser possível tratar como um fator de desigualação pertinente a informação de que o culto cristão, judeu, muçulmano etc. possui uma aura de espiritualidade não encontrada em reuniões da maçonaria45, possuindo ambos, por outro lado, características relevantes em comum46.

Uma outra questão a ser levantada é o tratamento conferido à entidade religiosa em comparação com as entidades imunes da alínea “c” do art. 150, VI, da CF (partidos políticos, sindicatos de trabalhadores e instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos), com as quais se identifica, conforme já demonstrado anteriormente, pela relação histórica das igrejas com a caridade. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, onde tanto as entidades religiosas como as assistenciais se submetem à proibição de distribuir lucros e resultados (ainda que as igrejas norte-americanas, como visto alhures, estejam desobrigadas a apresentar demonstrativo de receitas e despesas ao Fisco), no Brasil somente o segundo grupo está obrigado a observar o que dispõe o art. 14 do CTN:

“Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:

I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título;

II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;

III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

[...]”

Apesar de existir opinião doutrinária no sentido da extensão integral das obrigações do art. 14 transcrito supra às entidades religiosas47, não é adequado compreender tais requisitos como um todo indivisível, sendo necessário realizar uma análise em separado de cada um dos três incisos, a começar pelo último deles.

Pois bem. No tocante ao inciso III, que diz respeito à escrituração de receitas e despesas, observa-se que, na prática, ele também atinge as igrejas, isso por se tratar de uma obrigação acessória que se baseia no poder geral de fiscalização da Administração Tributária. Com efeito, as pessoas que gozam de imunidade tributária não escapam da sujeição à legislação pertinente (art. 194, parágrafo único, do CTN)48, a qual está materializada, quanto à escrituração, no art. 11 da Lei n. 8.218/1991 e nos atos normativos da Receita Federal do Brasil que tratam da Escrituração Contábil Fiscal (ECF) e da Escrituração Contábil Digital (ECD), retratadas respectivamente nas Instruções Normativas n. 2004 e n. 2003, editadas em 18 de janeiro de 2021 – no caso da ECD, apenas as entidades imunes que auferiram recursos em valor superior a R$ 4,8 milhões estão sujeitas à apresentação. A escrituração fiscal é, em suma, uma exigência que se estende a qualquer pessoa jurídica e que também alcança as igrejas, visto que, à medida que essas possuem uma natureza temporal em paralelo à espiritual, elas precisam se manter organizadas e devidamente identificadas perante o Estado e a sociedade49.

Já quanto à proibição de remessa de recursos ao exterior (inciso II), trata-se de uma obrigação-vedação incompatível com a atividade religiosa. Deveras, muitas igrejas possuem caráter transnacional, mantendo missionários e congregações nos mais diversos países, inclusive nações pobres, onde dificilmente a representação local da entidade religiosa consegue ser autossustentável. Assim, a exigência de aplicação integral no Brasil dos recursos obtidos conflita com a própria natureza da atividade religiosa, que tem pretensão de universalidade: alcançar todo ser humano.

Por fim, a proibição de distribuição de patrimônio ou renda (inciso I) é, talvez, o item mais polêmico de aplicação ou não às entidades religiosas, considerando que várias delas remuneram seus dirigentes ou, mais que isso, operam com confusão patrimonial (art. 50, § 2º, do Código Civil) entre organização e líderes, desvirtuando-se acentuadamente da sua atividade precípua.

No que respeita unicamente à remuneração de dirigentes, importa ressalvar que tal costume não deve importar em censura legal, visto que mesmo os dirigentes de associações e fundações assistenciais possuem esse direito, nos termos da Lei n. 13.151/2015, e o pagamento em si nada mais é que uma contraprestação pelos serviços prestados à entidade50. Por outro lado, o real intento do legislador ao proibir a distribuição de patrimônio e renda das entidades assistenciais é manter os lucros eventuais da atividade vinculados à própria manutenção dela, finalidade essa que, de igual modo, deveria ser exigida das igrejas, justamente para prevenir o abuso da personalidade jurídica.

Ao excluir as organizações religiosas do cumprimento do art. 14, I, do CTN, o legislador acaba por conferir um passe livre a essas entidades, as quais podem, inclusive, com seu poderio econômico, intervir indevidamente no poder político, patrocinando a candidatura de membros a cargos eletivos ou até realizando lobbies intensos – mais, portanto, que uma mera influência de opinião – junto a governos e membros do Legislativo, sem que haja qualquer previsão de sanções ante a tal comportamento abusivo. Diante disso, a extensão aos templos de qualquer culto da regra de não distribuição de patrimônio e renda pode servir como um instrumento de desincentivo a essas entidades de desbordarem de suas finalidades essenciais, auxiliando na legítima separação – prevista pela Constituição, mas não observada na prática, conforme já exposto neste trabalho – dos poderes religioso e político.

Considerações finais

No presente trabalho foram desenvolvidas reflexões acerca da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “b”, da Constituição Federal, voltada aos templos de qualquer culto, retirando dos sujeitos ativos a competência de tributar tais templos em impostos sobre o patrimônio, renda e serviços, desde que tais bens e atividades se relacionem com as finalidades essenciais (art. 150, § 4º) da entidade religiosa.

Nesse intento, foi realizada inicialmente uma retrospectiva histórica da relação entre Estado e Igreja, apontando a evolução daquela, desde a simbiose ou profunda influência de um poder sobre o outro, vista a partir das sociedades antigas, até se chegar à ideia de laicidade estampada nas revoluções do fim do século XVIII. A seguir, foi apresentada uma crítica da doutrina jurídica norte-americana ao instituto da isenção tributária lá existente, que apresenta deficiências sobretudo no controle das atividades financeiras das igrejas e na preservação da separação ou equidistância que essas devem manter das atividades político-partidárias.

Mais adiante, foi destacado que, ao contrário do que prega substanciosa doutrina, não parece sensato apontar a imunidade tributária religiosa como corolário da liberdade de culto, visto que tal benefício nasceu, de fato, antes da proclamação da liberdade hoje prevista no inciso VI do art. 5º da CF – assim, na visão deste autor, a imunidade estaria mais bem justificada pela relação histórica entre Estado e Igreja, ultimamente caracterizada pela ideia da laicidade do Estado, cabendo à Igreja não apenas os cuidados com a alma de seus fiéis, mas também uma essencial ação caritativa, o que faz as organizações religiosas serem até certo ponto semelhantes, em ideais e estrutura, às entidades assistenciais – não se olvidando, porém, da grande influência que o poder religioso ainda exerce no meio político, garantindo às igrejas certos privilégios não conferidos às demais entidades imunes de tributo. Diante disso, percebe-se que a separação entre Igreja e Estado, ainda que exista, não é absoluta, de modo que a imunidade tributária prevista deveria, em vez de ser fundamentada na proteção da liberdade religiosa, ser garantida como fator de promoção da solidariedade (com ações de cunho espiritual, mas também de caridade) que a religião busca propagar.

Por fim, viu-se que as regras da imunidade religiosa, tal como hoje previstas em nosso ordenamento, são falhas na atenção ao princípio da isonomia tributária, tanto quando as igrejas são postas diante das regras aplicáveis a outras entidades imunes, como sindicatos de trabalhadores, instituições assistenciais e partidos políticos – das quais são exigidas certas obrigações não requeridas das igrejas –, assim também na comparação com pessoas jurídicas não imunes, cuja nota diferenciadora face às entidades religiosas, a depender do caso, não estaria razoavelmente justificada a ponto de autorizar o tratamento desigual em favor das últimas.

Em suma, a imunidade dos templos de qualquer culto no Brasil, embora encontre com a legislação estrangeira algumas semelhanças, possui deficiências severas, veiculando distorções que, em parte, poderiam ser remediadas com a adoção de medidas que corroborassem com a verdadeira separação entre poder político e religioso: a mais simples dessas medidas encontra-se já na nossa legislação, que seria a extensão às igrejas do requisito da não distribuição de patrimônio ou renda, previsto no art. 14, I, do CTN, com previsão de sanções em caso de descumprimento. Uma outra opção seria reproduzir nacionalmente as regras previstas no IRC norte-americano no que diz respeito à não intervenção/participação ostensiva das igrejas em atividades de natureza político-partidária, proibição essa que, dentro de parâmetros razoáveis de aplicação, busca garantir que o poder religioso se mantenha minimamente alheio ao poder político, atuando cada qual em busca do bem comum dentro de suas estritas afinidades.

Nada obstante, outros problemas identificados empiricamente não poderiam ser resolvidos sem uma mudança de postura do STF quanto à interpretação do texto constitucional, sobretudo no que tange à relação entre os bens, renda e serviços e a promoção das finalidades essenciais das entidades religiosas – questões essas que, porém, ultrapassam os limites de exame deste trabalho, que aqui se encerra.

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1 Para os fins do presente artigo, “entidades religiosas”, “organizações eclesiásticas”, “igrejas” e “templos de qualquer culto” serão tratados como termos de idêntico significado.

2 VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 108.

3 ADAMS, Charles. For good and evil – the impact of taxes on the course of civilization. Lanham: Madison Books, 2001, p. 45-46.

4 ADAMS, Charles. For good and evil – the impact of taxes on the course of civilization. Lanham: Madison Books, 2001, p. 13.

5 Ver comentários na seção introdutória deste trabalho.

6 JAMES, Vaughn E. Reaping where they have not sowed: have american churches failed to satisfy the requirements for the religious tax exemption? The Catholic Lawyer vol. 43. New York, 2004, p. 36.

7 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 31.

8 São palavras do filósofo francês: “[...] les opinions religieuses ne peuvent faire partie de l’instruction commune, puisque, devant être le choix d’une conscience indépendante, aucune autorité n’a le droit de préférer l’une à l’autre; et il en résulte la nécessité de rendre l’enseignement de la morale rigoureusement indépendant de ces opinions” (Cinq mémoires sur l’instruction publique. Chicoutimi: Université du Québec, 2005, p. 37).

9 LACERDA, Gustavo Biscaia de. Sobre as relações entre Igreja e Estado: conceituando a laicidade. Conselho Nacional do Ministério Público. Ministério Público em Defesa do Estado Laico vol. 1. Brasília: CNMP, 2014, p. 187.

10 John Witte lembra que as cortes de equidade da Inglaterra desenvolveram, com base no Statute of Charitable Uses de 1601, um conceito aberto de caridade, que incluía toda atividade que beneficiasse “um número indefinido de pessoas”, alcançando, dentre outras ações, “trazer suas mentes e corações à influência da educação ou religião” (Tax exemption of church property: historical anomaly or valid constitutional practice? Southern California Law Review vol. 64, n. 2. Los Angeles, 1991, p. 376).

11 Tax exemption of church property: historical anomaly or valid constitutional practice? Southern California Law Review vol. 64, n. 2. Los Angeles, 1991, p. 37. Nesse trecho, o autor cita opinião escrita pelo Lorde McNaughten e que se tornou corrente na Inglaterra de 1891, de que o senso de caridade compreendia, dentre outros propósitos inespecíficos, o combate à pobreza e a promoção da educação e da religião.

12 Tax exemption of church property: historical anomaly or valid constitutional practice? Southern California Law Review vol. 64, n. 2. Los Angeles, 1991, p. 33-34.

13 Nesse sentido, Vittorio Cassone destaca que as ações de “assistência social” praticadas pelas igrejas estão interligadas com as imunidades de impostos e de contribuições sociais destinadas à seguridade social previstas em nosso ordenamento (Imunidade tributária dos templos – a solidariedade na Igreja Católica e na Constituição do Brasil. Revista Fórum de Direito Tributário ano 1, n. 4, jul./ago. 2003, p. 55). A relação entre a imunidade tributária e a caridade voltará a ser examinada mais adiante neste trabalho.

14 Na redação original: “Corporations, and any community chest, fund, or foundation, organized and operated exclusively for religious, charitable, scientific, testing for public safety, literary, or educational purposes, or to foster national or international amateur sports competition (but only if no part of its activities involve the provision of athletic facilities or equipment), or for the prevention of cruelty to children or animals, no part of the net earnings of which inures to the benefit of any private shareholder or individual, no substantial part of the activities of which is carrying on propaganda, or otherwise attempting, to influence legislation (except as otherwise provided in subsection (h)), and which does not participate in, or intervene in (including the publishing or distributing of statements), any political campaign on behalf of (or in opposition to) any candidate for public office”.

15 Internal Revenue Code (IRC), p. 71.

16 Internal Revenue Code (IRC), p. 76.

17 Does the constitutional norm of separation of church and state justify the denial of tax exemption to churches that engage in partisan political speech? Houston: The University of Houston Law Center, 2008-A-25.

18 Eis o texto legal: “every organization exempt from taxation under section 501(a) shall file an annual return, stating specifically the items of gross income, receipts, and disbursements, and such other information for the purpose of carrying out the internal revenue laws as the Secretary may by forms or regulations prescribe, and shall keep such records, render under oath such statements, make such other returns, and comply with such rules and regulations as the Secretary may from time to time prescribe. [...] (3) Exceptions from filing (A) Mandatory exceptions – Paragraph (1) shall not apply to – (i) churches, their integrated auxiliaries, and conventions or associations of churches.”

19 The law and financial transparency in churches: reconsidering the form 990 exemption. Cardozo Law Review vol. 35. New York, 2013, p. 265. Importante salientar que o propósito inicial do legislador norte-americano, ao exigir a declaração das entidades sem fins lucrativos, era evitar que essas fizessem uso de seu status privilegiado (de isenção tributária) para ganhar, num regime competitivo, vantagem indevida sobre as empresas em geral (The law and financial transparency in churches: reconsidering the form 990 exemption. Cardozo Law Review vol. 35. New York, 2013, p. 210).

20 Na Itália vigora a regra do otto per mille (art. 47 da Lei n. 222, de 20 de maio de 1985, e leis posteriores), por meio da qual as instituições eclesiásticas com organização reconhecida pelo Estado possuem o direito de receber, do contribuinte que assim optar, a doação de 0,8% do imposto de renda devido. Já na Espanha, em razão da 18ª disposição adicional da Lei n. 42, de 28 de dezembro de 2006, o contribuinte poderá aceder expressamente a que 0,7% do seu imposto de renda seja destinado à Igreja Católica – única organização religiosa beneficiada pela lei do país ibérico.

21 Ressalte-se que na Alemanha, Áustria e em alguns cantões suíços, em vez de uma dedução de tributo, é instituído o kirchensteuer, que consiste num adicional ao imposto de renda do contribuinte destinado à organização religiosa da qual esse é membro.

22 In verbis: “tax exemption and tax deductibility are a form of subsidy that is administered through the tax system”. E acrescentou a corte: “a tax exemption has much the same effect as a cash grant to the organization”. Regan v. Taxation with Representation of Washington, 461 U.S. 540 (1983). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/461/540/. Acesso em: 13 set. 2018.

23 A distinção entre imunidades de proteção e de promoção de direitos fundamentais é identificada por Fabrício da Soller: “há imunidades que visam promover valores sociais, como é o caso das imunidades para as entidades de assistência social e de educação, sem fins lucrativos, que têm por escopo a promoção da solidariedade [...]. Ocorre que há imunidades cujo escopo não é de promoção de algo, mas sim de pura e simples preservação (proteção) de algum valor relevante para a coletividade. É o caso da imunidade [religiosa] sobre a qual ora se debruça, já que não cabe ao Estado promover nenhuma religião, nem mesmo a religiosidade do seu povo, devendo sim, apenas e tão somente, tolerar as manifestações religiosas, não criando embaraço para as mesmas.” (A imunidade tributária dos templos de qualquer culto – por uma revisão da posição do STF. Revista Fórum de Direito Tributário ano 2, n. 12. Belo Horizonte, nov./dez. 2004, p. 123).

24 Nesse sentido: RE n. 325.822, Plenário, Rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. em 18.12.2002, DJ 14.05.2004; RE n. 578.562, Plenário, Rel. Min. Eros Grau, j. em 21.05.2008, DJe 12.09.2008; AI n. 769.613-AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Eros Grau, j. em 09.03.2010; RE n. 800.395, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 28.10.2014, DJe 14.11.2014.

25 Contrário a esse posicionamento, Fabrício da Soller vaticina que “por não ser uma imunidade de promoção [...], não faz o menor sentido que o Estado deixe de tributar as rendas auferidas com aplicações financeiras ou com os aluguéis de imóveis. A não ser que o Estado quisesse incentivar o surgimento e o crescimento das religiões, o que lhe é vedado, não é razoável afirmar que toda [a] sociedade tenha de contribuir para a manutenção do Estado com o pagamento dos impostos devidos nessas operações, mas as instituições religiosas não.” (A imunidade tributária dos templos de qualquer culto – por uma revisão da posição do STF. Revista Fórum de Direito Tributário ano 2, n. 12. Belo Horizonte, nov./dez. 2004, p. 133). Sobre a distinção entre as imunidades de promoção e proteção, v. nota 22, supra.

26 V. STF, RE n. 562.351, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, j. em 04.09.2012, DJe 14.12.2012. O pretório, ao conferir interpretação restritiva à expressão “templos de qualquer culto”, consignou que a própria maçonaria não se declara como religião, de modo que não poderia fazer jus à imunidade específica. Em sentido contrário: CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 850; RINALDI, Natanael. Maçonaria – sociedade secreta ou religião? São José do Rio Preto: Centro Apologético Cristão de Pesquisas, 2015.

27 A despeito da opinião de Aliomar Baleeiro, no sentido de que “o culto não tem capacidade econômica” (Limitações constitucionais ao poder de tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 311), importa asseverar que o simples fato de a Constituição tornar imune de tributação o patrimônio e a renda dos templos religiosos já faz presumir que tais possuem, sim, alguma capacidade econômica, ainda que diminuta ou desprezível para fins de cobrança de tributos.

28 LACERDA, Gustavo Biscaia de. Sobre as relações entre Igreja e Estado: conceituando a laicidade. Conselho Nacional do Ministério Público. Ministério Público em Defesa do Estado Laico vol. 1. Brasília: CNMP, 2014, p. 181. Segundo o “modelo tradicional” de Estado laico, esse “relaciona-se com a religião com neutralidade positiva, garantindo que todas as modalidades de expressões religiosas se manifestem livremente em seu território nacional” (VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 141).

29 É de se reconhecer que, na doutrina pátria, é quase senso comum o entendimento de que a liberdade de culto fundamenta a imunidade dos templos – ou que, ao menos, essa é projeção daquela. A esse respeito conferir: ÁVILA, Fabiana. A imunidade tributária dos templos de qualquer culto. Revista da FESDT n. 6. Porto Alegre, jul./dez. 2010, p. 44-48. Classificando a imunidade como um verdadeiro direito fundamental das igrejas, confira-se: VIEIRA, Karinny Guedes de Melo; LIMA NETO, Manoel Cavalcante de. A imunidade tributária dos templos de qualquer culto como direito fundamental. Escola da Magistratura de Alagoas, 2016.

30 Rel. Min. Sidney Sanches, Plenário, j. em 15.12.1993, DJ 18.03.1994.

31 Sobre subsídios ao poder religioso em outros países, vide subseção 1.2, supra.

32 VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 456. Embora defendam a exclusão das organizações eclesiásticas de qualquer espécie de participação no custeio das atividades estatais, os autores reconhecem que a “regra imunizante” decorre da “necessária separação entre Igreja e Estado, o que, na verdade, garante a liberdade de crença e culto, e não o contrário” (p. 450).

33 Como bem ensinam Stephen Holmes e Cass R. Sunstein, a liberdade religiosa impõe um custo ao Estado, seja em razão dos remédios judiciais disponibilizados para garantir essa liberdade, seja quando o governo é obrigado a “intervir imparcialmente quando surgem tensões graves entre grupos religiosos” (O custo dos direitos – por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019, p. 153-154).

34 Vale recordar que, segundo a Apologia de Sócrates registrada por Platão (São Paulo: CultVox, p. 8), a acusação que pesava contra o filósofo falecido em 399 a.C. era ser ateu (ou querer introduzir novas entidades divinas, diversas das cultuadas em Atenas) e corromper os jovens com sua filosofia.

35 VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 130.

36 Eis trecho da passagem bíblica: “– Dize-nos, pois, que te parece? É lícito pagar o tributo a César, ou não? Jesus, porém, conhecendo a sua malícia, disse: – Por que me experimentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo. E eles lhe apresentaram um dinheiro. E ele diz-lhes: – De quem é esta efígie e esta inscrição? Dizem-lhe eles: – De César. Então ele lhes disse: – Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. E eles, ouvindo isto, maravilharam-se, e, deixando-o, se retiraram.” (Mateus 22:17-22)

37 VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 136.

38 No original: “Dans tous les temps, l’homme a voulu s’ériger en Iégislateur de la société religieuse et de la société politique, et donner une constitution à l’une et l’autre: or, je crois possible de démontrer que l’homme ne peut pas plus donner une constitution à la société religieuse ou politique, qu’il ne peut donner la pesanteur aux corps, ou l’étendue à la matiere, et que, bien loin de pouvoir constituer la societe, l’homme, par son intervention, ne peut qu’empecher que la société ne se constitue, ou, pour parler plus exactement, ne peut que retarder le succès des efforts qu’elle fait pour parvenir à sa constitution naturelle.” (Théorie du pouvoir politique et religieux dans la société civile. Tomo I. Paris: Adrien le Clere et cie., 1843, p. 1)

39 VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 454.

40 Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/deputado/Frente_Parlamentar/54010-integra.pdf. Acesso em: 23 abr. 2021. Muito poderia ser relatado acerca da influência das igrejas na política – este autor mesmo, em sua experiência como assíduo frequentador de igrejas evangélicas há mais de três décadas, já presenciou em algumas congregações, durante horários de culto, defesas escancaradas a políticos, sobretudo no período eleitoral. Nada obstante, entende-se que essa influência, já tão evidente nos dias atuais, não precisa mais ser provada, e nem mesmo é o foco deste trabalho.

41 Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 111.

42 Princípio esse que nada mais é senão a projeção, no domínio tributário, do princípio geral da igualdade, mas possuidor de autonomia (VELLOSO, Andrei Pitten. O princípio da isonomia tributária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 118).

43 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 851.

44 VELLOSO, Andrei Pitten. O princípio da isonomia tributária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 84.

45 É dizer, o critério da “espiritualidade e transcendentalidade” não parece ser uma medida de comparação apropriada para se promover a finalidade prevista pela imunidade tributária, tratando as entidades religiosas de modo diferenciado. Sobre os elementos estruturais do juízo de igualdade, vide: ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 45 e ss.

46 Como bem destaca Andrei Pitten Velloso, “os benefícios anti-isonômicos representam um dos flancos abertos do princípio da igualdade tributária. Por terem impacto financeiro, raramente são estendidos pelo Poder Judiciário. E pelo fato de sua extinção não favorecer, ao menos em regra geral, aqueles que não foram por eles agraciados, com frequência escapam do controle judicial.” (O princípio da isonomia tributária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 360)

47 ICHIHARA, Yoshiaki. Imunidades tributárias. São Paulo: Atlas, 2000, p. 237.

48 No que toca a outras instituições imunes, como empresas de radiodifusão (RE-AgR n. 709.980/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 17.12.2013) e entidades do “sistema S” (RE n. 250.844/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 29.05.2012), o STF já declarou que “a imunidade tributária, por si só, não autoriza a exoneração de cumprimento das obrigações acessórias impostas pela lei”.

49 VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 302.

50 Thiago Vieira e Jean Regina (Direito religioso: questões práticas e teóricas. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 386-387) asseveram que os eclesiásticos não percebem salário, que possui natureza trabalhista, mas sim a prebenda ministerial, a qual guarda relação com o sustento mesmo do religioso, sem que se cogite de uma subordinação hierárquica tal como se observa nas relações de emprego. Tanto é assim que, na legislação previdenciária, “o ministro de confissão religiosa e o membro de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa” é enquadrado não como empregado, mas como contribuinte individual (art. 12, V, “c”, da Lei n. 8.212/1991), a exemplo dos profissionais liberais.