A Desoneração Fiscal nas Operações com Livros na Reforma Tributária Brasileira: entre a Efetividade e a Função Simbólica do Direito Tributário

Tax Relief for Books in Brazilian Tax Reform: between Effectiveness and the Symbolic Function of Tax Law

Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva

Doutorando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor do Instituto Brasiliense de Desenvolvimento, Ensino e Pesquisa (IDP). Advogado e consultor legislativo em Brasília. E-mail: jules.queiroz@usp.br.

Recebido em: 21-05-2021

Aprovado em: 01-07-2021

Resumo

O artigo analisa o debate legislativo a respeito da cobrança de tributos sobre a aquisição e a importação de livros na Reforma Tributária brasileira, notadamente no contexto do Projeto de Lei n. 3.887/2020, do Poder Executivo, que institui a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Estabelece premissas teóricas de avaliação da produção legislativa com instrumentos de teoria da legislação, em especial a análise de critérios de justificação racional das decisões legislativas. Dentre esses critérios, dar-se-á destaque à racionalidade pragmática e à teleológica, as quais se referem, respectivamente, à eficácia e à efetividade da legislação em cumprir os objetivos por ela enunciados. Diferencia, para fins de análise de impacto legislativo, a função instrumental e a função simbólica da atividade legislativa. Busca demonstrar, com base em pesquisas empíricas sobre os hábitos de leitura da população e o desempenho do mercado livreiro, que a legislação que garantiu isenção tributária de contribuições sociais para aquisição de livros não teve eficácia instrumental. Contudo, argumenta-se que o papel simbólico dessa legislação pode gerar embaraços a propostas de Reforma Tributária que não atentem à assimetria de informação, viés de disponibilidade, aversão a perdas e viés pelo status quo da população ante modificações da política fiscal sobre o mercado livreiro.

Palavras-chave: reforma tributária, contribuição sobre bens e serviços, livros, racionalidade legislativa, legislação simbólica.

Abstract

This paper analyzes the legislative debate regarding taxes on the acquisition and importation of books in the Brazilian Tax Reform, specially discussing the Bill No. 3,887/2020, from the Executive Branch, which institutes the Contribution on Goods and Services (CBS). The paper establishes theoretical premises for evaluating legislative production through instruments of legisprudence, in particular the criteria for legislative decisions’ rational justification. Among these criteria, the paper emphasizes pragmatic and teleological rationality, which refer, respectively, to the efficacy and effectiveness of legislation in reaching the objectives stated by it. The paper differentiates, for purposes of legislative impact analysis, legislative activity’s instrumental function and symbolic function. The paper aims to demonstrate, based on empirical research on the population’s reading habits and the book industry’s performance, that the legislation that guaranteed tax exemption from social contributions for the acquisition of books was not instrumentally effective. However, it is argued that this legislation’s symbolic role could hinder proposals for Tax Reform that do not consider information asymmetry, availability bias, loss aversion and status quo bias of the population against changes in fiscal policy on the book industry.

Keywords: tax reform, contribution on goods and services, books, legislative rationality, symbolic legislation.

1. Introdução

Este trabalho analisará o debate legislativo a respeito da cobrança de tributos sobre a aquisição e a importação de livros na Reforma Tributária brasileira, notadamente no contexto do Projeto de Lei (PL) n. 3.887/2020, do Poder Executivo, que institui a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). A instituição da CBS tem por objetivo substituir as contribuições federais da seguridade social incidentes sobre a receita bruta das empresas (PIS/Pasep e Cofins) por uma nova contribuição plurifásica e não cumulativa incidente sobre o faturamento das operações com bens e serviços1.

A questão central da discussão proposta envolve a revogação da alíquota zero das contribuições ao PIS/Pasep e Cofins que atualmente é garantida às operações de importação e venda no mercado interno de livros pelo art. 8º, § 12, inciso XII, e art. 28, inciso VI, da Lei n. 10.865/2004. O Governo Federal propõe com a CBS a extinção de quase todos os regimes especiais e desonerações de PIS/Pasep e Cofins, porque um tributo sobre bens e serviços ideal deveria ter alíquota única e incidência ampla. Além de manifestações formais nesse sentido na Exposição de Motivos do PL n. 3.887/2020, em audiências públicas e manifestações à imprensa2, o Ministro da Economia afirma que livros são consumidos pela elite econômica, e, se a ideia é fomentar o hábito da leitura aos mais pobres, melhor seria tributar as operações de importação e venda e comprar livros, distribuindo-os à população.

Nesse sentido, o trabalho se propõe a analisar qual é a finalidade instrumental e a função simbólica da desoneração tributária de livros no Brasil, utilizando-se para isso de critérios de racionalidade legislativa e análise de impacto legislativo. Essa discussão envolve um aspecto central da discussão da Reforma Tributária no Brasil: a concessão de incentivos fiscais é um mecanismo apto a estimular o consumo de bens que gerem externalidades positivas, como é o caso de livros? Trata--se, nesse aspecto, de um debate a respeito da eficácia, efetividade e eficiência das medidas legislativas que conferem incentivos fiscais a determinadas espécies de consumo. De outro lado, deve-se indagar se a eficácia instrumental desses incentivos é o único parâmetro racional de análise desse tipo de legislação ou se também deve ser considerado o papel simbólico da política pública na promoção de determinados valores.

Para cumprir esses objetivos, o trabalho será dividido em duas partes. A primeira estabelecerá as premissas teóricas de avaliação da produção legislativa com instrumentos de teoria da legislação3, em especial a análise de critérios de justificação racional das decisões legislativas. Dentre esses critérios, dar-se-á destaque à racionalidade pragmática e à teleológica, as quais se referem, respectivamente, à eficácia e à efetividade da legislação em cumprir os objetivos por ela enunciados. Nesse ponto serão também abordados critérios de avaliação de impacto legislativo. Por fim, a par da eficácia instrumental da legislação, ou seja, aquela que se dá por sua eficácia e efetividade, será analisada também a função simbólica da legislação, o que se entenderá como a enunciação pelo legislador de determinados valores prevalecentes à sociedade.

A segunda parte analisará a questão da desoneração fiscal de livros a partir das premissas teóricas fixadas na primeira. Serão analisadas as finalidades da proteção tributária aos livros, partindo da imunidade a impostos prescrita pela Constituição Federal de 1988, para, em seguida, justificar a instituição da isenção de livros às contribuições ao PIS/Pasep e Cofins em 2004 mediante o exame das razões enunciadas durante o processo legislativo que a originou. Essa aferição será contraposta às críticas da literatura econômica sobre a ineficácia de incentivos fiscais para estímulo ao consumo de bens, inclusive examinando a situação particular do acesso a livros no Brasil desde a instituição da isenção. Por fim, ante as constatações anteriores, será analisado o papel simbólico da desoneração de livros.

A partir dessa análise da função simbólica, demonstrar-se-á a racionalidade da manutenção desse incentivo fiscal a despeito da preceituada ineficácia instrumental na indução de comportamentos.

2. Racionalidade legislativa

2.1. Do mito do jurista científico até a avaliação normativa da racionalidade legislativa

Pode-se dizer que há uma persistente percepção doutrinária de que a produção legislativa é um campo estranho ao Direito. A compreensão mais tradicional da Ciência do Direito atual deriva de uma concepção empirista de ciência4, no sentido de que objetiva descrever o sistema jurídico abstrato e a sua operacionalidade. Essa noção empirista é própria da revolução científica procedida pelo chamado Círculo de Viena, um grupo de cientistas da Universidade de Viena, liderado por Moritz Schlick e reunido entre 1929 e 1936, que fixou premissas do Empirismo Lógico na Filosofia da Ciência. Em síntese, partindo dos postulados filosóficos de Wittgenstein, adotou-se uma concepção de que a ciência apenas pode ser concebida a partir da observação e descrição do seu objeto5. A ciência, portanto, é conhecimento observável e não convencimento e consiste em juízos de fato, não de valor. Essa concepção é pedra de toque na metodologia científica das ciências naturais e exatas até os presentes dias.

Kelsen, em sua Teoria pura do Direito, adota essa concepção de ciência jurídica similar à trazida pelo Círculo de Viena como a observação e descrição do sistema jurídico. Nesse sentido, já no Prefácio da primeira edição da obra6, assevera o autor que, para elevar o Direito à categoria de ciência, o que importa não é a discussão de suas tendências de formação, mas sim daquelas voltadas ao seu conhecimento que o aproximem dos ideais científicos de objetividade e exatidão.

Por sua vez, Norberto Bobbio aponta que o positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais7. Ao encarar o Direito como objeto dado, essa concepção empirista prega que a análise do sistema jurídico tem que ser feita ao longe de juízos de valor que comportem a distinção do próprio Direito em bom e mau, justo e injusto.

No Direito Tributário brasileiro, essa repartição estanque entre conhecimento e produção do Direito foi introduzida na obra de Alfredo Augusto Becker, que se refere diretamente à obra de Bobbio, na medida em que concebe a Ciência do Direito como sempre posterior à produção de seu objeto8. A ciência jurídica, para Becker, consiste em investigar e sistematizar a estrutura lógica da norma e, de outro lado, a incidência dessa norma e seus efeitos. A partir de Becker, tornou--se firme a noção entre tributaristas como Paulo de Barros Carvalho de que a Ciência do Direito tem papel meramente descritivo do Direito posto, em contraposição ao papel prescritivo deste último9.

Mas nem sempre foi assim. Até meados do século XVIII, autores de Direito e Filosofia do Direito debatiam como elemento da Ciência Jurídica a elaboração de leis. Nesse período, não havia uma separação estanque entre dogmática jurídica, teoria do Direito e teoria da legislação, de maneira que juristas discutiam meios de reformar o Direito de forma racional. É o caso, por exemplo, de Adam Smith, que em sua obra A riqueza das nações fala de uma “ciência do legislador” que estabelece preceitos normativos a ser observados na tomada de decisões legislativas de maneira racional e não de acordo com “a flutuação momentânea das circunstâncias”10. Também Jeremy Bentham dedicou boa parte de sua vida à sistematização do Direito com base no princípio da utilidade, propondo um “código completo de leis” (complete code of laws)11. O jurista italiano Gaetano Filangieri constituiu uma obra que propunha a codificação do Direito como forma de extinguir o direito jurisprudencial, garantindo a segurança jurídica e a liberdade dos indivíduos12.

É a partir do século XIX que se estabelece o dogma de completude e coerência do Direito, criando-se o “mito do legislador racional”13. É nesse momento que principia o discurso de “jurista técnico” que encontrará eco na já citada concepção empirista de ciência do Direito, já no século XX e que perdura até a atualidade. Por essa premissa, o legislador é onisciente e onipotente, de maneira que também os seus produtos podem ser considerados perfeitos14. Descabe, portanto, qualquer motivação ou crítica aos meios e fins adotados pelo legislador.

Mas, de uma percepção descritiva, não se sustenta a tese do legislador racional, seja porque de fato os ordenamentos estão caracterizados por antinomias e lacunas, seja porque os legisladores realmente não são nem oniscientes nem onipotentes15. De outro lado, como uma proposição prescritivo-metodológica de que se deve argumentar sempre partindo de uma dada premissa de racionalidade, é discutível em que medida se trata de uma proposta desejável. Quanto menos se questiona a racionalidade do legislador, menos se permite melhorar o produto da sua atividade. A concepção de que a elaboração de leis é uma instituição jurídica reabilita a razão prática nessa atividade, de maneira que permite organizar o processo legislativo a chegar a certos objetivos16. Essa abordagem permite encarar a legislação como uma forma qualificada de política, apta a governar a conduta dos cidadãos como uma fonte digna do Direito17. A discussão a respeito da racionalidade legislativa, assim, tem caráter evidentemente normativo, no sentido de que estabelece regras regais de racionalidade prática que regem a atividade dos legisladores.

Este trabalho, portanto, parte de uma premissa de afastamento de uma racionalidade pressuposta do legislador. Afastando-se desse dogma, contudo, é preciso estabelecer critérios para se avaliar o quão racional é determinada decisão legislativa.

2.2. Níveis de justificação legislativa

A discussão a respeito da racionalidade legislativa pode se dar com base em diversos parâmetros e modelos teóricos. Para os fins deste trabalho, é útil recorrer ao modelo prescrito por Atienza em sua obra Contribuição a uma teoria da legislação18. O autor propõe uma delimitação entre cinco níveis de racionalidade: linguística (R1), jurídico-formal (R2), pragmática (R3), teleológica (R4) e ética (R5).

No nível de racionalidade linguística (R1), o ato de legislar é encarado como um ato de comunicação, em que os legisladores ocupam o lugar de emissor, enquanto o destinatário da norma é o receptor e o texto legal, a mensagem. Assim, nesse nível de racionalidade o que se avalia é o êxito ou fracasso da lei como ato de comunicação, pelo que se analisam aspectos como a clareza e correção da linguagem utilizada. Uma lei pode ser considerada irracional por esse critério por conter elevado grau de ambiguidade, vagueza ou obscuridade, de maneira a dificultar ou inviabilizar a transmissão da mensagem a que se propõe.

No nível de racionalidade jurídico-formal (R2), visa-se garantir sistematicidade ao Direito e incrementar a segurança jurídica, ou seja, manter a própria coerência estrutural do sistema jurídico. Nesse nível, a racionalidade pressupõe consistência, coerência e organização do sistema normativo. É o que ocorre, por exemplo, com a necessidade de codificação das leis. Aqui, há o que normalmente se identifica como preocupações de técnica jurídica ou legislativa, no âmbito da qual se tornam relevantes disciplinas como a Teoria do Direito e o Direito Comparado.

No nível de racionalidade pragmática (R3), é abordada a adequação da conduta dos destinatários às prescrições da lei, ou seja, sua eficácia. Aqui, trata-se os legisladores efetivamente como prescritores de comportamento, de maneira que a observância prática do Direito toma relevo. Nesse aspecto, uma lei é irracional da perspectiva pragmática se fracassa como diretriz para o comportamento dos indivíduos. A noção de eficácia adotada para esses fins diz respeito ao conhecimento dos destinatários da existência de uma lei e o comportamento de acordo com ela, embora seja compatível com a eficácia o descumprimento esporádico19. O que implica irracionalidade pragmática é o absoluto descumprimento pelos destinatários sociais.

Uma lei pode ser ineficaz por razões subjetivas ou objetivas20. Fatores subjetivos incluem vícios de técnica legislativa que inviabilizam o conhecimento da lei. Já fatores objetivos podem dizer respeito à ausência de condições de aplicação, como existência de recursos financeiros e agências de aplicação da lei, bem como a própria dificuldade no cumprimento do comportamento prescrito.

No nível de racionalidade teleológica (R4), a lei é encarada como uma forma de dar concretude a determinados interesses sociais. Nesse nível, o que se questiona é a efetividade da lei, ou seja, a realização pelos destinatários da conduta prescrita, gerando o resultado social buscado pelo emissor da norma21. Uma norma será teleologicamente irracional, portanto, se não produzir os efeitos pretendidos na sua edição ou se produzir outros efeitos que se opõem aos resultados buscados pelos legisladores.

Os níveis de racionalidade pragmática e teleológica dão base a uma função peculiar dos legisladores e cientistas sociais, qual seja, a avaliação legislativa, que consiste em um procedimento de metodologia previamente definida de análise quantitativa e/ou qualitativa dos efeitos da norma editada22. Para os fins deste trabalho, cabe chamar atenção à avaliação ex-post, aquela desenvolvida após a entrada em vigor da norma, momento no qual se pode avaliar particularmente a sua eficácia e efetividade. À evidência, para que seja possível essa avaliação, é preciso primeiro que os próprios legisladores fixem “cláusulas de propósito”, como é comum nos sistemas do common law, ou pelo menos esclareçam os objetivos que são perseguidos pela lei durante os debates parlamentares, como é mais comum nos sistemas de matriz romano-germânica23. Melhor será a avaliação legislativa na medida em que os legisladores também evidenciem quais os indicadores do propósito perseguido e a eventual metodologia a ser adotada.

Ainda nos níveis R3 e R4, é importante destacar uma crítica de Albert Calsamiglia ao modelo de Atienza24. Para Calsamiglia, a racionalidade legislativa não pode ser desvinculada de outros elementos de racionalidade, como a econômica. É dizer: uma boa lei não deve ser julgada apenas por sua excelência declarada, mas sim pelos efeitos que alcança em um contexto de recursos escassos. Assim, Calsamiglia propõe uma adição ao modelo de Atienza em que se analise também a eficiência da lei, ou seja, a razão entre os seus custos e os resultados.

Na verdade, a perspectiva de Calsamiglia se coaduna com a noção de que a legislação é uma ferramenta de regulação das atividades dos cidadãos25. Ou seja: a lei é um elemento de política pública. Qualquer política pública deve levar em conta a relação entre seus custos e resultados uma vez que emprega recursos escassos para suprir necessidades priorizadas pelos sujeitos democraticamente legitimados a decidir. Com efeito, é preciso sim justificar as decisões de priorização levando em consideração inclusive a eficiência.

A avaliação legislativa, portanto, deve levar em conta aspectos de eficácia, efetividade e também eficiência da política pública objeto de legislação. Esses critérios se tornam particularmente úteis na avaliação de leis que veiculam incentivos fiscais, como será feito na segunda parte deste trabalho.

O último nível de exame é a racionalidade ética (R5), que diz respeito a aspectos de legitimidade da legislação perante seus destinatários. Dessa perspectiva, o sistema jurídico é um conjunto de normas que podem ser avaliadas de um paradigma ético, lançando-se mão de disciplinas como a sociologia, a filosofia do Direito, entre outras. Do ponto de vista ético, uma lei será irracional na medida em que produzida por alguém sem legitimidade, porque preceitua comportamentos imorais ou persegue fins ilegítimos.

A possibilidade de avaliação jurídica da racionalidade ética é justamente o que distingue abordagens maximalistas ou minimalistas da teoria da legislação. Para estas últimas, a legitimidade da legislação é uma questão política que foge ao escopo do Direito, pois esses campos atuam com critérios lógicos distintos26. Contudo, como já acentuado na introdução, este trabalho adota uma abordagem maximalista, justamente pelo que a racionalidade ética toma relevância para o debate em apreço.

Além da avaliação interna de cada um dos níveis de racionalidade, também é possível a sua avaliação externa, ou seja, a respeito das relações de cada um desses níveis de racionalidade, como compatibilidade, dependência ou até mesmo incompatibilidade27. É dizer: pode ser preciso, por exemplo, reduzir a clareza de uma lei (prejudicando R1) para garantir o cumprimento dos objetivos da própria lei (prestigiando R4). Seria o caso de uma lei tributária que precise utilizar jargão contábil específico, quase incompreensível ao contribuinte médio, mas imediatamente apreensível a um profissional especializado na matéria. Por isso, a análise externa compreende um “balanceamento” entre os diversos aspectos de racionalidade legislativa.

2.3. Legislação simbólica e racionalidade legislativa

Com base no modelo teórico anteriormente exposto, pode-se questionar se toda ação dos legisladores realmente é voltada a fins específicos. Isso porque a ação social nem sempre é voltada a fins, podendo também se voltar a valores28. A ação voltada a fins é aquela determinada pela expectativa de comportamentos e objetos do mundo exterior, sendo essas expectativas condições e meios para o alcance de determinadas finalidades. Já a ação voltada a valores éticos, estéticos, religiosos etc. é determinada pela crença nesses determinados valores, independentemente dos resultados efetivamente alcançados. As ações na realidade observável muitas vezes são determinadas por mistos de fins e valores, não sendo comum a configuração isolada dessas espécies.

Veja-se que, em geral, pode-se dizer que a ação voltada a valores também é racional, especialmente se for contraposta à ação motivada de maneira afetiva ou com base exclusivamente em valores tradicionais. Justamente por isso, pode-se dizer que uma ação absolutamente voltada aos fins é rara e limítrofe. Teoricamente, em relação a essa ação absolutamente finalística, poder-se-ia considerar a ação voltada a valores como irracional.

Essa é uma questão de suma importância para o exame de racionalidade legislativa. Ao se adotar uma concepção minimalista da teoria da legislação, o cientista passa a ignorar os aspectos legitimadores da conduta dos legisladores, corporificados na racionalidade ética (R5)29. Para essa abordagem minimalista, então, a avaliação da conduta dos legisladores será sempre finalística, tomando em conta os critérios de eficácia, efetividade e eficiência. Já uma abordagem maximalista, como a adotada no presente trabalho, entende juridicamente pertinente o exame da legitimidade axiológica das ações legislativas, pelo que na análise da racionalidade ética se tornam pertinentes os valores que conduzem os legisladores. Daí se considerar também a ação voltada a valores como uma espécie de ação racional que se contrapõe juntamente com a ação voltada aos fins às ações emotivas ou tradicionais. Não se está dizendo que os efeitos decorrentes da ação voltada a valores são irrelevantes do ponto de vista da eficácia, mas sim que sua eficácia tem propriedades diversas da meramente instrumental.

A ação voltada a valores pode ser também classificada como simbólica. O caráter simbólico gera vínculos entre conjuntos de ações, isto é: ao praticar determinada ação agora, o agente expressa uma significação a respeito de como praticará novas ações no futuro. Um ato particular, assim, passa a ter uma vinculação simbólica com as intenções do agente, vindo, inclusive, a “incorporar” a utilidade das ações a ela vinculadas e por ela substituídas30. Nesse sentido, pode-se dizer que as ações simbólicas são expressivas31 na medida em que dão vazão a crenças e valores particulares, sendo que essa expressão é útil ao sujeito que a expressa. Essa utilidade expressiva, portanto, configura-se de maneira independente da utilidade causa ou instrumental para o autor da ação.

No plano do Direito também não é estranha a contraposição entre funções simbólicas e instrumentais. Em âmbito criminal, por exemplo, Winfried Hassemer define o “Direito Penal Simbólico” como aquele em que as funções latentes (simbólicas ou expressivas) predominam sobre as manifestas (instrumentais ou causais)32. Nesse sentido, Hassemer entende de maneira crítica que o Direito Penal Simbólico tem propósitos e efeitos diferentes daqueles descritos pela norma, afastando o papel da legislação criminal da proteção imediata de bens jurídicos.

Se no Direito Penal há uma corrente fortemente crítica ao uso simbólico da legislação criminal, no Direito em geral há percepções mais variadas. Liborio Hierro compreende como simbólica a legislação que produz efeitos independentemente de sua eficácia33. Esses efeitos colaterais à eficácia não são necessariamente associados a externalidades negativas, podendo comportamentos valorados como positivos decorrerem do mero aspecto expressivo da norma. Gusfield divide a função simbólica do Direito em três formas: (i) a afirmação pública de uma lei passa a percepção de que o comportamento das pessoas é consistente com essa lei; (ii) a afirmação pública de um valor por intermédio de uma lei direciona instituições ao apoio àquele valor, independentemente dos problemas de eficácia que essa lei venha a apresentar; (iii) a afirmação pública de valores por intermédio de uma lei destaca quais são os aspectos culturais legitimados pelo Estado, separando as condutas que são dignas de respeito público e quais são “desviantes”34.

Realmente a legislação com efeito simbólico pode ser utilizada para libertar o sistema político de pressões sociais em prol de políticas públicas com efeitos concretos, tendo o efeito da chamada legislação-álibi35. É nesse sentido a crítica da doutrina à legislação criminal simbólica. Mas, ao mesmo tempo, os efeitos simbólicos de consistência, apoio e identificação de comportamentos desviantes podem paradoxalmente se mostrar aptos a enfrentar problemas de eficácia da legislação, notadamente quando houver um conflito entre normas jurídicas e sociais. Ao identificar comportamentos desviantes, por exemplo, a legislação simbólica pode gerar pressão social em prol de comportamentos desejáveis.

Nesse sentido, vê-se que a legislação simbólica funciona de maneira diferente da legislação de conteúdo instrumental. A lei simbólica também pode ou não ser eficaz. Sua eficácia também pode ser medida por meio das ciências sociais. No entanto, o conceito de eficácia desenvolvido para a legislação instrumental falha na mensuração da eficácia da legislação simbólica36. É possível concluir, portanto, que os efeitos simbólicos são relevantes na elaboração legislativa. Embora tais efeitos possam ser negativos ou positivos, do ponto de vista da racionalidade tanto pragmática e teleológica quanto ética, eles não podem ser ignorados. É esse ponto que será destacado na segunda parte deste trabalho.

3. Os livros e a Reforma Tributária brasileira

Instituído o marco teórico na primeira parte deste trabalho, cabe agora aplicá-lo na análise do debate legislativo a respeito da revogação ou não da isenção tributária de livros na Reforma Tributária brasileira pelo PL n. 3.887/2020, do Poder Executivo. Essa análise será feita em três partes.

Na primeira parte, será analisada a finalidade instrumental da isenção aos livros conferida pela lei brasileira. Como se verá, tanto a própria finalidade como os instrumentos de sua mensuração ficaram obscuros no processo legislativo que a originou. Em seguida, será analisada bibliografia econômica a respeito da eficácia da indução ao consumo de bens por intermédio de incentivos fiscais como o concedido na lei brasileira. Observar-se-á que a literatura é consistente em exemplos de que esse tipo de incentivo fiscal não atinge sua finalidade instrumental porque a desoneração fiscal é frequentemente absorvida na margem de lucro das empresas. No caso específico do incentivo aos livros, ver-se-á que as pesquisas econométricas não permitem concluir pelo efeito positivo do incentivo fiscal. Por fim, observar-se-á o papel simbólico da isenção subjacente à sua eficácia e se demonstrará que, em função desse papel, a eventual revogação deve ser acompanhada de outras medidas instrumentais e simbólicas de valorização da leitura.

3.1. Finalidade da desoneração de livros na legislação brasileira

Preliminarmente, é importante salientar que a Constituição brasileira de 1988 garante imunidade a impostos dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão no art. 150, inciso VI, “d”. Essa imunidade busca proteger a liberdade de expressão37, visto que o contexto constitucional anterior, decorrente da Constituição de 1967, era ditatorial e autorizava até mesmo a censura. Embora desde 1946 as Constituições brasileiras salvaguardem a imunidade dos livros a impostos, os Atos Institucionais da ditatura militar que durou entre 1964 e 1985 permitiam até mesmo a censura direta, de maneira que a imunidade tinha significado prático reduzido. Assim, além de proibir a censura expressamente, o constituinte de 1988 buscou proibir o legislador de gerar embaraços à liberdade de expressão pela via tributária.

Mas essa imunidade não é extensível a outras espécies tributárias, como as contribuições. Por isso, até 2004 ocorreu a tributação do faturamento da venda de livros pelas contribuições ao PIS/Pasep e Cofins.

A desoneração somente foi aventada quando do debate legislativo da Medida Provisória n. 183, de 2004, do Poder Executivo, que desonerava operações com insumos agropecuários. A previsão de alíquota zero às contribuições nas operações com livros foi inserida no relatório do deputado federal Mário Negromonte no Plenário da Câmara dos Deputados. Na verdade, a proposta do deputado, que foi convertida na Lei n. 10.925, de 23 de julho de 2004, foi estabelecer alíquota zero para a importação e venda no mercado interno de livros técnicos e científicos. Segundo o relator, a tributação pelas contribuições ao PIS/Pasep e Cofins de livros técnicos e científicos preocupava acadêmicos. A atividade desses pesquisadores seria muito importante e o impacto econômico da desoneração seria reduzido porque voltada especificamente ao restrito público acadêmico. A medida foi aprovada sem maiores debates.

A lógica subjacente à finalidade expressa pelo relator é a de que a tributação aumenta o preço dos livros, o que é correto, de maneira que a alíquota zero poderia reduzir os preços e facilitar o acesso aos livros. O que é discutível é em que medida a desoneração implicaria necessariamente a diminuição de preços pretendida e não seria absorvida na margem de lucro das empresas. Na verdade, nem a lei nem o debate legislativo fornecem indicativos para a avaliação dos efeitos dessa política pública, de maneira que até mesmo avaliar o seu sucesso seria difícil. Trata-se de uma crítica no âmbito da racionalidade pragmática e teleológica.

Outra questão a ser levantada é de ordem linguística. A expressão “livros técnicos e científicos” é sobremaneira vaga, não tendo o legislador estabelecido critérios para a distinção da espécie de livros beneficiada das demais. Deixa-se, portanto, ao talante do aplicador da norma decidir o que seria um livro beneficiado, o que implica problemas de eficácia e de segurança jurídica a respeito da abrangência da política pública.

A desoneração concedida nos termos da Lei n. 10.925, no entanto, teve vida curta. Na apreciação da Medida Provisória n. 206, de 2004, que alterava a tributação do mercado financeiro e de capitais, a Câmara dos Deputados ampliou a desoneração concedida no mesmo ano pelo acolhimento das emendas n. 47 e 59, do deputado federal Luiz Carlos Hauly. Essas emendas ampliavam a isenção dos livros técnicos e científicos para livros de qualquer natureza. As emendas foram justificadas cada uma apenas em um parágrafo, aduzindo que a aquisição de livros era importante para o desenvolvimento da nação porque facilitaria a aquisição de conhecimento por professores e estudantes.

As emendas, originalmente não contempladas no relatório do deputado federal Luiz Sérgio, foram acolhidas após um acordo em Plenário, com a modificação de que o conceito de “livro” passava a ser definido por remissão à Lei n. 10.753/2003, que institui a Política Nacional do Livro. A conversão da Medida Provisória n. 206 na Lei n. 11.033, de 21 de dezembro de 2004, aprimorou a redação da isenção ao definir expressamente o objeto do benefício fiscal. Todavia, a crítica pragmática e teleológica permanece: quais são os objetivos e os indicadores de sucesso da legislação aprovada? A finalidade subjacente parece ser a mesma da Lei n. 10.925, de que a desoneração implicaria redução de preços. Mas sequer houve tempo entre as duas medidas legislativas para se avaliar o efeito da desoneração. Ainda, não constam quais são os efeitos sociais pretendidos com a redução de preços: a popularização da leitura? O atingimento de algum segmento social específico?

Essa desoneração vige até hoje e corresponde a 0,19% da arrecadação das contribuições ao PIS/Pasep e Cofins, o que totalizou em 2019 uma despesa tributária de R$ 139 milhões38. Daqui surge outra questão: a desoneração se justifica em termos de eficiência? É dizer: o valor que deixa de ser arrecadado poderia ter emprego mais eficiente como despesa pública. Torna-se ainda mais complexa a análise de eficiência, porque as contribuições desoneradas são voltadas especificamente ao custeio de seguridade social: saúde, assistência social e previdência. Já a desoneração envolve promoção de direitos vinculados à educação e cultura. Assim, o trade-off inerente à desoneração das contribuições envolve direitos sociais de elevada importância e dignidade constitucional.

Na seção seguinte, será analisada a literatura a respeito do tema e indicadores dos hábitos de leitura da população brasileira.

3.2. A eficácia e efetividade da indução ao consumo por desoneração fiscal

A literatura econômica mais recente é bastante crítica à concessão de incentivos fiscais em tributos sobre o consumo por dois argumentos básicos.

No nível pragmático (R3), diz-se que a concessão de benefícios e múltiplas alíquotas aumenta a complexidade dos tributos e dificulta a sua administração e os custos de conformidade dos contribuintes39. Além disso, a concessão de incentivos fiscais a um setor tende a estimular modificações alocativas nas empresas, que tentam modificar seus modelos de negócio para se beneficiar da desoneração por planejamento tributário40. Assim, a concessão desse tipo de incentivo fiscal prejudica a eficácia do sistema tributário como um todo.

Essas dificuldades de aplicação podem ser ilustradas justamente pelos problemas de qualificação de livros eletrônicos ou em áudio como “livros” para fins tributários. Em uma série de decisões, a Corte Europeia de Justiça foi chamada a decidir se livros eletrônicos ou em áudio se qualificam como “livros” para fins de desoneração nos termos das diretivas de tributos de valor adicionado da União Europeia41. Debate idêntico foi travado pelo Supremo Tribunal brasileiro a respeito da imunidade constitucional de livros e sua abrangência sobre livros eletrônicos42.

No nível teleológico (R4), cabe destacar que o efeito das variações de tributos sobre o consumo é assimétrico sobre preço aos consumidores. É dizer: enquanto um aumento nos tributos incidentes tende a ser repassado aos preços, a redução desses mesmos tributos não é repassada de maneira tão eficiente aos consumidores43.

Um relatório da Comissão Europeia de 2003 descreveu os efeitos da desoneração tributária desenvolvida desde 1999 por diversos países europeus sobre serviços que utilizem intensamente mão de obra, como salões de beleza e serviços de limpeza44. A pesquisa concluiu que houve uma redução meramente temporária dos preços dos serviços, que pouco tempo depois teriam seu preço novamente aumentado e incorporado à margem de lucro dos prestadores. Outro estudo, conduzido na Irlanda, analisou a redução do imposto sobre valor agregado daquele país de 21% para 20% em 2001. O objetivo expresso era a redução de preços na economia e combate à inflação, mas a medida foi revogada já em 2002 porque não gerou nenhum efeito45. Essa ausência de efeitos práticos pode ocorrer por diversas razões, como inelasticidade da demanda e até mesmo problemas de percepção dos consumidores a respeito da composição dos preços.

No que diz respeito especificamente ao incentivo fiscal brasileiro à aquisição de livros, há o problema de que não foram instituídos mecanismos de monitoramento da evolução do preço e do consumo em função das leis aprovadas. Duas pesquisas realizadas pelo setor privado, contudo, se mostram relevantes ao debate: a pesquisa dos hábitos de leitura da população brasileira, denominada “Retratos da Leitura no Brasil”46, realizada por entidades do setor desde 2001 a cada cinco anos; e a pesquisa do desempenho do mercado editorial realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), denominada “Desempenho Real do Mercado Livreiro”47, realizada desde 2006.

Na pesquisa sobre hábitos de leitura, três indicadores merecem avaliação: a abrangência da população leitora, o número de livros lidos anualmente e as barreiras à leitura.

Em 2007, 55% da população brasileira poderia ser considerada “leitora”48, ou seja, que leu integralmente um ou mais livros no último ano. Em 2019, esse percentual foi reduzido para 52% da população, depois de um pico de 56% em 2015. Em termos de abrangência da leitura na população, portanto, é pouca a variação no período pesquisado. De outro lado, a média de livros lidos na população em geral aumentou de 1,85 ao ano em 2011 para 2,6 ao ano em 2019. Na população já considerada “leitora”, o número de livros lidos aumentou de 3,74 ao ano para 5,04. Desses dois indicadores, percebe-se que no período estudado a leitura como hábito não foi popularizada e o aumento da leitura foi mais sensível apenas entre aqueles que já cultivavam o hábito.

O terceiro indicador, as barreiras à leitura, também pode levar a conclusões interessantes. Em 2001, o custo de aquisição de livros e a falta de dinheiro somavam 57% das respostas quanto aos bloqueios para aquisição de livros. Já em 2019, essas mesmas motivações correspondiam a 9% das respostas49. A alteração sensível na motivação começou na pesquisa publicada em 2007, na qual a falta de dinheiro correspondia a 18% das motivações alegadas.

Quanto a dados de mercado, pode-se observar que o preço médio dos livros vem em queda real e constante desde 2006, de uma média próxima de R$ 30 para uma próxima de R$ 20. Contudo, não é possível traçar uma relação causal entre essa redução e a desoneração fiscal por duas razões. Em primeiro lugar, porque a pesquisa foi iniciada já na vigência das leis que garantiram a desoneração. Em segundo lugar, porque no mesmo período houve uma retração econômica do próprio mercado editorial, o que também pode explicar o barateamento dos seus produtos.

Desses dados, é possível extrair as seguintes conclusões: (i) a isenção de livros não contribuiu para popularização dos hábitos de leitura; (ii) houve uma redução real dos preços dos livros nos últimos quinze anos; (iii) houve uma redução da percepção do preço dos livros como barreira à leitura; (iv) nenhuma dessas reduções pode ser atribuída como consequência direta instrumental da desoneração fiscal. Por outro lado, o caráter assimétrico das variações de tributo sobre o consumo implica a ampla probabilidade de que o fim da desoneração dos livros aumentará seus preços, na contramão da tendência atual. Ainda assim, reonerar o consumo de livros pela futura CBS, como propõe o governo, pode ser justificável nos níveis pragmático e teleológico ante a ausência de evidências de eficácia e efetividade da política pública na redução dos preços dos livros e popularização da leitura. Contudo, essa reoneração tem um efeito também sobre a evidente percepção da questão pela população, ou seja, sua função simbólica.

3.3. A função simbólica da desoneração de livros

Ao observar a ausência de efetividade instrumental na política de desoneração de livros, cabe questionar, por outro lado, a “eficácia simbólica” dessa mesma política, bem como o eventual efeito – também simbólico – da sua revogação proposta no projeto de Reforma Tributária do Governo Federal.

Essa discussão é fundamental em um contexto de Reforma Tributária. Rita de la Ferria e Michael Walpole50, estudando experiências de reformas na Europa e na Austrália, identificam que a percepção pública negativa da população a respeito de medidas de reestruturação fiscal é um impeditivo claro à sua implementação. Essas percepções decorrem, por exemplo, de assimetrias de informação entre a população e os formuladores de políticas públicas, ou entre o senso comum e a evidência científica.

É o caso da desoneração tributária para estimular o consumo. Como se viu anteriormente, embora o aumento da alíquota de um tributo tenda a aumentar o preço, sua redução não implica redução de preços na mesma proporção ou com a mesma agilidade. Essa percepção empírica não é compartilhada pela sociedade em geral, embora já identificada na literatura econômica. Isso porque as pessoas, para decidir sobre assuntos sobre os quais não são especialistas, recorrem a simetrias conhecidas, a experiências disponíveis no senso comum, no que se chama “viés de disponibilidade”51. Uma dessas regras do senso comum é a equivalência por comutatividade52: a troca dos elementos de uma proposição não altera seu resultado. Ou seja: se aumentar o tributo aumenta o preço, reduzir o tributo reduz o preço.

Daí por que uma medida de desoneração tende a ter mais efeito simbólico do que instrumental. Utilizando a classificação das funções simbólicas de Gusfield, a aprovação do incentivo fiscal corresponde à afirmação pública de apoio estatal a uma determinada modalidade de consumo, que direciona instituições sociais à sua proteção. No caso particular dos incentivos fiscais à importação e compra de livros, portanto, o Estado apresentou um gesto de apoio à leitura, indicando à população uma aprovação pública dessa prática. É justamente esse papel simbólico de apoio que deve gerar cautela no debate sobre a revogação da isenção.

A “ameaça” de revogação do incentivo fiscal tende a acionar justamente condutas de proteção por parte das instituições sociais mobilizadas pela função simbólica de apoio. Assim, cria-se uma resistência evidente na percepção pública em face das medidas de reforma. Em face da assimetria de informação e do viés de disponibilidade, acionam-se também outros “gatilhos” comportamentais, como a aversão à perda e o viés pelo status quo53: na ausência de informação, o instinto da população é ser refratária a mudanças em virtude do potencial de elas causarem prejuízos.

É preciso lembrar que, ainda que não haja efeito instrumental evidenciado, a percepção do preço dos livros como barreira à leitura foi substancialmente reduzida no período de vigência do benefício fiscal, de maneira que a proposta de reoneração dessa modalidade de consumo poderá caminhar justamente para a percepção pública contrária: do aumento do preço como barreira à leitura.

Não bastasse isso, o efeito assimétrico da variação de alíquota de tributos sobre o consumo é real: a nova incidência tributária tenderá a efetivamente aumentar os preços. Daí por que essa modalidade de eficácia instrumental indesejada servirá de retroalimentação à percepção pública simbólica desfavorável à medida.

A identificação desses efeitos simbólicos indesejados não necessariamente deve militar contra a aprovação de reformas que melhorem a eficácia instrumental do sistema tributário. Como já demonstrado, de um ponto de vista finalístico, os argumentos do Governo Federal a respeito da falta de eficácia da política pública de desoneração fiscal de livros encontram eco na literatura. Entretanto, é preciso considerar que o debate legislativo sobre o tema não pode ser cego ao simbolismo, que, como demonstrado, está inerente à questão. Noutros termos: a eficácia instrumental da Reforma Tributária pode ser fortemente obstada pela resistência simbólica às medidas propostas.

Para conduzir com sucesso uma Reforma Tributária que enfrenta resistência pelos efeitos simbólicos na percepção pública, é necessário, assim, enfrentar a assimetria de informação pela comunicação adequada ao público dos objetivos das medidas propostas e, de outro lado, promover confiança nos resultados buscados54. Quanto à primeira medida, é preciso enfrentar a assimetria de informação, conduzindo a população a compreender, por exemplo, a inefetividade instrumental dos incentivos fiscais revogados. Paradoxalmente, essa demonstração se torna mais difícil na medida em que não há mecanismos de avaliação legislativa eficientes instituídos para demonstrar o que se busca. Mas, como se indicou ao longo deste trabalho, uma demonstração mínima da inviabilidade na produção de efeitos concretos é possível. Quanto à segunda medida, é preciso gerar confiança na população sobre os benefícios da mudança. De um lado, demonstrando que os benefícios da melhoria do sistema (com a revogação da isenção) são superiores aos possíveis prejuízos com a revogação. Repise-se que a receita da futura CBS, contribuição que é, será direcionada a políticas de seguridade, como assistência social, saúde e previdência. A evidenciação desse trade-off, inclusive com considerações claras sobre eficácia, efetividade e eficiência da nova política proposta, tende a vencer os vieses cognitivos da população que conduzem a percepções erradas sobre a estrutura tributária vigente.

De outro, é preciso demonstrar que a política pública que tem subjacente o efeito simbólico – a difusão da leitura – vai continuar sendo desenvolvida por outros meios, especialmente pela despesa pública direta, não pelo gasto tributário. Nesse ponto, a política tributária deve ser encarada de maneira integrada com políticas educacionais e culturais que tenham maior eficácia e efetividade para tutelar o bem jurídico.

4. Conclusão

Pelo presente trabalho, buscou-se demonstrar a relevância da função simbólica da legislação fiscal nos debates sobre Reforma Tributária no Brasil, tomando por base a instituição da cobrança de CBS sobre operações com livros. Mostrou--se, com base na análise de racionalidade legislativa subjacente, que a política pública de desoneração da compra e importação de livros garantida pelas Leis n. 10.925 e 11.033 não logrou êxito em aumentar a população leitora no Brasil durante seu período de vigência, tampouco há evidência de sua relação causal com a redução dos preços dos livros no mesmo período. Essa conclusão vai ao encontro da literatura econômica sobre a pouca efetividade das políticas de indução a externalidades positivas de consumo por desonerações fiscais.

Apesar disso, demonstrou-se que há sólida bibliografia a respeito dos efeitos simbólicos da legislação. Leis que conferem incentivos fiscais a determinadas modalidades de consumo são demonstrações públicas de apoio do Estado a comportamentos, de maneira que mobilizam instituições sociais para sua proteção. Esse efeito simbólico atua para dificultar reformas fiscais que extingam benefícios tributários em virtude da indisposição da opinião pública decorrente da assimetria de informação, bem como do viés de status quo e aversão a perdas.

Essas constatações levam à conclusão de que o debate legislativo a respeito do PL n. 3.887/2020, que institui a CBS no contexto da Reforma Tributária brasileira, deve enfrentar a percepção pública decorrente dos efeitos simbólicos da isenção de livros. Notadamente, o debate deve mitigar a assimetria de informação com a demonstração da ineficácia e inefetividade da política tributária vigente, bem como gerar confiança na população a respeito dos benefícios sociais da estrutura tributária proposta e da manutenção mais eficiente da tutela de bens jurídicos caros à percepção pública, como é o caso do incentivo à leitura.

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1 Conforme Exposição de Motivos do PL n. 3.887/2020, assinada pelo Ministro da Economia Paulo Guedes.

2 Novo tributo ameaça encarecer livros e quebrar editoras que já agonizam. Folha de S.Paulo, 7 ago. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/novo-tributo-ameaca-encarecer-livros-e-quebrar-editoras-que-ja-agonizam.shtml. Acesso em: 1º dez. 2020.

3 Aqui se utiliza a expressão “teoria da legislação” em sentido maximalista, como a análise do tipo de racionalidade que deve presidir a atividade legislativa, inclusive a relativa aos seus fins éticos e políticos, como referido por MARCILLA, Gema. Racionalidad legislativa: crisis de la ley y nueva ciencia de la legislación. Madri: Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2005, p. 290.

4 ÁVILA, Humberto. Função da ciência do Direito Tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo. Revista Direito Tributário Atual, n. 29, São Paulo, 2013, p. 183.

5 STADLER, Friedrich. From the Vienna Circle to the Institute Vienna Circle: On the Viennese Heritage in Contemporary Philosophy of Science. In: STADLER, Friedrich (org.). European Philosophy of Science: Philosophy of Science in Europe and the Viennese Heritage. Viena/Nova Iorque: Springer, 2014.

6 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984.

7 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p. 135-136.

8 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 53-54.

9 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 35-37.

10 SMITH, Adam. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, Livro 4. Chicago: University of Chicago Press, 1977, p. 610.

11 BENTHAM, Jeremy. The Works of Jeremy Bentham. Editado por John Bowring. Edimburgo: William Tait, 1838-1843. v. 3.

12 FILANGIERI, Gaetano. La Scienza della Legislazione. Veneza: Andrea Santini e Figlio Editore, 1822.

13 FERRARO, Francesco. Razionalità legislativa e motivazione delle leggi: un’introduzione teorica. Milão: Giuffrè Francis Lefebvure Editore, 2019, p. 111.

14 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Razón práctica y teoría de la legislación. Derechos y Libertades – Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Madri, jul.-dez. 2000, p. 304.

15 FERRARO, Francesco. Razionalità legislativa e motivazione delle leggi: un’introduzione teorica. Milão: Giuffrè Francis Lefebvure Editore, 2019, p. 112.

16 MARCILLA, Gema. Racionalidad legislativa: crisis de la ley y nueva ciencia de la legislación. Madri: Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2005, p. 276.

17 WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 2.

18 ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoría de la legislación. Madri: Civitas, 1997, p. 27-71.

19 FERNANDÉZ BLANCO, Carolina. Normas sociales y problemas de eficácia y efectividad de las normas jurídicas, DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 42, Alicante, 2019, p. 266.

20 FERNANDÉZ BLANCO, Carolina. Normas sociales y problemas de eficácia y efectividad de las normas jurídicas, DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 42, Alicante, 2019, p. 270.

21 FERNANDÉZ BLANCO, Carolina. Normas sociales y problemas de eficácia y efectividad de las normas jurídicas, DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 42, Alicante, 2019, p. 270.

22 RIVERA LEÓN, Mauro Arturo; MARTÍNEZ FABIÁN, Constantino. Cuando la forma es fondo: estúdios de técnica legislativa y legilingüística. Cidade do México: Editorial Flores, 2015, p. 169.

23 XANTHAKI, Helen. Drafting Manuals and Quality of Legislation: Positive Contribution Towards Certainty in the Law or Impediment to the Necessity for Dynamism of Rules? Legisprudence, v. 4, n. 2, out. 2010, p. 118.

24 CALSAMIGLIA, Albert. ¿Deve ser la moral el único criterio para legislar? DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 13, Alicante, 1993, p. 161-178.

25 XANTHAKI, Helen. Drafting Manuals and Quality of Legislation: Positive Contribution Towards Certainty in the Law or Impediment to the Necessity for Dynamism of Rules? Legisprudence, v. 4, n. 2, out. 2010, p. 113.

26 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Razón práctica y teoría de la legislación. Derechos y Libertades – Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Madri, jul.-dez. 2000, p. 302-303.

27 ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoría de la legislación. Madri: Civitas, 1997, p. 57-66. Em trabalhos posteriores de sua obra, Atienza passa a analisar esse nível como uma “metarracionalidade”, que garante que o “sacrifício” de algum nível de racionalidade é “compensado” pelo incremento de outro (ATIENZA, Manuel. Curso de argumentación jurídica. Madri: Trotta, 2013, p. 715).

28 WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociologia compreensiva. Madri: Fondo de Cultura Económica, 2002, p. 20-21.

29 MARCILLA, Gema. Racionalidad legislativa: crisis de la ley y Nueva ciencia de la legislación. Madri: Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2005, p. 284.

30 NOZICK, Robert. The Nature of Rationality. Princeton: Princeton University Press, 1993, p. 26 e 48.

31 NOZICK, Robert. The Nature of Rationality. Princeton: Princeton University Press, 1993, p. 28.

32 HASSEMER, Winfried. Derecho Penal simbólico y protección de bienes jurídicos. In: VÁRIOS AUTORES. Pena y Estado. Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, p. 23-36.

33 HIERRO, Liborio. La eficácia de las normas jurídicas. Barcelona: Ariel, 2003, p. 165.

34 GUSFIELD, Joseph R. Moral Passage: the Symbolic Process in Public Designations of Deviance. Social Problems, v. 15, n. 2, Detroit, 1967, p. 229.

35 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 54.

36 KINDERMANN, Harald. Symbolische Gesetzgebung. In: GRIMM, D.; MAIHOFER, W. Gesetzgebungtheorie und Rechtspolitik. Viena: Springer, 1988, p. 224.

37 Nesse sentido se pronunciou o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 330.817/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 31.08.2017.

38 BRASIL. Receita Federal do Brasil. Demonstrativo de Gastos Tributários 2019. Brasília: Ministério da Economia, 2019, p. 103.

39 JAMES, Kathryn. The Rise of the Value Added Tax. Cambridge: Cambridge University Press, 2015, p. 45-55.

40 JAMES, Kathryn. The Rise of the Value Added Tax. Cambridge: Cambridge University Press, 2015, p. 45-55.

41 Por exemplo: Caso C-219/13, K Oy, ECLI:EU:C:2014:2207; Caso C-479/13, Commission v France, ECLI:EU:C:2015:141; e caso C-502/13, Commission v Luxembourg, ECLI:EU:C:2015:143.

42 Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n. 330.817/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 31.08.2017.

43 BENZARTI, Youssef et al. What Goes Up May Not Come Down: Asymmetric Incidence of Value-Added Taxes. Labour Institute For Economic Research, Working Paper n. 317, 2018. Disponível em: https://labour.fi/wp-content/uploads/2020/02/Tyopaperi317.pdf. Acesso em: 4 dez. 2020.

44 COMISSÃO EUROPEIA. Experimental Application of a Reduced Rate of VAT to Certain Labour-Intensive Services, COM(2003), 309 final, 2 de junho de 2003.

45 FERRIA, Rita de la; WALPOLE, Michael. The Impact of Public Perceptions on General Consumption Taxes. British Tax Review, n. 67/5, Londres, 2020, p. 640.

46 INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da Leitura no Brasil. Disponível em: https://www.prolivro.org.br/pesquisas-retratos-da-leitura/as-pesquisas-2/. Acesso em: 4 dez. 2020.

47 FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS. Desempenho Real do Mercado Livreiro. Disponível em: http://cbl.org.br/downloads/fipe. Acesso em: 4 dez. 2020.

48 Na primeira edição da pesquisa, entre 2001 e 2006, o critério era o de “comprador” de livros, o que impede uma comparação mais precisa.

49 O principal bloqueio para a leitura passou a ser a falta de tempo (47% das respostas).

50 FERRIA, Rita de la; WALPOLE, Michael. The Impact of Public Perceptions on General Consumption Taxes. British Tax Review, n. 67/5, Londres, 2020, p. 667-669.

51 THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth and Happiness. Londres: Penguin Books, 2008, p. 24-26.

52 KELLEY, David. The Art of Reasoning. Nova Iorque/Londres: W. W. Norton & Company Inc., 2014, p. 331.

53 THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth and Happiness. Londres: Penguin Books, 2008, p. 33-36.

54 FERRIA, Rita de la; WALPOLE, Michael. The Impact of Public Perceptions on General Consumption Taxes. British Tax Review, n. 67/5, Londres, 2020, p. 664-665.