DIREITO DE PROPRIEDADE E O PROBLEMA DA APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO: O CASO DAS MULTAS TRIBUTÁRIAS CONFISCATÓRIAS

PROPERTY RIGHT AND THE APPLICABILITY PROBLEM OF THE NON-CONFISCATION PRINCIPLE: THE CASE OF CONFISCATORY TAX FINES


Caio Neno Silva Cavalcante


Aluno especial do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília Linha de Pesquisa de Direito, Estado, Tributação e Desenvolvimento. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Bacharel em Engenharia de Controle e Automação pela Universidade de Brasília (UnB). Advogado. Natural de Belém/PA. E-mail: caionsc@gmail.com



Recebido em: 17-09-2020

Aprovado em: 12-11-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-46-6



RESUMO


Este trabalho tem como objetivo aprofundar as definições de confisco, efeito confiscatório e princípio do não confisco, com especial atenção para o problema da aplicabilidade deste princípio a casos concretos, em face da indefinição de suas fronteiras. Para tanto, desenvolve-se uma análise histórica do desenvolvimento do direito de propriedade, bem como dos limites que a ele podem ser impostos, como foco na tributação. Apresenta-se, também, a mudança de enfoque dos antigos limites ao poder de tributar, atualmente tidos como direitos fundamentais dos contribuintes. Como exemplo de construção jurisprudencial importante, é apresentado o caso das multas tributárias, analisando-se, ao final, de que forma esse exemplo contribui para a solução do problema da indeterminação conceitual do efeito confiscatório pela jurisprudência brasileira. É utilizado o método dedutivo, por meio de pesquisa realizada em legislação, doutrina e jurisprudência das Cortes Superiores brasileiras.


PALAVRAS-CHAVE: DIREITO DE PROPRIEDADE, VEDAÇÃO AO CONFISCO, EFEITO CONFISCATÓRIO, INDETERMINAÇÃO CONCEITUAL, MULTAS TRIBUTÁRIAS


ABSTRACT


This paper aims to deepen the definitions of confiscation, confiscatory effect, and non-confiscation principle, with special attention to the problem of the applicability of this principle to individual cases, given the lack of definition of its borders. To this end, a historical analysis of the development of the property right is presented, especially regarding to the limits that can be imposed on it, focusing on taxation. A change of perspective from the old limits to the power to tax, currently considered as fundamental rights of taxpayers, is also presented. As an example of important jurisprudential construction, the case of tax fines is introduced, analyzing, in the end, how this example contributes to the solution of the problem of conceptual indeterminacy of the confiscatory effect by Brazilian jurisprudence. The deductive method is used, through research carried out in legislation, doctrine, and jurisprudence of the Brazilian Superior Courts.

KEYWORDS: PROPERTY RIGHT, PROHIBITION AGAINST CONFISCATION, CONFISCATORY EFFECT, CONCEPTUAL INDETERMINACY, TAX FINES


  1. INTRODUÇÃO

    De acordo com Luís Eduardo Schoueri, “dificilmente se encontrará quem sustente com seriedade o desaparecimento do Estado como forma de organização política”, contudo, a própria existência de um Estado implica a busca de recursos financeiros para sua manutenção”1.


    Nesse sentido, é de se ressaltar que todos os direitos têm custos financeiros públicos, ainda que pareçam não ter. Mesmo as clássicas liberdades fundamentais, frequentemente referidas como direitos fundamentais de primeira geração e caracterizadas por uma atuação negativa por parte do Estado – ou seja, por uma abstenção –, se materializam em despesas estatais com sua realização e proteção. Essas despesas aproveitam aos cidadãos na razão direta das possibilidades de exercício desses direitos e liberdades, contudo, por não se caracterizarem em custos individualizáveis junto de cada titular, costumam ser esquecidas por seus titulares2.



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    1. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 15.


    2. NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. Revista Direito Mackenzie ano 3, n. 2,

      p. 9-30, mai. 2015. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2015. p. 20-21.


      Validamente, a respeito do direito de propriedade, considerado por muitos uma das mais importantes liberdades fundamentais, Stephen Holmes e Cass R. Sunstein apontam que


      “[o] governo liberal deve se abster de violar direitos; deve ‘respeitar’ os direitos. Mas essa maneira de falar é enganosa, pois reduz o papel do governo ao de um mero observador inativo. O sistema jurídico liberal não se limita a proteger e defender a propriedade. Ele define a propriedade e, assim, a cria. Sem a atividade legislativa e judicial, não pode haver direitos de propriedade [...]. Os direitos de propriedade existem porque a posse e o uso são criados e regulados pelo direito”3.


      Nem sempre, no entanto, se pensou assim. Há relatos de que, no início do século XIV, teria havido uma discussão entre o papa João XXII e o filósofo e frade Guilherme de Ockham, a respeito da visão da Ordem Franciscana – da qual Ockham fazia parte – sobre a propriedade. Ocorre que o papa defendia que a propriedade teria sido estabelecida pela lei divina, de modo que se tratava de direito natural, e os franciscanos não podiam alegar não o deterem. A principal consequência dessa visão, na prática, é de que o direito de propriedade seria anterior ao próprio Estado. Para Guilherme de Ockham, no entanto, havia um “direito do céu” (ius poli), correspondente ao direito natural, e um “direito dos tribunais” (ius fori), correspondente ao direito positivo. A propriedade, para o filósofo, seria um direito positivo, de modo que, sem o Estado, não poderia haver propriedade4.


      Com efeito, nos primeiros momentos da ascensão do Direito Civil, o direito de propriedade foi concebido como uma relação entre uma pessoa e uma coisa, de caráter absoluto, natural e imprescritível5, de maneira similar à vertente defendida pelo papa João XXII. Com o desenvolvimento da Ciência do Direito, no entanto, a ideia de Guilherme de Ockham passou a ganhar mais destaque, na medida em que se entendia que mesmo um direito natural, para que fosse protegido em uma sociedade, deveria ser reconhecido pelos tribunais e pelo ordenamento jurídico6.


      Diferentemente de Ockham, no entanto, essa visão civilista entendia que não era possível haver relação jurídica entre pessoa e coisa, visto que esse tipo de relação só poderia ser havida entre pessoas. A consequência disso foi o reconhecimento de que o direito de propriedade era uma relação entre um indivíduo (sujeito ativo) e um sujeito passivo universal, integrado por todas as pessoas. Nessa ótica, o direito de propriedade seria um


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    3. HOLMES, Stephen; e SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos. Traduzido por Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019. p. 46.


    4. KILCULLEN, John. Appendix 2: The origin of property: Ockham, Grotius, Pufendorf, and some others. In: KILCULLEN, J.; SCOTT, J. (ed.). A translation of William of Ockham’s work of ninety days. Lewiston: The Edwin Mellen Press, 2001. v. 2, p. 883-932. p. 883-885. Disponível em: https://perma.cc/MM4C-G5SL. Acesso em: 21 abr. 2020.


    5. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 274.


    6. KILCULLEN, John. Op. cit., p. 885-887.


      “modo de imputação jurídica de uma coisa a um sujeito”7. A propriedade, então, passou a ser compreendida como “elemento fundamental destinado a assegurar a subsistência individual e o poder de autodeterminação como fator básico da ordem social”8.


      Para José Afonso da Silva, a atmosfera civilista tem como defeito não levar em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade privada. Isso porque essas relações, ainda que privadas, atualmente estão sujeitas à disciplina de direito público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais9.


      No mesmo sentido, Gilmar Mendes leciona que, sob o império da Constituição de Weimar, a Alemanha passou a admitir que a garantia do direito de propriedade deveria abranger não só a propriedade sobre bens móveis ou imóveis, mas também os demais valores patrimoniais, incluídas, aqui, as diversas situações de índole patrimonial, decorrentes de relações de direito privado ou não. Segundo o autor, “essa mudança da função da propriedade foi fundamental para abandonar a ideia da necessária identificação entre o conceito civilístico e o conceito constitucional de propriedade”10. Assim, para os fins deste trabalho, o direito de propriedade é tomado “em sentido amplo, como instituição e valor constitucional”11.


      O significado prático da atribuição desse sentido amplo é de que a propriedade é garantida como instituto jurídico e direito fundamental12. Tal caráter de fundamentalidade do direito de propriedade, a partir da perspectiva constitucional formal e material, é bem sedimentado no direito ocidental. Como exemplos latino-americanos, o Brasil tem esse direito expressamente garantido no art. 5º, incisos XXII e XXIII, da Constituição Federal de 1988 (CF/1988)13. Na Constituição argentina, o art. 17 traz a inviolabilidade da propriedade e sua garantia a todo habitante da nação14. Na Constituição peruana, o art. 70º também assegura a inviolabilidade e coloca a garantia da propriedade privada sob tutela direta do Estado15. Na Constituição Plurinacional boliviana, o art. 56 também garante,


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    7. SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 274.


    8. MENDES, Gilmar Ferreira; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. 10. ed. rev. e atual. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015. (Série IDP) p. 322.


    9. SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 276.


    10. MENDES, Gilmar Ferreira; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 323.


    11. GOLDSCHMIDT, Fabio Brun. O princípio do não confisco no direito tributário. São Paulo: RT, 2003. p. 39-40.


    12. MENDES, Gilmar Ferreira; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 339.


    13. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”


    14. “Artículo 17. – La propiedad es inviolable, y ningún habitante de la Nación puede ser privado de ella, sino en virtud de sentencia fundada en ley. La expropiación por causa de utilidad publica, debe ser calificada por ley y previamente indemnizada.”


    15. “Artículo 70º. – El derecho de propiedad es inviolable. El Estado lo garantiza. Se ejerce en armonía con el bien común y dentro de los límites de ley. A nadie puede privarse de su propiedad sino, exclusivamente, por causa de seguridad nacional o necesidad pública, declarada por ley, y previo pago en efectivo de indemnización justipreciada que incluya compensación por el eventual perjuici o. Hay


      expressamente, a propriedade individual e coletiva16. A Constituição uruguaia, em seu art. 32, também trata a propriedade privada como direito inviolável17. Na Constituição paraguaia, disposição semelhante também se encontra no art. 10918, assim como no art. 115 da Constituição venezuelana19 e nos arts. 19 e 24º da Constituição chilena20.


      Todos esses exemplos, no entanto, também compartilham a possibilidade de limitação do direito de propriedade. Essa limitação pode se dar de diversas formas. No Brasil, Bolívia e Paraguai, por exemplo, há referência constitucional direta à função social da propriedade. No caso de Argentina, Peru, Uruguai, Venezuela e Chile, há possibilidade de expropriação por motivos de utilidade pública. Todos esses países, contudo, contam com uma limitação comum, a qual compartilham com a significativa maioria dos países ocidentais: a tributação.


      Não há dúvidas de que a propriedade privada é um dos pilares de sustentação do sistema capitalista, e existe uma relação de dependência recíproca entre o reconhecimento desse direito e o dever de contribuir ao sustento do Estado mediante o sistema tributário21. Paralelamente, todavia, há estudos que vão no sentido de reconhecer o pagamento de tributos como um dever fundamental conectado à solidariedade social, não somente como uma forma de atendimento às demandas dos Estados de bem-estar social.


      Nessa toada vem Marco Aurélio Greco, para quem o próprio equilíbrio da moderna relação entre Fisco e contribuinte será alcançado apenas quando for ultrapassada a ideia de que o tributo seria a manifestação de um poder tributário, concebendo-se a tributação como o


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      acción ante el Poder Judicial para contestar el valor de la propiedad que el Estado haya señalado en el procedimiento expropiatorio.”


    16. “Artículo 56. I. Toda persona tiene derecho a la propiedad privada individual o colectiva, siempre que ésta cumpla una función social. II. Se garantiza la propiedad privada siempre que el uso que se haga de ella no sea perjudicial al interés colectivo.”


    17. “Artículo 32. – La propiedad es un derecho inviolable, pero sujeto a lo que dispongan las leyes que se establecieren por razones de interés general. Nadie podrá ser privado de su derecho de propiedad sino en los casos de necesidad o utilidad públicas establecidos por una ley y recibiendo siempre del Tesoro Nacional una justa y previa compensación. Cuando se declare la expropiación por causa de necesidad o utilidad públicas, se indemnizará a los propietarios por los daños y perjuicios que sufrieren en razón de la duración del procedimiento expropiatorio, se consume o no la expropiación; incluso los que deriven de las variaciones en el valor de la moneda.”


    18. “Artículo 109 – De la propiedad privada. Se garantiza la propiedad privada, cuyo contenido y límites serán establecidos por la ley, atendiendo a su función económica y social, a fin de hacerla accesible para todos. La propiedad privada es inviolable. Nadie puede ser privado de su propiedad sino en virtud de sentencia judicial, pero se admite la expropiación por causa de utilidad pública o de interés social, que será determinada en cada caso por ley. Esta garantizará el previo pago de una justa indemnización, establecida convencionalmente o por sentencia judicial, salvo los latifundios improductivos destinados a la reforma agraria, conforme con el procedimiento para las expropiaciones a establecerse por ley.”


    19. “Artículo 115. Se garantiza el derecho de propiedad. Toda persona tiene derecho al uso, goce, disfrute y disposición de sus bienes. La propiedad estará sometida a las contribuciones, restricciones y obligaciones que establezca la ley con fines de utilidad pública o de interés general. Sólo por causa de utilidad pública o interés social, mediante sentencia firme y pago oportuno de justa indemnización, podrá ser declarada la expropiación de cualquier clase de bienes.”


    20. “Artículo 19. La Constitución asegura a todas las personas: 24º. El derecho de propiedad en sus diversas especies sobre toda clase de bienes corporales o incorporales […] Nadie puede, en caso alguno, ser privado de su propiedad, del bien sobre que recae o de algunos de los atributos o facultades esenciales del dominio, sino en virtud de ley general o especial que autorice la expropiación por causa de utilidad pública o de interés nacional, calificada por el legislador. El expropiado podrá reclamar de la legalidad del acto expropiatorio ante los tribunales ordinarios y tendrá siempre derecho a indemnización por el daño patrimonial efectivamente causado, la que se fijará de común acuerdo o en sentencia dictada conforme a derecho por dichos tribunales.”


    21. GOLDSCHMIDT, Fabio Brun. Op. cit., p. 41.


      exercício de uma atividade no desempenho da função social do Estado. Tal mudança de mentalidade implicaria, segundo o autor, “deslocar a sociedade civil de mera destinatária e submetida ao poder formal, para assumir o papel de protagonista positiva do direcionamento a imprimir a esta função”22.


      Passa-se, portanto, a uma perspectiva de tributação como meio para realização de direitos fundamentais e, paralelamente, como um dever fundamental em si própria. Mesmo como dever fundamental, no entanto, ainda há que se reconhecer que os tributos limitam o direito de propriedade. Com efeito, Julio Levene descreve o pagamento de tributos como um sacrifício legítimo do direito de propriedade, em prol do bem comum da sociedade. O autor, no entanto, faz a ressalva de que, quando excede os limites do bem comum, a tributação passa a ser um sacrifício injusto23.

      Não há dúvidas, portanto, de que a tributação, como limitação ao direito de propriedade, deve guardar limites. Trata-se, pois, de limites do limite, como denota Álvaro Bereijo, ao tratar da quinta e última parte do art. 31.1 da Constituição espanhola:


      “5º. – ‘…que en ningún caso tendrá alcance confiscatorio’. Mandato, enfático y admonitorio, al legislador respecto del resultado que pueda derivarse del ejercicio del poder fiscal del Estado. Límite último referido no sólo al resultado del sistema tributario en su conjunto, a modo de límite estructural a la configuración del sistema tributario inspirado en la progresividad y a la superposición de sus distintas figuras impositivas (en su caso, derivadas también del poder tributario de los entes territoriales) sobre una misma realidad económica gravada. Una suerte de límite de los límites, garantía de la propiedad privada (art. 33 CE) y de la libre iniciativa privada (art. 38 CE) y preservación del límite de la capacidad fiscal de los ciudadanos y del país en su conjunto frente a la voracidad que resulta de un uso desmedido o excesivo del poder fiscal del Estado”24.


      Isso porque a tributação, sob o pretexto de atender ao interesse público, não pode se converter em forma de destruição da propriedade. Nesse sentido, sob os auspícios dessas reflexões introdutórias a respeito das relações entre o direito de propriedade e a tributação, este trabalho se propõe a aprofundar as definições de confisco, efeito confiscatório e princípio do não confisco, com especial atenção para o problema da aplicabilidade desse princípio a casos concretos, em face da indefinição de suas fronteiras. Como exemplo de


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    22. GRECO, Marco Aurélio. Do poder à função tributária. In: ALLEMAND, Luiz Cláudio Silva. Direito tributário: questões atuais. 2. tiragem. Brasília: Conselho Federal da OAB, Comissão Especial de Direito Tributário, 2004. p. 277-284, p. 284.


    23. LEVENE, Julio. El pago de tributos configura um sacrifício injusto al derecho de propiedad cuando excede los limites del bien comum. Revista Tributária e de Finanças Públicas ano 8, n. 30, p. 21-50, jan./fev. 2000. São Paulo: RT (Thomson Reuters), 2000, p. 21-22.


    24. BEREIJO, Álvaro Rodríguez. Breve reflexión sobre los principios constitucionales de justicia tributaria. Revista Jurídica Universidad Autónoma de Madrid n. 13, p. 235-251, Madrid, 2005, p. 243. Disponível em: https://revistas.uam.es/revistajuridica/article/view/6154. Acesso em: 21 abr. 2020.


      construção jurisprudencial importante, será apresentado o caso das multas tributárias confiscatórias, analisando-se, ao final, de que forma este exemplo contribui para a solução do referido problema pela jurisprudência brasileira.


  2. PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO: DAS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES

    Segundo Fabio Brun Goldschmidt, confiscar (do latim confiscare) “é o ato de apreender a propriedade em prol do Fisco, sem que seja oferecida ao prejudicado qualquer compensação em troca”25. Conforme Regina Helena Costa, o confisco, de forma simples, “é a absorção total ou substancial da propriedade privada, pelo Poder público, sem a correspondente indenização”26.


    Estevão Horvath, por sua vez, aponta que o ato de confiscar tem, geralmente, o significado de ataque à propriedade privada, pelo Estado, sem compensação ao proprietário27. O confisco, portanto, é uma violação do direito de propriedade, na qual se retira, sem justa causa e prévia indenização, a propriedade de bens materiais e imateriais, “não podendo a imposição tributária servir de disfarce para não o configurar”28.


    De fato, o art. 3º, CTN, dispõe que nenhum tributo pode constituir sanção de ato ilícito, assim, a tributação nunca poderia ser utilizada para confiscar. O art. 150, IV, CF/1988, por sua vez, dispõe que “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco”29.


    O desafio mais significativo, com respeito a este princípio, no entanto, reside em “aquilatar até que ponto um tributo não é confiscatório e a partir de quando passa a sê-lo”, ou seja, em se saber quando determinada alteração legislativa tributária desencadeará um efeito de confisco30. Isso porque a doutrina costuma considerar o “efeito de confisco” como um


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    1. GOLDSCHMIDT, Fabio Brun. Op. cit., p. 46.


    2. COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 79.


    3. HORVATH, Estevão. O princípio do não confisco no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 46.


    4. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direitos fundamentais do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos fundamentais do contribuinte. São Paulo: RT, Centro de Extensão Universitária, 2000. p. 45-81. (Série Pesquisas Tributárias, n. 6). p. 50.


    5. Parte da doutrina defende que sequer haveria necessidade da existência de previsão constitucional específica do princípio da vedação ao confisco, já que a própria proteção ao direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII, CF/1988) já seria suficiente para que se entendesse proibido “que o ônus da tributação comprometa de forma abusiva a renda e o patrimônio do cidadão (ou da pessoa jurídica), ou lhe iniba o consumo” (HORVATH, Estevão. Op. cit., p. 49).


    6. COSTA, Regina Helena. Op. cit., p. 79.


      conceito indeterminado31. A mesma posição já vem sendo apontada pela jurisprudência superior brasileira32 e pela doutrina latino-americana:


      “El principio de no confiscatoriedad tiene la estructura propia de lo que se denomina un ‘concepto jurídico indeterminado’. Es decir, su contenido constitucionalmente protegido no puede ser precisado en términos generales y abstractos, sino que debe ser analizado y observado en cada caso, teniendo en consideración la clase de tributo y las circunstancias concretas de quienes estén obligados a sufragarlo. No obstante, teniendo en cuenta las funciones que cumple un Estado democrático de Derecho, es posible afirmar, con carácter general, que se trasgrede el principio de no confiscatoriedad cada vez que un tributo excede el límite que razonablemente se admite para no vulnerar el derecho de propiedad”33.


      Com efeito, a doutrina costuma concordar que a fronteira daquilo que seja ou não confiscatório deve ser analisada no caso concreto, levando-se em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Sacha Calmon Navarro Coêlho, inclusive, defende que o princípio da vedação ao confisco se assemelha significativamente ao próprio princípio da razoabilidade, quando aplicado à tributação34.


      O STF conceitua e aplica o não confisco de maneira similar35. Ademais, tal discussão a respeito da razoabilidade da tributação também é abordada no bojo de outro tema relevante, originalmente surgido na doutrina. Trata-se da dúvida sobre se a aferição do efeito confiscatório deve ser realizada a partir da análise individual de cada tributo ou se deve ser priorizada a totalidade da carga tributária suportada pelo contribuinte, no caso concreto. A posição da Corte, todavia, já se encontra pacificada pela consideração cumulativa da carga tributária do indivíduo.


      No julgamento da Medida Cautelar (MC) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 2.010/DF, sagrou-se vencedor o voto do relator, Min. Celso de Mello, para quem o efeito


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    7. HORVATH, Estevão. Op. cit., p. 34.


    8. “[...] a norma inscrita no art. 150, IV, da Constituição encerra uma cláusula aberta, veiculadora de conceito jurídico indetermi nado, reclamando, em consequência, que os Tribunais, na ausência de ‘uma diretriz objetiva e genérica, aplicável a todas as circunstâncias’ (DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Direito constitucional tributário e due process of law. 2. ed. Forense, 1986. p. 196, item 6 2) – e tendo em consideração as limitações que derivam do princípio da proporcionalidade –, procedam à avaliação dos excessos eventualmente praticados pelo Estado. [...] não há uma definição constitucional de confisco em matéria tributária. Trata-se, na realidade, de um conceito aberto, a ser utilizado pelo juiz, com apoio em seu prudente critério, quando chamado a resolver os conflitos entre o poder público e os contribuintes” (AgR no ARE n. 712.285/SC, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, STF, j. 23.04.2013, DJe 28.06.2013).


    9. LOZANO, Jorge Antonio Lay. El aspecto constitucional del tributo. LEX – Revista de la Facultad de Derecho y Ciencia Política n. 16, ano XIII, p. 284-314, II. Perú: Universidad Alas Peruanas (UAP), 2015. p. 310. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/307748483_El_aspecto_constitucional_del_tributo. Acesso em: 21 abr. 2020.


    10. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 242.


    11. “O poder público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da definição do quantum pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais” (ADI n. 1.075- 1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, STF, j. 17.06.1998, DJe 24.11.2006).


      confiscatório depende da análise cumulativa, no caso concreto, das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal. Quando esse conjunto de exações afeta de maneira irrazoável o patrimônio e os rendimentos do contribuinte, há violação ao art. 150, inciso IV, CF/1988. Nesse diapasão, o voto vencedor consignou que, em sede de tributação, o Poder Público “não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha- se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade”36.


      Tal posicionamento encontrou – e ainda encontra – eco, ao longo dos anos, na Corte Constitucional brasileira, tendo sido tomado como base para julgados como a Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) n. 8/DF37, que tratou das contribuições sociais do art. 195, CF/1988, e o Agravo Regimental (AgR) em Recurso Extraordinário (RE) n. 448.432/CE, no qual o relator, Min. Joaquim Barbosa, consignou que “[a] caracterização do efeito confiscatório pressupõe a análise de dados concretos e de peculiaridades de cada operação ou situação, tomando-se em conta custos, carga tributária global, margens de lucro e condições pontuais do mercado e de conjuntura social e econômica”38. Mais recentemente, a ADI n. 5.485/DF também foi no mesmo sentido39.


      Paralelamente, Ricardo Lobo Torres defende que “a proibição de imposto com efeito de confisco é vera imunidade fiscal, e não simples princípio jurídico vinculado à justiça ou à segurança jurídica”. Assim, todo tributo que aniquila a propriedade privada, atingindo-a em sua substância e essência, será confiscatório, e a vedação ao confisco imunizará essa propriedade, quando considerada em sua totalidade40.


      Nesse diapasão, a ADI n. 939/DF foi uma das primeiras, no Brasil, a questionar emenda constitucional (EC) cuja declaração de inconstitucionalidade material decorria da violação de cláusulas pétreas, ou seja, de violação do art. 60, § 4º, inciso IV, CF/1988. Na oportunidade, o STF se posicionou de maneira clara por reconhecer o princípio da anterioridade como

      uma garantia individual do contribuinte, que constitui princípio imutável. Da mesma

      forma, também apontou que as imunidades tributárias constituíam normas imutáveis no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que não poderiam ser suprimidas nem mesmo pelo Poder Constituinte Derivado41. Vale ressaltar que a doutrina tributarista clássica


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    12. MC na ADI n. 2.010/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, STF, j. 30.09.1999, DJ 12.04.2002.


    13. ADC n. 8/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, STF, j. 13.10.1999, DJ 04.04.2003.


    14. AgR no RE n. 448.432/CE, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, STF, j. 20.04.2010, DJe 28.05.2020.


    15. “O efeito confiscatório da tributação deve levar em conta o limite da capacidade do cidadão de viver e se desenvolver, sempre observada

      a carga global a que o contribuinte está submetido” (ADI n. 5.485/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, STF, j. 16.06.2020, DJe 06.07.2020).


    16. TORRES, Ricardo Lobo. Direitos fundamentais do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos fundamentais do contribuinte. São Paulo: RT, Centro de Extensão Universitária, 2000. p. 167-186. (Série Pesquisas Tributárias, n. 6). p. 168.


    17. “Ementa: Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar.

      I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, ‘b’, e VI, ‘a’, ‘b’, ‘c’ e ‘d’, da Constituição Federal” (ADI n. 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, STF, j. 15.12.1993, DJ 18.03.1994, p. 05165).


      atribuía ao princípio da anterioridade e às imunidades tributárias a nomenclatura “limitações constitucionais ao poder de tributar”. A partir da ADI n. 939/DF, no entanto, o foco da doutrina tributarista brasileira mudou, passando-se a preferir o termo “direitos fundamentais dos contribuintes”.


      Assim, indubitavelmente, o princípio do não confisco – tido como verdadeira imunidade tributária, na definição de Ricardo Lobo Torres – é um direito fundamental do contribuinte e, portanto, também constitui aquilo a que antes se referia como limitação constitucional ao poder de tributar.


      Ainda que se entendesse pela não utilização do paralelismo entre não confisco e imunidade tributária, no entanto, fato é que esse princípio vem sendo expressamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência brasileiras como de caráter fundamental. A título de exemplo, o STF, na ADI n. 4.628/DF, apontou expressamente o caráter de fundamentalidade do princípio do não confisco, relacionando-o não como mera limitação ao poder de tributar, mas sim como verdadeiro direito fundamental do contribuinte42.


      De acordo com Liziane Angelotti Meira e Celso de Barros Correia Neto, essa substituição da nomenclatura utilizada no discurso teórico e jurisprudencial – de limitação ao poder de tributar para direito fundamental do contribuinte – trouxe consigo um ganho de força e eficácia jurídica, visto que


      “[...] a afirmação de tais ‘limites’ como direitos – fundamentais – dos contribuintes, mais do que simplesmente restringir a competência legislativa para instituir impostos, tem ainda o condão de reforçar a eficácia das normas protetivas do contribuinte em face do Fisco, seja no plano estritamente jurídico, seja no plano político. É dizer, o efeito de sentido que se obtém pela expressão ‘direitos fundamentais’ ou ‘direitos humanos’ não é idêntico ao que se observa no uso da expressão ‘limites’, ‘limitações’ ou ‘restrições’ ao poder de tributar. Além de destacar a posição do contribuinte que faz jus a direito ‘reflexo’, diante da norma de limitação ao poder tributário, a afirmação de tais direitos como ‘fundamentais’ implica em ganho de status, à medida em que os eleva à categoria de norma, hierárquica e axiologicamente, mais importante do ordenamento jurídico – cláusulas pétreas do texto constitucional”43.


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    18. “7. O princípio do não confisco, que encerra direito fundamental do contribuinte, resta violado em seu núcleo essencial em face da sistemática adotada no cognominado Protocolo ICMS n. 21/2011, que legitima a aplicação da alíquota interna do ICMS na unidade federada de origem da mercadoria ou bem, procedimento correto e apropriado, bem como a exigência de novo percentual, a diferença entre a alíquota interestadual e a alíquota interna, a título também de ICMS, na unidade destinatária, quando o destinatário final não for contribuinte do respectivo tributo” (ADI n. 4.628/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, STF, j. 17.09.2014, DJe 24.11.2014).


    19. MEIRA, Liziane Angelotti; e CORREIA NETO, Celso de Barros. Notas de uma pesquisa. In: BRANCO, Paulo Gonet; MEIRA, Liziane Angelotti; e CORREIA NETO, Celso de Barros (coords.). Tributação e direitos fundamentais conforme a jurisprudência do STF e do STJ. São Paulo: Saraiva, 2012. (Série IDP) p. 18-19.


      Com efeito, Ricardo Lobo Torres defende que o povo é o verdadeiro titular da soberania financeira do Estado, na medida em que lhe transfere, limitadamente, a possibilidade de tributar e gastar, conforme as normas constitucionais. Os tributos, portanto, constituem o contraponto fiscal aos direitos fundamentais44.


      Assim, a mudança do enfoque de “limitações constitucionais ao poder de tributar” para “direitos fundamentais dos contribuintes” faz com que a referência já não seja mais o Estado, mas sim o cidadão, que é, justamente, quem emprestou o poder de tributar ao Estado. O que antes eram limitações ao Estado, atualmente são, então, direitos subjetivos do contribuinte. De fato, no campo da tributação, em que se verifica a constante tensão entre Fisco e contribuinte, “o discurso dos direitos fundamentais oferece tanto um limite quanto um objetivo a perseguir”45.


      Dentro dessa perspectiva de direitos fundamentais do contribuinte e levando-se em conta a indeterminação do conceito de efeito de confisco, que gera o problema da aplicabilidade do princípio do não confisco que dá nome a este trabalho, passa-se a avaliar um caso de sucesso da jurisprudência brasileira – as multas tributárias –, no qual parece ter sido possível, ao longo de décadas de construção jurisprudencial, construir fronteiras bem delimitadas e, até certo ponto, significativamente objetivas, a respeito do que pode ser considerado como uma multa confiscatória.


  3. O CASO DAS MULTAS TRIBUTÁRIAS CONFISCATÓRIAS

    Na Constituição brasileira de 1934, o art. 184, parágrafo único, trazia disposição expressa sobre o quantum da multa tributária, limitando-o a 10% (dez por cento) da importância em débito46. Constituições posteriores, no entanto, não repetiram esse tipo de normativo.


    Embora o art. 150, inciso IV, CF/1988, traga somente a nomenclatura “tributos”, diversos doutrinadores defendem que o efeito confiscatório é aplicável, também, às multas advindas da legislação tributária. Dentre eles se encontra, por exemplo, Roque Antonio Carrazza, para quem as multas fiscais, advindas do descumprimento de deveres jurídicos tributários, também devem ser razoáveis, sob pena de se burlar o princípio constitucional que veda o confisco47. No mesmo diapasão está Sacha Calmon Navarro Coêlho, para quem a multa excessiva caracteriza confisco indireto48.



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    1. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 9. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 55-56.


    2. MEIRA, Liziane Angelotti; e CORREIA NETO, Celso de Barros. Op. cit., p. 16.


    3. [CF/1934] “Art. 184. [...] Parágrafo único – As multas de mora por falta de pagamento de impostos ou taxas lançados não poderão exceder de dez por cento sobre a importância em débito”.


    4. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 118.


    5. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 647.


      No STF, uma das primeiras análises que tocaram no tema se deu na MC na ADI n. 1.094/DF, que discutia, dentre outros, a inconstitucionalidade do art. 23, inciso I, da Lei n. 8.884/1994, a antiga Lei de Defesa da Concorrência, que instituía multa de 1% (um por cento) a 30% (trinta por cento) do valor do faturamento bruto da empresa infratora da ordem econômica49. Neste caso, o relator, Min. Carlos Velloso, em julgamento que se deu em setembro de 1995, indeferiu a cautelar que pedia a suspensão da cobrança da referida multa sob o argumento de que, quando aplicada em seu valor abstrato máximo de 30%, a multa poderia ser confiscatória a depender do caso concreto, em razão de violação ao direito fundamental de propriedade do art. 5º, inciso XXII, CF/1988. Contudo, em razão da existência de uma margem de aplicação, o dispositivo não mereceria a declaração de inconstitucionalidade em abstrato. A principal conclusão prática do caso, portanto, foi de que multas somente poderiam ser consideradas inconstitucionais em controle difuso de constitucionalidade50.


      A evolução desse entendimento no que tange, especificamente, às multas tributárias, pode ser percebida de maneira significativamente ilustrativa no julgamento da ADI n. 1.075-1/DF. Isso porque, na MC correspondente, em sede de análise do pedido liminar, apreciado em junho de 1995, o posicionamento do tribunal acompanhou aquele da MC na ADI n. 1.094/DF, não conhecendo o pedido de suspensão cautelar do art. 3º, Lei n. 8.846/1994, que estabelecia multa pecuniária de 300% (trezentos por cento) sobre o valor do bem quando a empresa fornecedora não emitisse a devida nota fiscal51. Isso porque, de acordo com o relator, Min. Celso de Mello, não caberia análise de efeito confiscatório de multa em sede de controle abstrato de constitucionalidade. O relator, no entanto, foi voto vencido quanto ao não conhecimento, com voto-vista do Min. Ilmar Galvão, que, citando que o dispositivo em questão “manifestamente, tem caráter confiscatório, ofendendo a norma do art. 150, IV, da Constituição”. Superada a preliminar (e, com ela, a restrição à análise de multas somente em sede de controle difuso) e analisada a demanda em sede liminar – o que se deu em junho de 1998, o próprio Min. Celso de Mello reconheceu que o quantum excessivo da multa cominada constituía expropriação do patrimônio dos contribuintes do Imposto de Renda, suspendendo cautelarmente a eficácia da norma questionada52.


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    6. [Lei n. 8.884/1994] “Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas: [...] I – no caso de empresa, multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando quantificável;”


    7. “Sustenta-se que a multa, no percentual de 30% do valor do faturamento bruto, é confiscatória, pelo que atenta contra o direito de propriedade garantido no art. 5º, XXII. Não se tem, no caso, entretanto, multa de 30%. Tem-se, sim, multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto, excluídos os impostos. Concedo que, em certos casos, poderá ocorrer inconstitucionalidade material, vale dizer, inconstitucionalidade em concreto, no caso de aplicação da multa no seu grau máximo. Em abstrato, entretanto, não vejo configurada, pelo menos ao primeiro exame, a inconstitucionalidade arguida” (MC na ADI n. 1.094/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, STF, j. 21.09.1995, DJ 20.04.2001, p. 333).


    8. [Lei n. 8.846/1994] “Art. 3º Ao contribuinte, pessoa física ou jurídica, que não houver emitido a nota fiscal, recibo ou documento equivalente, na situação de que trata o art. 2º, ou não houver comprovado a sua emissão, será aplicada a multa pecuniária de trezentos por cento sobre o valor do bem objeto da operação ou do serviço prestado, não passível de redução, sem prejuízo da incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e das contribuições sociais”.


    9. “A Constituição republicana de 1934 prescreveu, em seu art. 184, parágrafo único, que ‘As multas de mora por falta de pagamento de impostos ou taxas lançados não poderão exceder de dez por cento sobre a importância em débito’. O vigente texto constitucional, no entanto, deixou de reeditar norma semelhante, o que não significa que a Constituição de 1988 permita a utilização abusiva de multas


      Vale ressaltar, no entanto, que havia, à época, linhas doutrinárias importantes que defendiam a impossibilidade de aplicação do não confisco para as multas tributárias, por se tratar de sanção contra ato ilícito, as quais, para alcançar sua finalidade, deveriam representar ônus significativo para desestimular as condutas que visam punir. Esse é o caso, por exemplo, de Hugo de Brito Machado53. Outros autores, como Vittorio Cassone54 e Yoshiaki Ichihara55, defendiam, por uma perspectiva mais positivista, que às multas se deveriam aplicar somente os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, mas não o princípio da vedação ao confisco, visto que este último, ao ser vinculado pela Constituição ao conceito de tributo, excluiria, de seu bojo, as penalidades.


      Antes mesmo da publicação do acórdão definitivo da ADI n. 1.075-1/DF (a qual se deu em novembro de 2006), contudo, a jurisprudência superior pátria já se consolidava no sentido do entendimento de que é cabível a subsunção das multas confiscatórias ao art. 150, IV, CF/1988, como se observa de precedente emblemático, consubstanciado na ADI n. 551/RJ, que discutia a constitucionalidade de limites inferiores de multas previstas na Constituição Estadual do Rio de Janeiro (art. 57, §§ 2º e 3º). Essas normativas apontavam que não poderiam as multas consequentes do não recolhimento de tributos estaduais ser inferiores a duas vezes o valor da obrigação, e multas consequentes de sonegação não poderiam ser inferiores a cinco vezes o valor da exação. Validamente, os dispositivos foram declarados inconstitucionais por violação ao princípio do não confisco, em julgamento ocorrido em 200256.


      Ressalta-se, por certo, que ao se reconhecer a possibilidade de aplicação do não confisco para as multas tributárias, não se está sustentando que toda multa tributária, simplesmente por ter sido imposta ao contribuinte e independentemente do quantum, será confiscatória57. Em verdade, o STF tem diversos precedentes sustentando que há multas tributárias que não se podem considerar abusivas, desarrazoadas ou confiscatórias, como é o caso do RE n. 239.964/RS, em que se considerou adequada multa moratória de 20% (vinte por cento), prevista no art. 59, Lei n. 8.383/199158, bem como do RE n. 582.461/SP,


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      fiscais cominadas em valores excessivos, pois, em tal situação, incidirá, sempre, a cláusula proibitiva do efeito confiscatório (CF, art. 150,

      IV)” (ADI n. 1.075-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, STF, j. 17.06.1998, DJe 24.11. 2006, p. 190-191).


    10. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 37-38.


    11. CASSONE, Vittorio. Direitos fundamentais do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos fundamentais do contribuinte. São Paulo: RT, Centro de Extensão Universitária, 2000. p. 389-411. (Série Pesquisas Tributárias, n. 6). p. 400.


    12. ICHIHARA, Yoshiaki. Direitos fundamentais do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos fundamentais do contribuinte. São Paulo: RT, Centro de Extensão Universitária, 2000. p. 482-503. (Série Pesquisas Tributárias, n. 6). p. 494.


    13. “A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal. Ação julgada procedente” (ADI n. 551/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, j. 24.10.2002, DJ 14.02.2003).


    14. “Tributário. ICMS. Multa com caráter confiscatório. Não ocorrência. Não se pode pretender desarrazoada e abusiva a imposição por lei de multa – que é pena pelo descumprimento da obrigação tributária –, sob o fundamento de que ela, por si mesma, tem caráter confiscatório” (AgR no RE n. 590.754/RS, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, STF, j. 30.09.2008, DJ 24.10.2008).


    15. “A multa moratória de 20% do valor do imposto devido não se mostra abusiva ou desarrazoada, inexistindo ofensa aos princípios da

      capacidade contributiva e da vedação ao confisco” (RE n. 239.964/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, 1ª Turma, STF, j. 15.04.2003, DJ 09.05.2003).


      apreciado em sede de Repercussão Geral (Tema n. 214), no qual o mesmo patamar foi considerado razoável em legislação estadual paulista de ICMS59. No caso do ICMS, o percentual de 30% (trinta por cento) também foi considerado razoável no RE n. 220.284/SP60.


      No AgR no RE n. 523.471/MG, por sua vez, a parte agravante buscava posicionamento do STF a respeito de multa de 60% (sessenta por cento). A 2ª Turma do STF, no entanto, negou provimento ao pedido por entender que a parte interessada não havia se desincumbido do ônus de apontar peculiaridades do caso concreto que permitiriam sustentar proporcionalidade reduzida. Neste ponto, parece haver significativa interface do precedente com o posicionamento do STF a respeito da consideração da carga tributária global do indivíduo como critério para aferição do efeito confiscatório. Nas palavras do relator, Min. Joaquim Barbosa, “[a] mera alusão à mora, pontual e isoladamente considerada, é insuficiente para estabelecer a relação de calibração e ponderação necessárias entre a gravidade da conduta e o peso da punição”61. É ecoado, portanto, o entendimento da MC na ADI n. 2.010/DF, de acordo com a qual há efeito confiscatório “sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte”62.


      Com o passar do tempo e a partir das discussões até então apresentadas, um posicionamento significativamente sólido foi sendo desenvolvido na Corte Constitucional brasileira, consubstanciado na tese de que o próprio valor da obrigação principal é o limite mais adequado para a multa tributária punitiva. O racional utilizado é de que, embora se reconheça que há dificuldade em se fixar o que seria uma multa abusiva, é de se constatar que, por se tratar de obrigações acessórias, não podem, como tal, ultrapassar o valor da principal.


      Exemplos de julgados que, cronologicamente, desenvolveram esse raciocínio são: (i) o AgR no RE n. 748.257/SE, julgado em agosto de 2013, pela 2ª Turma, e que afastou multa de 150% (cento e cinquenta por cento)63; (ii) o AgR no AI n. 838.302/MG, julgado em fevereiro de 2014,

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    16. “4. Multa moratória. Patamar de 20%. Razoabilidade. Inexistência de efeito confiscatório. Precedentes. A aplicação da multa moratória tem o objetivo de sancionar o contribuinte que não cumpre suas obrigações tributárias, prestigiando a conduta daqueles que pagam em dia seus tributos aos cofres públicos. Assim, para que a multa moratória cumpra sua função de desencorajar a elisão fiscal, de um lado não pode ser pífia, mas, de outro, não pode ter um importe que lhe confira característica confiscatória, inviabilizando inclusive o recolhimento de futuros tributos. O acórdão recorrido encontra amparo na jurisprudência desta Suprema Corte, segundo a qual não é confiscatória a multa moratória no importe de 20% (vinte por cento)” (RE n. 582.461/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, STF, j. 18.05.2011, DJe 18.08.2011).


    17. “Não se pode pretender desarrazoada e abusiva a imposição por lei de multa – que é pena pelo descumprimento da obrigação tributária

      – de 30% sobre o valor do imposto devido, sob o fundamento de que ela, por si mesma, tem caráter confiscatório. Recurso extraordinário não conhecido” (RE n. 220.284/SP, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, STF, j. 16.05.2000, DJ 10.08.2000).


    18. AgR no RE n. 523.471/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, STF, j. 06.04.2010, DJe 23.04.2020.


    19. MC na ADI n. 2.010/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, STF, j. 30.09.1999, DJ 12.04.2002.


    20. “I – Esta Corte firmou entendimento no sentido de que são confiscatórias as multas fixadas em 100% ou mais do valor do tributo devido. II – A obediência à cláusula de reserva de plenário não se faz necessária quando houver jurisprudência consolidada do STF sobre a questão constitucional discutida. III – Agravo regimental improvido” (AgR no RE n. 748.257/SE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma,


      pela 1ª Turma, e que manteve multa de 50% (cinquenta por cento)64; (iii) o AgR no RE n. 602.686/PE, julgado em dezembro de 2014, pela 1ª Turma, e que manteve incólume o art. 44, inciso I, Lei n. 9.430/1996, que atribuía multa de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição, a ser aplicada no lançamento de ofício, nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata65; e, enfim, (iv) o AgR no AI n. 851.038/SC, julgado em fevereiro de 2015, pela 1ª Turma, e que expressou novamente tal limitação, denotando o quantum exato de 100% (cem por cento) do valor da obrigação tributária principal66.


      Por todo o exposto, constata-se que, ao longo de décadas de construção jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal foi capaz de delimitar, com crescente rigor metodológico e com justificativas objetivas – em que pese a dificuldade de se avaliar a existência ou não de efeito confiscatório, bem como sua dependência quanto à aferição da carga tributária global do contribuinte – um limite significativamente objetivo para o que vem a ser uma multa confiscatória. Trata-se, pois, de um caso de sucesso da jurisprudência brasileira.


      Reconhece-se, no entanto, que, diante de um sistema tributário tão complexo e tão cheio de espécies tributárias, com as mais distintas características, o problema é mais profundo. O universo das multas tributárias é, sob qualquer análise, bem mais restrito do que o das obrigações tributárias principais, visto que se trata, em última análise, de uma avaliação da confiscatoriedade de percentuais objetivos.

      De fato, o efeito confiscatório, nos casos de multas, é dito em sentido estrito que é aquele que se verifica quando a exação é proposta de forma regular, mas o montante, o quantum em si, é destrutivo e extrapola a razoabilidade. A análise dos tributos – obrigações principais

      –, no entanto, além de levar em conta o efeito confiscatório em sentido estrito, também deve tomar em consideração o efeito confiscatório em sentido amplo, ou seja, todos os problemas que não sejam decorrentes do simples abuso do poder de tributar67.



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      STF, j. 06.08.2013, DJe 20.08.2013).


    21. “Em se tratando de débito declarado pelo próprio contribuinte, não se faz necessária sua homologação formal, motivo por que o crédito tributário se torna imediatamente exigível, independentemente de qualquer procedimento administrativo ou de notificação do sujeito. O valor da obrigação principal deve funcionar como limitador da norma sancionatória, de modo que a abusividade se revela nas multas arbitradas acima do montante de 100%. Agravo regimental a que se nega provimento” (AgR no AI n. 838.302/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, j. 25.02.2014, DJe 31.03.2014).


    22. “A multa punitiva é aplicada em situações nas quais se verifica o descumprimento voluntário da obrigação tributária prevista na legislação pertinente. Trata-se da sanção prevista para coibir a prática de ilícitos tributários. Nessas circunstâncias, conferindo especial relevo ao caráter pedagógico da sanção, que visa desestimular a burla à atuação da administração tributária, deve ser reconhecida a possibilidade de aplicação da multa em percentuais mais rigorosos. Nesses casos, a Corte vem adotando como limite o valor devido pela obrigação principal” (Segundo AgR no RE n. 602.686/PB, Rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, j. 09.12.2014, DJe 05.02.2015).


    23. “O entendimento desta Corte é no sentido de que a abusividade da multa punitiva apenas se revela naquelas arbitradas acima do

      montante de 100% do valor do tributo” (AgR no AI n. 851.038/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, STF, j. 10.02.2015, DJe 12.03.2015).


    24. Sobre o efeito confiscatório em sentido amplo, Fabio Brun Goldschmidt defende que “[n]esta categoria, incluímos as exações viciadas do ponto de vista qualitativo, que se afiguram excessivas porque extravasam as fronteiras constitucionais/legais (não quantitativas) para instituição de tributos. Os tributos em questão apresentam-se maiores do que seu desenho normalmente permite, e seu exagero decorre do fato de que inexiste lugar para a tomada da propriedade particular em tais circunstâncias e, por consequência, toda a tomada de propriedade realizada apresentar-se-á destrutiva e penalizadora (com efeito de confisco). Aí estão incluídas v.g., as taxas de serviço


      Fato é que, embora de difícil definição, o princípio do não confisco é instrumento importante na defesa do contribuinte. Trata-se, pois, de uma disposição principiológica e autoaplicável, pelo que não é simples previsão programática do Constituinte originário. Ainda que se reconheça a dificuldade de se determinar os limites desse princípio, essa não é razão que permita omissão do Judiciário, de modo que o que não cabe é “a cômoda posição representada pela justificativa de que à falta de critérios objetivos estabelecidos na Constituição ou na lei ordinária, o Judiciário não pode declarar a inconstitucionalidade de um tributo qualquer por ofensa ao princípio do não confisco”68.


  4. CONCLUSÃO

A partir de uma análise histórica do desenvolvimento do direito de propriedade, tomado em sentido amplo, como instituto jurídico e um valor constitucional, bem como dos limites que a ele podem ser impostos, este trabalho buscou demonstrar que a tributação deve ser encarada como um meio para realização de direitos fundamentais e, paralelamente, como um dever fundamental em si própria.


Mesmo como dever fundamental, no entanto, quando excede os limites do bem comum, a tributação pode se apresentar como um sacrifício exagerado, além da capacidade contributiva do indivíduo, caso no qual deve ser observado o princípio da vedação ao efeito confiscatório, previsto no art. 150, inciso IV, CF/1988. O desafio mais significativo, com respeito a essa vedação, reside em definir os limites da confiscatoriedade, visto que o efeito de confisco é, reconhecidamente, indeterminado.


Cabe ao Judiciário, então, dizer quando um tributo é confiscatório, e, de acordo com o posicionamento solidificado da jurisprudência, tal aferição deve ser feita com base na capacidade tributária global do contribuinte, levando em conta toda a tributação à qual ele está submetido69. Por meio do estudo de caso das multas tributárias, concluiu-se que é possível, sim, construir, ao longo do tempo e com paciência, um limite significativamente objetivo, dotado de rigor metodológico, para o efeito de confisco.


Tendo em vista, no entanto, a relação inegavelmente desigual, em termos econômicos, entre Estado e contribuinte, que faz com que o impacto da improcedência de pleitos tributários seja significativamente maior para este último, é forçoso que se concorde com o entendimento de Fabio Brun Goldschmidt, para quem se deve presumir inconstitucional


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público e as contribuições que não decorram de uma atuação estatal, o empréstimo compulsório que não derive v.g., de uma despesa extraordinária decorrente de investimento público de caráter urgente, a contribuição de melhoria instituída contra sujeito passivo que não foi beneficiado por obra pública, o imposto sobre a renda que recai sobre o patrimônio e, até mesmo, os tributos instituídos por ato infralegal” (GOLDSCHMIDT, Fabio Brun. Op. cit., p. 100-101).


  1. BERTI, Flávio de Azambuja. Impostos: extrafiscalidade e não confisco. Curitiba: Juruá, 2003. p. 132.


  2. Nesse sentido, segundo Hugo de Brito Machado, o art. 150, inciso IV, CF/1988, “no mínimo, deu ao Judiciário mais um instrumento de controle da voracidade fiscal do Governo, cuja utilidade certamente fica a depender da provocação dos interessados e da independência e coragem dos magistrados” (MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 37).


    toda legislação atentatória ao princípio da vedação ao confisco, o que implica dizer, em verdade, que “sempre que houver dúvida acerca da caracterização ou não do efeito confisco, deve-se julgar no sentido da inconstitucionalidade da lei atacada”70.


    De fato, a aplicação do princípio do não confisco deve ser feita em cada caso concreto, de maneira individualizada, por um juízo corajoso o suficiente para não tolerar interferências com efeito de confisco sobre o patrimônio e o direito de propriedade do contribuinte. Deve- se, paralelamente, considerar também princípios como os da igualdade, da capacidade contributiva, da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana, os quais têm, por si mesmos, força suficiente para revelar se um determinado imposto “atingiu as raias do confisco”, caso no qual o Judiciário, quando devidamente provocado, terá o dever de declarar inconstitucional a lei que o criou71.


    Isso porque os direitos fundamentais são de pronta aplicação, nos termos do art. 5º, § 1º, CF/1988, de modo que não podem ser objeto de restrições que visem a diminuir seu alcance e, no caso do não confisco, que visem sacrifícios injustificados e desnecessários ao contribuinte. Nesse sentido, o afastamento de toda e qualquer norma que coloque em risco a máxima eficácia dos direitos fundamentais do contribuinte é medida que se impõe.


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