A IMUNIDADE DO ITBI SOBRE AS OPERAÇÕES DE TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA EFETUADAS EM REALIZAÇÃO DO CAPITAL DE PESSOA JURÍDICA

CONSTITUTIONAL TAX EXEMPTION ON REAL ESTATE TRANSMISSIONS DESTINED TO CAPITAL PAY-IN

Guilherme Broto Follador


Bacharel e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Advogado em Curitiba. E-mail: follador@agkn.com.br


Maurício Dalri Timm do Valle


Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Coordenador do Programa de Pós- graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília UCB e Professor de Direito Tributário do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA. Membro do Conselho Administrativo de Recurso Fiscais CARF. Ex-assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. E- mail: mauricio_do_valle@hotmail.com



Recebido em: 01-09-2020

Aprovado em: 19-10-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-46-9



RESUMO


O artigo examina os fundamentos do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n. 796.376. A partir da análise do conceito de capital social, da natureza das operações de integralização de capital, quando subscrito com ágio, bem como do histórico e da finalidade da regra presente no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, conclui-se que o entendimento firmado pelo STF a respeito do tema é equivocado.

PALAVRAS-CHAVE: ITBI, IMUNIDADE, CAPITAL SOCIAL, SUBSCRIÇÃO, INTEGRALIZAÇÃO, REALIZAÇÃO


ABSTRACT


The paper analyses the arguments issued by the Supreme Federal Court of Brazil in the judgment of Extraordinary Appeal n. 796.376. It is concluded that the decision is incorrect because it is contrary to the legal concept of “capital pay-in”, as well as to the history and purposes of the rule established in art. 156, paragraph 2, I, of the Brazilian Constitution.

KEYWORDS: REAL ESTATE TRANSFER TAX, TAX EXEMPTION, CAPITAL SUBSCRIPTION, CAPITAL PAY-IN

  1. INTRODUÇÃO

    Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 796.376, que fora admitido com repercussão geral, e, por maioria de sete votos a quatro, fixou tese segundo a qual a imunidade ao ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal (CF), “... não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”1.

    No caso que deu origem ao precedente, o município catarinense de São João Batista deparou-se com um contrato social em que os sócios promoviam a integralização de dezessete bens imóveis, por eles conjuntamente avaliados em R$ 802.724,00, no patrimônio de uma pessoa jurídica cujo capital social fora, simultaneamente, fixado em apenas R$ 24.000,00. Sob a premissa de que a imunidade estaria restrita ao limite do valor nominal do capital social subscrito, a autoridade fiscal exigiu o imposto sobre a diferença (R$ 778.724,00).


    Levado o caso ao Judiciário, a sentença favoreceu o contribuinte; porém, a decisão foi reformada no Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC, em acórdão que, agora, recebeu o endosso do STF, tudo culminando na chancela ao proceder fazendário.


    Segundo a leitura da maioria dos ministros, aplicar integralmente a imunidade, nesse caso, equivaleria a promover uma interpretação extensiva do dispositivo constitucional que a veicula (CF, art. 156, § 2º, I), de modo tal que ele passaria a abranger não apenas as transmissões feitas com vistas à integralização do capital subscrito, mas também as voltadas a outras finalidades – como, no caso, a formação de reserva de capital. Isso desvirtuaria o objetivo do constituinte, que seria o de fomentar a formação do capital social necessário para o desenvolvimento das atividades econômicas. De acordo com o voto do Ministro Alexandre de Moraes, relator para fins de lavratura do acórdão, a “... extensão interpretativa em termos de imunidades não é aceita por nossa Suprema Corte, por constituir exceção à capacidade tributária”.


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    1. Recurso Extraordinário n. 796.376, DJe 25.08.2020.


      O voto condutor ocupou-se, ainda, obiter dictum, de confrontar o argumento do recorrente segundo o qual a única restrição posta pela Constituição à aplicação da imunidade seria aquela de não ter a sociedade adquirente atividade preponderantemente imobiliária. Para o Ministro Moraes, esse raciocínio não procederia, porque tal exceção sequer diria respeito à “... imunidade referida na primeira parte desse inciso”, isto é, “... sequer te[ria] relação com a hipótese de integralização de capital”, a qual seria “... incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito”.


      É dizer, para o voto vencedor, a exigência de a adquirente não ser sociedade com atividade preponderantemente imobiliária aplicar-se-ia exclusivamente às operações de “... fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”. Isso porque, no entendimento lá versado, a expressão “... salvo se, nesses casos...”, com que o texto constitucional introduz a exceção à imunidade, referir-se-ia apenas às operações contidas na segunda parte do dispositivo, e não à operação descrita “... na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF”, alusiva à “... transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital...”.


      A nosso ver, a decisão da Suprema Corte é equivocada. O erro está alicerçado, fundamentalmente, (i) na adoção de uma noção deveras restrita de “capital social”, (ii) num entendimento incorreto a respeito da noção de “realização de capital” e da natureza das operações de integralização de capital com ágio, e (iii) numa inadequada compreensão da finalidade da norma imunizante, especialmente quando vista sob o lume do princípio da neutralidade tributária.


      Por outro lado, o argumento que afirma a possibilidade de a imunidade em questão abarcar as transferências de imóveis, promovidas em realização de capital, inclusive quando feitas para pessoas jurídicas que realizem atividade preponderantemente imobiliária, parece-nos afrontoso não só ao telos normativo e ao histórico dessa imunidade em nosso ordenamento, mas também – e muito curiosamente – à própria gramática, seara em cujo domínio esse excerto da decisão pretendeu lançar sua base.


      É o que procuramos demonstrar nos tópicos a seguir. Iniciaremos tecendo algumas considerações a respeito do capital social e das operações voltadas à sua subscrição e integralização; depois, discorreremos sobre alguns traços da norma-padrão de incidência do ITBI e sobre as origens e os fins da imunidade em questão. Em seguida, promoveremos uma análise crítica do julgado, à luz das premissas firmadas no curso dos tópicos precedentes.


  2. O CAPITAL SOCIAL E O ÁGIO NA SUA SUBSCRIÇÃO

    A expressão “capital social” é ambígua.


    Conforme observa Ivens Henrique Hübert, o capital social tanto pode ser visto como “... meramente uma cifra contábil...”, quanto pode ser entendido como “... a soma das contribuições dos sócios para a sociedade”, isto é, como uma “... porção concreta de bens...”2.


    Na mesma linha, Eli Loria e Hélio Rubens de Oliveira Mendes apontam que o capital é visto, por alguns, como uma noção “... puramente contábil...” e, por outros, como “... soma das contribuições dos sócios”. Numa linha, constitui uma “... cifra formal e abstrata...”; noutra, representa uma realidade complexa, que abrange tanto a noção de “...capital social nominal...” quanto a de “... capital social real”3.


    Não nos ocuparemos das discussões a respeito dos vícios e virtudes de cada uma dessas noções conceituais, pois o que nos interessa, aqui, não é buscar uma definição adequada ou precisa de “capital social”, mas, sim, pesquisar os sentidos em que a expressão pode ter sido utilizada pelo legislador e, portanto, também pelo constituinte.


    E o fato é que a legislação societária – concentremo-nos, por economia, apenas na Lei n. 6.404/1976 (LSA) – refere-se ao “capital social” em múltiplos sentidos. A noção de capital social como “cifra”, isto é, como entidade contábil, valor nominal, aparece, por exemplo:


    1. no art. 5º, segundo o qual “O estatuto da companhia fixará o valor do capital social,

      expresso em moeda nacional”;

    2. no art. 6º, de acordo com o qual “O capital social somente poderá ser modificado com observância dos preceitos desta Lei e do estatuto social”;

    3. no art. 11, pelo qual “O estatuto fixará o número das ações em que se divide o

      capital social e estabelecerá se as ações terão, ou não, valor nominal”; e

    4. no art. 182, segundo o qual “A conta do capital social discriminará o montante subscrito e, por dedução, a parcela ainda não realizada”.


      A concepção do capital social como soma das contribuições dos sócios, por sua vez, está posta, por exemplo:


      1. no art. 7º, ao estatuir que “O capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro”;

      2. no art. 10, ao estabelecer que “A responsabilidade civil dos subscritores ou acionistas que contribuírem com bens para a formação do capital social será idêntica à do vendedor”;

      3. no art. 89, ao dispor que “A incorporação de imóveis para formação do capital

        social não exige escritura pública”; e


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        1. Capital social. In: COÊLHO, Fábio Ulhôa. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2015, vol. I, p. 383.


        2. Capital social: noções gerais. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais vol. 58, outubro/dezembro 2012, p. 349-386.


      4. no título da Seção I do capítulo X e no caput do art. 106, ao definir a “... obrigação [do acionista] de realizar o capital...” como aquela de efetuar “... a prestação correspondente às ações subscritas ou adquiridas”.


      Segundo Ivens Henrique Hübert, perceber a existência desses múltiplos sentidos é importante, porque “Apenas por meio dessa dissociação [entre as várias concepções do capital social] é que se pode compreender com exatidão quais são e como o capital social exerce determinadas funções nas sociedades e nas demais pessoas jurídicas nas quais é previsto.”4


      De fato, a doutrina das chamadas “funções” do capital social tem por pressuposto essa visão

      plural do capital social.


      Por exemplo, na afirmação – controversa, reconheçamos5 – de que no capital social está a garantia dos credores, estão presentes tanto a noção do capital como “... mínimo do ativo que a sociedade obriga-se a conservar...”, quanto a noção de “... cifra...”, além da qual se identifica a performance positiva da entidade e aquém da qual se verifica a “... impossibilidade de os acionistas repartirem entre si valores patrimoniais da companhia...”6.


      Já quando se aponta que o capital social tem a “... função de possibilitar o desenvolvimento da atividade social...”7, porque indica o “... patrimônio mínimo que a companhia deve possuir para exercer a sua atividade de forma lucrativa...”8, está presente, principalmente, a noção do capital social como capital real.


      Ao mesmo tempo, quando se estabelece que o capital social é o balizador dos “... direitos políticos e patrimoniais dos acionistas...”9, tem-se em vista, de um lado, a noção nominal, do capital como cifra, isto é, como valor a que fazem referência as quotas ou ações do sócio, e, por outro lado, a noção do capital como soma das contrapartidas (ações ou quotas) conferidas pela sociedade ao sócio em troca da assunção, por ele, da obrigação de pagar o respectivo preço de emissão (subscrição).


      Por isso, o autor propõe que o capital social seja compreendido “... de forma ambivalente, como capital nominal e como capital real”10. No primeiro sentido, “... prioriza-se o sentido de


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      1. Capital social... Op. cit., p. 384.


      2. “Costuma-se dizer que o capital social também representa uma garantia dos credores, embora se saiba que é no patrimônio da sociedade

        que eles a encontram...” (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Manual das companhias. 3. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 68)


      3. GONÇALVES NETO, A. de A. Manual... Op. cit., p. 67-68.


      4. Capital social... Op. cit., p. 387.


      5. GONÇALVES NETO, A. de A. Manual... Op. cit., p. 66.


      6. GONÇALVES NETO, A. de A. Manual... Op. cit., p. 68.


      7. Capital social... Op. cit., p. 384.


        cifra contábil ínsita à expressão, embora não se desconsidere que esta reflete um fundo patrimonial, uma massa concreta de bens, de valor correspondente”. No segundo “... faz-se referência a um acervo concreto de bens que corresponde a tal cifra”.


        Grosso modo, pode-se dizer que, numa dessas perspectivas, a ênfase da noção de capital social está na definição de determinada cifra como a partida contábil que leva esse nome; noutra, a ênfase está na operação de transferência de dinheiro ou bens que o sócio faz à sociedade (integralização), em troca da aquisição originária – i.e., aquisição primária, também chamada “subscrição”11 – de participação societária, isto é, de quotas ou ações, representativas de frações do capital social12.


        Há, em rigor, quatro momentos lógicos – muitas vezes concomitantes, do ponto de vista cronológico – na formação do capital social, que, de algum modo, guardam relação com os sentidos, antes mencionados, da expressão sob análise:


        1. o primeiro momento é o da definição, pela companhia, da cifra da conta contábil “capital social”, ocasião em que também se pode determinar o valor nominal das quotas ou ações em que essa conta se subdivide (se a opção for por emitir as ações com valor nominal);

        2. o segundo momento é o da fixação do preço dessas quotas ou ações, que não necessariamente corresponderá ao valor nominal das frações em que se subdivide o capital social;

        3. o terceiro momento é o da subscrição das partes (ações ou quotas) em que se subdivide o capital social, ocasião em que alguém se torna sócio ou acionista (se a companhia já estiver constituída), mediante a assunção da obrigação de pagar o preço de emissão das participações societárias que, naquele instante, adquiriu;

        4. o quarto e último momento é o da integralização (ou realização), que corresponde ao adimplemento dessa obrigação, inerente ao status socii, de pagar o preço de emissão das ações ou quotas subscritas13.


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      8. Como explica Fábio Ulhôa Coêlho, “... há duas formas de alguém tornar-se acionista de uma companhia: subscrevendo ações recém- emitidas ou adquirindo-as de um acionista. No primeiro caso, trata-se de subscrição (operação do mercado primário), no segundo, de compra (operação do mercado secundário).” (O valor da participação societária. In: COÊLHO, Fábio Ulhôa. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2015, vol. I, p. 321)


      9. A referência às quotas como resultado da divisão do capital social é expressa no art. 1.055 do Código Civil: (i) “O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada sócio.” Também no art. 1.088, segundo o qual (ii) “Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações...” É também expressa no art. 1º, no art. 11 e no art. 80, I, da Lei n. 6.404/76, segundo os quais

        (iii) “A companhia ou sociedade anônima terá o capital dividido em ações...”; (iv) “O estatuto fixará o número das ações em que se divide o capital social e estabelecerá se as ações terão, ou não, valor nominal”; e constitui requisito da constituição da companhia (v) “... a subscrição, por menos por 2 (duas) pessoas, de todas as ações em que se divide o capital social fixado no estatuto”.


      10. Como bem explica Eduardo Goulart Pimenta, “A subscrição da quota ou da ação não se confunde com a sua integralização, a qual representa a efetiva transferência, para a sociedade, dos recursos monetários ou patrimoniais aos quais cada um dos sócios se obrigou, seja no momento da assinatura do contrato social ou, nas sociedades anônimas, quando da realização das formalidades prelimina res à criação da pessoa jurídica.” (Direito societário. Porto Alegre: Fi, 2017, p. 196)


        Embora o legislador muitas vezes use o termo “integralização de capital” no sentido aqui referido, por vezes também se vale, como sinônimo, do termo “realização do capital”.


        É esse o sentido, por exemplo, da já referida definição da “... obrigação de realizar o capital”, como correspondente ao dever de o acionista cumprir com a “... prestação correspondente às ações subscritas ou adquiridas” (Título da Seção I do Capítulo X e o subsequente art. 106, caput, da LSA).


        É também esse o sentido do art. 80, II, da LSA, que estabelece ser requisito para a constituição da companhia a “... realização, como entrada, de 10%..., no mínimo, do preço de emissão das ações subscritas em dinheiro”. Note-se que, nesse segundo dispositivo, o termo “realização” tem por complemento justamente a expressão “preço de emissão” da participação subscrita.


        A integralização ou realização do capital é, pois, pura e simplesmente, o pagamento do preço de emissão das frações do capital social adquiridas pelo sócio por meio da subscrição.


        Prosseguindo, ao analisar a noção de capital social sob a perspectiva que o toma como uma “porção concreta de bens”, conferidos, em realização (integralização) de capital, para cumprimento da obrigação assumida pelo acionista ao subscrever quotas ou ações, Ivens Henrique Hübert pondera o seguinte:


        “Não quer isso significar que haja correspondência específica entre o capital social e a porção concreta de bens aportada a esse título, nem que haja correspondência entre as entradas específicas de cada sócio com os bens que estes mesmos sócios aportaram. A partir da integralização, os sócios deixam... de ter direitos específicos sobre os bens que aportaram, passando, por outro lado, a titularizar apenas direitos de participação na sociedade, de cunho pessoal e patrimonial. Além disso, em função de uma série de razões (capitalização de lucros e reservas, empréstimos dos sócios à sociedade, redução do capital por perdas, ágio na subscrição de ações, superavaliação de bens, parcelas não integralizadas etc.), é normal que haja uma desconexão entre o valor do capital social e a efetiva soma das entradas dos sócios.”


        Um dos casos em que se verifica essa “... desconexão entre o valor do capital social e a efetiva soma das entradas dos sócios...”, a que alude o excerto acima, é justamente aquele do “... ágio na subscrição de ações”, que se observa quando o preço de emissão das quotas ou ações – e consequentemente, o preço (a ser) pago, pelo acionista, pela participação subscrita – excede o valor nominal das participações por ele adquiridas.


        Dá-se tal fenômeno porque, embora seja vedada “... a emissão de ações por preço inferior ao seu valor nominal” (art. 13, caput, da Lei das S/A), é perfeitamente possível emitir ações por preço superior ao seu valor nominal. Como explica Fábio Ulhôa Coêlho, “Quem define o preço de emissão é, unilateralmente, a companhia emissora do valor mobiliário. Também


        as condições de pagamento do preço... são estabelecidas por ela. O subscritor apenas adere às cláusulas prefixadas do ato de subscrição, manifestando assim a sua concordância com os termos da companhia, postos de modo unilateral.”14


        Embora nada impeça a emissão de ações com ágio já no momento da constituição da sociedade – Modesto Carvalhosa assinala expressamente ser “... permitida a emissão de ações com ágio, na constituição da companhia”15 –, o fato é que, normalmente, “... tal ágio está presente apenas nos aumentos de capital...”16. Isso ocorre porque, nesses casos, de aumento de capital mediante a subscrição de novas ações, a fixação do preço deve vir acompanhada de fundamentação, mediante a qual a companhia deve demonstrar que não está a promover uma “... diluição injustificada da participação dos antigos acionistas...” (art. 170, § 1º). Segundo o mesmo art. 170, tal justificativa deve levar em conta, alternativa ou conjuntamente, a perspectiva de rentabilidade da companhia, o valor do patrimônio líquido da ação e a cotação em bolsa ou mercado de balcão, bem como as condições de mercado17. Ademais, o acionista controlador não pode subscrever ações, nos aumentos de capital, “... com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia”. O aumento de capital por subscrição de novas ações é, portanto, uma operação sujeita a uma série de condicionantes legais, em que, muitas vezes, a emissão de ações com ágio, longe de ser fruto de mera conveniência, é verdadeiramente impositiva para a companhia.


        O ponto que se deve destacar, aqui, é que, seja quando adquire ações ou quotas por seu valor nominal, seja quando as adquire por quantia superior a esse montante (i.e., com ágio), a entrega de dinheiro ou bens pelo sócio para a realização do capital tem a mesma e única natureza de “preço” pela aquisição, em caráter primário (subscrição) de participação societária, obrigação que, a seu turno, constitui, pelo menos nas sociedades anônimas, o limite de sua responsabilidade (art. 1º da Lei das S/A e art. 1.088 do Código Civil). É dizer, tais participações societárias representarão a única contrapartida a ser paga pela sociedade ao sócio que as subscreveu, obrigando-se a integralizá-las – i.e., realizá-las – independentemente de o seu preço de emissão ser ou não equivalente ao seu valor nominal, vale dizer, independentemente de a aquisição ter sido feita com ou sem ágio.


        Do ponto de vista contábil, “A contribuição do subscritor que ultrapassar o valor nominal constituirá reserva de capital” (art. 13, § 2º, da Lei das S/A), devendo-se atribuir a mesma classificação contábil à “... parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que


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      11. Fábio Ulhôa Coêlho. O valor da participação societária... Op. cit., p. 322.


      12. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. II, p. 77.


      13. Marlon Tomazette. Direito societário, p. 254.


      14. Segundo Elisa Tomio Stein, “... em razão de uma série de atributos intangíveis, como localização favorável, boa reputação, ha bilidade e perícia dos seus empregados e gestores e sua relação duradoura com credores, fornecedores e clientes, entre outros, é comum o valor do investimento superar o valor nominal das quotas cedidas” (A tributação do ágio na subscrição de quotas à luz da norma de incidência do Imposto de Renda... p. 414).


        ultrapassar a importância destinada à formação do capital social...” (art. 182, § 1º, “a”, da Lei

        do Anonimato).


        As reservas de capital nada mais são do que “...formas de proteção do capital social da empresa...”18. São um “... reforço de capital...”19. Compõem-na os “... valores recebidos pela companhia e que não transitam pelo resultado como receitas, por se referirem a valores destinados a reforço de seu capital, sem terem como contrapartidas qualquer esforço da empresa em termos de entrega de bens ou de prestação de serviços”20. E, de fato, segundo o art. 200 da Lei das S/A, as reservas de capital “somente poderão ser utilizadas para I – absorção de prejuízos que ultrapassarem os lucros acumulados e as reservas de lucros [...]; II – resgate, reembolso ou compra de ações; III – resgate de partes beneficiárias; IV – incorporação ao capital social; V – pagamento de dividendo a ações preferenciais, quando essa vantagem lhes for assegurada.”


        O que se extrai dessa breve digressão é que:


        1. a expressão “capital social” nem sempre é usada, pelo legislador, no sentido de cifra contábil ou valor nominal, sendo também frequente o seu uso para aludir às contribuições dos sócios no contexto da formação desse capital;

        2. o sentido da expressão “realização de capital” corresponde, na dicção da lei, ao adimplemento da obrigação do acionista, de efetuar “... a prestação correspondente às ações subscritas ou adquiridas” (art. 106 da LSA), isto é, de pagar o “... o preço de emissão” das participações societárias adquiridas (art. 80, II, da LSA);

        3. muitas vezes, emitir ações com ágio é providência obrigatória para a companhia, com vistas a não implicar “... diluição injustificada da participação dos antigos acionistas” (LSA, art. 170, § 1º);

        4. seja quando o acionista adquire ações ou quotas com ágio, seja quando as adquire pelo valor nominal, o valor da obrigação por ele assumida tem uma só e mesma natureza, qual seja, a de preço das quotas ou ações; a seu turno, esses títulos representativos de frações do capital social (quotas ou ações) representam a única contrapartida a ser paga ao sócio, pela sociedade, em razão da subscrição (e posterior integralização);

        5. as reservas de capital nada mais são do que formas de proteção ou reforço do capital social das companhias.


        Dito isso, podemos avançar para o exame do ITBI e da disciplina dessa imunidade no texto constitucional.


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      15. Rodrigo Martone e Jorge Ney de Figueirêdo Lopes Junior. Caso CPM..., p. 178.


      16. Érico Eleuterio da Luz. Contabilidade tributária, p. 40.


      17. Ernesto Rubens Gelbcke, Ariovaldo dos Santos, Sérgio de Iudícibus e Elizeu Martins. Manual de contabilidade societária, p. 383.


  3. O ITBI E SUAS IMUNIDADES ESPECÍFICAS

    Não retomaremos, aqui, as tentativas de reconstrução da estrutura da norma de incidência dos tributos promovidas pela doutrina. Consideraremos que o leitor conhece tais discussões e caminharemos, diretamente, para o exame da norma de incidência do ITBI e seus contornos.


    Ademais disso, destacaremos, na análise da norma do ITBI, e em breves contornos, apenas aqueles traços da norma impositiva padrão cuja determinação nos parece relevante para a reflexão proposta neste artigo: o critério material da hipótese de incidência e a base de cálculo21.

    O art. 156, II, da CF, outorga aos municípios (e ao Distrito Federal – CF, art. 147, fine) a competência para instituir imposto sobre a “... transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição”. Da leitura do mencionado dispositivo, parece-nos possível identificar, de imediato, duas hipóteses que, mediante previsão legal, podem ensejar a incidência do ITBI: (i) a transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de direitos reais sobre bens imóveis (art. 1.225 do Código Civil) – aí incluído, naturalmente, o direito de propriedade22 –, por natureza ou acessão física (art. 79 do Código Civil), exceto os de garantia (anticrese, hipoteca e propriedade fiduciária constituída com fins de garantia); e (ii) a cessão de direitos à aquisição de direitos reais – inclusive o de propriedade – sobre imóveis.


    O uso, pela Constituição, do termo “transmitir”, e a indicação, pelo art. 42 do Código Tributário Nacional, de que o contribuinte poderia ser “... qualquer das partes na operação tributada”, dão a impressão de que tanto o ato de alienar como o de adquirir tais bens e direitos poderiam ensejar a incidência do ITBI, cabendo ao legislador escolher entre essas


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    1. A estrutura da norma tributária foi objeto de praticamente todos os grandes tributaristas brasileiros. Observem-se, a título exemplificativo, as lições de Alfredo Augusto Becker, de Geraldo Ataliba, de Marco Aurélio Greco, de Paulo de Barros Carvalho, de Marçal Justen Filho, de Sacha Calmon Navarro Coêlho e de José Roberto Vieira, por exemplo. Para o exame dessas discussões ver: Maurício Dalri Timm do Valle. Princípios constitucionais e regras-matrizes de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, p. 163-353.


    2. Como bem observa Aires Fernandino Barreto, “... Observada a precisão terminológica, não se pode falar rigorosamente em transmissão de imóvel, porque, juridicamente, o que se transmite é a propriedade imobiliária. O direito de propriedade é que é objeto de transmissão, a qual, por sua vez, consiste na transferência da titularidade do direito de propriedade de um bem imóvel. No plano jurídico, transmitem- se os direitos sobre imóveis e não os próprios imóveis” (ITBI – Transmissão de Bens Imóveis da empresa “A” para as empresas “B” e “C”...,

      p. 153). Na mesma linha é a lição de Roque Antonio Carrazza: “Em rigor, o que se transmite é o ‘direito de propriedade’ imobiliária (e não,

      propriamente, o bem imóvel)” (ITBI – redução de capital..., p. 123).


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      opções. Muitos autores endossam essa interpretação23. Outros, a seu turno, defendem que o alienante seria o contribuinte por excelência24.


      Convenceu-nos, porém, a argumentação de José Alberto Oliveira Macedo, no sentido de que o “... único verbo passível de estar presente no critério material da regra matriz do ITBI é o adquirir”25. De fato, como explica o autor, se a conduta tributável fosse a do alienante, não faria sentido o art. 156, § 2º, I, da CF, ao prever a imunidade, determinar que se analise a natureza da atividade preponderante do adquirente do imóvel.


      Por outro lado – e aqui acrescentamos argumentos nossos no sentido da defesa dessa posição – a ausência de definição, pela Constituição, do destinatário constitucional do imposto – isto é, daquela pessoa vocacionada a figurar como contribuinte, praticante do fato jurídico tributário26 –, deixaria sem resposta a pergunta a respeito de a quem se aplicariam – se ao alienante ou ao adquirente – as imunidades tributárias de caráter pessoal, como a recíproca, a dos templos de qualquer culto, a dos partidos políticos e respectivas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores e das instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos27. E definir quem é o titular da imunidade

      – se o adquirente ou o alienante – certamente não é tarefa que caiba ou possa ser conferida ao legislador infraconstitucional.



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    3. Segundo Kiyoshi Harada, “A eleição do sujeito passivo da obrigação tributária em matéria de ITBI ficou a cargo da legislação de cada

      Município, que pode escolher qualquer das partes na operação tributada, conforme prescreve o art. 42 do CTN” (ITBI: doutrina e prática,

      p. 143). De acordo com Patrícia Andrade Falcão, “Inexiste disposição constitucional contrária ao prescrito neste dispositivo [art. 42 do CTN], prevalecendo a regra do Código Tributário Nacional, diploma legal competente para dispor acerca das normas gerais tributárias. Caberá ao legislador ordinário fixar o contribuinte dos impostos sobre transmissão...” (Comentários aos arts. 35 a 42 do CTN..., p. 51). Também para Jeferson Teodorovicz a “... legislação atribui às leis locais a prerrogativa de definir o sujeito passivo do ITBI, se será o comprador ou o vendedor...” (Evasão tributária, a base de cálculo do ITBI e a tipicidade no direito tributário brasileiro..., p. 176).


    4. Assim afirma Paulo de Barros Carvalho: “Não obstante o constituinte tenha deixado de consignar expressamente o verbo que integra o critério material do imposto sobre a transmissão de bens imóveis inter vivos, a interpretação sistemática nos leva a concluir pela adequação do termo ‘realizar’ ou seus sinônimos, como ‘praticar’, ‘efetuar’, ‘executar’, efetivar’, ‘fazer’, pois a significação construída a partir de tais vocábulos está apta a expressar o fato típico escolhido para dar nascimento ao referido imposto. [...] Da conjugação desses preceitos temos o critério material do imposto sobre a transmissão de bens imóveis inter vivos, qual seja, transmissão a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, bem como cessão de direitos a sua aquisição, não se incluindo a transmissão de direitos reais de garantia, nem a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, ou a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, quando a atividade preponderante do adquirente não for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, nem a transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.” (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis nos casos de cisão e vendas de ações. Derivação e positivação no direito tributário, p. 347-348) Também discorda Aires Fernandino Barreto, para quem “... contribuinte desse imposto só pode ser o transmitente, porquanto é ele o agente da ação ‘transmitir bem imóvel’” (ITBI – transmissão..., op. cit., p. 156. Para José Jayme de Macêdo Oliveira, “... melhor se ajusta à natureza do imposto e às normas constitucionais próprias que fosse ele o transmitente dos bens ou direitos, diretriz não acolhida pelas legislações municipais que, por praticidade e garantia do recebimento, conferem ao adquirente a condição de contribuinte do imposto” (Impostos municipais..., p. 271).


    5. José Alberto Oliveira Macedo. ITBI – aspectos constitucionais e infraconstitucionais, p. 182.


    6. Segundo Marçal Justen Filho, “O destinatário constitucional tributário é aquele que, em princípio, pode dizer-se eleito constitucionalmente para vir a sofrer a sujeição passiva tributária.” A ideia plasmada nesse conceito é a de que “... a escolha da materialidade da hipótese de incidência importa necessariamente uma pré-seleção do destinatário da condição de contribuinte” (Sujeição passiva tributária..., p. 263 e 302).


    7. Reputamos equivocada, por isso, a afirmação de Kiyoshi Harada no sentido de que a “... definição de contribuinte do ITBI não em muita relevância jurídica, posto que se trata de fato gerador que tem acento em um contrato bilateral” (sic) (ITBI: doutrina..., p. 143). No mínimo, essa definição serve para efeito de identificar quem é beneficiado pelas imunidades e isenções de caráter pessoal, haja vista que elas só se aplicam ao contribuinte, e não ao responsável, na linha preconizada pelo art. 9º, § 1º, do CTN.


    É preciso, portanto, identificar o destinatário da imunidade no próprio texto constitucional. Se o constituinte desejou favorecer a atuação dessas instituições (entes estatais, instituições religiosas, entidades de educação e assistência social etc.) ao contemplá-las com as mencionadas imunidades, parece-nos muito mais razoável supor que tais medidas desoneradoras estão presentes no texto constitucional para que elas possam adquirir imóveis – como, por exemplo, o que abrigará a sua sede, voltada a viabilizar a realização de suas atividades – sem o pagamento do ITBI, do que imaginar que tais imunidades estarão plasmadas na Carta para desonerar as operações de venda de patrimônio feitas por essas entidades, ainda que para pessoa revestida de plena capacidade contributiva. É muito mais razoável supor, portanto, que as imunidades genéricas protegem da tributação o adquirente – e não o alienante – de bens imóveis.


    Ademais, não fosse o adquirente o destinatário constitucional do ITBI, a imunidade do art. 184, § 5º, da Constituição Federal, que versa sobre as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária, simplesmente não teria aplicação, dado que, uma vez desapropriados, esses imóveis ou constituirão res nullius (ou derelictae), sob a tutela do Estado, ou constituirão patrimônio do próprio Estado, que, em seguida, promoverá a sua transmissão a um assentado de programa de reforma agrária. E, obviamente, é o assentado (o adquirente), e não o ente desapropriante (o alienante), muito menos o desapropriado (que sequer participa da operação de transmissão em questão), que a Constituição deseja proteger da tributação ao prever tal imunidade, até porque, se o objetivo fosse proteger o alienante, a disposição seria inócua, haja vista que o Estado já estaria sob o pálio da imunidade recíproca e, portanto, prescindiria absolutamente da previsão do art. 184, § 5º.


    Felizmente, até onde se sabe, a maioria dos municípios brasileiros elegeu precisamente o adquirente como contribuinte do ITBI, deixando o alienante como mero responsável, nessa primeira materialidade do imposto (transmissão de bens móveis ou direitos reais sobre imóveis)28.


    A seu turno, a materialidade “cessão de direitos à aquisição de bens imóveis ou direitos reais sobre imóveis” – que engloba, por exemplo, as cessões de compromisso de compra e venda e os substabelecimentos de procuração em causa própria –, surgiu para evitar que as transmissões de direitos sobre imóveis se dessem sem o registro no ofício competente, apenas com vistas a evitar a incidência do ITBI. O alvo da tributação, portanto, é o sujeito


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    28 É o que apontam Franscisco Ramos Mangieri e Omar Augusto Leite Melo. Segundo dizem, “Em regra as leis municipais escolhem como contribuinte o adquirente do bem ou direito transmitido. É o caso dos Municípios de Bauru, São Paulo, Ribeirão Preto, Belém, Manaus, Belo Horizonte.” Ainda de acordo com os autores, “A escolha do adquirente como contribuinte decorre de tradição antiga, que vinha sendo justificada no art. 1.129 do revogado Código Civil, pelo qual salvo cláusula em contrário, ficarão as despesas da escri tura a cargo

    do comprador (art. 490 do atual CC).” (ITBI – Imposto sobre Transmissões de Bens Imóveis (Inter vivos)..., p. 149)


    que adquire direitos sobre um imóvel, mas não promove o respectivo registro e os aliena em caráter particular.


    Por isso, nessa segunda materialidade, o fato jurídico tributário corresponde à atividade de “ceder” tais direitos, e não à de “recebê-los em razão de cessão”. Não fosse assim – é dizer, não fosse o cedente o destinatário constitucional do tributo nessa hipótese – o cessionário do direito à aquisição de um bem imóvel poderia vir a ser tributado duas vezes pela aquisição de um mesmo bem: primeiro, ao receber os direitos de aquisição e, depois, ao obter, do proprietário registral, a transferência do imóvel para o seu nome. Tamanha injustiça parece-nos contrariar o princípio da capacidade contributiva. O reconhecimento do verbo “ceder” como o único capaz de denotar o núcleo da conduta passível de tributação na hipótese de cessão de direitos à aquisição de direito real sobre imóvel, é, como aponta José Alberto Oliveira Macedo, “... indispensável para dar cumprimento ao princípio da continuidade e, por consequência, ao princípio da isonomia tributária”29.


    Precisamente por isso, aliás, entendemos que a imunidade do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, aplica-se exclusivamente à primeira materialidade (transmissão de bens ou direitos reais sobre imóveis), e não a essa segunda (cessão de direitos à aquisição de bens ou direitos reais sobre imóveis), haja vista que a proteção constitucional é expressamente dirigida à figura do adquirente – e não à do alienante – desses bens ou direitos. Tanto que o dispositivo manda perquirir a respeito da atividade realizada pelo adquirente, e não à desempenhada pelo cedente. Ademais, se se considerasse aplicável a imunidade à segunda materialidade, o objetivo buscado com a sua introdução – qual seja, o de promover a possibilidade de cobrança do tributo mesmo nas transmissões de direitos sobre imóveis que não fossem objeto de registro – simplesmente não seria alcançado.


    Portanto, o núcleo do critério material da hipótese de incidência do ITBI é composto pela descrição das condutas de (i) adquirir, de outrem, por ato oneroso e inter vivos, direitos reais (inclusive o de propriedade) sobre imóveis por natureza ou acessão física, e de (ii) ceder, a outrem, por ato oneroso e inter vivos, direitos à aquisição dos mesmos bens e direitos.


    A base de cálculo do imposto, para guardar coerência com o critério material, deve corresponder ao valor real da operação de transmissão sobre a qual recai a tributação, e não ao “valor venal” do bem ou direito transmitido. Ora, o valor venal é aquele que, supostamente, “seria obtido” numa transação – ideal, suposta, imaginada – entre pessoas informadas, em condições normais de mercado, sem levar aspectos subjetivos envolvidos na formação do preço. Ocorre que a Constituição autorizou o legislador a tributar com o ITBI operações concretas, e não fantasiosas, fictícias ou ideais, de transmissão imobiliária. E o imposto recai sobre as transmissões de bens imóveis, isto é, sobre o patrimônio


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    1. ITBI – aspectos constitucionais e infraconstitucionais..., p. 192.


      dinâmico, o patrimônio em movimento, e não sobre o imóvel estaticamente considerado, que é gravado pelo IPTU ou pelo ITR. Portanto, o art. 38 do Código Tributário Nacional, ao adotar o “valor venal” dos bens ou direitos transmitidos como base de cálculo do imposto, é inconstitucional, a menos que o sentido de “valor venal” seja idêntico ao de valor real da transação. Se tomado na acepção ordinária, o preceito estará longe de exercer a função reguladora de imunidade, que lhe comina o art. 146, II, da Constituição Federal; na verdade, estará a dispor em contrário à regra de competência plasmada no art. 156, II, da CF.


      Tais considerações levam-nos à conclusão de que, em princípio, deve prevalecer, como base de cálculo do tributo, o valor atribuído à operação pelas partes. Só se deve autorizar a adoção do “valor venal” do bem ou direito transmitido como base de cálculo caso esteja presente alguma das circunstâncias do art. 148 do Código Tributário Nacional, capazes de suscitar o arbitramento da base imponível – o que, naturalmente, deve ser demonstrado pela autoridade fiscal.


      A propósito, embora a jurisprudência, de modo geral, venha admitindo, sem maior censura, a validade da adoção do “valor venal” como base de cálculo do imposto, reflexos da concepção segundo a qual é o valor concreto da transmissão – e não um valor ideal do imóvel – o montante sobre o qual deve recair a tributação estão presentes, por exemplo, nos precedentes que fixam como base de cálculo do imposto, nas arrematações em hasta pública, o valor do lance vencedor, isto é, o valor da arrematação, o valor efetivo da transação, e não um valor arbitrado, pelo Município, para o imóvel30.


      Ademais, como bem observa Jeferson Teodorovicz, na legislação e na jurisprudência “... há tendência em reconhecer que a transmissão do bem imóvel decorre de negócio jurídico que atribui o valor de mercado ao imóvel transferido...”, sendo que “Geralmente, o valor de mercado incluído no negócio jurídico supera o valor venal do bem imóvel constante no registro do imóvel.”31


      Aliás, o Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP, por seu órgão de cúpula, em julgamento de arguição de inconstitucionalidade, fixou o entendimento de que, no tocante ao ITBI, “... cabe ao próprio contribuinte declarar a base de cálculo e antecipar o recolhimento do imposto, restando ao poder tributante, posteriormente, examinar a operação, homologando-a ou não”. De acordo com o aresto, cabe “... à Administração lançar mão do procedimento previsto no art. 148 do Código Tributário Nacional, caso discorde das


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    2. O entendimento vem sendo aplicado tanto para as arrematações ocorridas em leilão judicial (STJ, AgRg no AREsp n. 630.603/PR, DJe 13.03.2015; AREsp n. 462.692, DJe 23.09.2015; AREsp n. 1.425.219, DJe 01.03.2019), como, mais recentemente, para as arrematações efetuadas no bojo de leilão extrajudicial (STJ, REsp n. 1.803.169, DJe 29.05.2019).


    3. Evasão tributária..., op. cit., p. 178.


    declarações prestadas pelo sujeito passivo”32. Não poderíamos estar mais de acordo com essa orientação.


    Feitas nossas considerações sobre o critério material e sobre a base de cálculo, avançamos diretamente para o exame das imunidades específicas do ITBI. Não examinaremos os demais critérios da norma-padrão de incidência do imposto, porque a temática é irrelevante para a análise a que nos propusemos neste artigo.


    Pois bem, além de excepcionar a competência para a instituição do imposto nas operações que versam sobre direitos reais de garantia, no caput do art. 156, a Constituição estabelece, no § 2º, inciso I, desse mesmo dispositivo, duas imunidades especificamente aplicáveis ao ITBI: (i) a incidente na transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoas jurídicas em realização de capital; e (ii) a relativa à transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoas jurídicas.


    Após enunciá-las, a Constituição introduz uma ressalva, segundo a qual a imunidade não terá lugar se, “...nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.


    Para bem compreender essas imunidades – e a respectiva ressalva – é importante remontar o histórico de sua disciplina constitucional e legal.


      1. Histórico


        O ITBI é um imposto com raízes históricas antigas no ordenamento jurídico nacional. Ele existe, de algum modo, sob legislação nacional, pelo menos desde o Alvará n. 3, de 1809, que prescrevia a incidência de um imposto sobre as compras e vendas de bens de raiz e escravos ladinos. À época, nominava-se “siza”; somente pela Lei n. 1.507/1867 é que “... tomou o nome de imposto de transmissão de propriedade”33.


        Na história constitucional brasileira, o imposto apareceu, pela primeira vez, já na Constituição republicana de 1891, que outorgava aos Estados a competência para “... decretar impostos ... sobre transmissão de propriedade...” (art. 9º, § 3º)34.


        Até então, não se estabelecia tratamento específico para as hipóteses hoje versadas na norma imunizante do art. 156, § 2º, I, da CF/1988. Isso somente se verificou com a Constituição de 1934, que, ao contrário de estabelecer imunidade para as transmissões feitas em operações de constituição e modificação de sociedades, previu expressamente a


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        32 Arguição de Inconstitucionalidade n. 0056693-19.2014.8.26.0000, DJe 25.04.2015.


        1. Themístocles Brandão Cavalcanti. A Constituição Federal comentada..., p. 290.


        2. É o que confirma José Mauricio Conti. O Imposto... p. 44.


          possibilidade de a tributação recair sobre “... a transmissão de propriedade imobiliária inter vivos, inclusive a sua incorporação ao capital de sociedade” (art. 8º, I, “c”)35.


          Idêntica redação foi dada ao art. 23, I, “c”, da Constituição de 1937, mantida sob a égide da Lei Constitucional n. 3/1940. Da mesma forma, na redação original da Constituição de 1946, os Estados tinham (art. 19, III) – e, com a Emenda Constitucional n. 5/1961, os Municípios passaram a ter – competência para tributar não só o gênero “... transmissão imobiliária ‘inter vivos’...”, como também a espécie “... incorporação ao capital de sociedades” (art. 29, III).


          A primeira parte da regra imunizante em questão foi introduzida no ordenamento brasileiro pelo art. 9º, § 2º, da Emenda Constitucional (EC) n. 18/1965, segundo o qual o ITBI, a partir de então, não poderia mais incidir “... sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição”. A referida Emenda ainda estabeleceu o retorno do imposto para a esfera de competência dos Estados.


          Foi sob a égide desse texto constitucional que se editou o Código Tributário Nacional, cujo art. 36, inciso I, estabeleceu que o ITBI não incidiria sobre as transmissões de imóveis efetuadas “... para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito...”. Essa redação mantém-se até hoje, a despeito das sucessivas alterações posteriormente empreendidas na disciplina constitucional da imunidade.


          O CTN, porém, introduziu uma novidade no tema das exonerações do ITBI, ao prever, no inciso II do art. 36, que o imposto também não poderia incidir sobre as transmissões de imóveis decorrentes “... da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra”.


          No parágrafo único do art. 36, a seu turno, o legislador introduziu ainda mais uma benesse, ao estabelecer que o ITBI não poderia incidir “... sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos...”.

          Por outro lado, no caput de seu art. 37, o CTN previu que, em ambas as hipóteses referidas “... no artigo anterior...”, ficaria excetuada a aplicação do benefício “... quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição”. Por fim, nos



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        3. Tal alteração teve lugar, segundo Themístocles Brandão Cavalcanti escreveu em 1948, para pôr termo “... a uma velha controvérsia, de que participaram com suas opiniões divergentes, juristas eminentes como Carvalho de Mendonça, Lafayette, Spencer Vampré, Waldemar Ferreira, Mendes Pimentel, Rafael Magalhães, e uma copiosa jurisprudência nem sempre exprimindo a opinião unânime dos Tribunais, especialmente do Supremo Tribunal Federal” (A Constituição..., op. cit., p. 292).


          parágrafos do aludido dispositivo, o CTN regulamentou a noção de “atividade preponderante”36.


          A novidade introduzida pelo inciso II do art. 36 do CTN – afastamento do imposto de transmissão nas operações societárias37 – foi abraçada e ampliada pela Constituição de 1967, que, ademais disso, também estendeu os lindes da imunidade versada na EC n. 18/1965.


          De fato, segundo o art. 24, § 3º, daquela Carta Constitucional, o ITBI não poderia incidir nem “... sobre a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica...” – sequer havia, aí, como se vê, a exigência de a operação se dar em realização de capital –, nem “... sobre a fusão, incorporação, extinção ou redução do capital de pessoas jurídicas...” – introduziram-se, no ponto, as hipóteses de extinção e redução do capital das pessoas jurídicas. Em seguida, prosseguia o dispositivo para gizar que a imunidade não se aplicaria “... se estas [i.e, se as pessoas jurídicas adquirentes] tiverem por atividade preponderante o comércio desses bens ou direitos, ou a locação de imóveis”.


          Na Emenda Constitucional n. 1/1969 (art. 23, § 3º), a seu turno, o legislador destacava que o ITBI não incidiria nem “... sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica...” – mas voltando a acrescer o complemento “... em realização de capital...”, – nem sobre a transmissão decorrente de “... fusão, incorporação ou extinção de capital de pessoa jurídica” – suprimida, portanto, a previsão da imunidade para o caso de mera “... redução do capital”, que a CF/1967 continha. Por fim, o dispositivo destacava que a imunidade não se aplicaria a nenhuma das operações nele enumeradas, “... se a atividade preponderante dessa entidade for o comércio desses bens ou direitos ou a locação de imóveis”.


          Por fim, o Anteprojeto Afonso Arinos, da Constituição de 1988, previa que o ITBI não incidiria nem “... sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos em decorrência de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, no caso de transmissão a pessoa jurídica, a atividade preponderante da adquirente for o comércio desses bens ou a sua locação ou arrendamento mercantil” (art. 138, § 2º). A novidade, no ponto, foi o encarte da previsão expressa da operação de cisão no discurso constitucional. Segundo explica Sacha Calmon Navarro Coêlho, a jurisprudência já considerava aplicável



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        4. Ao esmiuçar a noção de “atividade preponderante”, no art. 37 do CTN, o legislador exerce, sem excessos, a sua competência reguladora das imunidades (CF, art. 146, II). Segundo tal dispositivo, “Considera-se caracterizada a atividade preponderante... quando mais de 50%... da receita operacional da pessoa jurídica, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo”, sendo que, “Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.”


        5. De duvidosa constitucionalidade, reconheça-se, dado o fato de que se tratava de exoneração de tributo estadual e distrital introduzida por lei federal. Pelo mesmo motivo, aliás, também se pode duvidar seriamente da constitucionalidade do benefício introduzido pelo art. 36, parágrafo único, do CTN.


          a imunidade a tal operação, que “... só não constava da CF de 1967, porque a Lei das Sociedades Anônimas, que a consagrou minudentemente, era posterior à Carta de 1967”38.


          Não há registro de debate que tenha ensejado a alteração da redação prevista no Anteprojeto, embora se colha, dos anais da constituinte, por exemplo, a deliberação no sentido de transformar o ITBI num imposto municipal39. Porém, o fato é que a redação final do dispositivo, no texto aprovado pela Assembleia Constituinte, é ligeiramente distinta da do Anteprojeto, tendo o art. 156, § 2º, I, da CF, estabelecido que o ITBI “... não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.


          Ao que tudo indica, a substituição da expressão “... salvo se, no caso de transmissão a pessoa jurídica...”, constante do Anteprojeto Afonso Arinos e, em sentido semelhante, da redação da EC 1/1969 (“... salvo se a atividade preponderante dessa entidade...”), pela expressão “... salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente...”, teve por objetivo apenas estender a exceção aos casos em que o adquirente do imóvel, na extinção de uma pessoa jurídica, fosse não uma outra pessoa jurídica, mas sim uma pessoa natural, realizadora de atividades preponderantemente imobiliárias. Cabe lembrar que essas pessoas naturais são, desde os anos 1970, equiparadas a pessoas jurídicas para fins de imposto de renda40.


          É ilustrativo montar uma tabela da evolução da disciplina dessas imunidades, desde a sua introdução, com o elenco dos destaques feitos acima.


          Diploma normativo

          Texto

          Destaques

          EC n.

          18/1965

          Art. 9º Omissis.


          § 2º. O imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua

          * Não há previsão de imunidade nas operações societárias, ou na extinção da pessoa jurídica;


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        6. Comentários à Constituição de 1988 – sistema tributário, p. 408.


        7. A nova redação aparece já no art. 178, § 2º, do substitutivo da Comissão de Sistematização às emendas de Plenário, na p. 541 do Diário da Assembleia Nacional Constituinte publicado em 29.10.1987. Antes, havia constado de emenda ao substitutivo do Relator da Comissão, apresentada pelo constituinte Ivo Cersósimo (PMDB/MS) em 09.06.1987. Em nenhum dos documentos há explicação expressa do motivo da alteração.


        8. Decreto-lei n. 1.381/1974, art. 6º, I, II e § 1º e Decreto-lei n. 1.510/1976, art. 11, caput e §§ 1º e 2º. Tais entidades são atualmente denominadas “empresas individuais imobiliárias” pela legislação do imposto de renda (arts. 163 e seguintes do Regulamento do Imposto de R enda de 2018).



          incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

          * A ressalva à aplicação da imunidade no caso do adquirente com atividade preponderantemente imobiliária é, portanto, obviamente aplicável aos casos de transferência do imóvel em operação de “incorporação ao capital”.

          CTN

          Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:




          Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.


          Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade



          1. – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

          2. – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.

          • Previsão de que a hipótese beneficiada na “transmissão dos bens ou direitos... para incorporação ao capital de pessoa jurídica”, corresponde à transferência imobiliária feita, pelo sócio, em “pagamento do capital subscrito”, é dizer, como pagamento do preço de emissão da participação subscrita;

          • Introdução (inconstitucional) da aplicação da benesse também para as operações de fusão e incorporação e, ainda, para o caso de “desincorporação” do bem em favor do mesmo alienante;

          • Regulamentação do conceito de “atividade preponderantemente imobiliária”.



          imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.


          CF/1967

          Art. 24. Omissis


          § 3º O imposto a que se refere o

          * Ampliação da imunidade, que passa a abranger não apenas as


          nº I não incide sobre a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica nem sobre a fusão, incorporação, extinção ou redução do capital de pessoas jurídicas, salvo se estas tiverem por atividade preponderante o comércio desses bens ou direitos, ou a locação de imóveis.

          transmissões para formação do capital, mas qualquer incorporação ao patrimônio;



          EC n. 1/1969

          Art. 23. Omissis


          § 3º O imposto a que se refere o item I não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação ou extinção de capital de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante dessa entidade for o comércio desses bens ou direitos ou a locação de imóveis.



          • Recepção das hipóteses adicionais versadas no CTN e inclusão das operações de extinção e de redução de capital das pessoas jurídicas;

          • A exceção para as pessoas jurídicas de atividade preponderantemente imobiliária é claramente aplicável a todas as hipóteses de imunidade.

          • Definição de redação idêntica à atual para a primeira imunidade (“incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”);

          • Supressão da hipótese de imunidade para a operação de mera redução de capital;

          • A exceção para as pessoas jurídicas de atividade preponderantemente imobiliária é claramente aplicável a todas as hipóteses de imunidade.


          Anteprojet o da

          CF/1988

          138. Omissis.


          § 2º O imposto sobre aquisição, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou acessão física e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos em decorrência de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, no caso de transmissão a pessoa jurídica, a atividade preponderante da adquirente for o comércio desses bens ou a sua



          locação ou arrendamento mercantil.


          CF/1988

          § 2º O imposto previsto no inciso II:


          I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;

          * A exceção à imunidade passa a ser aplicável não somente quando o adquirente é pessoa jurídica, mas também quando é pessoa natural que realiza atividade preponderantemente imobiliária.

          • Introdução da cisão como operação abrangida pela imunidade;

          • A exceção para as pessoas jurídicas de atividade preponderantemente imobiliária é claramente aplicável a todas as hipóteses de imunidade, desde que o adquirente seja “pessoa jurídica”, o que se denota pelo uso da expressão “... salvo se, no caso de transmissão a pessoa jurídica...”.


          Do exposto extraímos as seguintes conclusões:


          1. o sentido da expressão “... incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”, previsto no art. 156, § 2º, I, da Constituição, é o mesmo contido no Código Tributário Nacional, de “... incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito”, ou seja, de transmissão feita para pagamento do preço de emissão das ações ou quotas subscritas;

          2. exceção feita à operação de redução de capital, cuja contemplação expressa na regra de imunidade foi efêmera, foi sempre crescente, na história constitucional, o número de espécies de movimentações societárias abrangidas pela imunidade;

          3. a alteração da redação do dispositivo veiculador da imunidade, em relação àquele da EC n. 1/1969 (“... salvo se a atividade preponderante dessa entidade...”) e do Anteprojeto Afonso Arinos (“... salvo se, no caso de pessoa jurídica...”) pela expressão “... salvo se, nesses casos...”, teve por objetivo apenas abarcar os casos em que o adquirente do bem não é pessoa jurídica, mas pessoa natural habitualmente exercente de atividade imobiliária.


        Feito esse escorço histórico, podemos passar ao exame teleológico das imunidades específicas do ITBI.


      2. Finalidade


    Segundo a jurisprudência do STF, a interpretação das imunidades deve ser feita em função de sua finalidade. São, de fato, abundantes os julgados da Corte Suprema que prestam reverência à teleologia dos dispositivos veiculadores de imunidades como guia hermenêutico para a adequada compreensão de seus preceitos41. No próprio caso sob exame, o voto vencido, do Ministro Marco Aurélio, diz justificar-se “... a interpretação teleológica das regras de imunidade...”, porque “... a verdadeira razão da lei está na finalidade para a qual editada e no exame dos fatos que para ela contribuíram”. O telos normativo é, realmente, um fator que deve ser investigado ao se perscrutar o significado de preceitos desse jaez.



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    41 Nesse sentido, por exemplo, o voto do Ministro Celso de Mello, ao relatar precedente que reconheceu a aplicação da imunidade ao PIS e à COFINS das receitas decorrentes de variações cambiais, caso em que defendeu “... a possibilidade de interpretação extensiva do postulado constitucional da imunidade tributária, considerando, para esse efeito, a própria teleologia da cláusula que impõe, ao Estado, essa específica limitação constitucional ao poder de tributar” (RE n. 376.462 AgR-ED-ED, DJe 19.03.2014). Nessa linha, também, o voto do

    Ministro Luís Roberto Barroso, quando do julgamento do RE n. 595.676: “... é a interpretação teleológica a que melhor atende ao mandamento constitucional, a interpretação constitucionalmente adequada dessa matéria. Porque as imunidades, bem lembrava o nosso querido colega e mestre da UERJ Ricardo Lobo Torres, estão associadas à proteção dos direitos fundamentais. De modo que o que se deve fazer aqui é verificar qual é o bem jurídico, quais são os valores envolvidos.” (RE n. 595.676, DJe 18.12.2017). A Ministra Rosa Weber fez constar da ementa de acórdão que “Esta Suprema Corte, nas inúmeras oportunidades em que debatida a questão da hermenêutica constitucional aplicada ao tema das imunidades, adotou a interpretação teleológica do instituto, a emprestar-lhe abrangência maior, com escopo de assegurar à norma supralegal máxima efetividade.” (RE n. 627.815, DJe 01.10.2013). Ao afirmar a aplicabilidade da imunidade das entidades beneficentes de assistência social sobre imóveis não diretamente afetados ao desempenho de suas atividades, o Ministro Dias Toffoli também destacou que se deve promover uma “... interpretação teleológica das normas de imunidade tributária, de modo a maximizar o seu potencial de efetividade” (AI n. 746.263 AgR, DJe 21.02.2013). O exame da teleologia da norma imunizante foi fundamental para que o STF confirmasse a aplicação da imunidade dos livros aos livros eletrônicos e digitais (RE n. 330.817, DJe 31.08.2017); ou, antes disso, para que afirmasse a aplicação desse mesmo preceito ao maquinário e aos insumos para a produção de livros e periódicos (RE n. 202.149, DJe 11.10.2011).


    No caso das imunidades do art. 156, § 2º, I, da CF, é praticamente uníssono o discurso que as vincula à livre iniciativa, como princípio, e à busca pelo desenvolvimento econômico, como fim.


    Segundo Aires Fernandino Barreto, o objetivo dessa imunidade é “... facilitar a formação e a modificação de empresas...”, ou seja, promover “... a livre iniciativa, o progresso das empresas e o consequente desenvolvimento econômico...”42. Para o autor, a “... a não tributação dessas situações pelo ITBI visa a facilitar a mobilização dos bens imóveis de seus sócios para as pessoas jurídicas”43.


    Para Regina Helena Costa, a seu turno, “A finalidade é facilitar a formação, transformação,

    fusão, cisão e extinção de sociedades civis e comerciais”44.


    Marco Aurélio Greco, na mesma toada, afirma tratar-se “... de um verdadeiro estímulo à criação e reorganização empresarial, visto que a empresa poderá desta forma dispor de bens para a procura de crédito, financiamento ou contratos tendo uma garantia real para a busca de comprometimento”45.


    É também essa a visão esposada por Sacha Calmon Navarro Coêlho, para quem “O objetivo da regra colima facilitar a ‘mobilização’ dos bens de raiz e a sua posterior ‘desmobilização’, de modo a facilitar a formação, a transformação, a fusão, a cisão e a extinção de sociedades civis, não embaraçando com o ITBI a movimentação dos imóveis.”46


    Marilene Talarico Martins Rodrigues, por sua vez, defende que o constituinte procurou, por meio dessa disposição, “... facilitar a formação, a extinção e a modificação de empresas, ou seja, visou a livre iniciativa, o progresso das empresas e o consequente desenvolvimento econômico...”47.


    Essas diretrizes, bastante coincidentes, estão presentes também no acórdão sob exame. No voto vencido, do Ministro Marco Aurélio, afirma-se que “A razão de ser da imunidade – e nada surge sem causa, princípio lógico e racional do determinismo – é facilitar o trânsito jurídico de bens...” e, com isso, promover o “... desenvolvimento econômico...”. Mesmo o voto vencedor reconhece que o preceito constitucional em testilha tem “... por finalidade


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    42 ITBI – Transmissão de Bens... op. cit., p. 162.


    43 Ibid., p. 161.


    1. Curso de direito tributário – Constituição e Código Tributário Nacional..., p. 422.


    2. Marco Aurélio Greco. Comentário ao art. 156..., p. 1.843.


    3. Comentários à Constituição de 1988... op. cit., p. 408.


    4. Comentários aos arts. 35-42..., p. 308.


      incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o

      desenvolvimento das empresas...”.


      Por outro lado, em boa parte dessas manifestações está presente, ainda que de forma não tão explícita, a ideia de “neutralidade tributária”, isto é, a visão segundo a qual a atividade impositiva deve prejudicar o mínimo possível a “liberdade de gestão fiscal” dos contribuintes, a que alude José Casalta Nabais. Preconiza-se, afinal de contas, um “... regime fiscal de neutralidade das operações empresariais constituídas pelas fusões, cisões, entradas de activos e permutas de partes sociais”48.


      A face mais visível desse princípio, no ordenamento nacional, está na disciplina do imposto sobre a renda, cujas regras não só apontam para uma relativa neutralidade tributária, em termos gerais, das operações de fusão, cisão e incorporação, mas também preveem, por exemplo, que “Não serão computadas na determinação do lucro real as importâncias, creditadas a reservas de capital, que o contribuinte com a forma de companhia receber dos subscritores de valores mobiliários de sua emissão a título de ... ágio na emissão de ações por preço superior ao valor nominal, ou a parte do preço de emissão de ações sem valor nominal destinadas à formação de reservas de capital” (art. 38, I, do Decreto-lei n. 1.598/1977)49.


      Embora mais rotineiramente invocado no âmbito do imposto de renda, está claro que tal princípio se espraia, por meio da imunidade em questão, também para a disciplina do ITBI. Corrobora-o, indubitavelmente, o fato de a imunidade ter sido, na história constitucional, sempre crescente no número de operações societárias por ela abarcadas, exceção feita ao breve interstício havido entre a promulgação da CF/1967 e a edição da EC n. 1/1969.


      Portanto, as duas diretrizes-mestras para a investigação da imunidade, sob o prisma teleológico, são (i) o objetivo de promoção da livre iniciativa – e, por meio dela, do desenvolvimento econômico; – e (ii) a promoção da neutralidade tributária.


      Vista a questão sob o vetor da promoção da livre iniciativa e do desenvolvimento econômico, parece-nos claro que a intenção do legislador constituinte foi a de, do ponto de vista das sociedades, encorajar a aceitação de imóveis como instrumento de investimento, e, do ponto de vista dos proprietários de imóveis, fomentar a sua aplicação em atividades econômicas, mediante a sua troca por participação societária. É dizer, o objetivo não foi formar sociedades com capital social elevado, mas sim promover a aplicação de imóveis em operações de subscrição e integralização de capital.



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    5. Considerações sobre o regime fiscal da reorganização empresarial..., p. 148.


    6. Como explica Luís Eduardo Schoueri, “... no campo do Direito Societário, pode-se falar em ágio quando uma companhia cobra por ações de sua emissão valor superior ao nominal; tal ágio, desde que mantido em reserva própria, não produz efeitos tributários” (Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários)..., p. 14).


      Veja-se, nesse sentido, que a expressão utilizada pelo constituinte não alude à formação “do capital social” da pessoa jurídica, mas, sim, à formação do patrimônio da pessoa jurídica “em realização de capital”. Essa expressão – “realização de capital” – tem, na Lei do Anonimato, como visto acima, precisamente o sentido de pagamento, pelo acionista, da “... prestação correspondente às ações subscritas ou adquiridas” (art. 106 da LSA), isto é, do “... preço de emissão...” das ações subscritas (art. 80, II, da LSA).


      A reforçar essa leitura está o fato de que, nas demais operações de trânsito de imóveis abarcadas pela norma imunizante – fusão, cisão, incorporação e extinção de pessoa jurídica

      –, não há indicativo algum, no dispositivo constitucional, de que só estariam a salvo da tributação as transmissões de bens e direitos que estivessem, de algum modo, relacionadas à formação do capital social. É dizer, na extinção de sociedade e nas operações societárias (fusão, cisão e incorporação), mesmo bens que tenham sido adquiridos pela sociedade cindida, fusionada ou incorporada já no curso de suas atividades, sem qualquer relação com a formação ou aumento do capital social, terão as suas transmissões protegidas da incidência do ITBI em razão da norma imunizante. E não há o que justifique a adoção de um tratamento distinto para a operação de integralização.


      O objetivo da imunidade em questão é, em suma, estimular os proprietários de imóveis a, em lugar de destiná-los à compra e venda, à locação ou ao arrendamento mercantil, utilizá- los como veículos de investimento em capital produtivo. Aliás, não é por outra razão que a Constituição nega a aplicação dessa mesma imunidade nos casos em que a pessoa jurídica recebedora dos bens imóveis tenha atividade preponderantemente imobiliária.


      Do ponto de vista da neutralidade tributária, a lógica que está presente no dispositivo é a seguinte: não houvesse essa imunidade, a aplicação de imóveis para a aquisição de participação societária seria desvantajosa em comparação com a utilização de dinheiro, ou de bens móveis, para essa mesma finalidade. A norma tributária, portanto, operaria de modo contrário à neutralidade que se preconiza para operações que envolvem a formação e a modificação de estruturas societárias.


      Para resumir:


      1. a imunidade está a serviço não só da promoção do desenvolvimento econômico, mas também da neutralidade tributária;

      2. o que a norma visa a fomentar não é exatamente a formação do capital social, mas a aplicação de imóveis em capital produtivo, mediante a sua troca por participação societária – o que corresponde, precisamente, à expressão “... incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”;

      3. a imunidade está posta na Constituição para que não seja mais oneroso para a pessoa jurídica receber um investimento em imóveis do que recebê-lo em bens móveis ou dinheiro.


        Com essas considerações, podemos enfim avançar para o exame crítico do acórdão do STF.


  4. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS À DECISÃO TOMADA PELO STF NO JULGAMENTO DO RE N. 796.376

    O cerne da fundamentação do voto condutor está na seguinte passagem:


    “Revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo – como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital. Essa extensão interpretativa em termos de imunidades não é aceita por nossa Suprema Corte, por constituir exceção constitucional à capacidade tributária.”


    Em outras palavras, o voto condutor ampara-se num suposto dever de interpretação restritiva das imunidades, e no entendimento de que haveria um desvirtuamento da norma

    – cujo campo semântico seria “estendido” – caso a imunidade fosse aplicada sobre o valor pago, no contexto da integralização, em montante excedente ao valor nominal das quotas ou ações subscritas.


    Pois bem, em relação a esse suposto dever de contenção do intérprete, no sentido de prestigiar uma postura “restritiva” na interpretação de imunidades, devemos dizer, antes de tudo, que, nesse tema, o STF tem adotado um comportamento absolutamente errático. Simplesmente não se divisa, de seus precedentes, uma diretriz interpretativa consistente, no sentido de que regras imunizantes devam ser interpretadas de forma extensiva ou restritiva.


    Ao contrário, são abundantes, na Suprema Corte, tanto julgados que apelam à máxima efetividade dos direitos e garantias constitucionais para defender a adoção de interpretações “extensivas” ou “ampliativas” das imunidades50, como arestos em que o STF defende a necessidade de se adotar uma postura hermenêutica “restritiva” dos dispositivos imunizantes, em homenagem a uma noção de capacidade contributiva em que ela é relacionada não com uma garantia do cidadão em face do Estado, mas sim com o dever de todos concorrerem, na medida de suas possibilidades, para o custeio das atividades estatais51.


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    1. Uma amostragem desses precedentes, em que se preconiza um dever de interpretação “extensiva” às regras de imunidade, está na nota 41, supra.


    2. Foi o que o STF fez, por exemplo, ao negar a possibilidade de “interpretação extensiva” à imunidade prevista no art. 155, § 3 º, quando se trata de “Empresa terceirizada prestadora de serviços à concessionária de energia elétrica” (ARE n. 938.367 AgR, DJe 2 0.10.2016). Foi, também, o que fez ao consignar que “... Estender a regra imunizadora do IPI ao sal de cozinha, com base no enquadramento deste na categoria ‘mineral’, demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório e da legislação infraconstitucional, inclusive de índole local. Súmulas 279 e 280 do STF” dizendo que “... A jurisprudência do STF se consolidou no sentido de que imunidade prevista no art. 153,

      § 3º, do Texto Constitucional, é restrita às hipóteses ali previstas, não sendo cabível interpretação extensiva.” (RE n. 911.785 AgR, DJe


      Esse comportamento confuso deve-se, a nosso sentir, ao caráter falacioso dessa distinção entre “interpretação extensiva” e “interpretação restritiva”, já denunciado, com aguçada verve, por José Souto Maior Borges, em crítica que formulou ao art. 111 do Código Tributário Nacional e à leitura que dele se faz. Ouçamo-lo:


      “A rigor as expressões ‘interpretação extensiva’ ou ‘restritiva’ configuram autênticos idiotismos da linguagem jurídica. Com efeito, não é possível ao intérprete estender ou restringir o alcance da lei. A exigência de interpretação restritiva ou extensiva é ditada pela própria norma. O método de interpretação não restringe nem amplia o preceito: a restrição ou ampliação do seu âmbito de incidência resulta objetivamente da norma interpretada. A função do intérprete é pesquisar o valor objetivo da norma; a análise da regra jurídica é que dará em resultado o dilargar ou restringir os termos em que a mesma estava literalmente redigida. A ‘mens legis’ é insusceptível de alteração pela via interpretativa. Deve-se ter sempre presentes estas advertências quando se fala em interpretação ‘extensiva’ das normas jurídicas. A hermenêutica, como ensina Carvalho Pinto, não tende a restringir ou ampliar aquilo que deve, e exclusivamente, interpretar, isto é, revelar o significado, exprimir o conceito e alcance.”52


      Estamos de inteiro acordo com o mestre pernambucano e entendemos, pelas razões que ele invoca, que se deve abandonar qualquer pretensão de definição apriorística de um critério hermenêutico baseado na adjetivação do próprio processo interpretativo como “extensivo” ou “restritivo”.


      Para uma adequada interpretação dos dispositivos constitucionais que versam sobre imunidades, deve-se, em lugar disso, tomá-los em múltiplas dimensões – gramatical, histórica, finalística – e, ainda, nas suas relações de coordenação e subordinação com outros preceitos normativos.


      O sopesamento desses fatores leva-nos à convicta conclusão de que o STF se equivocou ao considerar que o acolhimento da tese defendida pelo recorrente corresponderia a uma indevida “extensão interpretativa” do art. 156, § 2º, I, da CF.


      Como dissemos na introdução, o erro que leva o STF a considerar que a interpretação defendida pelo recorrente corresponderia a uma “extensão indevida” do preceito constitucional está fundado, principalmente, (i) na adoção de uma noção muito restrita de “capital social”, que se reflete num entendimento incorreto a respeito da noção de “realização de capital utilizada no dispositivo; (ii) num engano quanto à natureza das

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      10.12.2015). Ou ao negar a aplicação da imunidade dos templos às lojas maçônicas (RE n. 562.351, DJe 14.12.2012). O próprio acórdão sob exame alude, ainda, ao julgamento, com repercussão geral, do RE n. 564.413, relator o Ministro Marco Aurélio, e do RE n. 566.259, relator o Ministro Ricardo Lewandowski, ambos de 2010, como exemplos de casos em que se enveredou por uma interpretação “restritiva”.


    3. Teoria geral da isenção tributária..., p. 118.


      operações de integralização de capital com ágio; e (iii) numa inadequada compreensão da finalidade da norma imunizante, vista sob o lume do princípio da neutralidade tributária.


      Por outro lado, o argumento que consigna a possibilidade de a imunidade em questão abarcar as transferências de imóveis, promovidas em realização de capital, inclusive quando feitas para pessoas jurídicas que tenham atividade preponderantemente imobiliária, afronta (i) a finalidade dessa norma; (ii) o histórico de tal imunidade em nosso ordenamento; e, ainda, (iii) a própria gramática.


      Analisemos com maior minúcia cada um desses pontos.


        1. Os equívocos presentes na negativa de aplicação integral da imunidade às operações de realização de capital subscrito com ágio


          Em primeiro lugar, está bastante claro que o voto condutor adota um conceito muito restrito de capital social, em que ele é identificado com uma conta contábil, uma cifra, um valor nominal. Ocorre que esse não é nem o único sentido possível da expressão “capital social”, nem a acepção em que a lei societária utiliza a expressão “realização do capital social”.


          Com efeito, o sentido da expressão “realização de capital” corresponde, na dicção da Lei do Anonimato, ao adimplemento da obrigação do acionista, de efetuar “... a prestação correspondente às ações subscritas ou adquiridas” (art. 106), isto é, de cumprir com o pagamento “... do preço de emissão” das participações societárias adquiridas (art. 80, II).


          Note-se que a Constituição, ao conferir a imunidade, alude não exatamente à formação do capital social, mas às operações em que bens ou direitos são “... incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”. O art. 36, I, do CTN, capta precisamente essa mensagem do constituinte, ao vincular a imunidade à operação em que o bem é incorporado “...ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito”, e não para composição da conta contábil “capital social”.


          Em segundo lugar, equivoca-se o STF ao considerar que somente o valor nominalmente refletido na conta “capital social” é que corresponderia ao “... valor destinado à integralização do capital social”.


          Ora, a integralização (“realização”) do capital nada mais é do que a quitação, pelo adquirente, do preço de emissão das ações ou quotas por ele subscritas; e esse preço é composto não só pelo valor nominalmente destinado à formação da conta “capital social”, mas também pelo ágio. É dizer, o ágio também tem a natureza de preço das ações ou quotas subscritas, na estrita dicção do art. 182, § 1º, da Lei das S/A. Tanto isso é verdade que, seja quando se obriga a pagar apenas o valor nominal das ações ou quotas, seja quando se obriga a pagar, também,


          um ágio, a única contrapartida devida pela companhia ao subscritor é, exatamente, a entrega da participação societária a que faz jus. Nada mais.


          Note-se que não há, no texto constitucional, nenhuma vinculação entre o valor do bem transmitido pelo sócio com vistas à integralização da participação por ele subscrita e o valor nominal da participação societária adquirida, pelo sócio, via subscrição. A Constituição exige apenas que a transmissão se dê “... em realização de capital”. A transmissão de um imóvel feita por valor superior ao montante nominal das quotas ou ações subscritas não deixa de ser feita “... em realização de capital” (art. 156, § 2º, I, da CF), ou – para usar a expressão regulamentadora do art. 36, I, do CTN – “... em pagamento de capital ... subscrito”, de modo que a transmissão de imóvel para pagamento de quotas ou ações adquiridas com ágio se amolda perfeitamente à hipótese sobre a qual recai a imunidade53.


          Daí o acerto da conclusão constante do voto vencido, no sentido de que “O ágio na subscrição das cotas ou ações representa investimento direto em sociedade empresária, tanto quanto a integralização de capital pura e simples, devendo receber idêntico tratamento”.


          Cabe aqui, por falar nisso, uma observação adicional. Parece-nos muito curioso que, quando se trata de restringir a aplicação da imunidade, o Fisco pretenda dar relevância ao valor que as partes atribuem à operação, ao mesmo tempo em que, quando analisa as operações efetivamente sujeitas a tributação pelo ITBI, frequentemente ignora o valor atribuído pelas partes ao bem ou direito transmitido, para, sem qualquer justificativa, desde logo arbitrar o montante que se considera corresponder ao seu “valor venal”54. Ora, se o valor atribuído pelas partes à operação é tido como irrelevante para fins de tributação, por que haveria de ser relevante para fins de aplicação da imunidade? A posição fazendária, nesse ponto, parece-nos extraordinariamente contraditória.


          Também não se pode descurar do fato de que, em alguns casos, a sociedade estará legalmente compelida a emitir suas ações com ágio, em vez de fazê-lo por seu valor nominal. Com efeito, há casos em que é obrigatório emitir as ações com ágio, a fim de que o aumento de capital não implique “... diluição injustificada da participação dos antigos acionistas...” (art. 170, § 1º, da LSA). Para essa hipótese, de aumento de capital por subscrição de novas ações, é absolutamente inaplicável a afirmação, constante do voto condutor, no sentido de


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    4. Foi nessa linha a observação de Igor Mauler Santiago: “... o que se exige é (a) que os imóveis sejam incorporados ao patrimônio da empresa e (b) que esta esteja em realização de capital. Ora, as contas de reserva de capital compõem o patrimônio líquido da sociedade (Lei 6.404/76, artigo 178, parágrafo 2º, inciso III), o que satisfaz o primeiro requisito. E, dentre outras grandezas que não interessam aqui, registram ‘a contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal’ (idem, artigo 182, parágrafo 1º, alínea ‘a’), o que atende ao segundo.” (Decisão do STF sobre ITBI na integralização de capital tem alcance limitado).


    5. Parte o Fisco, nesses casos, da premissa de que a base de cálculo do ITBI não deve ser o preço da operação, mas o valor venal, na linha defendida, por exemplo, por Hugo de Brito Machado, para quem “A diferença entre preço e valor é relevante. O preço é fixado pelas partes, que em princípio são livres para contratar. O valor dos bens é determinado pelas condições do mercado, pela oferta e procura dos bens. O preço funciona, no caso, como uma declaração de valor, que pode ser aceita, ou não, pelo fisco, aplicando-se, na hipótese de divergência, a disposição do art. 148 do CTN.” (Curso de direito tributário..., p. 398)


    que “Essa convenção [de emissão e subscrição de ações com ágio] se insere na autonomia de vontade...” das partes. Aqui, mais do que a vontade, está presente um dever legal. E não parece minimamente razoável supor que o constituinte tenha pretendido dificultar, por meio do ITBI, a realização de aumentos de capital que se realizem mediante a conferência de bens imóveis.


    Aqui, aliás, está o terceiro ponto em que se equivoca o STF. A imunidade não foi concebida para favorecer a formação de companhias com capital elevado; não foi estabelecida para “engordar” a conta “capital social”, mas, sim, para estimular a aplicação de imóveis como investimento em capital produtivo, mediante a promoção da neutralidade tributária dessa operação. O objetivo é promover a livre iniciativa, estimulando o desenvolvimento econômico, e impedir que seja mais caro para uma companhia receber investimentos em imóveis do que em dinheiro ou em bens móveis. Não há, portanto, desvio algum da finalidade constitucional na integralização de ações subscritas com ágio. Há, pelo contrário, o pleno atendimento aos objetivos da norma imunizante.


    O foco da análise finalística da regra de imunidade não deve ser a classificação contábil da contrapartida dos bens recebidos, no ativo, pela pessoa jurídica, mas, sim, a natureza dos bens por ela entregues e recebidos pelo investidor, isto é, pela pessoa que aplicou os imóveis. A pergunta a ser feita, insistimos, não é se o valor dos bens integralizados corresponde ao montante nominal das quotas subscritas, mas, sim, qual foi a natureza dos bens recebidos, pelo sócio investidor, como contrapartida pela subscrição e posterior integralização. Se a transmissão houver sido feita em troca da aquisição primária (subscrição) de participação societária, o suposto do preceito imunizante estará plenamente satisfeito.


    Em todo caso, a reserva de capital nada mais é que uma conta destinada a proteger ou reforçar o capital social, o que faz ainda mais sem sentido a orientação adotada pela Corte Suprema, ao considerar os lançamentos lá efetuados como um desvirtuamento da finalidade da regra imunizante.


      1. Os equívocos presentes na afirmação de que a imunidade seria aplicável mesmo para as pessoas jurídicas com atividade preponderantemente imobiliária


    Como visto, para que se aplique a imunidade em questão, o texto constitucional faz apenas duas exigências: (a) que o bem imóvel seja incorporado “... ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital...”; e (b) que a pessoa jurídica adquirente do imóvel não exerça, preponderantemente, atividades econômicas de natureza imobiliária.


    A aplicação dessa segunda condicionante da regra de imunidade foi posta em dúvida no voto que abriu a divergência, do Ministro Alexandre de Moraes, num argumento tecido em caráter obiter dictum.


    Para o ministro, a exigência de a adquirente não ser sociedade com atividade preponderantemente imobiliária se aplicaria exclusivamente às operações de “fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”, previstas na segunda parte do dispositivo. Isso porque, no seu entendimento, a expressão “... salvo se, nesses casos...” referir-se-ia apenas às operações contidas na segunda parte do dispositivo, e não à operação descrita na primeira parte. O argumento é de cunho estritamente gramatical, literal.


    Contudo, essa leitura, além de contrariar a finalidade e a história da norma, contraria também a própria gramática.


    Viola a finalidade da norma pela razão, já expressa anteriormente, de que o objetivo do constituinte, ao prever a imunidade, foi o de induzir os proprietários de imóveis a aplicá- los para o desenvolvimento de outras atividades, que não a compra e venda, a locação e o arrendamento mercantil de bens imóveis. E isso, convenhamos, é precisamente o oposto do que se obtém ao se considerar que a imunidade se aplicaria independentemente da natureza da atividade do adquirente.


    Ainda no terreno teleológico, é mesmo de se perguntar qual seria a razão que levaria o constituinte a ressalvar as aquisições por empresa imobiliária nas operações de “fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica” e, ao mesmo tempo, reputar desnecessário aplicar essa exceção na operação descrita na primeira parte do dispositivo. Não logramos encontrar uma única justificativa para tanto.


    Já sob o ponto de vista histórico, é preciso destacar que, desde quando a imunidade em questão surgiu no ordenamento brasileiro, esteve sempre presente essa ressalva, que se aplicou, invariavelmente, a todas as hipóteses contempladas nas mais variadas versões do dispositivo. Isso desde a Emenda Constitucional n. 18/1965, passando pelo CTN, pela Constituição de 1967 e pela sua Emenda n. 1/1969; o cenário foi sempre o mesmo, nesse particular.


    O Anteprojeto Afonso Arinos, da Constituição de 1988, também dizia, de modo muito claro, que o imposto não incidiria “... sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos em decorrência de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, no caso de transmissão a pessoa jurídica, a atividade preponderante da adquirente for o comércio desses bens ou a sua locação ou arrendamento mercantil” (art. 138, § 2º). E não se localizou, nos debates da Assembleia Constituinte, a mínima indicação de que a redação final tenha sido adotada em razão de se pretender afastar a ressalva da hipótese versada pela parte inicial do dispositivo. Pelo contrário, ao que nos parece, a redação foi alterada apenas para que a ressalva se aplicasse também aos casos em que o adquirente fosse pessoa natural com atividade preponderantemente imobiliária – a qual é alvo, lembremos, de equiparação a pessoa jurídica nos termos da legislação do imposto de renda.


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    Por fim, quanto ao argumento de cunho gramatical, parece-nos evidente que o uso do pronome “nesses” tem, exatamente, a finalidade de remeter a tudo quanto já foi mencionado no discurso, e não apenas a parte do que foi dito anteriormente. Quando se pretende estabelecer uma distinção entre diversos casos, antes mencionados, aos quais determinado complemento se aplica, e outros, aos quais ele não se aplica, é preferível usar o pronome “neste(s)” para aquilo que está mais próximo do encerramento do discurso, e o pronome “naquele(s)” para mencionar o que está mais distante. Portanto, mesmo do ponto de vista gramatical, a nosso ver, a leitura empreendida pelo voto do Ministro Alexandre de Moraes não se sustenta, o que é corroborado pela literatura específica55-56.


  5. PARA FINALIZAR

    À guisa de conclusão, entendemos que a orientação que o STF acaba de adotar, tanto no argumento obiter dictum, acima analisado, quanto em relação à tese firmada com repercussão geral, é deveras perigosa.


    De um lado, o entendimento de que a exceção à imunidade, relativa às empresas preponderantemente imobiliárias, prevista na parte final do dispositivo constitucional, não se aplicaria às operações de integralização de imóveis, abre ensejo a que se promovam transmissões de imóveis sem o pagamento de ITBI, mediante o uso de sociedades imobiliárias como meros veículos, meras pessoas interpostas. Certamente não foi o que desejou o constituinte, tanto que, para elidir o uso de expedientes informais e heterodoxos


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    55 Empregam-se “‘esse, essa, isso e variações’ para retomar termos e informações já mencionados. [...] Empregam-se ‘este, esta, isto e variações’ para retomar, dentro de um período, o termo mais próximo, ou seja, o enunciado em segundo lugar, a fim de se evitar uma possível ambiguidade que os demonstrativos ‘esse, essa, isso e variações’ poderiam gerar.” (Rodrigo Bezerra. Nova gramática da língua portuguesa para concursos..., p. 248-249) Eis a lição de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante: “Este (e as outras formas de primeira pessoa)

    se refere ao que ainda vai ser dito na frase ou texto; esse (e as outras formas de segunda pessoa) se refere ao que já foi dito na frase ou texto. Também se pode utilizar a oposição entre os pronomes de primeira pessoa e os de terceira na retomada de elementos anteriormente citados: Um amigo visitou Miami e Roma. Nesta (em Roma), emocionou-se, tropeçou em história e teve uma verdadeira aula de civilização e cultura; naquela (em Miami), comprou tênis e aparelhos eletrônicos.” (Gramática da língua portuguesa..., p. 270) Também é nessa linha a orientação de Domingos Paschoal Cegalla: “Em frases como a seguinte, este refere-se à pessoa mencionada em último lugar, aquele à mencionada em primeiro lugar: ‘O referido advogado e o Dr. Tancredo Lopes eram amigos íntimos: aquele casado, solteiro este.’ (Valentim Magalhães) [ou então: este solteiro, aquele casado].” (Novíssima gramática da língua portuguesa..., p. 566) A tese abraçada pela maioria vencedora, porém, tem o apoio de Guilherme Traple, para quem “Nem é uma conjunção aditiva...”, que “... divide o dispositivo legal...”, ao passo que o termo “Nesses é a contração da preposição ‘em’... e do pronome demonstrativo ‘esse’, em sua forma plural, ‘esses’”; “O termo ‘esses’ é utilizado... para retomar uma ideia já mencionada...”. Então, “o vocábulo ‘nesses casos’, contido no texto legal limita o alcance do que da exceção que o sucede aos casos que o antecedem.” (A imunidade absoluta à cobrança do ITBI..., p. 89)


    1. O entendimento da maior parte da doutrina é no sentido aqui defendido por Aires Fernandino Barreto, invocando o art. 37 do CTN, que defende que “Para que as pessoas jurídicas adquirentes gozem da imunidade do ITBI, prevista no dispositivo constitucional, não podem ter como atividade preponderante a compra e venda de bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.” (ITBI – transmissão..., op. cit., p. 163). O entendimento é reforçado na p. 168. Na mesma linha é o pensamento de Roque Antonio Carra zza, para quem tanto a imunidade relativa à incorporação em realização de capital, como a que se verifica nas transmissões decorrentes de fusão, cisão, incorporação ou extinção de pessoa jurídica “... caem por terra se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, a locação de bens imóveis ou o arrendamento mercantil (‘leasing imobiliário’)” (ITBI – redução..., p. 124). Também é o entendimento de Francisco Ramos Mangieri e Omar Augusto Leite Melo (O ITBI... op. cit., p. 109-110 e 112). É também a linha que segue Sacha Calmon Navarro Coêlho, para quem “Em todos estes casos, os bens imóveis são transmitidos sem a incidência do ITBI, salvo se os adquirentes tiverem por atividade preponderante – conceito fixado em lei complementar – a compra e venda de bens imóveis ou de direitos a eles relativos ou a locação de bens imóveis ‘lato sensu’” (Comentários... op. cit., p. 480). Finalmente, é também a posição de Regina Helena Costa: “Como se extrai da dicção constitucional, ambas as hipóteses de imunidade não se configuram no caso de a atividade preponderante do adquirente ser a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.” (Curso.., op. cit., p. 422)


      de circulação do patrimônio imobiliário, incluiu a cessão de direitos à aquisição de imóveis na norma-padrão de incidência do imposto.


      De outro lado, o entendimento de que a imunidade somente se aplicará na medida em que houver equivalência entre o valor do bem imóvel integralizado e o valor do capital subscrito, além de desestimular a mobilização de capital imobiliário, contrariando, assim, o objetivo constitucional, ao tornar relevante o valor do bem imóvel entregue em troca das ações ou quotas, também pode encorajar o Fisco a, mesmo nos casos em que o valor atribuído pelas partes ao imóvel integralizado seja idêntico ao valor nominal do capital subscrito, desprezar essa autoavaliação feita pelas partes e arbitrar o valor do imóvel para, assim, cobrar o ITBI sobre a diferença entre o valor do capital subscrito e aquilo que considerar ser equivalente ao “valor venal” do bem57.


      Ou seja, com sua decisão, a Suprema Corte dá azo a uma situação de enorme insegurança jurídica, além de ir, mais uma vez, de encontro à dimensão teleológica da imunidade em questão. Aliás, é mesmo de se duvidar que, diante desse novo quadro, alguma sociedade se arrisque a receber investimentos feitos mediante a entrega de imóveis; além do risco de ser tributada pela parte dos valores classificados como ágio, as sociedades certamente considerarão, também, o risco de, mesmo quando houver equivalência entre o valor atribuído ao imóvel e o valor nominal da participação subscrita, o Fisco vir a questionar essa avaliação, sob o argumento de que não corresponderia ao “valor venal” do imóvel.


      Espera-se, por isso, que a Corte Suprema possa revisar a sua posição.


  6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  1. Ainda que se deva reconhecer, com Igor Mauler Santiago, que o acórdão sob exame não autorizou – ao menos não expressamente – “... a exigência de ITBI sobre a diferença entre o preço de mercado (ou o valor cadastral) do imóvel e o seu custo histórico, quando este último tenha sido adotado pelo contribuinte para integralizar cotas ou ações de igual valor de face” (Decisão do STF... op. cit.). Observação na mesma linha foi feita por Álvaro Santos. Holding rural e o ITBI na integralização de imóveis: nova tese fixada pelo STF sobre o ITBI não se aplica às holdings rurais.


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          . Primeira Turma. Recurso Extraordinário n. 562.351. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Brasília. Diário da Justiça Eletrônico de 14.12.2012.


          . Segunda Turma. Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 376.462. Rel. Min. Celso de Mello. Brasília. Diário da Justiça Eletrônico de 19.03.2014.


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