OS PROGRAMAS BRASILEIROS DE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO SOB A PERSPECTIVA DA ISONOMIA ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL

BRAZILIAN PROGRAMS OF TAX COMPLIANCE FROM THE PERSPECTIVE OF EQUALITY AS A FUNDAMENTAL RIGHT


Jorge Eduardo de Souza Martinho


Doutorando em Direito Tributário pela PUC Minas. Master of Business Administration em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas Rio de Janeiro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário IBDT e do Instituto de Estudos Fiscais IEFi. Professor e Advogado em Manaus-AM. E- mail: jorge@martinhoenunes.com.br


Recebido em: 18-05-2020

Aprovado em: 26-10-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-46-10



RESUMO


Este artigo trata da contextualização dos direitos fundamentais e da mudança de paradigma sobre a interpretação das limitações ao poder de tributar dispostas na Constituição, que passam a ser entendidas também como direitos fundamentais do contribuinte em face do Estado fiscal. Aborda-se, a partir deste embasamento teórico, a necessidade de transparência, confiança e diálogo na relação Fisco-contribuintes no Brasil, especialmente com os atuais programas de compliance tributário instituídos pela Receita Federal e pelo Estado de São Paulo, sob o prisma da isonomia tributária, enquanto direito fundamental do contribuinte.

PALAVRAS-CHAVE: COMPLIANCE TRIBUTÁRIO, ISONOMIA TRIBUTÁRIA, DIREITOS FUNDAMENTAIS.

ABSTRACT


This research adresses the contextualization of fundamental rights and the paradigm shift about the interpretation of the limitations on power to tax provided in the Constitution, which are now also understood as taxpayer’s fundamental rights against the fiscal State. Based on this theoretical basis, the need for transparency, trust and dialogue in the tax administration-taxpayer relationship in Brazil is approached,


especially with the current tax compliance programs instituted by the Brazilian Federal Revenue Office and

the State of São Paulo, focused in tax equality as a taxpayer’s fundamental right.


KEYWORDS: TAX COMPLIANCE, TAX EQUALITY, FUNDAMENTAL RIGHTS


INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais derivam dos direitos humanos e são reconhecidos como aqueles provenientes diretamente da condição de ser humano. São normalmente organizados nas constituições de cada país, não só para que tenham sua formalidade preservada, mas principalmente para que sejam garantidos como efetivos direitos. São essenciais para a manutenção da dignidade da pessoa humana, de onde se extrai que, para alguns, são eles os mesmos direitos da personalidade, manifestando-se inicialmente na esfera privada do indivíduo, mas também atuando na limitação da autoridade do poder público sobre este.


No que tange ao Direito Tributário, há uma intensa e recíproca relação entre as normas tributárias e os direitos fundamentais, já que, como será melhor abordado, a partir das normas tributárias o Estado garante a efetivação dos direitos fundamentais, e, ciclicamente, estes representam os próprios limites da tributação. Expressamente, a Constituição de 1988 traz seção específica referente às limitações ao poder de tributar, tratando de princípios e imunidades que protegem a pessoa do contribuinte contra o poder exacional do Estado. Dentre estas limitações, interessa a este escrito, precipuamente, a isonomia tributária, em sua acepção de direito fundamental que é.


Por outra via, diante da animosidade costumeiramente verificada na relação Fisco- contribuinte, há uma tendência atualmente verificada em alguns Estados de realizar, através de suas administrações fazendárias, um acompanhamento da arrecadação de forma mais responsiva, buscando o diálogo e a cooperação, para que o contribuinte se adeque às normas tributárias, firmando um elo de compliance cooperativo eficaz. Neste sentido são os programas brasileiros de conformidade “Pró-conformidade”, formatado pela Receita Federal – mas, até o momento de conclusão deste artigo, ainda sequer positivado –

, e “Nos Conformes”, pelo Estado de São Paulo, os quais, mesmo diante de robustas críticas, significam passos mais consistentes da administração tributária brasileira rumo a um ambiente mais amistoso e de cooperação na relação entre Fisco e contribuintes.


Neste cenário, considerando uma classificação dos contribuintes quanto ao nível de adimplência de obrigações tributárias, proposta por ambos os programas, que sugere uma divisão entre “bons pagadores” e “maus pagadores”, é preciso perquirir se tal distinção atende aos anseios das desequiparações juridicamente permitidas pelo arcabouço conceitual inerente ao princípio da isonomia tributária, ou se configura mero tratamento


desigual, sem qualquer fundamento constitucional para distinção, abordagem a que se propõe o presente trabalho.


Este artigo limitar-se-á a tratar da isonomia tributária especificamente em relação estes dois programas, do Estado de São Paulo, cuja aplicação já ocorre, produzindo resultados concretos; e da Receita Federal, até o momento apenas delineado por uma Portaria Ministerial submetida à consulta pública, sem ter entrado em vigor.


  1. DOS DIREITOS HUMANOS AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

    Para se compreender a importância e a extensão dos direitos fundamentais é preciso, antes, ser feita uma digressão sobre sua origem até sua concretização como direitos positivados no ordenamento jurídico brasileiro e, assim, protegidos diretamente pela letra da lei. Neste caminho, há quem afirme haver intensa confusão terminológica, sendo conferida apenas denominação diversa à mesma gama de direitos advindos diretamente e tão somente da condição de ser humano, como afirmam Brandão e Gauer1. Porém, os mesmos autores aduzem que, diante da consagração através de inúmeros instrumentos normativos internacionais, o termo “direitos humanos” foi preferido em relação a outras denominações.


    Os direitos fundamentais, então, derivam dos direitos humanos, estes, entendidos como o feixe de direitos universais do indivíduo, adquiridos por si, dado seu simples pertencimento ao gênero humano2. São direitos vinculados à política, à moral e ao próprio direito, pois que se originam nos atributos da vontade, da consciência, da liberdade, peculiares ao gênero humano. São inerentes à natureza humana, pelo fato de pertencer ao mundo, independentemente de sua origem, posição ou casta.


    Esses direitos, por emanarem naturalmente da condição de ser pessoa humana, demandam que as constituições dos estados organizados não só lhes tragam comandos de proteção, mas os promovam de fato. No Brasil, na medida em que os direitos humanos adentram à atmosfera constitucional, seja através do processo constituinte originário ou do reconhecimento pelas Casas do Congresso Nacional – nos termos do art. 5º, § 3º, da CF/1888

    –, passam a ter o status de fundamentais, seja porque estão na carta político-jurídica

    fundamental brasileira, seja porque são a base de estruturação do Estado, e assim, critério fundamental de justiça, relacionando-se à expressão política da dignidade humana.


    Assim, tem-se que a aderência e o reconhecimento dos direitos humanos como sendo fundamentais pelas Cartas Constitucionais estão atrelados ao processo histórico e cultural de cada Estado, razão pela qual tais direitos apresentam-se, sobretudo, como horizonte de legitimidade de todo um sistema de justiça – inclusive a tributária. Adentrando ao


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    1 BRANDÃO, Cláudio; e GAUER, Ruth Maria Chittó. Notas críticas ao nascimento conceitual dos direitos humanos. Revista Brasileir a de Estudos Políticos n. 110. Belo Horizonte, jan./jun. 2015, p. 123-147, p. 124/125.


    2 Ibid., p. 129.


    regramento brasileiro dos direitos fundamentais, é possível vislumbrar uma íntima relação entre estes e os direitos da personalidade. Os direitos fundamentais são essenciais para a manutenção da dignidade da pessoa humana. O termo “direitos fundamentais” é gênero, que engloba vários outros termos de mesmo significado, dentre eles, o termo “direitos da personalidade”3.


    Com o desenvolvimento do constitucionalismo, no século XX, verifica-se a postulação nas Constituições de matérias originalmente adstritas ao que outrora se entendia por Direito Privado, nesta esfera particularizadas as regras relativas aos direitos da personalidade. Assim é, que o art. 1º da Constituição de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (inciso III).


    No contexto do pós-positivismo, marcado pela hermenêutica constitucional e em conexão com as ideias de Jürgen Habermas, é chegada uma nova fase no mundo jurídico, com a devolução aos juristas da tarefa de interpretação das normas, dando início ao “processo de soltura das amarras positivistas”4. Neste processo, prevalece o entendimento de que as regras constitucionais devem ser efetivadas, concretizadas no mundo fenomênico, não servindo apenas como normas de referência, cujo objetivo seria somente o de orientar a aplicação das leis infraconstitucionais, lente através da qual deveriam ser apreciados os direitos fundamentais.


    Após a II Guerra Mundial, ganha força a afirmação de que o Estado não pode ser mais importante que o indivíduo, e os direitos fundamentais passam a ter vital importância no ordenamento jurídico de cada país. Nesta conjuntura, o objetivo da Constituição deixa de ser apenas estabelecer a unidade política de um Estado de Direito, passando a “colmatar a ordem jurídica de uma comunidade estatal por meio do estabelecimento de direitos fundamentais que moldam um sistema normativo valorativo, passando a ter irradiação no Direito Civil, em face de cláusulas gerais”5. Inafastável, assim, a conclusão de que a Constituição estabelece a proteção à pessoa humana através de direitos fundamentais, inerentes a sua personalidade, limitando, inclusive, a autoridade do poder público sobre o indivíduo.


    Conforme Canotilho6, muitos direitos fundamentais são também direitos da personalidade, mas a recíproca não é verdadeira, vez que os últimos abrangem de forma mais específica direitos inerentes ao exercício pleno dos atos da vida civil, e sua respectiva


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    1. COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida et al. Direito tributário e direitos fundamentais: um estudo acerca dos princípios tributários voltados para a proteção da dignidade da pessoa humana. Revista Tributária e de Finanças Públicas n. 138, jan. 2018, p. 225-238, p. 227.


    2. REIS, Jorge Renato dos; e DIAS, Felipe da Veiga. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) vol. 4 (1), 2012, p. 65-80, p. 69.


    3. ANDRADE, Fábio Siebeneichler. A tutela dos direitos da personalidade no direito brasileiro em perspectiva atual. Revista Derecho del Estado n. 30. Bogotá, jan./jun. 2013, p. 09, nota 12.


    4. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., 5. reimpressão. Coimbra: Almedina, 2003, p. 396.


      proteção, como atos de personalidade civil. Porém, o autor também pontua que, com o passar do tempo e a evolução do constitucionalismo, mais direitos da personalidade tendem a ser direitos fundamentais.


      Considerando-se, então, os direitos da personalidade como direitos fundamentais positivados na própria Constituição de 1988, é possível constatar que existe uma proteção generalista à personalidade do indivíduo construída a partir da cláusula geral da dignidade da pessoa humana, assim disposta constitucionalmente. Mas não somente isso. A cláusula geral da dignidade da pessoa humana gera efeitos diretamente no direito privado, fazendo prevalecer uma situação subjetiva existencial sobre uma situação jurídica patrimonial7.


      Pode-se dizer, então, que a cláusula geral da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF) é o elo entre os direitos fundamentais dispostos na Constituição da República para proteção do indivíduo em relação ao poder estatal, com os direitos da personalidade, positivados ou não nas legislações de direito privado, que protegem as relações individuais entre particulares. Para este artigo, serão encarados, então, como direitos fundamentais todos aqueles que se referem à proteção do indivíduo e de suas características subjetivas, não importando em face de quem esta proteção é oposta, desde que sirva como garantia da manutenção daquelas características em sua máxima essência, como regras gerais e suficientes para amparo e concretização do mínimo existencial.


      A ideia de proteção geral do ser humano, em quaisquer relações que participe, advém do seu conceito de pessoa, indivíduo com personalidade jurídica e aptidão para a titularidade de direitos e deveres. Conforme Mesquita e Ribeiro, o termo “pessoa”, com o advento do cristianismo, passou a ser dotado de conteúdo metafísico, afastando-se da distinção entre cidadão e escravo comum nas eras anteriores. O conceito de pessoa é, então, “ligado, por semelhança, a Deus, ou seja, o Homem é imagem de Deus porque é pessoa, como Deus é pessoa, sendo o Homem uma maneira finita de ser Deus”8.


      O estudo do conceito de pessoa perpassa ainda pela estrutura do personalismo, que evidencia a necessidade humana de firmar relações interpessoais, das quais se originam as relações sociais. O indivíduo, então, assim o é, enquanto se integra e interage com outros indivíduos em sociedade, e, portanto, deve ser protegido de eventuais afrontas em razão desta integração e interação. Neste âmbito, os direitos fundamentais, sob a vertente dos direitos da personalidade exercem a defesa das características do indivíduo em sua relação com outros indivíduos.


    5. ANDRADE, op. cit., p. 03.


    6. MESQUITA, Caroline Christine; e RIBEIRO, Daniela Menengoti. Direitos da personalidade, uma questão de dignidade sob a égide da justiça. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais vol. 1. Dez. 2015, p. 187-202, p. 189.


      Se a proteção daqueles direitos encontra campo fértil na relação entre indivíduos, porque o Estado se relaciona com estes, também deve ser estendida a proteção aos direitos individuais nestas relações. Em verdade, os direitos da personalidade, enquanto fundamentais que são, contribuem para a manutenção de uma relação harmônica e pacífica entre os interesses do Estado e dos indivíduos. É nesse passo que deve seguir o estudo das relações havidas entre o poder público tributante e os contribuintes, o que se passa a expor na próxima seção.


  2. AS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR ENQUANTO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONTRIBUINTE

    A Constituição da República de 1988 dispõe em seu texto inúmeras garantias individuais genéricas e abstratas. Porém, especificamente em relação ao Direito Tributário, traz previsão expressa de garantias vinculadas diretamente ao poder estatal de tributar. Tais garantias são disciplinadas expressamente na Seção II, Capítulo I do Título VI, Da Tributação e do Orçamento, sob o nome “Das Limitações ao Poder de tributar”. De forma manifesta, então, as limitações ao poder de tributar compreenderiam os princípios específicos de Direito Tributário, dispostos ao longo do art. 150 e as imunidades tributárias, inseridas no inciso VI do mesmo artigo.


    Há, no entanto, uma mínima discussão sobre a localização geográfica das limitações ao poder de tributar na Constituição. Conforme uma abordagem ampla, as limitações ao poder de tributar são entendidas como todas as normas, previstas no decorrer do texto constitucional e não somente na Seção II, acima indicada, ou mesmo na legislação infraconstitucional, que preveja qualquer forma de limite à atuação estatal no ensejo de instituir ou cobrar tributos. Já em uma abordagem restrita, são compreendidas como limites ao poder de tributar apenas as vedações disciplinadas nos arts. 150 a 152 da Constituição, abarcados justamente pela Seção II aludida9. Contundo, tal discussão nada acrescenta ao tema do presente trabalho, motivo pelo qual a mesma não será aprofundada.


    Interessante para este artigo, pois, é tratar das limitações ao poder de tributar meio ao estudo dos direitos fundamentais, mote a que se propõe. Inafastável a função do Direito Tributário de proteção de direitos fundamentais, isto porque, através da atividade arrecadatória, o Estado passa a ter a possibilidade de garantir necessidades básicas do indivíduo.


    Na visão de Correia Neto10, as normas tributárias podem se relacionar com os direitos fundamentais de formas diferentes. Em um primeiro momento, deve ser considerado que


    1. GODOI, Marciano Seabra de. Curso de direito financeiro e tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 263/264.


    2. CORREIA NETO, Celso de Barros. Os tributos e os direitos fundamentais. Revista de estudos e pesquisas avançadas do terceiro setor vol. 03, n. 02, jul./dez. 2016.


      a arrecadação tributária é fonte para financiamento das políticas públicas para efetivação de direitos fundamentais, especialmente no que tange à saúde, educação, direitos sociais, etc.; ainda, os direitos fundamentais configuram objetivos continuamente buscados pelo poder público por meio da própria legislação tributária, sobretudo através do fenômeno da extrafiscalidade; e, por último, porém não menos importante, os direitos fundamentais representam os próprios limites da tributação.


      No humilde entendimento aqui exposto, melhor seria estabelecer a relação, não entre os direitos fundamentais e as normas tributárias, vez que estas representam questões muito mais abrangentes do que exclusivamente a possibilidade de arrecadação pelo Estado (como critérios de apuração e poderes de investigação da autoridade administrativa, entre outros), mas entre aqueles e a própria tributação, esta enquanto ato do poder público de arrecadar recursos para financiar suas atividades, cuja incidência recai sobre um dos signos de riqueza (patrimônio, renda, consumo, transações financeiras e as combinações entre cada um deles), conforme conceituação compilada por João Victor Guedes Santos11.


      Por esta perspectiva, é possível compreender, então, que a relação entre os direitos fundamentais e a tributação é cíclica: os direitos fundamentais são, ao mesmo tempo, causa e finalidade da tributação, cuja existência se dá para os direitos fundamentais e por estes. Explica-se. A tributação tem sua gênese na necessidade de o Estado arrecadar recursos para prover direitos e garantias individuais. Ao mesmo tempo, a arrecadação proveniente da tributação é (deve ser) investida exclusivamente em ações que visam à concretização de políticas públicas capazes de conferir aos administrados as garantias necessárias para o desenvolvimento dos atos da vida comum, representados e protegidos pelos direitos fundamentais.


      Tomando esta concepção como ponto de partida, é possível vislumbrar uma certa alteração de enfoque: a comum expressão “limitações ao poder de tributar”, disposta expressamente na Constituição e já mencionada acima, começa a ser trabalhada como “direitos fundamentais dos contribuintes”, expressão cujo uso vem sendo cada vez mais frequente12. Esta mudança de aspecto traz alteração na interpretação do tema, pois, enquanto direitos fundamentais dos contribuintes, as limitações ao poder de tributar são alçadas ao patamar de direitos humanos positivados, significando mais luz sobre o contribuinte, e sobre o seu direito de não ser oprimido pelo Estado, quando do exercício por este do seu poder de tributar. Em última análise, é a proteção da pessoa contra eventual abuso de poder do Estado, máxima que revela a principal característica dos direitos fundamentais.



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    3. SANTOS, João Victor Guedes. Teoria da tributação e tributação da renda nos mercados financeiro e de capitais: entre a equidade e a eficiência, entre a capacidade contributiva e a indução. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011, p. 52.


    4. Por todos, Cf. COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida et al., op. cit., passim.


      É certo que as limitações ao poder de tributar estão dispostas na Constituição como comandos proibitivos, direcionados ao Estado, impossibilitando-o de que pratique determinados atos relativos à tributação. É o caso, por exemplo, do caput do art. 150, que expressamente veda inúmeros comportamentos estatais, tais como exigir tributo sem lei anterior que o crie (inc. I); cobrar tributos relativos a fatos geradores anteriores à sua instituição (inc. III, alínea “a”); utilizar tributo com efeito de confisco (inc. IV), etc. Deles, portanto, é possível extrair verdadeiras garantias constitucionais aos indivíduos quanto ao poder arrecadatório do Estado.


      A questão se resume ao referencial de estudo. Dispostas como estão as regras constitucionais sobre o tema, somente poderiam tratar, de fato, de comandos proibitivos direcionados ao Estado, já que são limitações a um poder de exigir tributo, que é estatal por excelência. Porém, todos os comandos contidos nos respectivos dispositivos constitucionais são, em verdade, direitos e garantias concedidos ao indivíduo, quando este passa a ser o enfoque da interpretação. Como exemplo, quando a Constituição estabelece a impossibilidade de determinado tributo abranger fatos geradores ocorridos antes da vigência da lei que o instituiu ou majorou (art. 150, III, “a”), está, ao mesmo tempo, conferindo ao indivíduo a segurança jurídica necessária mediante a impossibilidade de ser este surpreendido pela tributação de seus atos, praticados quando nem sequer existia o tributo e, portanto, quando não poderia mensurar seu impacto financeiro no orçamento pessoal.


      Da mesma forma, quando a Constituição determina a preexistência de lei para que o Estado possa fazer incidir tributo (art. 150, I), está, simultaneamente, garantindo ao indivíduo que este jamais será obrigado a fazer algo que não esteja determinado em lei, exatamente o que dispõe o inc. II do art. 5º da CF, dispositivo em cujo âmbito geográfico está relacionada grande parte dos direitos fundamentais no ordenamento pátrio. Como dito, a questão está intrinsecamente ligada à segurança jurídica, amparada que é pela certeza de que a eficácia dos fatos jurídicos é apenas aquela conferida pela norma vigente à época de sua ocorrência, e pela previsibilidade dos eventos que ainda venham a ocorrer.


      Assim, não somente é plausível como é intuitiva a conclusão de que as limitações ao poder de tributar homenageiam direitos fundamentais do indivíduo na relação entre Fisco e contribuintes. Dentre estes direitos fundamentais, pois, encontra-se a isonomia tributária, disposta expressamente no inciso II do art. 150 da Constituição da República, que se passa a estudar com maior afinco a partir deste momento.


  3. A ISONOMIA SUBSTANCIAL NO DIREITO TRIBUTÁRIO

    Segundo a notória concepção aristotélica, várias vezes repetida na tentativa de conceituação do princípio da isonomia, a igualdade consistiria em confiar tratamento igual àqueles que se encontram em situações idênticas, e desigual, àqueles em situações diversas,


    na medida destas desigualdades13. Diante desta afirmação, contudo, surge uma nítida e simples questão: quais critérios servem para diferenciar aqueles que serão objeto de tratamento desigual, sem que tal tratamento configure afronta ao princípio da isonomia? Ou, em outras palavras, quais seriam justos critérios de diferenciação?


    Concebe-se a isonomia genérica como um direito humano de primeira geração, tendo como titular o homem, enquanto indivíduo humano, detentor de direitos passíveis de oposição inclusive contra o Estado14. Os direitos humanos de primeira geração podem ser classificados pela palavra-chave liberdade, são aqueles que preservam a liberdade de agir do indivíduo, entabulada apenas pela lei. A Constituição previu, ainda, que além da isonomia genérica, disciplinada no caput do art. 5º, a igualdade é princípio norteador expresso do Direito Tributário (art. 150, II), tratando-o como direito fundamental não apenas do indivíduo geral e abstrato, mas do indivíduo sujeito passivo de obrigações tributárias, do “homem-contribuinte”.


    Para autores como José Souto Maior Borges15, o princípio da isonomia é fundamento da ordem constitucional estabelecida em 1988, daí a importância deste instituto no âmbito constitucional, sem equiparação a qualquer outro princípio ou norma. Paulo de Barros Carvalho16 afirma serem, a isonomia tributária juntamente com a segurança jurídica, “sobreprincípios”, para cuja existência todos os demais princípios tributários cooperam, inclusive, eles próprios reciprocamente, ou seja, os princípios da igualdade e da segurança jurídica servem, entre si, de fundamento para sua realização reciprocamente.


    Em Casalta Nabais17 justifica-se a ideia de que a isonomia não é princípio a ser lembrado apenas pelo intérprete da lei, afastando-se dele o legislador no ato de produção das normas, como pensavam os positivistas. Segundo o autor, em uma concepção mais atual do princípio deve-se considerar a necessidade de sua observância principalmente quando da produção das leis, com vistas a não ocorrerem discriminações arbitrárias, sem fundamentação material, e a atingir os objetivos constitucionais de igualdade, tratando de forma igual o que é constitucionalmente igualável e de forma diferente o que é constitucionalmente diverso.


    Note-se que, como em todos os demais casos, o legislador deverá estar sempre vinculado às bases constitucionais. Esta vinculação corresponde a dois deveres: o de não tratar


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    1. COUTINHO, João Hélio de Farias Moraes. O princípio da isonomia no contexto do direito tributário. Dissertação (Mestrado em Direito)

      – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2001, p. 53.


    2. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, 1992, passim.


    3. BORGES, José Souto Maior. Princípio da isonomia e sua significação na Constituição de 1988. Revista de Direito Público n. 93, ano 23. São Paulo, 1990, p. 34-40.


    4. CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da anterioridade em matéria tributária. Revista de Direito Tributário n. 63. São Paulo: Malheiros, 1994.


    5. NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998.


      diversamente situações que não tenham justificativa material (substancial) para a diferenciação, e o de não fazer distinções que não sejam constitucionalmente embasadas. A justificativa constitucional para qualquer distinção partiria de um grau de satisfação de necessidades primárias de cada indivíduo, como alimentação, vestuário, habitação, saúde, segurança, educação etc. Neste sentido, o próprio art. 5º da Constituição amplia consideravelmente o direito à isonomia, quando guarda a expressão “sem distinção de qualquer natureza”, não permitindo que o legislador se afaste deste preceito quando da produção de normas jurídicas.


      Fincada a importância do princípio da isonomia para a sociedade, necessário retornar ao seu conceito, na tentativa de esclarecimento do questionamento anteriormente formulado. É preciso apreciar, então, quais descriminações seriam constitucionalmente toleradas e quais não, para que somente assim se obtenha uma aplicação genuína do princípio em trato, pois, do contrário, e conforme o § 1º do art. 5º, os direitos e garantias fundamentais são de aplicação imediata e independem de qualquer integração legislativa, do que se extrai que “o princípio da isonomia deverá ser invocado sempre que se institua uma desequiparação constitucionalmente interdita entre iguais situações de fato”18.


      A partir do conceito dado ao princípio da isonomia tributária por Humberto Ávila19, que informa ser a igualdade a relação entre sujeitos (dois ou mais) “em razão de um critério que serve a uma finalidade”, vislumbra-se claramente dois objetivos a serem atingidos para a configuração de qualquer desequiparação fundada. Seriam eles um critério ou embasamento constitucional para a diversidade no tratamento; e o direcionamento deste fundamento a uma determinada finalidade também constitucional. O autor afirma que o princípio da isonomia apenas toma formato quando da aferição de uma situação factível, em que se prolata um “julgamento de igualdade”.


      Desta forma, uma situação de igualdade ou desigualdade somente assim poderia ser concebida a partir da análise de uma situação concreta, em que seriam apreciados vários aspectos que compõem o “julgamento de igualdade” proposto pelo autor. A partir de tal julgamento se poderia delimitar quem seriam os “iguais” e quem seriam os “desiguais”, bem como a medida destas desigualdades e, principalmente, o motivo da distinção. Isso porque o juízo de igualdade pressupõe sempre uma ideia de comparação, que deve ser realizada em razão de um critério, denominado pelo autor como “medida de comparação”. Conforme o conceito dado pelo professor, esta “medida de comparação” seria informada por um elemento indicativo, um critério material escolhido para comparação, e pela finalidade da comparação, o objetivo que se busca atingir a partir da comparação entre sujeitos.



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    6. COUTINHO, João Hélio de Farias Moraes, op. cit., p. 61.


    7. ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 40.


      Como visto, estes comandos devem também ser dirigidos ao legislador, quando do momento de formalização dos diplomas legais. Não é a lei que vai definir se uma ou outra situação é ou não isonômica, mas a sua aplicação que deverá sempre homenagear a igualdade. Uma hipótese legal genérica não confere igualdade a uma determinada situação fática justamente por ser genérica e, portanto, não ter o poder de conferir as distinções necessárias para um julgamento de igualdade. As normas jurídicas genéricas e abstratas garantem apenas o mínimo de igualdade formal, mas não têm o condão de alcançar a igualdade substancial, almejada pelo princípio da isonomia.


      Neste passo, tanto no momento de produção de normas, quanto no de sua interpretação, deve ser apurada a desigualdade que apenas facultaria uma diferenciação de tratamento, daquela que a exigiria, desde que estas diferenciações estejam embasadas em fundamentos constitucionais. Identificada a diferenciação de tratamento que não implica uma desigualdade constitucionalmente fundamentada, ou seja, que significa mera desigualdade, não abarcada pela isonomia, e até mesmo contrária a esta, deve ser afastada do ordenamento. A questão, então, se resume em conhecer quais os critérios que admitem a instituição de um tratamento desigual, não contrário ao princípio da isonomia, e que, portanto, são hábeis a alcançar a igualdade material20.


      Diante do exposto, resta questionar se a diferenciação de tratamento entre contribuintes, utilizando como “medida de comparação” o fato do adimplemento ou não de obrigações tributárias, e como “elemento indicativo” desta medida, o cumprimento, enquanto prestação positiva, destas obrigações, tendo como finalidade a aplicação de tratamento mais benéfico, ou mais rigoroso, seria critério apto a ensejar a igualdade material entre contribuintes, o que se passa a demonstrar na seção abaixo.


  4. OS PROGRAMAS BRASILEIROS DE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO

    1. Contextualização do tema


      A relação jurídica tributária é consubstanciada pelo vínculo jurídico que une a administração fiscal e o contribuinte em torno de uma hipótese legal complexa, conhecida como hipótese de incidência, permeada de critérios necessários para sua concretização no mundo fenomênico. Assim, a lei de instituição do tributo deve elencar todos os elementos necessários para a efetivação do ato de tributar pela administração fiscal de forma clara e inteligível, visando, como fim maior, a viabilidade de cumprimento pelo contribuinte, enquanto outro polo daquela relação.


      Em que pese tratar-se de uma relação complexa por suas várias nuances, sintetizadas por Paulo de Barros Carvalho na regra matriz de incidência tributária, a relação jurídica tributária deveria ser algo trivial, cuja ocorrência se daria através de um liame lógico-legal,

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      1. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 37. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 281.


        decorrente da simples realização do fato gerador de determinado tributo ou do exercício de atividade da qual se exija o cumprimento de deveres instrumentais.


        Esta simplicidade não é verificável, no entanto. Isto porque a atividade legislativa tributária oferece certo grau de complexidade à compreensão das obrigações tributárias, sejam elas principais ou “acessórias”, o que dificulta sobejamente o seu cumprimento pelos contribuintes e, inclusive o seu manuseio pela própria autoridade administrativa, tornando quase inatingível o sucesso da relação jurídica tributária, enquanto relação harmoniosa.


        Reconhecidamente, o Brasil possui uma das maiores cargas tributárias da América Latina21 e uma das mais complexas do mundo22, causa de uma sensível dificuldade dos contribuintes em se adequarem às relações jurídicas tributárias das quais participam, e resultado da rigidez extrema com que a administração fiscal atua na cobrança do cumprimento das obrigações correspondentes.


        Com vistas à modificação dos parâmetros já conformados desta relação, buscando espaço para a incidência de transparência, da cooperação e da troca de informações, algumas nações pelo mundo vêm criando protocolos para a viabilização de subsídios acerca de operações fiscais e financeiras, como relata Carlos Otávio Ferreira de Almeida23, quando trata das medidas adotadas pelo CAA Competent Authority Agreement, um acordo entre autoridades administrativas de diversos países que estabeleceu um padrão comum para o intercâmbio de informações, denominado CRS Common Reporting Standart.


        A exemplo das estruturas mencionadas acima, acordos previstos em tratados internacionais fazem com que os sistemas tributários internos de cada Estado devam se adequar e oferecer novas interpretações sobre o alcance de institutos protetivos como contraditório e sigilo de dados. Diante disto, alguns autores entendem que o ambiente hostil, protagonizado pelo embate entre contribuintes e administração fiscal, conduz à falência dos sistemas tributários tradicionais, baseados exclusivamente na atuação repressiva do Estado. Exemplo disto seria o próprio Sistema Tributário Nacional, cujo equilíbrio já foi abandonado há muito, segundo Sergio André Rocha24, por seu “congelamento constitucional” e pelos problemas disto decorrentes.



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      2. A carga tributária brasileira oscila em torno de 32% do seu Produto Interno Bruto (PIB), enquanto de outros países da América Latina esta média cai para cerca de 22%, conforme pesquisa realizada pelo site Politize, em junho de 2017. Disponível em: http://www.politize.com.br/carga-tributaria-brasileira-e-alta/. Acesso em: 11 dez. 2017.


      3. O Brasil é um dos países com a maior quantidade de impostos e taxas do mundo, segundo pesquisa realizada pelo jornal O Globo, em setembro de 2015. Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/de-30-nacoes-brasil-oferece-menor-retorno-dos-impostos-ao- cidadao-17555653. Acesso em: 11 dez. 2017.


      4. ALMEIDA, Carlos Otávio Ferreira de. Compliance cooperativo: uma nova realidade entre administração tributária e contribuintes. Revista Direito Tributário Internacional Atual n. 02. São Paulo: IBDT, 2017, p. 58-82, p. 59/60.


      5. ROCHA, Sergio André. Reconstruindo a confiança na relação Fisco-contribuinte. Revista Direito Tributário Atual vol. 39. São Paulo: IBDT, 2018, p. 507-527, p. 507/508.


        Segundo o Autor, as regras constitucionais que dizem respeito à limitação do poder de tributar, à divisão de competências e à repartição de receitas, tornam o sistema tributário brasileiro fechado e, portanto, fadado ao fracasso pelo desvirtuamento das espécies tributárias; pela grande e negativa variação de contribuições; pela desvinculação de receitas; pela cobrança de pagamento de quem não tem capacidade contributiva; pela ineficiência de um processo tributário ultrapassado (administrativo e judicial) etc.


        O fato de o Sistema Tributário Nacional, hoje, apresentar uma estrutura infraconstitucional intrincada e de extrema complexidade cumulado a uma atitude repressiva do Fisco são o núcleo-base da exigência de modificação dos pilares em que se firma a relação Fisco-contribuinte, alterando-se, através da transparência e da troca de informações, para uma relação responsiva e cooperativa com foco na busca pela adequação por parte tanto dos contribuintes, quanto da administração fiscal, ambos, polos da relação jurídica tributária.


        O contexto desgastado vivenciado por Fisco e contribuintes na perpetuada e extremada relação bipolar em que se encontram, demonstra, por parte dos últimos, o baixo índice de confiança nas instituições estatais e a insistente busca de se desviar da tributação. Por outro lado, o Estado fiscal atua de forma repressiva sobre o contribuinte, gastando vultosas quantias em fiscalização, por entender que este está sempre destinado a burlar a legislação. Para o Fisco, em uma relação maniqueísta pregada pela sociedade brasileira atual, onde apenas se classificam os seres em virtuosos e corruptos, a estes o contribuinte seria afeto.

        É neste cenário que se verifica o tema do compliance tributário, que pressupõe ações cooperativas conjuntas entre Fisco e contribuintes para o alcance da conformidade tributária geral, tanto em relação às obrigações principais, quanto aos deveres instrumentais.

        Os primeiros esforços quanto ao compliance cooperativo no Brasil já se podem notar. A Receita Federal do Brasil – RFB lançou o programa OEA – Operador Econômico Autorizado (IN n. 1.598/2015) que certifica o interveniente em operações de comércio exterior (importador, exportador, transportador etc.) que voluntariamente aderir aos critérios propostos pelo Fisco e atender os níveis de conformidade e confiabilidade exigidos pelo programa. Com esta certificação, os procedimentos aduaneiros passam a ser simplificados internamente e no exterior, através de benefícios concedidos pela Instrução Normativa, entre eles, a concessão de um ponto de contato junto a RFB para esclarecimento de dúvidas quanto aos procedimentos aduaneiros, o que prestigia a informação do contribuinte e consequentemente a maior confiança deste no sistema.

        A Receita Federal vem implementando o compliance cooperativo também em outras áreas. Pelo programa Acompanhamento de Maiores Contribuintes (AMC), instituído pela Portaria n. 641/2015, auditores fiscais realizam reuniões presenciais com grandes


        contribuintes – aqueles que possuem significativa participação na arrecadação total de tributos – para informar eventuais situações de não conformidade e orientar como realizar a devida adequação, sendo concedido prazo para a implementação das correções necessárias. Nestes casos, a ação repressiva do Fisco somente ocorrerá diante da recusa do contribuinte em promover sua conformidade fiscal. Apenas com o monitoramento dos maiores contribuintes, a Receita Federal obteve um resultado de R$ 27,52 bilhões em 201825.


        Contudo, é com programas mais expressivos e genéricos, ativamente em busca de uma relação cooperativa amplamente integrada, que o Brasil dá passos mais consistentes em direção ao compliance tributário, o que é representado pelos programas “Pró- conformidade”, formatado pela Receita Federal, porém, ainda não posto em vigor, e “Nos Conformes”, aplicado pelo Estado de São Paulo, que já começa a produzir resultados concretos. É sobre a análise destes dois programas e sua compatibilidade com a isonomia tributária que este artigo passa a se debruçar.


    2. Os programas “Pró-conformidade” e “Nos Conformes” e a isonomia tributária


Em 15 de outubro de 2018, a Receita Federal divulgou a Consulta Pública n. 04/2018, que apresentou o programa de estímulo à conformidade tributária denominado “Pró- conformidade”. O objetivo do programa, segundo a própria Consulta Pública, seria o de promover boas práticas com o fim de evitar desvios de conduta e fazer cumprir a legislação26. A Consulta Pública propiciou que a população formulasse propostas à portaria que instituiria o programa de estímulo à conformidade tributária no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil, virtualmente, através do preenchimento de um formulário disponível no próprio site da Receita Federal, a ser enviado por e-mail até 31 de outubro de 2018. Repise-se que o aludido programa de conformidade não foi implantado até o momento de conclusão deste artigo, não havendo qualquer notícia de prosseguimento do procedimento pelo site da RFB.


Contudo, mesmo sem concretização do programa, a portaria submetida à Consulta Pública já foi objeto de discussões quanto ao efetivo alcance do compliance cooperativo. Em que pese a tentativa do Fisco federal de inserir-se no contexto mundial de mudança do paradigma de relacionamento com os contribuintes, severas críticas vêm sendo feitas ao Pró-conformidade. A primeira delas se refere ao ato de instituição do programa. Consoante a Consulta Pública n. 04/2018, o programa será instituído através de Portaria (Anexo I), ato normativo aparentemente inadequado para dispor sobre deveres dos contribuintes e estabelecer medidas punitivas à conduta destes. A aprovação de programas de


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  1. BRASIL. Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – ANFIP. Disponível em: https://www.anfip.org.br/artigo-clipping-e-imprensa/receita-federal-recuperou-mais-de-r-186-bilhoes-em-2018. Acesso em: 15 jan. 2020.


  2. BRASIL. Receita Federal do Brasil. Exposição de Motivos da Consulta Pública n. 4/2018. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2018/outubro/receita-federal-abre-consultapublica-sobre-a-instituicao-de-programa- de-estimulo-a-conformidade-tributaria-proconformidade. Acesso em: 19 mar. 2019.


    conformidade tributária nacionais, por implementar punições aos contribuintes, deveria ocorrer mediante edição de lei federal, e não de ato discricionário da administração, que afasta a participação popular por intermédio dos seus representantes eleitos27. Apesar de ter havido uma consulta pública, a RFB sequer divulgou os seus resultados, o que evidencia que não há de fato uma participação popular na formação do programa.


    Considerando-se a instauração do programa através de portaria, instrumento confeccionado unilateralmente pela administração, e, portanto, de fácil alteração, nenhuma garantia é dada aos “bons contribuintes”, aqueles que representam menor risco à RFB, de que estes benefícios irão ser aplicados, ou por quanto tempo o serão. Ao contrário, para os entendidos como “maus contribuintes”, isto é, os devedores contumazes, a portaria determina a aplicação do “rigor da lei”28, isto é, um recrudescimento das punições já determinadas na legislação tributária e conhecidas pelos contribuintes brasileiros, insatisfeitos com o atual sistema.


    A portaria submetida à consulta pública prevê, em seu art. 3º, as medidas a serem adotadas para a concretização do programa. Entre elas, a classificação dos contribuintes, com o objetivo de distinguir o tratamento a ser aos mesmos dispensado, segundo o grau de conformidade. No art. 4º, a portaria disciplina os supostos critérios para a classificação dos contribuintes, com base no cumprimento das obrigações de registrar e manter sua situação cadastral compatível com as atividades; apresentar as declarações e as escriturações com integridade e veracidade nas informações prestadas, além de entregá-las tempestivamente; e pagar integral e tempestivamente os tributos devidos. Quanto a estes critérios, os contribuintes serão classificados nas categorias “A”, “B” ou “C”, em ordem decrescente de conformidade (§ 2º, art. 4º).


    As exigências do Fisco federal como critérios para classificação de conformidade não fogem das regras comuns para adequação dos contribuintes. Não há, porém, a descrição de medidas concretas que serão tomadas para a construção de um ambiente mais amistoso e colaborativo. A RFB não expressa na portaria a postura responsiva esperada do Fisco num ambiente de compliance colaborativo.


    Ao contrário, no que tange à aplicação de sanções positivas, para o despertar da credibilidade dos contribuintes mediante a aplicação de premiações, o programa da Receita Federal não traz compensações efetivas àqueles com menor grau de risco (classificados na categoria “A”), além da possibilidade de informação de indício de infração prévia ao início de procedimento fiscalizatório – o que favoreceria a eventual denúncia espontânea –, e do atendimento prioritário e preferência na análise de demandas destes contribuintes,


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  3. MATARAZZO, Giancarlo Chamma; e CONCA, Gabriela. Programa de conformidade da Receita vai na contramão da desejada colaboração. Conjur, nov. 2018, passim.


  4. BRASIL. Receita Federal do Brasil. Exposição de Motivos da Consulta Pública n. 4/2018, op. cit.


    conforme o art. 12 da Portaria. Entretanto, para os contribuintes classificados no menor grau de conformidade (“C”) estão reservadas medidas punitivas rigorosas, como a inclusão em regime especial de fiscalização (IN-RFB n. 979/2009), e a aplicação prioritária de medidas coercitivas (Portaria-RFB n. 1.265/2015), como disposto no art. 13 da Portaria em trato. Revolva-se, por fim, que a RFB não deu qualquer continuidade ao projeto do programa, inclusive, sem ter dado publicidade aos resultados da consulta pública formulada, do que se conclui que, se empregado, o “Pró-conformidade” terá as feições desenhadas pela portaria já formalizada, com os vícios aqui identificados.

    Por seu turno, ao encontro dos anseios mundiais de compliance cooperativo, o Estado de São Paulo editou a Lei Complementar n. 1.320, publicada em 6 de abril de 2018, instituindo o programa “Nos Conformes”, que define princípios para relacionamento entre os contribuintes e o Fisco paulista, e estabelece regras de conformidade. O programa propõe uma abordagem menos contenciosa na relação Fisco-contribuintes, expressando, já em seu art. 1º, o objetivo de criar “um ambiente de confiança recíproca”, “mediante a implementação de medidas concretas”.


    No padrão que inspirou o projeto Pró-conformidade da RFB, o programa paulista cria mecanismos de classificação dos contribuintes do ICMS (art. 5º), conforme sua adequação ao sistema de conformidade. Barbosa e Caumo29 entendem que o programa fomenta a relação tributária amistosa e o ambiente concorrencial, pois homenageia aquele contribuinte que paga tempestivamente seus tributos, e é mais rígido aos chamados “maus pagadores”, isto, porque o Fisco poderá exigir destes o cumprimento de obrigações principais e acessórias de forma diferenciada, inclusive antecipadamente, estabelecendo, ainda, regime de fiscalização permanente e perda de incentivos fiscais, tudo conforme os arts. 19 e seguintes da Lei.


    É importante destacar que, quanto aos contribuintes que estejam em discussões administrativas ou judiciais sobre créditos tributários, o Fisco paulista não aplicará qualquer medida sancionatória, como não poderia deixar de ser, já que o Supremo Tribunal Federal mantém o entendimento de proibir as sanções políticas em matérias tributárias, como tratado pelo professor Marciano Seabra de Godoi em obra específica sobre a jurisprudência do STF30. Mas a Lei também não concede os benefícios do programa de conformidade aos contribuintes que mantiverem os questionamentos administrativos ou judiciais (§ 4º, art. 14).


    Carlos Otávio Almeida vislumbra no programa paulista as bases de um autêntico sistema de co-operative compliance, pois prioriza a consciência conformativa fundamentada na


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  5. BARBOSA, Luiz Roberto Peroba; e CAUMO, Renato Henrique. Lei de conformidade paulista pode ser a primeira voltada ao fair play tributário. Conjur, maio 2018.


  6. GODOI, Marciano Seabra de. Sanções políticas. Crítica à jurisprudência atual do STF em matéria tributária. São Paulo: Dialética, 2011, p. 116/143.


    autorregularização, bem como a abertura e responsividade do Fisco. Segundo o autor, o programa evidencia a aplicação da metodologia sugerida pela OCDE para orientação do emprego dos recursos de fiscalização de acordo com o risco assumido pelo contribuinte em cumprir suas obrigações tributárias, e a existência de um ambiente mais propício para novos negócios31, fundado no monitoramento fiscal e na autorregularização (arts. 14 e seguintes).


    Segundo o próprio site da Secretaria de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, o programa apresentou os seguintes resultados até julho de 2020: cerca de 35.000 contribuintes participantes no projeto de eliminação da Guia de Informação e Apuração de ICMS (GIA); 42.365 contribuintes em atraso no envio da GIA orientados; 49.790 GIA’s entregues após procedimento de autorregularização; média de mil ligações por mês de atendimentos de contribuintes em débito, contatados pela Administração visando regularização. Estes resultados proporcionaram a arrecadação de mais de $ 3 bilhões, valor que não pode ser desconsiderado.


    Entretanto, o programa paulista, no mesmo passo do projeto federal, segmenta os contribuintes em grupos de “bons pagadores” e “maus pagadores”. Aos primeiros, o programa permite a apropriação de crédito acumulado, renovação de regimes especiais e o acesso ao regime de Análise Fiscal Prévia, realizada por agentes fiscais sem o objetivo de lavratura de autos de infração (art. 16); já aos últimos, o art. 19 da Lei Complementar impõe a sujeição a um regime especial para cumprimento de obrigações tributárias, com inclusão em programa especial de fiscalização tributária; alteração no período de apuração, no prazo e forma de recolhimento do imposto; exigência de apresentação periódica de informações econômicas patrimoniais e financeiras; cassação de credenciamentos e autorizações, dentre várias outras exigências que mais parecem sanções punitivas àquele que não se adequar (art. 20).


    Neste caminhar, deve ser lembrado que a jurisprudência do STF das décadas de 1970 e 1980 considerou espécie de sanção política a submissão de determinados contribuintes do ICMS a “regimes especiais” de cobrança e fiscalização. São consideradas sanções políticas as imposições administrativas de meios coercitivos indiretos para forçar os contribuintes a pagar tributos. Esses regimes especiais, impostos a contribuintes classificados como devedores contumazes do ICMS, consistem basicamente na exigência do pagamento do imposto de forma antecipada e a cada operação praticada, como condição para a autorização – sempre limitada – de impressão de notas fiscais32.

    No Recurso Extraordinário n. 115.452 (Rel. Min. Octavio Gallotti, Primeira Turma, DJ de 22.04.1988), o STF compreendeu (unanimemente) que os regimes especiais de fiscalização e


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  7. ALMEIDA, Carlos Otávio Ferreira de, op. cit. p. 76.


32 Cf. REs n. 76.455, DJ 21.05.1975; n. 100.918, DJ 05.10.1984; n. 106.759, DJ 18.10.1985, in GODOI, Marciano Seabra de, op. cit. 2011, p. 124.


cobrança são considerados sanções políticas pois impedem o exercício de atividade profissional lícita pelos contribuintes, e que lei editada neste sentido seria inconstitucional.


O Supremo Tribunal Federal, com a Súmula n. 70, considerou inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributo. Através da Súmula n. 70, entendeu também que a Administração não poderia apreender mercadorias como meio coercitivo para o pagamento de tributos. O fundamento para os julgamentos que deram origem às Súmulas mencionadas foi a preexistência dos meios executivos legais para que o Fisco realizasse a devida cobrança do crédito tributário – ação executiva fiscal, além de todas as prerrogativas e garantias que colocam o crédito tributário em posição privilegiada quanto à expropriação de patrimônio –, não podendo outras atividades que aquelas dispostas na Constituição e no CTN (enquanto norma geral de Direito Tributário) como outros meios coercitivos para a imposição de pagamento do crédito tributário.


O STF analisou, ainda, através da ADI n. 173 contra dispositivos da Lei n. 7.711/1988, outros tipos de restrições a atividades econômicas, que exigiam prova de “quitação de créditos tributários” como condição para a “transferência de domicílio para o exterior”, “habilitação em licitação promovida por órgão da Administração Federal”, “registro ou arquivamento de contrato social” e outros atos societários. Estas medidas foram consideradas sanções políticas pelo STF, quando do julgamento da ADI, em 20 de março de 2009 (Rel. Min. Joaquim Barbosa), pois constrangeriam o contribuinte ao recolhimento do crédito tributário e obstaculizariam o livre acesso ao Poder Judiciário. Quanto à exigência de quitação de tributos para a participação em licitações, a Lei n. 7.711/1988 foi revogada pela Lei n. 8.666/1993, perdendo objeto o julgamento da ADI. Mesmo assim, os ministros justificaram que a regularidade fiscal exigida pela última lei não configura sanção política, pois não pressupõe necessariamente a quitação de tributos, podendo o licitante demonstrar que a exigibilidade dos créditos tributários está suspensa por medida administrativa ou judicial.

Ademais, o STF também já se pronunciou sobre a cláusula solve et repete (ADI’s 1922 e 1976, Rel. Min. Joaquim Barbosa) – regime que impede o contribuinte de recorrer da imposição de determinado tributo ou penalidade para autoridade administrativa competente, sem que tenha realizado o depósito de montante do tributo ou prestação de caução idônea, embora, a seguir, se reconhecido o seu direito e a improcedência da exigência, lhe seja restituído o depósito ou liberada a caução – no sentido de a exigência de depósito como condição de admissibilidade de recurso administrativo constituir “obstáculo sério (e intransponível, para consideráveis parcelas da população) ao exercício do direito de petição (CF, art. 5º, XXXIV)”.


Retomando o programa do Estado de São Paulo, apesar dos expressivos resultados, o mesmo tem gerado desconfiança entre os contribuintes, estes que se ressentem da certeza de impessoalidade da administração fazendária quanto à aplicação de vantagens a um


certo grupo de empresas, e consideram, inclusive, que o proceder indicado na Lei é fundamento para o exercício de sanções políticas, já que impõe restrições diversas do executivo fiscal àqueles que não cumprirem suas obrigações tributárias, nos moldes acima delineados. É facilmente verificado no programa paulista certo grau de discricionariedade, porém sem manifestação expressa de seu fundamento ou dos necessários parâmetros de ocorrência, o que afastaria o tratamento isonômico requerido pela Constituição.


A questão que deve ser posta quando da interpretação da lei paulista é a de que, para os “bons pagadores” o Estado se mostrará eficiente, cooperativo e responsivo, inclusive menos burocrático; mas aos “maus pagadores”, entendidos estes como aqueles que não pagam os tributos até mesmo por não conseguirem compreendê-lo dentro da complexidade do sistema tributário existente, o Estado se mostrará burocrático, lento e repressivo, mantendo a relação antagonista baseada na rivalidade, exatamente aquela que o compliance cooperativo busca afastar.


Concatenando a dicotomia no tratamento dos contribuintes proposta pelos programas “Pro-conformidade” e “Nos conformes” com o conceito de isonomia, enquanto direito fundamental do contribuinte, firmado por Humberto Ávila, acima citado, não parece que o maior ou menor grau de cumprimento de obrigações tributárias seja critério hábil a ensejar a desequiparação no tratamento para imposição de consequências fáticas sensivelmente diferentes, uma vez que a Administração Fazendária já goza de garantias e prerrogativas especiais para a cobrança do crédito tributário dispostas nos arts. 183 a 193 do CTN, entre outros diplomas. Como abordado, no conceito proposto pelo autor há de se definir os critérios necessários para um julgamento de igualdade diante de casos concretos, bem como a finalidade do julgamento, que não deverá ser necessariamente a simples arrecadação, sob pena de configurar, além de ofensa a isonomia, expressa sanção política.


Nos programas em epígrafe é nítido o objetivo a ser alcançado, expressado, inclusive, na própria exposição de motivos da Consulta Pública n. 04/2018, qual seja, o de “estimular os contribuintes a adotarem boas práticas com o fim de evitar desvios de conduta e de fazer cumprir a legislação”33. Contudo, sendo a finalidade da norma o estímulo ao cumprimento de obrigações, não parece adequado estabelecer, como medida de comparação o adimplemento ou não destas para conferir tratamento diferenciado aos contribuintes, homenageando – mesmo que de forma tímida – aqueles com maior grau de cumprimento de obrigações, e impondo sanções mais severas aos que não as cumprirem. Parece claro que os contribuintes que não cumprem obrigações tributárias, por um motivo ou outro, são aqueles que merecem maior acompanhamento para que passem a cumpri-las, e não sofrer mais sanções – além daquelas que já incidem sobre o crédito inadimplido – que afastam


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33 BRASIL. Receita Federal do Brasil. Exposição de Motivos da Consulta Pública n. 4/2018. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2018/outubro/receita-federal-abre-consultapublica-sobre-a-instituicao-de-programa- de-estimulo-a-conformidade-tributaria-proconformidade. Acesso em: 19 mar. 2019.


benefícios que, a despeito da complexidade do ordenamento tributário, já teriam alcançado. Somente assim poderia ser concretizado verdadeiro estímulo.


Além disso, se o fato que identifica determinada pessoa como contribuinte é, em linhas gerais, a concretização de uma hipótese legal denominada como hipótese de incidência do tributo, que a insere em uma relação jurídica com a administração fiscal, e, no caso da lei paulista como exemplo, os contribuintes ocupam esta posição jurídica quanto ao tributo ICMS por haverem realizado atividades econômicas similares, os mesmos já se encontram em efetiva situação de igualdade substancial, representada pela concretização da hipótese de incidência através realização do fato gerador daquele imposto. O fator “adimplemento” de uma ou outra obrigação configura consequência de uma relação jurídica já estabelecida através de critérios legais – no exemplo, inscritos na Lei Estadual n. 6.374/1989, que institui o ICMS no Estado de São Paulo –, e, por isso, não deveria servir como medida de comparação para prática de tratamento diferenciado pelo Fisco, justamente por inexistência de bases constitucionais para esta diferenciação – as bases constitucionais se estenderiam apenas até a formalização do vínculo que une sujeitos passivo e ativo em uma obrigação tributária, abrigado pelas regras de competência tributária.


Note-se que, neste sentido, sanções tributárias devem ser aplicadas de forma geral e equânime, como disciplinadas na lei que as institui, em conformidade com o permissivo constitucional que delegou à lei complementar que estabelecesse normas gerais de Direito Tributário e o esquadrinhamento da obrigação e do crédito tributários (art. 146, III, da CF), encargo assumido pelo Código Tributário Nacional. Não cabe ao programa de compliance, instituído ou não por lei, criar, como critério de distinção, os sujeitos “bons pagadores” e “maus pagadores”, cujo costume de adimplemento ou inadimplemento irá atrair penalidades mais brandas ou mais severas, não dispostas neste sistema de normas gerais tributárias.


O inadimplemento total ou parcial destas obrigações já enseja consequências legais, que são medidas disciplinadas em lei para propiciar ao Fisco a recuperação de créditos tributários, como o art. 185 do CTN, que prevê presunção juris et de jure de fraude à execução, caso já existente crédito tributário devidamente inscrito em dívida ativa; os arts. 186 a 192 do CTN, que preveem a prevalência do crédito tributário sobre outros tipos de créditos em concurso; o art. 193 do CTN, que proíbe o devedor de crédito tributário de participar de licitação pública; o § 3º do art. 2º e o art. 40 da LEF, que possibilita a suspensão da prescrição do crédito tributário no caso de não serem encontrados bens do devedor, entre outros.


As consequências trazidas pelos programas em apreço aos denominados “maus pagadores”, especialmente o programa Nos Conformes (único já em prática) – como exemplo, a exigência de cumprimento antecipado de obrigações tributárias, e a perda de incentivos fiscais (art. 19 da LC n. 1.320/2018) –, extrapolam os critérios estabelecidos na legislação de


regência (acima exemplificado), sobre o exercício de cobrança de obrigações tributárias pelas administrações fiscais, e, portanto, configuram notória sanção política, pois imprimem penalidades administrativas como meio coercitivo para compelir os contribuintes a quitarem suas obrigações.


No mesmo passo, é necessário enfatizar que estas consequências são, ainda, impostas não a todos os contribuintes que estão em posição de igualdade perante a incidência fática do ICMS, mas apenas aqueles que, diante do crédito tributário devidamente constituído, não o adimplirem. Ora, não bastasse a sanção política já ter sido rechaçada do ordenamento jurídico brasileiro – como visto na jurisprudência do STF acima explanada – esta é aqui imposta sem qualquer respeito à ideia de igualdade substancial, sendo aplicada somente a alguns contribuintes de todos que se encontram na mesma posição jurídica, isto é, apenas àqueles que, sendo sujeito passivo da obrigação tributária, não a adimpliram, não se aplicando a outros sujeitos passivos da mesma obrigação, apenas porque estes a adimpliram no todo ou em parte.


A situação jurídica obrigacional estabelecida pelo Direito Tributário quando da incidência concreta de determinado tributo (exercício do fato gerador), coloca determinada pessoa no polo passivo da obrigação, e, portanto, na posição jurídica de devedor da prestação tributária. Aqui residiria o critério de julgamento de igualdade – aplicando-se o entendimento de Humberto Ávila –, resumindo-se ao fato de pessoas ocuparem a mesma posição jurídica, a de devedores de obrigação tributária. O adimplemento ou não desta obrigação, enquanto consequência da situação jurídica vivenciada pelo vínculo obrigacional, não configuraria critério de desigualdade hábil a ensejar tratamento diferenciado pelo ordenamento, exceto aqueles já capitulados acima, dispostos em norma geral de Direito Tributário, para a específica obtenção do cumprimento da obrigação tributária, que podem ser sucintamente representados pelo executivo fiscal.


Por fim, há de se evidenciar que a questão da ofensa à isonomia tributária não reside na severidade de tratamento aos inadimplentes, imposta pelos programas de compliance tributário analisados, nem tampouco na natureza das sanções aplicadas por estes programas, que assumem a clara identidade de sanções políticas, como já explanado, mas estão configuradas no exato critério da adimplência de obrigações, utilizado pelas normas para a distinção entre os contribuintes, que não configura ideal suficiente para a aplicação de tratamentos diferenciados.


Fica patente, então, que a ordem jurídica, por meio do princípio da isonomia, estabelece a impossibilidade de desequiparações injustificadas. A Constituição estabelece os limites ao poder de tributar como direitos fundamentais do contribuinte na relação jurídico- tributária. Diferenciar estes sujeitos com fundamento no costume do pagamento ou não de tributos, ou cumprimento de deveres instrumentais, e, por este motivo, aplicar-se-lhes punições mais severas aos inadimplentes não parece adequar-se aos interesses


prestigiados pela Constituição, muito menos com os direitos fundamentais representados nas limitações ao poder de tributar.


CONCLUSÃO

Os programas de compliance tributário são necessários para a modificação do ambiente em que se instala a relação Fisco-contribuinte, afastando-se cada vez mais a litigiosidade e a rivalidade que atualmente adjetivam esta relação. Os programas brasileiros de conformidade tributária “Pró-conformidade” – ainda não concretizado – e “Nos Conformes”

– já posto em prática – evidenciam passos concretos em direção ao compliance cooperativo eficaz. Entretanto, modificações devem ser realizadas para a adequação destes programas ao princípio da isonomia tributária, o qual, enquanto direito fundamental do contribuinte, prega a possibilidade de desequiparações nos tratamentos tão somente em hipóteses constitucionalmente fundamentadas.

Na visão atual do princípio da isonomia, deve-se considerar a necessidade de sua observância também quando da produção das leis, com vistas a não ocorrerem discriminações arbitrárias, sem fundamentação material, homenageando os objetivos constitucionais de igualdade, pelo tratamento de forma igual o que é constitucionalmente igualável e de forma desigual o que é constitucionalmente diverso. Ao classificar os contribuintes pelo critério de cumprimento ou não de obrigações tributárias, os programas de compliance brasileiros afastam-se da isonomia tributária, e, portanto, contrariam direito fundamental do contribuinte. Isto justamente por utilizarem como critério de distinção fato que somente qualifica a obrigação tributária, que, por isso, não constitui a exata finalidade dos instrumentos normativos que criam os aludidos programas, que é a adequação dos contribuintes ao cumprimento da legislação tributária, mediante a adoção de boas práticas.


Se o fato que identifica determinada pessoa como contribuinte é, em linhas gerais, a realização de uma hipótese legal denominada como hipótese de incidência do tributo, que, então, a insere em uma relação jurídica com a administração fiscal, todos aqueles que concretizarem aquela determinada hipótese legal já deveriam se encontrar em efetiva situação de igualdade substancial, segundo critério constitucionalmente aceito. O fator “adimplemento” configura apenas consequência de uma relação jurídica já estabelecida, esta, sim, através de critérios constitucionais, e não serve como medida de comparação para prática de tratamento diferenciado pelo Fisco.


Enfim, os programas de conformidade tributária brasileiros ainda amadurecerão e o tempo demonstrará como a garantia de uma relação obrigacional tributária cooperativa, sustentada na efetividade de uma relação de colaboração mútua, confiança e transparência, não precisará afastar-se dos direitos fundamentais dos contribuintes, máxime, a isonomia tributária.


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