A PROVA DA FRAUDE NA APLICAÇÃO DA MULTA DE OFÍCIO QUALIFICADA
PROOF OF FRAUD IN THE APPLICATION OF THE QUALIFIED CRAFT FINE
Mestrando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Advogado. E-mail: lucas@feitosaeadvogados.adv.br
Recebido em: 07-09-2020
Aprovado em: 29-10-2020
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-46-13
Este artigo utiliza a temática da omissão de receitas para propor um exame da hipótese prescrita pelo art. 44, § 1º, da Lei n. 9.430/1996, com a finalidade de fornecer elementos que permitam uma análise objetiva e criteriosa da norma primária sancionadora ali disposta, no intuito de fornecer elementos para que o intérprete se despoje dos subjetivismos frequentes no que tange à motivação do elemento subjetivo do tipo. Para tanto, parte de uma análise criteriosa da estrutura lógico-sintática da norma, passando por um esclarecimento quanto aos conteúdos semânticos possíveis dos termos fraude, sonegação e conluio; para, ao final, tecer críticas de ordem pragmática ao modo como a linguagem das provas vem sendo enjeitada nos lançamentos que impõem a qualificação da multa de ofício.
This article uses the theme of omission of prescriptions to propose an examination of the hypothesis prescribed by Article 44, § 1, of Law 9.430/96, in order to provide elements that allow an objective and judicious analysis of the primary sanctioning rule provided therein, in order to provide elements for the interpreter to get rid of the frequent subjectivisms regarding the motivation of the subjective element of the type. To do so, it starts from a careful analysis of the logical-syntactic structure of the norm, going through an explanation as to the possible semantic contents of the terms fraud, evasion and collusion; to, in the end, make pragmatic
criticisms of the way the language of evidence has been rejected in launches that impose the qualification of a fine.
INTRODUÇÃO
A aplicação da multa de ofício qualificada prevista na hipótese do art. 44, § 1º, da Lei n. 9.430/1996 se tornou uma constante entre as autuações fiscais que apuram infrações tributárias, sob as mais diversas temáticas. Uma análise mais aprofundada da jurisprudência administrativa, no entanto, revela que essa constante é fruto de uma interpretação mais instintiva que criteriosa dos motivos que ensejam a qualificação da multa; que correspondem – nas palavras de Marco Aurélio Greco1 – à “exceção da exceção”.
Consciente de que a prova do dolo deve ser feita com base no acervo probatório disponível em cada caso, este artigo utiliza a temática da omissão de receitas para propor um exame mais objetivo e criterioso da norma sancionatória, com o intuito de fornecer elementos para maior despojamento do intérprete em relação aos subjetivismos no ato da interpretação e aplicação da hipótese de incidência da multa de ofício qualificada.
A ESTRUTURA NORMATIVA DA MULTA DE OFÍCIO QUALIFICADA
Tanto o uso que se dá à norma, quanto a atribuição de sentido outorgada a seus termos, fazem com que a norma assuma grande variação de conteúdo. Porém, se abstrairmos da linguagem natural que reveste as normas jurídicas, desprezando as significações determinadas das palavras, e substituindo-as por variáveis lógicas (signos), observaremos a imutabilidade da estrutura sintática da norma jurídica.
Assim, ainda que a semântica atribuída a seus vocábulos possa ser diferente (heterogeneidade semântica), a estrutura sintática da norma jurídica será sempre a mesma (homogeneidade sintática)2. Esta estrutura, portanto, será apresentada pela fórmula “D(H“C)”, onde:
“D” será o functor de functor ou “dever-ser neutro” (estabelece o nexo jurídico
entre as proposições normativas hipótese e consequência);
“H” é a hipótese normativa;
“” é o functor implicacional (nexo de implicação entre a hipótese e a consequência).
– “C” é a consequência (parte da norma que tem por função prescrever condutas intersubjetivas, apresentando-se como uma proposição relacional que enlaça dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou obrigatória)3.
Utilizando a norma jurídica do imposto sobre a renda, temos: (H) “se alguém auferir renda, em determinadas condições de espaço e tempo”, (“) “deve ser”, (C) é devido o imposto sobre a renda. Lê-se: verificado juridicamente o fato de alguém auferir renda em determinadas coordenadas de espaço e tempo, instaura-se, em razão da causalidade jurídica, a relação por meio da qual o sujeito passivo fica obrigado a recolher aos cofres da União certa quantia em pecúnia a título de imposto sobre a renda”, em termos lógicos: [D(H“C)].
Em caso de descumprimento da prestação descrita acima, instaurar-se-á relação jurídica de cunho sancionatório em cujo antecedente constará a previsão do descumprimento de uma conduta; e, no consequente, estará prescrita uma relação jurídica de direito material (norma primária sancionatória) ou direito processual (norma secundária)4-5.
No presente estudo, interessa-nos a multa de ofício qualificada enquanto relação de direito material; por isso a examinaremos enquanto norma primária sancionadora.
O CRITÉRIO MATERIAL DA NORMA PREVISTA NO ART. 44, § 1º, DA LEI N. 9.430/1996: O CONCEITO DE FRAUDE E SONEGAÇÃO
No caso da multa de ofício qualificada, sua hipótese está prevista no art. 44, § 1º, da Lei n. 9.430/1996, que assim dispõe:
“Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:
I – de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata;
[...]
§ 1º O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.”
Em complemento à hipótese da multa de ofício qualificada, vejamos os dispositivos da lei de 1964:
“Art. 71. Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária:
– da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais;
– das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.
Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.
Art. 73. Conluio é o ajuste doloso entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas, visando qualquer dos efeitos referidos nos arts. 71 e 72.”
A partir da leitura dos dispositivos de lei, podemos inferir a existência de duas disposições:
a que determina ao contribuinte – nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata – a obrigação de pagar a prestação inadimplida, com o acréscimo do percentual de 75% (setenta e cinco por cento) sobre o valor do montante preexistente (multa de ofício); e,
a que determina ao contribuinte – nos casos em que a falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata, sejam praticados com dolo de fraude ou sonegação – a obrigação de pagar a prestação inadimplida, com o acréscimo do percentual de 150% (cento e cinquenta por cento) sobre o valor do montante preexistente (multa de ofício qualificada).
O elemento subjetivo: dolo de sonegar ou fraudar
Como visto, para a aplicação da multa de ofício qualificada não basta a apuração da falta de pagamento, falta de declaração ou de declaração inexata; é necessário comprovar a prática de ato com dolo de sonegação ou de fraude – o que conhecemos por elemento subjetivo do tipo.
Carlos Augusto Daniel Neto6 explica que a sonegação (art. 71) envolve condutas relacionadas ao conhecimento, por parte da autoridade administrativa, do fato gerador já
realizado; enquanto fraude (art. 72) corresponde às ações ou omissões dolosas tendentes a impedir ou retardar a ocorrência do fato gerador, de modo a reduzir o montante do imposto devido ou evitar/diferir o seu pagamento.
Para o enquadramento das condutas aos tipos acima, no entanto, faz-se necessário que o aplicador da norma verifique a intenção, ou seja, a vontade consciente de agir e obter determinado resultado, pois o dolo é elemento subjetivo intrínseco à hipótese prevista no art. 44, § 1º, da Lei n. 9.430/1996.
Sobre o dolo, destaca-se da doutrina penal, a existência de três significações: (i) dolo como vontade consciente de praticar a conduta típica (teoria finalística); (ii) dolo como vontade consciente de praticar a conduta típica, acompanhada da consciência de que se realiza um ato ilícito (teoria causalística); (iii) dolo como vontade consciente de praticar a conduta típica, compreendendo o desvalor que a conduta representa (teoria axiológica)7.
Não obstante, é invariável a exigência da vontade consciente de praticar o ilícito, juntamente com a vontade de causar o resultado.
A sonegação e a fraude previstas na Lei n. 4.502/1964 são exemplos de condutas que exigem dolo específico para sua consumação, pois o fim colimado é específico, isto é, tem sempre vinculação com o fato gerador da obrigação tributária – seja para ocultá-la do conhecimento do Fisco (art. 71), seja para impedir ou modificar a sua ocorrência (art. 72).
Assim, de forma simples, podemos conceituar as condutas tipificadas nos arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4.502/1964 da seguinte maneira:
Sonegação: quando o contribuinte tenta impedir que a autoridade fazendária tenha conhecimento dos fatos geradores ou omite condições pessoais que interferem no cálculo de impostos devidos;
Fraude: quando o contribuinte tenta impedir ou retardar a ocorrência do fato gerador ou modificar suas características essenciais com o objetivo de reduzir o montante do imposto devido; e, por fim,
Conluio: quando duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas se unem deliberadamente para obter benefícios sobre atos de fraude e sonegação fiscal.
Marco Aurélio Greco8, ao referir-se aos arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4.502/1964, sentencia:
“[...] nos três dispositivos o dolo é elemento essencial. Não há sonegação, fraude ou conluio sem que a conduta dos agentes seja dolosa. Ora, dolo não se presume, prova- se e de forma convincente. A lei deixa claro que a duplicação da multa só terá
fundamento se o Fisco atender a um duplo ônus da prova: ônus de provar a conduta infracional nos termos do inciso I do caput; ônus de provar a existência de conduta dolosa.”
No mesmo sentido, Karem Jureidini Dias:
“Apenas a configuração do elemento subjetivo da relação, ou seja, do dolo, é que possibilita a imposição de multa qualificada, sendo que a simples ausência de recolhimento a menor já possibilita a imposição de multa de caráter objetivo (multa de ofício). A motivação acerca da fraude em tópico próprio, no Termo de Verificação Fiscal, se mostra, pois, como imperativo para a validade do lançamento que imputa a “multa qualificada”9.
A comprovação de uma das condutas acima é caractere indispensável para a qualificação da multa já que, por meio deste, é que serão diferenciados o motivo que ensejou aplicação da multa de ofício no percentual de 75%, daquele que fundamentou a duplicação deste percentual (150%)10.
A motivação da qualificação da multa de ofício
Para que se opere a incidência da norma jurídica, o intérprete deve relatar a coincidência de um evento acontecido no mundo social com a previsão inscrita no antecedente de alguma norma geral e abstrata (subsunção); e, em seguida, estabelecer a relação de implicação jurídica decorrente desta norma.
Como bem explica Paulo de Barros Carvalho:
“Não é suficiente que ocorra um homicídio. Mister se faz que possamos contá-lo em linguagem jurídica, isto é, que venhamos a descrevê-lo consoante as provas em direito admitidas. Se não pudermos fazê-lo, por mais evidente que tenha sido o acontecimento, não desencadeará os efeitos jurídicos a ele atribuídos.”11-12
A incidência, assim, se reduz a duas operações formais: (i) subsunção, em que se reconhece que uma ocorrência concreta, verificada em certas condições de espaço e tempo, inclui-se na classe dos fatos previstos no antecedente da norma geral e abstrata13; e (ii) implicação, já
que em decorrência da causalidade jurídica, o fato concreto ocorrido hic et nunc, faz surgir relação jurídica também determinada, entre dois ou mais sujeitos de direito.
A operação de incidência da norma é muito bem demonstrada, de forma ilustrativa, por Marina Vieira de Figueiredo, vejamos14:
A partir da imagem, podemos deduzir que o evento foi o motivo (ocorrência da vida real que satisfaz a todos os critérios identificadores tipificados na hipótese – “auferir renda”); já o relato dessa ocorrência dentro do ato administrativo, subsumindo o antecedente e o consequente da norma geral e abstrata aos fatos relatados pelo intérprete (norma individual e concreta), seria a sua motivação15.
Como visto, a aplicação da norma exige do intérprete uma atividade mental que – a depender o acervo probatório disponível – poderá ser simples ou complexa.
Dentre os raciocínios simples, estão aquelas autuações motivadas pela presunção legal de omissão de receitas prevista do caput do art. 42 da Lei n. 9.430/199616, em que o fato de o contribuinte – após intimado – não esclarecer a origem dos valores creditados em conta bancária, já autoriza a conclusão de tais valores como receita omitida.
Nesse caso, o dispositivo dispensa o Fisco de apurar a efetiva ocorrência do fato gerador da obrigação, já que o próprio artigo se encarrega de estabelecer a relação de causalidade jurídica entre o fato indiciário (“não comprovar, após ser intimado, a origem de certos valores creditados em sua conta”), e o fato indiciado (“os depósitos não identificadas são
omissão de receitas”); em linguagem formal [D(Fd“Fi)]17-18.
O instituto da presunção decorre do princípio da praticabilidade no direito tributário, que por sua vez, provém da economicidade e exequibilidade que inspiram todas as normas, assim entendido como o conjunto de “meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de tornar simples e viável a execução das leis”19.
Ocorre que, a presunção20 por si só, jamais será suficiente para a aplicação da multa de ofício qualificada. Isso porque, a hipótese de incidência do art. 44, § 1º, da Lei n. 9.430/1996 exige mais que o simples “deixar de recolher”; exige que essa conduta seja praticada com a vontade consciente de fraudar ou sonegar o Erário (dolo)21.
Carlos Augusto Daniel Neto enfatiza que:
“[...] ao optar por autuar o contribuinte com base em indícios, ao invés da apuração efetiva do fato gerador, a fiscalização faz um trade-off – opta pela praticabilidade em desfavor da efetiva identificação das materialidades tributáveis –, e ao fazer isso, deixa de apurar a ocorrência do fato gerador, que é condição sine qua non para a configuração das hipóteses do art. 71 a 73 da Lei nº 4.502/1964.”22
O elemento subjetivo (dolo) intrínseco ao tipo previsto no art. 44, § 1º, da Lei n. 9.430/1996, por não dizer respeito ao campo da experiência, não está sujeito a comprovação empírica23.
Por isso, a certeza do intérprete quanto à sua ocorrência exigirá raciocínio lógico jurídico complexo por parte do intérprete. Tal raciocínio – que, relatado, constitui-se na motivação
deverá estar calcado, sempre, em fatos jurídicos constatados como efetivamente
ocorridos; e nunca em fatos presumidamente ocorridos.
Admitindo que o dolo não se submete a comprovação empírica, Maria Rita Ferragut24 indica como se pode atingir a certeza jurídica quanto à existência, ou não, do dolo. Vejamos:
“Duas considerações são importantes. A primeira é que somente o empírico pode ser provado, porque diz respeito ao campo da experiência. Se a premissa é verdadeira, o dolo, por não se subsumir a tal condição, não se sujeita à prova. A segunda é que, mesmo sem ser passível de prova, por imposição legal o julgador precisa decidir com base na existência, ou não, do dolo. Nossa conclusão, diante do exposto, é que, embora não devesse ser desta forma, o sistema assim requer e assim há de ser feito: decisão apesar da prova.
Entendemos que a “insegurança” advinda dessa constatação poderá existir apenas na convicção pessoal do emissor da norma, não no conteúdo normativo. O direito não convive com decisões incertas; para o sistema, o fato terá ou não sido dolosamente praticado. E não havemos de nos angustiar com isso. É um limite da condição humana, do que pode ser conhecido e compreendido.
Diante do exposto, a solução que propomos é a de que, nos casos em que o dolo precisar ser comprovado, a prova não recaia sobre a intenção do agente propriamente dita – inatingível, por ser motivação intrassubjetiva e passada –, mas sobre os fatos adjacentes à fraude [...].” (Destaques da autora)
A esses fatos adjacentes à fraude, a autora dá o nome de “dinâmica da fraude”; estes sim, por se subsumirem à comprovação empírica, devem ser o objeto das provas constantes na motivação do ato que determina a qualificação da multa de ofício.
Reforçamos: a prova do dolo não deve recair sobre a pretensa intenção do sujeito; mas sim, terá por objeto a sucessão de atos que resultaram na fraude ou na sonegação; e na maneira pela qual eles foram executados – estes sim, fatos relevantes para a definição do dolo25.
Ainda que a escolha dos “fatos relevantes para a definição do dolo” não escape ao subjetivismo próprio de cada intérprete, é importante ter em mente que o dever de motivar as decisões faz com que mesmo essa atividade subjetiva de valoração da linguagem probatória seja passível de controle judicial.
Justamente para evitar que os juízes fundamentem suas decisões com base unicamente em suas próprias convicções, sem nenhuma prova nos autos a lhes respaldá-las, é que o direito processual brasileiro adota o livre convencimento motivado como critério para fundamentação das decisões26.
O livre convencimento motivado prescrito pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015)27, garante o direito de ampla defesa das partes em um processo, permitindo-lhes verificar qual foi o caminho traçado pelo juiz para alcançar a conclusão veiculada, além de assegurar que a razão do convencimento foi moldada com base nas alegações e provas constantes no processo28-29.
Dessa forma, o julgador é obrigado a indicar as provas que o convenceram e as que considera de baixa força probatória, explicando o motivo porque fez prevalecer uma sobre a outra. A partir dessa explicação – a que atribuímos o nome motivação ou fundamentação
é que será deferido ao contribuinte o controle dos enunciados normativos emitidos pelos agentes habilitados a inserir normas no sistema.
ANÁLISE DE CASOS: OMISSÃO DE RECEITAS
A seguir, utilizaremos recentes julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, para uma análise crítica acerca da aplicação da multa de ofício qualificada nos casos de omissão de receitas.
No Acórdão n. 1402-002.89130 submeteu-se a julgamento questão relativa à qualificação da multa de ofício em razão da falta de escrituração de notas fiscais. Durante o procedimento fiscal, foram apuradas irregularidades através do confronto de informações disponibilizadas pelo contribuinte, tanto por meio do Sped Contábil, quanto por notas fiscais eletrônicas automaticamente reportadas à Receita Federal. Por ocasião do julgamento, os membros da 4ª Câmara/2ª Turma Ordinária do CARF mantiveram a qualificação da multa sob o argumento de que:
“[...] o conhecimento ao Fisco do fato gerador do IRPJ e da CSLL se dá através das informações inseridas em DIPJ e da confissão de dívida efetivada em DCTF. O confronto dos dados registrados nas referidas declarações com as notas fiscais eletrônicas ocorrerá somente se o contribuinte incidir em parâmetros impessoais que permitem a sua Fiscalização.”
Discordamos do entendimento acima. Os meios de prova pelos quais a autoridade fazendária possa ter conhecimento quanto à ocorrência do fato gerador ou das condições pessoais do contribuinte não são “tabelados”, não se limitam às declarações inseridas na DIPJ ou em DCTF.
Ao contrário, nesse caso, os elementos probatórios que permitiram a apuração da omissão de receitas foram as informações prestadas pelo próprio contribuinte (Sped Contábil e NF’s reportadas à RFB). Em consequência disso, a própria motivação da multa qualificada no art. 71 da Lei n. 4.502/1964 – que prevê ação ou omissão dolosa com a finalidade de dificultar o conhecimento quanto ao fato gerador – seria um paradoxo! As condutas deste jaez se amoldam à previsão contida no art. 44, I, da Lei n. 9.430/1996 (multa de ofício – 75%), não cabendo a duplicação de seu percentual.
O mesmo raciocínio se aplica aos casos em que a autoridade fiscal presume a omissão de
receita com base na existência de “passivo fictício”.
Como exemplo, temos o Processo n. 15586.720051/201580 onde, a partir da circularização de fornecedores do autuado, o Fisco constatou indícios suficientes à presunção de omissão de receitas (cf. art. 40 da Lei n. 9.430/1996)31.
No entanto, a fiscalização não juntou aos autos provas de que o passivo em questão já teria sido pago, ou de que este nem tenha chegado a existir. Assim porque, no Acórdão CARF n. 1301-002.66532, por unanimidade, a 3ª Câmara/1ª Turma Ordinária cancelou a qualificação da multa, conforme denota o trecho abaixo:
“[...] Entendo não razoável querer simplesmente presumir a ocorrência de fraude,
ainda mais que se trata de exigências constituídas a partir de presunção legal.
Para que fosse provada a intenção de fraudar o fisco, seria necessário, antes de tudo, provar que a existência de passivo fictício são, de fato, receitas omitidas. Pois, antes disso, a simples existência de passivo fictício são indícios de omissão de receitas. A norma legal estabelece que, no caso da existência de indício de omissão de receitas, presume-se tal omissão de receitas, sendo possível o lançamento do tributo.
Essa presunção, de fato, tem respaldo na Lei, porém, por outro lado, entendo que não se pode provar, por via indireta, o evidente intuito de fraude. Essa prova tem de ser direta, como se pode dar por exemplo, o caso da utilização de documentos inidôneos, ou notas fiscais frias, ou mesmo notas fiscais calçadas, ou ainda, conta- corrente bancária em nome de interposta pessoa, entre tantos outros. Nessas situações, a comprovação se dá pela ocorrência do fato irregular e pela utilização dos citados documentos.” (Destaques aditados)
Novamente, o cancelamento da qualificação da multa de ofício foi necessário, uma vez que não houve prova quanto à existência de “passivo fictício”, apenas presunção legalmente autorizada. Entretanto, como vimos, apesar de servir para admitir certas receitas como omitidas (até que se prove o contrário), tal presunção não serve como prova da fraude, pois “fraude não se presume, se prova”.
A imprópria qualificação da multa de ofício também é comum nos casos de omissão de receitas com base em depósitos bancários não identificados.
Como exemplo disso, temos o Processo n. 12448.723918/201201, em que foi aberto processo de fiscalização de uma entidade civil sem fins lucrativos que, a despeito de ter havido
expressiva movimentação financeira em sua conta bancária, entregou DIPJ declarando-se inativa no ano-calendário 2008.
Após intimada, a Associação afirmou ter agido como mera intermediária, e que todos os pagamentos indicados na relação foram decorrentes de contratos firmados com terceiros para a prestação dos serviços pelos seus associados posteriormente cobrados e repassados aos associados (“contrato guarda-chuva”), e que não seria o caso de retenção do IRRF sobre tais, uma vez que os recursos que transitaram da conta corrente da Associação para a dos beneficiários-associados não tinham a natureza jurídica de pagamento de remuneração ou rendimento por prestação de serviços cuja tomadora fosse a própria Associação.
Por virem desacompanhadas de elementos probatórios, as alegações não convenceram a autoridade fiscal – que reputou necessário que o autuado identificasse, um a um, a origem ou os beneficiários de todos os pagamentos – que procedeu ao lançamento de ofício de tais valores como omissão de receitas.
Não obstante, a fiscalização aplicou multa de ofício qualificada por entender haver vestígios materiais suficientes para concluir que a conduta da Associação em apresentar Declaração de Pessoa Jurídica Inativa “teve como propósito enganar a Administração Tributária, mediante prestação de declaração falsa, para suprimir os tributos decorrentes da atividade empresarial exercida, o que caracteriza evidente intuito de fraude”.
A despeito do erro na qualificação da conduta dolosa – in casu, se provado, tratar-se-ia de sonegação –, a qualificação da multa de ofício foi calcada unicamente em provas indiretas, as quais somente podem se conectar ao elemento subjetivo apenas se utilizado o expediente da presunção.
Em razão disso, foi correta a determinação do cancelamento da qualificação da multa pelo CARF, como denota o trecho do Acórdão n. 1302-003.278, abaixo:
“Com a devida vênia, me parece que a não identificação dos beneficiários ou da causa dos pagamentos constitui-se no fato gerador do IRRF e não pode ao mesmo tempo justificar a qualificação da multa.
Por outro lado, a afirmação de que a conduta de não reter o IRRF sobre os rendimentos pagos aos beneficiários seria conduta dolosa necessária e subsidiária por parte da contribuinte, que se coadunaria com a apresentação da DIPJ indicando inatividade, me parece mera especulação, sem elementos de aferição nos autos, na medida em que sequer se tem conhecimento quanto a real natureza das operações que ensejaram os pagamentos, sendo temerário afirmar se e como estariam sujeitos à retenção de IRRF.”33
De fato. A constatação do dolo exige a comprovação do resultado, ou seja, a efetiva ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. No caso, como tal ocorrência decorreu de presunção, o auditor fiscal teve que se utilizar de outra presunção (de que os pagamentos seriam sujeitos à retenção do IR), para assim, imputar o dolo. Quanta presunção34!
Nesse caso, para justificar a qualificação da multa, entendemos que o auditor fiscal deveria trazer linguagem probatória suficiente a comprovar a efetiva destinação que se deu aos pagamentos; dever-se-ia ter comprovado, ao menos por amostragem, que os pagamentos tiveram como beneficiários terceiros que não os associados. Sem essa prova, o ato de aplicação da multa é inválido.
A prova da intenção de cometer fraude ou sonegação contra o Erário é – de fato – complexa; mas não impossível. Nos casos em que há presunção de omissão de receitas com base em depósitos bancários, por exemplo, a despeito da comprovação “concreta” da omissão de receita, o dolo pode ser comprovado caso se demonstre a hipótese de interposição fraudulenta de pessoas.
Esse o caso apreciado pelo Acórdão n. 2202-006.77735, que manteve a qualificação da multa após reputar demonstrada a hipótese de conluio entre a interposta pessoa – que mantinha e movimentava a conta bancária – e o verdadeiro titular dessa conta.
A prova da interposição fraudulenta de pessoas pode se dar por diversas maneiras, eis algumas: confissão do fiscalizado; confissão da interposta pessoa (que geralmente é pessoa de menor grau de instrução); pela comparação entre os rendimentos da interposta pessoa e a capacidade econômica do real titular; pela constatação da disparidade entre os lucros obtidos pela empresa em face da situação patrimonial do “laranja”.
Entendemos que a comprovação cabal de interposição fraudulenta de pessoas contribui muito fortemente para a tipificação da fraude36.
CONCLUSÃO
Ao lume do exposto, podemos concluir que a aplicação da penalidade prevista no art. 44, § 1º, da Lei n. 9.430/1996, deve vir composta por motivação consubstanciada em provas que evidenciem as circunstâncias objetivas e subjetivas que permitiram ao intérprete proceder à subsunção do motivo do ato ao motivo legal.
Essa motivação, por sua vez, deverá comprovar mais do que a simples falta de pagamento, falta de declaração ou de declaração inexata; deverá provar a prática de ato com dolo de sonegação, fraude ou conluio – elemento subjetivo do tipo. Como esse elemento subjetivo não se submete à comprovação empírica, sua prova deve recair sobre os fatos adjacentes à fraude.
A depender da dinâmica das condutas analisadas em cada caso, a autoridade fiscal poderá atingir a convicção quanto à existência do dolo a partir de diversos documentos probatórios. Para a motivar a qualificação das multas, no entanto, sempre será necessário produzir provas que atestem, de forma direta, a ocorrência de fatos empíricos, concretamente verificados, aptos a desencadear raciocínio lógico-jurídico coerente com os documentos existentes nos autos.
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