COMPENSAÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO, PROPORCIONALIDADE E SEGURANÇA JURÍDICA
OFFSET PROCEDURE IN BRAZILIAN TAX LAW, PROPORTIONALITY AND LEGAL CERTAINTY
Professor Colaborador do Mestrado Profissional em Direito Tributário Internacional e Desenvolvimento do IBDT. Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Master of Laws (LL.M.) em Direito Tributário Internacional (International Tax Law) pela Wirtschaftsuniversität Wien (WU). Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP). Advogado em São Paulo. E-mail: rcodorniz@uol.com.br
Recebido em: 17-09-2020
Aprovado em: 13-10-2020
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-46-17
Neste artigo, o tema da compensação no Direito Tributário é analisado, inicialmente, sob o enfoque da disciplina conferida pelo Código Tributário Nacional a este instituto. O autor propõe que alguns dos fundamentos que foram sendo consolidados ao longo do tempo acerca da compensação tributária sejam revisitados. Assim, o autor extrai da disciplina do CTN as balizas que devem ser observadas pelo legislador como guia para a disciplina da compensação tributária em lei ordinária. Essas balizas, com efeito, impedem que o legislador ordinário, ao disciplinar o instituto de modo a coibir o abuso do direito de compensar, venha a impor- lhe limitações e penalidades em afronta ao princípio da proporcionalidade. No âmbito das limitações e das penalidades previstas na legislação federal aplicáveis à compensação de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, o que se observa é a sua rara adequação ao princípio da proporcionalidade, colocando o direito creditório do contribuinte em risco e sujeitando este último a penalidades que se aplicam a despeito deste agir com boa-fé ou má-fé. Com isso, tem-se inegável afronta aos direitos que o princípio da proporcionalidade visa resguardar na esfera da compensação tributária, a saber: o direito à propriedade, o direito sobre o qual se fundamenta o direito creditório e o princípio da segurança jurídica.
In this article, the Brazilian tax offset procedure is analyzed, firstly, from the standpoint of the legal regime provided by Brazilian National Tax Code. The author revisits some concepts that have been supported so far by Brazilian Tax Literature about the tax offset procedure. In this context, the author contends that the power to regulate the tax offset procedure has limits, especially when restrictions and penalties are imposed in order to avoid the abuse of the right to offset taxes against credits. The limits that shall be observed while carrying on the right to regulate tax offset procedure consist essentially on the respect of principle of proportionality. Regarding the limitations and penalties applicable to the offset procedure of federal taxes, one can easily realize that most of them does not comply with the principle of proportionality, subjecting the taxpayer to the risk of losing part of his credits and also to penalties applicable based on a prima facie presumption of abuse (i.e., regardless of his good faith). Consequently, the lack of compliance with the principle of proportionality puts constitutional rights and principles at stake as the right to property, the specific right that gave rise to the credits that can be used by the taxpayer against the Federal Tax Administration and also the principle of legal certainty.
INTRODUÇÃO
No Brasil, a compensação tributária é um tema de inegável importância prática para a maior parte dos contribuintes (especialmente, as empresas). Afinal, empresas dos mais variados portes apuram créditos líquidos e certos decorrentes de pagamentos indevidos ou a maior do que o devido e efetuam a sua compensação com débitos fiscais vencidos ou a vencer.
Além disso, a compensação tributária é, também, um tema que enseja um grande contencioso no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e do Poder Judiciário. As discussões geralmente se focam na demonstração da existência do direito creditório que se visa compensar.
Esses créditos possuem as mais variadas origens: desde decisões judiciais definitivas (i.e., com “trânsito em julgado”), até pagamentos feitos a maior do que o devido por mero erro de apuração. Há, ainda, casos em que a apuração de crédito é inerente à própria sistemática de apuração do tributo em questão, como é o caso do saldo negativo do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Este estudo se propõe a analisar o tema da compensação tributária sob duas perspectivas distintas.
Em primeiro lugar, o tema será analisado sob a perspectiva das limitações legais que foram sendo progressivamente impostas ao exercício da compensação tributária, fundamentadas em razões de conveniência na arrecadação tributária e na antecipação de valores aos cofres públicos, mas à total revelia dos direitos e garantias dos contribuintes subjacentes à compensação tributária. Duas limitações, em particular, serão objeto de uma análise mais aprofundada, a saber, as vedações à compensação de débitos oriundos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL e parcelas de parcelamentos tributários em curso.
Em segundo lugar, merecem igual consideração as penalidades (i.e., as multas) impostas ao exercício “abusivo” da compensação tributária. Neste ponto, duas penalidades serão analisadas, quais sejam, a multa devida pela não homologação da compensação tributária e a multa devida em casos de falsidade de declaração e de compensação “não declarada”.
Neste artigo, sustentamos que há de ser observado o princípio da proporcionalidade enquanto critério validador de qualquer limitação ou penalidade a ser imposta.
Assim, este artigo não tem a pretensão de esgotar todos os desafios que o tema da compensação tributária suscita, mas de chamar a atenção do leitor para a desproporcionalidade de algumas das limitações e penalidades impostas pelo legislador ao disciplinar o tema e, sobretudo, para a necessária observância do princípio da proporcionalidade como baliza destinada a assegurar a adequação dos meios empregados para se alcançar os fins visados nesta seara.
A COMPENSAÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
Enquanto etapa preliminar e necessária à abordagem das limitações e penalidades aplicáveis à compensação tributária, é fundamental delimitarmos a moldura normativa que orienta a figura da compensação em matéria tributária. Para tanto, partiremos da origem do instituto, no Direito Civil, e chegaremos ao seu regime jurídico próprio do Direito Tributário, visando-se compreender quais são as particularidades que o tema assume na seara tributária, se é possível falar em um direito à compensação, bem como as hipóteses preocupantes relacionadas ao seu exercício abusivo.
Este será o pano de fundo para a compreensão das limitações e penalidades que foram progressivamente impostas ao instituto no decorrer da sua evolução normativa.
Origens do instituto da compensação no Direito Civil
A compensação em matéria tributária possui inegável inspiração no Direito Privado1.
No Código Civil brasileiro (Lei n. 10.406/2002), a compensação é disciplinada pelos arts. 368 a 380. O conceito nuclear do instituto encontra-se delineado pelo art. 368 ao dispor que “se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”. O art. 369 vem a esclarecer que a “compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis”.
A origem do instituto da compensação em matéria tributária na disciplina que lhe foi conferida pelo Direito Privado não causa, com efeito, qualquer surpresa. Afinal, em ambas as esferas, constata-se a existência de uma relação jurídico-obrigacional; no Direito Privado, entre agentes privados, ao passo que, no Direito Tributário, entre um sujeito ativo (Fisco federal, estadual, municipal ou distrital) e um sujeito passivo (contribuinte ou responsável). O núcleo da teoria geral das obrigações no Direito aplica-se tanto nas relações privadas quanto nas fiscais. Desse modo, em ambas as esferas, se constata a existência de elementos comuns que norteiam a compensação, a saber: (i) a fungibilidade das obrigações; (ii) liquidez e exigibilidade da dívida; e (iii) confusão entre devedor e credor.
Tal como ocorre na seara cível, na esfera tributária, Fisco e contribuintes, não raramente, são ao mesmo tempo credores e devedores entre si de créditos líquidos, certos e exigíveis. Fala-se em crédito tributário (em apreço à terminologia adotada pela legislação tributária), quando em favor do Fisco, e créditos líquidos e certos, quando em favor dos sujeitos passivos, oriundos de pagamentos indevidos ou a maior que o devido.
A despeito das suas inegáveis semelhanças, as disciplinas conferidas pelo Direito Tributário e pelo Direito Privado ao instituto da compensação possuem contornos nitidamente distintos. As diferenças de tratamento jurídico são, com efeito, mais do que justificáveis. Na esfera tributária, o crédito tributário se presta à manutenção das funções do Estado e da promoção de políticas públicas. Por esta razão, o crédito tributário é cercado de “garantias” tais como o princípio da indisponibilidade que não permite ao Fisco simplesmente abrir mão da sua constituição e cobrança, na ausência de lei que o autorize.
Além disso, o exercício do poder de tributar, por representar uma “invasão” na esfera do patrimônio do cidadão pelo próprio Estado, é cercado por limitações, dentre as quais figura- se o princípio da legalidade. Desse modo, o crédito tributário, diversamente do crédito que há entre dois entes privados, é objeto de disciplina jurídica própria, tem como pressuposto o surgimento de uma obrigação tributária que se faz presente uma vez preenchidos os requisitos expressamente previstos em lei que delimitam o antecedente (critérios material, espacial e temporal) e o consequente (critério pessoal e quantitativo) da sua hipótese de incidência, mediante raciocínio subsuntivo, por meio de procedimento absolutamente
vinculado à lei denominado de lançamento2, nos termos do art. 142 do Código Tributário Nacional (CTN)3.
Quando comparado aos demais créditos, o crédito tributário possui nítida preferência no tocante à sua satisfação, haja vista que o produto da arrecadação tributária se presta à concretização de valores constitucionais, tal como a prestação de serviços públicos essenciais e a manutenção das funções de Estado. Um exemplo neste sentido é a disciplina conferida pelo art. 83 da Lei n. 11.101/2005 (Lei da Recuperação Judicial, Extrajudicial e de Falências) que, ao elencar a classificação de créditos que deve ser observada na falência, coloca o crédito tributário à frente de todos os demais créditos, exceção feita aos créditos trabalhistas e decorrentes de garantias reais.
Assim, é justamente em função das garantias especiais conferidas ao crédito tributário – decorrentes da tutela do princípio da legalidade em matéria tributária e do regime jurídico próprio que impede que o sujeito ativo simplesmente abra mão do crédito tributário a seu livre arbítrio – que a compensação, no Direito Tributário, possui contornos próprios, a despeito de as suas linhas mestras serem uma decorrência da teoria geral das obrigações4.
Não é por outra razão que houve a revogação, pela Lei n. 10.677/2003, do art. 374 do Código Civil cuja finalidade era justamente estender, para a esfera tributária, a compensação nos mesmos moldes delineados pelo Direito Privado. Por essa razão, a nosso ver, não procede qualquer tentativa de que se aplicar à compensação em matéria tributária o mesmo tratamento conferido à temática nas relações estritamente privadas5. Isso não significa, no entanto, que o legislador tenha absoluta liberdade para disciplinar a compensação tributária, conforme abordaremos mais adiante.
A compensação no Código Tributário Nacional
As linhas mestras da compensação tributária estão previstas no CTN, enquanto norma com status de lei complementar apta, nos termos do art. 146, inciso III, alínea b, da Constituição Federal, a regular questões relativas à “obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”. No caso, a compensação tributária é hipótese de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 156 do CTN6, sendo, portanto,
inquestionável que a delimitação das linhas mestras do instituto é de competência exclusiva de lei complementar.
No CTN, a compensação tributária está disciplinada pelo art. 170, nos seguintes termos:
“Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.
Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento.”
Como se vê, o CTN permite que créditos tributários sejam extintos por compensação com créditos líquidos e certos à medida da sua proporção, à semelhança do que ocorre no âmbito do Direito Privado. A compensação tributária, no entanto, depende de lei ordinária. É dizer: o art. 170 do CTN é uma norma de eficácia contida que não confere diretamente aos sujeitos ativos (Fisco)7 e passivos (responsáveis e contribuintes) o direito de compensar, mas atribui ao legislador ordinário a faculdade de permitir a compensação, podendo, para tanto, estipular condições e, até mesmo, elencar os critérios objetivos que guiarão o juízo das autoridades fiscais quanto à aceitação ou não da compensação (é, portanto, uma norma de competência).
Portanto, no plano exclusivo do art. 170 do CTN, não se pode dizer que os sujeitos ativos e passivos possuam um direito à compensação. Não há, com efeito, qualquer direto, mas mera faculdade conferida ao legislador ordinário8. Assim, o fato de diversos Estados e Municípios não possuírem legislações próprias permitindo a compensação não deve ser visto como uma afronta ao CTN ou à Constituição Federal.
Alguns autores, no entanto, entendem de modo diverso, no sentido de que o contribuinte teria o direito à compensação mesmo na ausência de lei ordinária. Este direito à compensação tributária estaria amparado em diversos direitos e garantias assegurados por regras e princípios constitucionais.
Hugo de Brito Machado sustenta que há cinco fundamentos constitucionais ao direito de compensar em matéria tributária, a saber9: (i) o direito à propriedade, uma vez que créditos líquidos e certos oriundos de indébitos tributários compõem o patrimônio do contribuinte como direito a ser exercido em face do Fisco; (ii) o princípio da isonomia, não sendo aceitável que o Fisco tenha privilégios não extensíveis aos sujeitos passivos a ponto de permitir-lhe cobrar do sujeito passivo o que lhe é devido, sem pagar o que deve; (iii) o imperativo da cidadania, a qual resultaria atingido, caso o Fisco fosse excluído do escopo da compensação tributária; (iv) o imperativo da justiça, não sendo possível admitir que um devedor se furte ao dever de saldar as suas dívidas (neste caso, mediante compensação); e (v) o princípio da moralidade, o qual restaria atingido, caso ao Fisco fosse concedida a possibilidade de ver os seus créditos satisfeitos, sem quitar os seus débitos.
Com a devida vênia aos defensores da existência, a priori, de um direito à compensação, entendemos inexistir, no plano do art. 170 do CTN, qualquer direito à compensação seja por parte do sujeito passivo, seja por parte do Fisco. No entanto, entendemos que, uma vez publicada a lei ordinária prevendo a compensação tributária, surge um verdadeiro direito (e dever por via reflexa) à compensação, uma vez que a sua previsão passa a ser objeto de uma lei ordinária (ou seja, uma norma específica dotada de eficácia plena e não mais de uma norma de competência dotada de eficácia contida10), tornando obrigatória a sua realização quando os critérios e as condições previstas em lei são satisfeitos11.
Destaque-se, ainda, não ser admissível, sob hipótese alguma, a delegação às autoridades fazendárias do crivo de aceitação ou não da compensação mediante ato desprovido de qualquer critério objetivo que norteie tal análise12.
A partir do nascimento do direito à compensação – o que, frise-se, somente vem a ocorrer mediante lei ordinária – o referido direito passa a estar amparado pelo direito à propriedade, assegurado pelo art. 5º (caput e inciso XXII) da Constituição Federal, bem como ao direito sobre o qual se funda a decisão judicial que o houver declarado em caráter definitivo (i.e., após o “trânsito em julgado”), o qual poderá ter substrato constitucional ou legal. Corrobora a perspectiva ora defendida o fato de que a compensação tributária é uma hipótese de extinção do crédito tributário sui generis, pois, ao mesmo tempo em que se
extingue uma obrigação tributária devidamente consubstanciada em um crédito tributário do Fisco em face do contribuinte, extingue-se, por via reflexa, uma relação jurídica de débito do Fisco em face do contribuinte, de modo que a norma estruturante da compensação tributária é o produto das normas que determinam a extinção dessas duas relações de crédito e débito13.
Resta saber, neste contexto, se, ao disciplinar o instituto da compensação, o legislador ordinário pode estabelecer qualquer critério objetivo que limite o direito de compensar, ou se estes critérios se encontram adstritos a determinados limites.
Na literatura especializada, defende-se que o art. 170 do CTN prevê um “núcleo mínimo” a ser observado pelo legislador ordinário quando da disciplina da compensação tributária consistente na (i) exigência de que a compensação tributária ocorra a partir de créditos líquidos, certos, vencidos ou vincendos; e (ii) vedação à utilização de créditos de terceiros14. Uma vez respeitado esse “núcleo mínimo”, poderia o legislador ordinário estabelecer quaisquer condições para o exercício do direito de compensar15, posição esta que já teria sido convalidada, inclusive, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ)16.
Embora concordemos quanto à existência do “conteúdo mínimo” apontado, discordamos quanto à sua extensão. A nosso ver, mesmo que seja respeitado o “conteúdo mínimo” apontado, o art. 170 do CTN não confere uma “carta branca” para que o legislador ordinário fixe qualquer critério ou limitação ao direito de compensar.
Com efeito, entendemos que, a par das limitações já apontadas (exigência de liquidez e certeza dos créditos e impossibilidade de se compensar créditos de terceiros), o legislador ordinário encontra como limite máximo à sua prerrogativa de estabelecer condições e limites a serem observados na compensação tributária a própria negação do direito à compensação17. Ou seja, se os limites e as condições impostos pelo legislador forem tais que acabem por tornar inviável que o sujeito passivo seja capaz de compensar todo o montante dos seus créditos líquidos e certos em face do Fisco – sobretudo, se considerarmos que, à compensação, se aplicam prazos prescricionais – a norma legal que os tiver veiculado conflitará com o art. 170 do CTN, tornando-se juridicamente inválida. É dizer: o poder de regular a compensação tributária não abrange o poder de aniquilar o crédito a ser compensado.
Aliás, é comum a visão de que, podendo o contribuinte recorrer à repetição do indébito na via judicial, os direitos e garantias aplicáveis ao contribuinte no tocante à tutela do seu direito creditório já estariam, por esse meio, resguardados, de modo que a compensação seria uma alternativa à repetição do indébito na qual o legislador teria ampla liberdade para impor condições. Com o devido respeito aos defensores deste ponto de vista, ousamos dele discordar e acreditamos que ele deve ser revisto. O fato de o contribuinte poder se utilizar da repetição do indébito não deixa o legislador livre para disciplinar a compensação como bem entender. A repetição do indébito e a compensação são caminhos alternativos para a satisfação do crédito que o contribuinte possui em face do Fisco que devem, em igual medida, respeitar os direitos e garantias aplicáveis ao direito creditório do contribuinte. Uma vez escolhidos quaisquer desses caminhos, o contribuinte deve poder confiar que o caminho escolhido será suficiente para a satisfação de todo o seu direito creditório.
Além disso, é também comum a falsa noção de que a compensação tributária seria uma concessão ao regime dos precatórios que beneficiaria em muito maior medida os contribuintes do que o Fisco. Esta noção não é necessariamente verdadeira. Em primeiro lugar, a compensação tributária, quando amparada em créditos com inequívoca liquidez e certeza, ao mesmo tempo em que antecipa a extinção do crédito tributário (reduzindo, inclusive, custos futuros relativos ao acompanhamento dos débitos fiscais, inscrição em dívida ativa e eventual propositura da ação executiva), permite que o contribuinte, mesmo diante de eventual limitação momentânea de caixa, possa saldar as suas obrigações fiscais tempestivamente. Em segundo lugar, o Fisco também toma a iniciativa de realizar compensações de créditos detidos pelo contribuinte quando constata que o contribuinte também possui débitos fiscais vencidos ou vincendos (trata-se da chamada “compensação de ofício”).
Sendo certo que o intérprete do Direito constrói a norma a ser aplicada ao caso concreto a partir da interpretação de enunciados normativos partindo-se de distintos métodos de interpretação, é preciso a eles recorrermos para que seja possível obter, do enunciado do art. 170 do CTN, o seu correto sentido. Os métodos que deverão ser utilizados, no caso concreto, são a interpretação literal e lógica, sistemática e teleológica.
Interpretação literal e lógica do art. 170 do CTN
Na interpretação lógica, parte-se de conceitos que podem ser obtidos a partir das palavras (signos) utilizados pelo enunciado normativo. O significado de uma palavra pode assumir uma relação de denotação (enquanto relação a um conjunto de objetos que constitui a sua extensão) e conotação (como o conjunto de relações de propriedades que predicamos ao vocábulo e que constitui a sua intensão)18.
O limite, aqui, a ser observado é o uso comum linguístico aplicável às palavras empregadas pelo enunciado normativo19. Ater-se aos limites impostos pelo significado intrínseco da palavra empregada é uma das possíveis formas de interpretação literal (i.e., interpretação declarativa) que extrai das palavras do enunciado normativo em questão o seu significado intrínseco20.
No caso, a expressão empregada pelo caput do art. 170 do CTN “a lei pode [...] autorizar a compensação”, ao mesmo tempo, denota um universo de possibilidades de disposições normativas que, ao fim e ao cabo, permitem o exercício da compensação tributária, e conota uma disciplina jurídica que tenha por finalidade permitir a compensação, em ambos os casos em toda a sua extensão, ou seja, sem prejudicar no todo ou em parte o crédito envolvido, pois, do contrário, estar-se-ia a negar o núcleo conceitual do termo “autorizar”.
Corrobora para esta interpretação a máxima, adotada pela interpretação literal, de que “não se deve interpretar as palavras e expressões de um enunciado normativo de modo diverso do significado linguístico que lhe é comumente atribuído, salvo a existência de razões suficientemente fortes para que se desvie do significado comum”21, uma vez que, no caso, não se vislumbra qualquer razão para se interpretar o termo “autorizar” de modo a lhe atribuir significado distinto do seu uso linguístico comum.
A interpretação literal do art. 170 do CTN ora proposta é confirmada, ainda, pela interpretação lógica. Neste tipo de interpretação, conforme destaca Aleksander Peczenik, o intérprete deve interpretar o dispositivo normativo de modo logicamente consistente22. Consistência jurídica é o pilar fundamental da racionalidade, bem como condição necessária para a coerência que se espera da interpretação23. No caso do art. 170 do CTN, consistência lógica implica que não se admita uma interpretação do dispositivo que permita que, sob o pretexto de autorizar a compensação, o legislador ordinário tenha permissão para impor restrições e vedações que, no limite, aniquilem, no todo ou em parte, o crédito líquido e certo que se pretende compensar.
Assim, a imposição de muitas limitações e condições a serem observadas que tornem o exercício do direito impraticável no todo ou em parte contraria o próprio núcleo conceitual do verbo “autorizar”. Além disso, contraria a ideia de consistência, enquanto condição para a coerência normativa, pressupor que, ao autorizar que o legislador viesse a disciplinar a
compensação, este viesse a aniquilar no todo ou em parte o crédito a ser compensado mediante a imposição de condições e restrições excessivas.
Interpretação sistemática do art. 170 do CTN
Na interpretação sistemática, busca-se atribuir a uma disposição um significado que esteja em linha com o contexto como um todo no qual se insere e o sistema jurídico em seu conjunto24.
Neste ponto, cumpre destacar que, conforme pondera Riccardo Guastini, um sistema jurídico, enquanto conjunto ordenado de normas, pressupõe a existência de três requisitos25: (i) coerência axiológica; (ii) consistência lógica; e (iii) completude. Por “consistência lógica” – aspecto que mais nos interessa neste ponto deste estudo – exige-se, nas palavras do autor, “a ausência de antinomias, conflitos lógicos e incompatibilidades entre as normas”26. Diversamente do que ocorre com a interpretação literal e lógica, a “consistência lógica” da qual ora tratamos, diz respeito à totalidade do sistema jurídico, e não, apenas, do enunciado normativo de um preceito isolado.
Neste contexto, conforme assevera Tércio Sampaio Ferraz Junior, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, respeitando o seu contexto e a sua concatenação imediata, para que se preserve a coerência de todo o sistema jurídico27.
No caso do art. 170 do CTN, a conformação dos limites aos quais o legislador ordinário deverá se submeter quando da disciplina da compensação tributária, uma vez que esta venha a ser instituída por lei, requer a consideração de algumas normas específicas, a saber:
(i) o direito à propriedade; (ii) o direito sob o qual se fundamenta o crédito líquido e certo em questão (seja ele objeto ou não de decisão judicial) e (iii) o princípio da segurança jurídica.
O direito à propriedade, assegurado constitucionalmente, é fundamento do direito à compensação (uma vez que esta tenha sido prevista em lei ordinária), haja vista que créditos líquidos e certos em face do Fisco compõem o patrimônio jurídico do contribuinte, e podem ser objeto tanto de restituição quanto de compensação.
Assim, o exercício do direito à compensação por parte do contribuinte – ou por parte do Fisco, na hipótese de “compensação de ofício” – nada mais é do que o exercício do direito de dispor da coisa (no caso, dos créditos líquidos e certos), ou seja, de um dos quatro direitos
inerentes à propriedade (direito de usar, gozar, dispor e reaver28), sobretudo se considerarmos que, no Direito Tributário, a compensação não se dá automaticamente, como ocorre no Direito Privado, e possui disciplina que lhe é própria.
O “direito sob o qual se funda o crédito líquido e certo” é a causa que ensejou a apuração do indébito tributário. É o fundamento jurídico que torna o pleito do contribuinte de determinado crédito juridicamente válido. Ele pode ou não decorrer de uma decisão judicial.
Por um lado, se decorrer de mero pagamento indevido, o direito à compensação encontrará como fundamento o direito à restituição, previsto no art. 165 do CTN29.
Por outro lado, se o direito à compensação tiver por origem uma decisão judicial transitada em julgado, a negação, no todo ou em parte, do referido crédito, irá de encontro com o próprio direito sob o qual se funda a ação judicial. Assim, por exemplo, assumindo que o contribuinte tenha obtido decisão judicial em caráter definitivo concedendo-lhe o direito de excluir o ICMS destacado em notas fiscais da base de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS, bem como à compensação das contribuições indevidamente recolhidas no último quinquênio, negar o direito à compensação, em última instância, agride o próprio conceito de “receita ou faturamento” previsto no art. 195, inciso I, alínea b, da Constituição Federal, pois o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Recurso Extraordinário n. 574.706/PR30, decidiu que os referidos conceitos constitucionais não abarcam tributos que, por natureza, são receitas de titularidade do Estado.
Por fim, revela-se importante, também, o princípio da segurança jurídica, previsto na Constituição Federal31. Conforme leciona Humberto Ávila, especialmente sob a perspectiva do ordenamento jurídico, a segurança jurídica exige cognoscibilidade e calculabilidade, as quais somente podem ser alcançadas mediante consistência32. Assim, a consistência exige que se escolha a opção interpretativa do enunciado normativo em análise que se revele mais coerente com as demais normas que compõem o ordenamento jurídico33. O fundamental é que o contribuinte possa confiar que, uma vez seguido o regime jurídico
aplicável à compensação, o seu direito creditório não será aniquilado no todo ou em parte. É dizer: o legislador não pode ser traiçoeiro ao disciplinar a compensação, sob pena de colocar a segurança jurídica que se espera do sistema jurídico, pautada na sua consistência, em risco. Logo, é também em razão do princípio da segurança jurídica que o art. 170 do CTN não pode conferir ao legislador ordinário liberdade absoluta para disciplinar a compensação tributária.
Interpretação teleológica do art. 170 do CTN
Na interpretação teleológica, o foco do intérprete deve estar voltado para o propósito – ou seja, a finalidade – da norma jurídica34. A finalidade da norma jurídica não se confunde necessariamente com o propósito vislumbrado pelos legisladores à época da formulação do enunciado normativo35. No primeiro caso, tem-se a chamada ratio legis que deverá efetivamente orientar a atividade do intérprete, enquanto, no segundo caso, tem-se a intenção do legislador, presente nos chamados “travaux préparatoires” que, conquanto tenham a sua relevância, não possuem o mesmo papel que a ratio legis deverá ter no processo interpretativo. Não obstante a diferenciação que se deve fazer entre o propósito da lei e o propósito do legislador, é bastante comum que o segundo revele o primeiro, fato que dependerá de uma análise das circunstâncias do dispositivo a ser interpretado no caso concreto.
Neste sentido, o propósito da norma jurídica (i.e., a ratio legis) é o resultado dos interesses, valores, direitos, garantias e deveres que compõem o ordenamento jurídico no qual o enunciado normativo a ser interpretado se insere36. Esta é, por assim dizer, a finalidade que deverá orientar a atividade do intérprete em complemento (i.e., como argumento confirmador ou de suporte) aos métodos de interpretação literal, lógica e sistemática37.
No caso do art. 170 do CTN, o que se observa é que a finalidade prestigiada pela norma jurídica consiste na praticabilidade e eficiência dos mecanismos de restituição de pagamentos indevidos (direito creditório dotado de liquidez e certeza) e de extinção de créditos tributários (igualmente dotados de liquidez e certeza incontestáveis), em respeito ao direito à propriedade subjacente ao interesse do contribuinte em compensar seus créditos perante a Fazenda e ao princípio da indisponibilidade do crédito tributário que
impõe a esta última o poder-dever de tutelar o crédito tributário até que haja a sua satisfação (i.e., extinção). Através da compensação, a praticabilidade e a celeridade acima apontadas asseguram maior racionalidade ao encontro de contas entre Fisco e contribuinte.
Assim, é também à luz da finalidade acima apontada, que não se pode admitir que o art. 170 do CTN tenha conferido liberdade absoluta para que o legislador ordinário disciplinasse a compensação como bem desejasse. Se as consequências decorrentes da disciplina da legislação ordinária relativa à compensação tributação contrariarem a finalidade buscada pelo instituto no Direito Tributário (i.e., assegurar maior praticabilidade, celeridade e racionalidade ao encontro e contas entre Fisco e contribuinte, com o respeito em sua máxima extensão ao direito de propriedade e ao princípio da indisponibilidade do crédito tributário), tais consequências deverão ser afastadas por serem inconciliáveis com o art. 170 do CTN, salvo se justificadas por outras finalidades igualmente prestigiadas pelo ordenamento jurídico38.
É por estas razões que os limites e as multas previstas na legislação ordinária deverão sempre estar orientados por finalidades específicas igualmente respaldadas pelo ordenamento jurídico vigente. É somente dessa forma que o propósito que orienta o instituto da compensação tributária poderá ceder espaço para que outros propósitos – tal como coibir o abuso do direito de compensar e tutelar a entrada mais célere de caixa no Erário Público – sejam igualmente prestigiados.
Na sequência, ver-se-á que as limitações e multas aplicáveis no âmbito da compensação tributária, para que se conformem com outras finalidades igualmente prestigiadas pelo ordenamento jurídico, deverão necessariamente passar pelo teste de proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade e a compensação tributária
Humberto Ávila, ao tratar do princípio da proporcionalidade, destaca se tratar de um postulado normativo aplicativo destinado ao controle de atos do Poder Público que, longe se aplicar a toda e qualquer situação, exige sempre a presença de três elementos: um meio, um fim e uma relação de causalidade entre ambos39.
No caso concreto, tem-se que os meios em questão são as limitações ao direito de compensar – ou seja: as hipóteses previstas no ordenamento jurídico em que, quer seja pela
natureza do crédito em questão, quer seja pela natureza dos débitos, não comportam a compensação tributária – bem como as penalidades aplicáveis à compensação tributária.
O fim é evitar o abuso do direito de compensar cujo resultado é o atraso na satisfação plena do crédito tributário mediante a sua extinção eficaz. Em outras palavras, o fim prestigiado pelas limitações e penalidades acima expostas pode ser compreendido como o adequado equilíbrio entre o direito de compensar créditos líquidos e certos do contribuinte em face da Fazenda Pública e o poder-dever desta última em assegurar um meio eficiente de extinção do crédito tributário, sem que isso acarrete atraso indevido no ingresso de recursos aos cofres públicos. A finalidade buscada é legítima, por ser prestigiada pelo princípio da indisponibilidade do crédito tributário, mas resta saber se os meios são legítimos.
Desse modo, uma vez preenchidos os pressupostos de aplicação do teste de proporcionalidade – o que, a toda evidência, ocorre em se tratando de limitações e penalidades no âmbito da compensação tributária –, é imperioso que se proceda à sua aplicação mediante três subtestes, formulados na forma de questões a serem respondidas40:
(i) teste de adequação (i.e., a medida é apta à concretização da finalidade pretendida?); (ii) teste de necessidade (i.e., a medida é a menos restritiva possível aos direitos envolvidos para que se atinja a finalidade pretendida?); e (iii) teste de proporcionalidade em sentido estrito (i.e., a finalidade pública é valorosa a ponto de justificar tamanha restrição?).
Entendemos que apenas as limitações e penalidades que passem pelo teste de proporcionalidade estarão de acordo com o art. 170 do CTN.
Síntese parcial
Em breve síntese, é possível concluir que o direito à compensação nasce no exato momento em que o legislador ordinário (federal, estadual, municipal ou distrital) exerce a prerrogativa prevista pela norma de competência de que trata o art. 170 do CTN, de modo a passar a prever a compensação tributária como instrumento hábil à extinção do crédito tributário. Até então, não há direito à compensação.
No entanto, a partir do momento da sua instituição, a compensação tributária passa a se tornar um direito do contribuinte. Como resultado da aplicação dos métodos de interpretação literal, lógica, sistemática e teleológica, o art. 170 do CTN não pode ser interpretado como uma norma de competência que confere liberdade ampla e irrestrita ao legislador ordinário para condicionar o exercício do direito à compensação a limitações e penalidades. A uma porque a expressão “a lei pode [...] autorizar a compensação” não permite que, ao autorizar a compensação, o legislador venha a anular, no todo ou em parte,
o direito creditório do contribuinte, pois, além de ser ilógica a ideia de que o poder de autorizar algo envolve o poder de anular no todo ou em parte essa mesma coisa, contraria
o núcleo do significado do verbo “autorizar”. A duas porque o art. 170 do CTN há de ser
interpretado sistematicamente com as demais normas do ordenamento jurídico, em especial: (i) o direito à propriedade; (ii) os direitos que dão causa aos créditos líquidos e certos apurados pelo contribuinte em face da Fazenda Pública; e (iii) o princípio da segurança jurídica, os quais afastam, também, uma leitura do art. 170 do CTN favorável à tese da liberdade ampla e irrestrita do legislador ordinário. A três porque a finalidade da compensação tributária é o encontro de contas entre Fisco e contribuinte, através de um mecanismo célere, prático e seguro para ambas as partes, o que, evidentemente, não se coaduna com a imposição de limitações e penalidades excessivas por parte do legislador ordinário, sobretudo quando, em algumas situações, tornem impraticável o exercício do direito creditório em toda a sua extensão.
Pelas razões apontadas, entendemos que, ao disciplinar a compensação tributária, as limitações e penalidades que venham a ser impostas pelo legislador ordinário devem atender ao teste de proporcionalidade como condição para a sua validade jurídica.
O ABUSO DO DIREITO DE COMPENSAR
É no contexto do encontro de contas entre Fisco e contribuintes que se coloca o debate acerca da extensão do abuso do direito de compensar e das possíveis estratégias destinadas a evitá-lo.
Por “abuso de direito”, nos referimos às situações em que há uma conduta do particular que contraria os fins sociais e econômicos pretendidos pela ordem jurídica em relação ao ato ou negócio jurídico praticado (ou seja, o exercício do direito). É dizer: todo o direito possui finalidades e funções próprias determinadas pelo próprio ordenamento jurídico, de modo que tais finalidades e funções atuam como um “limite funcional do direito”, razão pela qual
o exercício de um direito não pode alterar a sua função objetiva41. Trata-se da chamada “teoria finalística”, acolhida pelo Código Civil de 200242, e aplicada, ainda que de modo não plenamente consistente, pelo CARF, sobretudo no contexto de reorganizações societárias (i.e., o direito de auto-organização).
Um dos precedentes paradigmáticos da concepção finalística é o Acórdão n. 101-95.552 (ainda do então Conselho de Contribuintes)43, proferido em 2006, em que a teoria do abuso
de direito foi aplicada pelo Conselho e o abuso de direito foi qualificado como “o desnaturamento da função objetiva do ato”, de modo que, se a finalidade objetiva de um ato é simplesmente pagar menos tributos, resta caracterizada a figura do abuso.
Posteriormente, observa-se, em certa medida, decisões do CARF que ora reconhecem a existência da figura do abuso de direito no Direito Tributário Brasileiro, ora não. Citem-se, como exemplo da primeira vertente, os Acórdãos n. 1402.002.12544 e n. 1401-001.57545, em que se reafirmou a aplicação da teoria do abuso do direito, entendendo-se como finalidade abusiva a ausência de qualquer propósito negocial no exercício do direito (de auto- organização, objeto de análise nos acórdãos citados). Por outro lado, como exemplo ilustrativo da segunda vertente que defende a inaplicabilidade da teoria do abuso de direito na esfera do Direito Tributário pátrio, confira-se o Acórdão n. 2202-02.18746, no qual restou decidido que “não há base no sistema jurídico brasileiro para a autoridade fiscal afastar a não incidência legal, sob a alegação de entender estar havendo abuso de direito”.
A despeito das controvérsias que o tema suscita, não podemos ignorar que a teoria do abuso de direito é frequentemente aplicada, tanto pelos operadores do direito quanto pelas cortes, razão pela qual impõe-se a investigação da sua aplicação na esfera da compensação tributária.
No âmbito da compensação tributária, o direito a ser considerado é o direito à compensação que, conforme sustentamos anteriormente, nasce com a sua previsão em lei ordinária. A finalidade e a função deste direito é, como antecipado anteriormente, prover praticabilidade e eficiência dos mecanismos de restituição de pagamentos indevidos (direito creditório dotado de liquidez e certeza) e de extinção de créditos tributários (igualmente dotados de liquidez e certeza incontestáveis), assegurando maior racionalidade ao encontro de contas entre Fisco e contribuinte.
Neste contexto, revela-se abusivo o exercício do direito à compensação nas hipóteses em que o contribuinte se utiliza da compensação tributária como meio para se alcançar finalidade diversa da extinção do crédito tributário com créditos líquidos e certos. Embora a caracterização de dano não seja um requisito obrigatório para a aferição do abuso de direito, não se pode desprezar que, no âmbito da compensação tributária, o prejuízo causado ao Fisco pelo exercício abusivo do direito é o atraso no ingresso de receitas tributárias nos cofres públicos.
O abuso de direito ocorre, neste contexto, quando o contribuinte, sabendo não possuir crédito líquido e certo em face do Fisco, se utiliza da compensação com a finalidade exclusiva de postergar o pagamento de tributos devidos e assegurar a suspensão da exigibilidade dos referidos débitos, mediante a apresentação da própria declaração de compensação (cuja eficácia é imediata por subordinar-se a uma condição resolutória47) e, posteriormente, da defesa e do recurso perante a esfera administrativa, até que seja proferida decisão final acerca da homologação da compensação tributária. Em obra de inegável importância destinada ao tema das multas no Direito Tributário, Bruno Fajersztajn destaca ser comum, na realidade prática, o uso da compensação como forma indireta de financiamento do contribuinte, conduta esta que, conforme defende o autor, seria totalmente contrária ao espírito da legislação que permite o encontro de contas48.
Neste ponto, cumpre, no entanto, que se faça uma breve advertência: não é abusivo o exercício do direito à compensação nas hipóteses em que a existência do crédito líquido e certo do contribuinte perante o Fisco é uma questão controvertida. Assim, por exemplo, se o contribuinte decide retificar as suas declarações fiscais para considerar, na apuração das suas contribuições sociais (PIS e COFINS) a pagar, créditos decorrentes de insumos não considerados anteriormente no seu cálculo, o fato de, posteriormente, em fase contenciosa, decidir-se pela impossibilidade de qualificação da despesa incorrida como insumo para fins da legislação das contribuições sociais, não torna o exercício do direito à compensação abusivo.
Portanto, as limitações e penalidades aplicáveis no âmbito das compensações tributárias deverão ter sempre por finalidade coibir as situações de abuso no exercício do direito de compensar e serem proporcionais, nos moldes expostos acima, para coibir exclusivamente o abuso e não o exercício do direito de compensar. Fora das situações em que há abuso do exercício do direito de compensar, salvo raras exceções que deverão ser justificadas por finalidades igualmente prestigiadas pelo ordenamento jurídico, não há espaço para cogitar a restrição ou a imposição de penalidades ao direito de tributar.
A COMPENSAÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS
Características gerais
No âmbito federal, a compensação tributária foi originalmente disciplinada pelo art. 66 da Lei n. 8.383/1991, hipótese em que ao contribuinte era permitido efetuar a compensação de
créditos líquidos e certos de tributos com tributos de mesma espécie, independentemente de autorização por parte da RFB49.
Posteriormente, a compensação dos tributos federais administrados pela RFB, exceto os de natureza previdenciária, foi disciplinada pelo art. 74 da Lei n. 9.430/1996, tendo sido alterado por diversos diplomas legais que lhe sucederam. Neste momento, o direito à compensação tributária de tributos federais está disciplinado do seguinte modo:
“Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.
§ 1º A compensação de que trata o caput será efetuada mediante a entrega, pelo
sujeito passivo, de declaração na qual constarão informações relativas aos créditos utilizados e aos respectivos débitos compensados.
§ 2º A compensação declarada à Secretaria da Receita Federal extingue o crédito tributário, sob condição resolutória de sua ulterior homologação.
[...]
§ 5º O prazo para homologação da compensação declarada pelo sujeito passivo será de 5 (cinco) anos, contado da data da entrega da declaração de compensação.
§ 6º A declaração de compensação constitui confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente para a exigência dos débitos indevidamente compensados.
[...]”
Observa-se, a partir da análise da evolução do dispositivo legal ora analisado, que, na redação original da Lei n. 9.430/1996, a compensação de tributos federais estava sujeita ao regime autorizativo, em que o contribuinte requeria e o Fisco federal poderia (ou não) autorizar a utilização de créditos líquidos e certos para compensar débitos fiscais. No entanto, com o advento da Lei n. 10.637/2002, deixou-se de lado o regime autorizativo então vigente, para se adotar um regime declaratório.
No regime declaratório, que persiste até os dias de hoje, o Fisco federal passa a ter a obrigação de proceder à compensação, uma vez preenchidos os requisitos legais formais e materiais. É no âmbito do regime declaratório que nós entendemos que teria surgido o direito à compensação tributária de que tratamos anteriormente, já que, uma vez preenchidos os pressupostos legais, o Fisco federal não tem outra opção que não homologar a compensação tributária.
Atualmente, a compensação há de ser realizada por meio de declaração eletrônica que tem eficácia imediata, extinguindo o crédito tributário “sob condição resolutória da sua ulterior homologação”. O Fisco Federal tem o prazo de cinco anos para homologar a compensação
– ou seja, verificar se o encontro de contas se ampara em direito creditório líquido e certo e se os pressupostos legais se fazem presentes – ao final do qual, não havendo a sua manifestação, se opera a homologação tácita. Não sendo homologada a compensação, no todo ou em parte, é possível instaurar o contencioso administrativo que poderá culminar na apreciação da questão pelo CARF.
Ainda em sede de considerações gerais, vale a pena destacar que a declaração de compensação possui eficácia constitutiva de dívida fiscal – ou seja, do crédito tributário – do contribuinte em face do Fisco federal. Isso significa que, uma vez que determinado débito seja declarado em declaração de compensação, a dívida constituída é dotada de liquidez e certeza podendo ser objeto de inscrição em dívida ativa da União e cobrança executiva, sendo dispensado o lançamento de ofício para a sua cobrança50-51.
É a partir desta premissa que se desenvolveu, na jurisprudência do CARF, a noção de que, no processo de compensação, discute-se, apenas, o direito creditório, e não os débitos fiscais, já que estes são dados como líquidos e certos após a sua declaração em Declaração de Compensação (DCOMP) e Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF), ambas com efeito constitutivo de dívida fiscal. Ou seja: no âmbito do CARF, prevalece o entendimento de que os efeitos da confissão da dívida são absolutos, de modo a influir na própria delimitação da lide instaurada nas hipóteses em que o sujeito passivo contesta (mediante manifestação de inconformidade) os despachos decisórios que não homologam, no todo ou em parte, as compensações pleiteadas52.
Essa visão é, a nosso ver, equivocada, pois ignora que a compensação é um encontro de contas, em que tanto créditos quanto débitos devem ser passíveis de revisão, relativizando- se o efeito constitutivo de dívida fiscal da DCOMP e DCTF especialmente nas hipóteses em que os tributos confessados não se reputam devidos (e.g., por decadência ou, ainda, pela sua natureza, tal como ocorre com os débitos de estimativas mensais após o encerramento do ano-calendário).
É digno de elogios, neste sentido, o Acórdão n. 9101-003.492, em que a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) decidiu, por maioria de votos, que, no processo de compensação, são passíveis de discussão tanto o crédito utilizado quanto os débitos53. O caso merece elogios, também, por ter identificado, corretamente a nosso ver, que, sendo os débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL, após o término do ano-calendário, estes não seriam mais devidos, tendo sido aplicada a Súmula n. 82 do CARF54, ao caso concreto, mesmo em se tratando de processo oriundo de compensação tributária e não lançamento de ofício.
Feitos esses esclarecimentos, é importante pontuar que chama atenção a progressiva previsão, ao longo do tempo, de vedações e penalidades aplicáveis à compensação tributária, que serão analisadas em maiores detalhes, na sequência.
As limitações e penalidades legais aplicáveis à compensação de tributos federais
Na sequência, analisaremos: (i) o panorama das limitações legais à compensação tributária, com foco especial para duas limitações específicas – a saber: a vedação à compensação de estimativas mensais de IRPJ e CSLL e a vedação à compensação de parcelas de parcelamento em curso; e (ii) as penalidades aplicáveis ao exercício do direito de compensar, em situações envolvendo tanto a mera não homologação da compensação quanto a falsidade de declaração ou compensações consideradas “não declaradas”, pelo Fisco.
As limitações legais à compensação de tributos federais
O § 3º do art. 74 traz, ao longo dos seus nove incisos, diversas limitações à compensação de tributos federais em virtude da natureza do direito creditório ou dos débitos fiscais em questão. Com efeito, o rol de hipóteses de vedação à compensação tributária só aumentou no decorrer dos anos. Confira-se, abaixo, o teor atual do dispositivo ora analisado:
“Art. 74. [...]
§ 3º Além das hipóteses previstas nas leis específicas de cada tributo ou contribuição, não poderão ser objeto de compensação mediante entrega, pelo sujeito passivo, da declaração referida no § 1º:
– o saldo a restituir apurado na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda da Pessoa Física;
– os débitos relativos a tributos e contribuições devidos no registro da Declaração de Importação;
– os débitos relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal que já tenham sido encaminhados à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para inscrição em Dívida Ativa da União;
– o débito consolidado em qualquer modalidade de parcelamento concedido pela Secretaria da Receita Federal – SRF;
– o débito que já tenha sido objeto de compensação não homologada, ainda que a compensação se encontre pendente de decisão definitiva na esfera administrativa; VI – o valor objeto de pedido de restituição ou de ressarcimento já indeferido pela autoridade competente da Secretaria da Receita Federal do Brasil, ainda que o pedido se encontre pendente de decisão definitiva na esfera administrativa;
– o crédito objeto de pedido de restituição ou ressarcimento e o crédito informado em declaração de compensação cuja confirmação de liquidez e certeza esteja sob procedimento fiscal;
– os valores de quotas de salário-família e salário-maternidade;
– os débitos relativos ao recolhimento mensal por estimativa do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) apurados na forma do art. 2º desta Lei.”
Analisando as limitações ao direito de compensar apontadas acima, observa-se que, em sua expressiva maioria, as limitações têm por finalidade favorecer a arrecadação tributária e evitar o abuso do direito de compensar, por parte do contribuinte, sobretudo a sua mais notória consequência: a postergação indefinida da extinção efetiva de débitos tributários55.
Ocorre que as finalidades apontadas – coibir o abuso e evitar a postergação da extinção efetiva do crédito tributário –, embora sejam legítimas, não autorizam que medidas notoriamente desproporcionais venham a ser empregadas para a sua concretização.
Na sequência, sem a pretensão de esgotar o tema, haja vista não ser o nosso propósito analisar a adequação de todas as limitações apontadas ao princípio da proporcionalidade, propomos a análise de duas vedações legais à compensação tributária: (i) a vedação à compensação de estimativas mensais de IRPJ e CSLL; e (ii) a vedação à compensação de parcelas de parcelamentos em curso.
Vedação à compensação de débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL
Antes de compreendermos no que consiste a vedação que será ora analisada, é importante que sejam feitos alguns esclarecimentos preliminares quanto aos débitos objeto de tal vedação. Nos termos da legislação tributária federal (Lei n. 9.430/1996), as pessoas jurídicas
que apuram o Lucro Real, em regra, se submetem ao regime de apuração trimestral, sendo devido o IRPJ e a CSLL do período, em quota única, até o último dia do mês subsequente ao do encerramento do período de apuração (cf. arts. 1º e 5º). No entanto, é possível que a pessoa jurídica opte pelo regime de apuração anual, devendo, neste caso, calcular o IRPJ e a CSLL devidos mensalmente, com base em base de cálculo estimada, e proceder ao seu recolhimento (cf. arts. 2º e 6º).
No Lucro Real anual, o fato gerador do IRPJ e da CSLL reputa-se ocorrido em 31 de dezembro de cada ano-calendário. É por esta razão que os recolhimentos mensais possuem natureza jurídica sui generis: são uma antecipação, calculada a partir de base de cálculo estimada, do tributo que será devido ao final do ano-calendário. Por um lado, caso os valores antecipados durante o ano sejam inferiores ao montante devido ao final do ano- calendário, o contribuinte deverá providenciar o recolhimento de um complemento dos tributos devidos. Por outro lado, caso os valores recolhidos ao longo do ano-calendário ultrapassem o montante apurado ao final do ano-calendário (não obstante os balancetes de suspensão e redução), haverá a apuração de “saldo negativo” – que nada mais é do que pagamento indevido oriundo da sistemática específica do Lucro Real anual – o qual poderá ser compensado com débitos fiscais federais diversos e, ao menos até o advento da Lei n. 13.670/2018, também podia ser compensado com débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL apuradas nos períodos de apuração subsequentes.
Admite-se, no Lucro Real anual, a adoção de balancetes de suspensão e redução que têm por finalidade ajustar, durante o ano-calendário, o valor das estimativas devidas, de modo a evitar que o cálculo dos tributos, a partir de base estimada, enseje antecipações muito superiores ao que será efetivamente devido. Ainda assim, os balancetes de suspensão e redução não são capazes de evitar a formação de saldos negativos de IRPJ e CSLL especialmente quando a pessoa jurídica (contribuinte) sofre retenções dos tributos apontados por fontes pagadoras.
Ocorre que, com o passar do tempo, a compensação de estimativas mensais de IRPJ e CSLL ocasionou um problema chamado “saldo negativo em cascata”, o qual consiste na repercussão que ocorre quando os saldos negativos são utilizados para a compensação de estimativas mensais que comporão o saldo negativo de anos posteriores – por exemplo, o saldo negativo apurado no ano 1 pode ser compensado com estimativas que comporão o saldo negativo do ano 2, e este poderá ser compensado com estimativas que comporão o saldo negativo do ano 3 (e assim por diante). Nestes casos, uma vez glosado o saldo negativo utilizado em um primeiro momento, as compensações das estimativas passam a não ser homologadas, reduzindo o saldo negativo por elas formado, em efeito “em cascata” até se chegar à última compensação.
Diante deste desafio, a RFB e a Procuradora-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) trilharam caminhos inicialmente distintos para enfrentar este problema.
A primeira solução foi defendida pela RFB. Nos termos da Solução de Consulta Interna COSIT n. 18, de 13 de outubro de 200656, a RFB manifestou o entendimento de que a não homologação de débitos de estimativas de IRPJ e CSLL declaradas em DCTF e/ou em PER/DCOMP não deve dar ensejo à glosa do respectivo saldo negativo. Isto porque, tais débitos serão inexoravelmente objeto de cobrança executiva, em vista do efeito constitutivo de dívida decorrente da sua declaração (confissão) em declaração de compensação.
Em síntese, sob a perspectiva da RFB, sendo inexorável a cobrança dos valores das estimativas na via executiva, o saldo negativo do qual as estimativas fazem parte há de ser mantido incólume. Este entendimento foi, inclusive, chancelado pela jurisprudência recente do E. CARF, em diversos precedentes57.
A segunda solução foi defendida pela PGFN. No Parecer PGFN/CAT/N. 1.658/2011 e no Parecer PGFN/CAT/N. 193/2013, a PGFN posicionou-se no sentido de ser inviável a inscrição da estimativa mensal quitada por declaração de compensação (PER/DCOMP) não homologada em Dívida Ativa da União (DAU). O fundamento que justifica esta perspectiva é a natureza de mera antecipação das estimativas, de modo que, uma vez encerrado o ano- calendário, a sua existência perde razão de ser, sendo devido o tributo propriamente a título de “ajuste”. A solução consistia, portanto, em glosar o saldo negativo formado pela estimativa cuja compensação não fosse homologada, o que acabava por perpetuar o problema do efeito em cascata da glosa nos saldos negativos posteriores.
Posteriormente, por ocasião da publicação do Parecer PGFN/CAT/N. 88/2014, o entendimento presente nos pareceres apontadas acima foi revertido, sem que, na visão da PGFN, houvesse a alteração dos seus fundamentos. Conquanto a PGFN tenha reafirmado que, com a ocorrência do fato gerador do IRPJ e da CSLL, em 31 de dezembro, a estimativa deixa de possuir razão de ser, passando a assumir a natureza do tributo propriamente (operar-se-ia uma “transformação” da estimativa em tributo devido propriamente), neste
momento, a PGFN passou a admitir a sua cobrança, não mais sob o rótulo de estimativa,
mas sob a feição de tributo (resultado da “transformação” da estimativa).
Houve, neste sentido, certo alinhamento da visão defendida pela PGFN com a da RFB por meio da solução de consulta analisada anterior. Este relativo alinhamento veio a ser reconhecido pela RFB através do Parecer Normativo COSIT/RFB N. 02/2018 que, de modo geral, reiterou o entendimento presente na Solução de Consulta Interna n. 18/2006, tendo feito alterações pontuais no entendimento anteriormente firmado.
A despeito do entendimento que foi sendo progressivamente construído a partir da interação entre a RFB e a PGFN ao longo do tempo e, em grande medida, chancelada pela jurisprudência do CARF, o legislador ordinário optou por uma “drástica” medida destinada a colocar fim ao problema apontado: a vedação total à compensação de débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL. Com efeito, foi através da Lei n. 13.670/2018, cujo art. 6º veio a adicionar o inciso IX ao § 3º do art. 74 da Lei n. 9.430/1996, que débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL não puderam mais ser objeto de compensação tributária.
A mens legis que orientou tal medida foi, a par da antecipação de caixa para o Erário Público pautada na absurda generalização da presunção de que tais compensações se revelam indevidas em alguns casos, buscar uma solução para o problema do “saldo negativo em cascata” ora tratado58.
Entendemos que a limitação ora analisada ofende o princípio da proporcionalidade.
Em primeiro lugar, a finalidade pretendida consiste, conforme restou demonstrado, em assegurar a entrada imediata de recursos nos cofres públicos e evitar a formação de saldos negativos em cascata. Não parece haver muitas dúvidas de que a medida é, de fato, apta a alcançar tal finalidade. Logo, devemos reconhecer que a medida atende ao teste de adequação.
Em segundo lugar, em que pese a medida ser apta para concretizar a finalidade apontada (i.e., é adequada aos fins propostos), a medida nitidamente excede ao que é necessário para se alcançar a finalidade almejada (i.e., coibir a formação de saldos negativos em cascata e
adiantar a entrada de recursos nos cofres públicos), haja vista que trata contribuintes de boa-fé (i.e., aqueles que possuem créditos líquidos e certos para efetuar compensações tributárias) e de má-fé (i.e., aqueles que sabidamente não possuem pretensão creditória alguma) da mesma forma. Lembre-se que a formação de saldos negativos em cascata só ocorre quando não há crédito líquido e certo para a compensação de estimativas mensais. Do contrário, não há riscos de glosa em cascata de saldos negativos.
Além disso, a própria evolução do trato do tema conferido pela RFB e PGFN já demonstra que outras medidas igualmente aptas, porém menos restritivas aos direitos dos contribuintes aqui tratados, já vinham sendo aplicadas, com relativo sucesso. Ou seja: com a inscrição dos débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL em dívida ativa e a sua posterior cobrança executiva, já se resguardava o crédito necessário para toda a cadeia de compensações e, ao mesmo tempo, resguardava o direito à compensação de contribuintes de boa-fé. Logo, a vedação legal aqui discutida não passa pelo teste de necessidade.
Em terceiro lugar, a finalidade buscada pela restrição ao direito de compensar estimativas mensais de IRPJ e CSLL não é valiosa a ponto de justificar o sacrifício do crédito líquido e certo do contribuinte, o que pode ocorrer a depender das circunstância do caso concreto, em nítida ofensa aos direitos e garantias que amparam o direito à compensação tributária (i.e., o direito de propriedade, o direito sob o qual se fundamenta as ações judiciais que reconhecem direito creditório a favor do contribuinte e o próprio princípio da segurança jurídica).
Não é difícil imaginar situações em que o direito do contribuinte à compensação se encontre ameaçado, caso ele não possa realizar a compensação do seu crédito líquido e certo com débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL.
Imaginemos uma empresa que tenha a favor de si o reconhecimento judicial em caráter definitivo, em sede de mandado de segurança, do direito de compensar crédito oriundo do pagamento indevido da contribuição ao PIS e da COFINS, em razão da inclusão do ICMS na sua base de cálculo, em consonância com o Recurso Extraordinário n. 574.706/PR, decidido pelo STF sob o rito da repercussão geral59. Neste caso, o crédito reconhecido judicialmente deverá ser habilitado perante a RFB e, uma vez deferida a habilitação, poderão ser compensados débitos fiscais federais do contribuinte. Ocorre que, apesar de o CTN não ser expresso a este respeito, o direito de compensar se subordina ao mesmo prazo prescricional de cinco anos ao qual se subordina qualquer pagamento indevido, nos termos do art. 103 da IN RFB n. 1.717/201760 e do Parecer Normativo RFB n. 11/201461. Desse modo,
uma vez tendo ocorrido o chamado “trânsito em julgado” da ação judicial, o contribuinte terá cinco anos para efetuar a compensação integral dos valores reconhecidos judicialmente, após o qual perderá o crédito que porventura deixar de ser compensado62.
Diante deste cenário, questiona-se: o que ocorrerá se, dentro do prazo prescricional de cinco anos, o contribuinte não tiver débitos fiscais suficientes para absorver todo o direito creditório reconhecido judicialmente?
Há duas possíveis respostas para esta questão. Por um lado, caso sejam respeitados tanto o prazo prescricional de cinco anos quanto as limitações ao direito de compensar (dentre as quais a que ora está sendo discutida), parte do crédito será inevitavelmente perdido. Ocorre que o sacrifício de parte do crédito não se coaduna com os direitos que amparam o direito ao crédito por parte do contribuinte. Haveria inegável ofensa ao direito à propriedade e, sobretudo, ao direito sobre o qual se fundamenta o reconhecimento judicial do crédito em questão. Por outro lado, o direito à compensação do crédito poderá ser plenamente respeitado caso sejam afastados ou bem as vedações ao direito de compensar (em especial, aquelas que não passam pelo crivo do princípio da proporcionalidade, como é o caso da proibição à compensação de débitos de estimativas mensais) ou bem o prazo prescricional de cinco anos.
Por todo o exposto, o que se vê é que, no plano abstrato, a vedação à compensação de estimativas de IRPJ e CSLL não atende ao princípio da proporcionalidade, fato que é comprovado e ainda agravado quando, no plano concreto, o contribuinte vê o seu direito creditório ameaçado ante a impossibilidade de compensá-lo, em sua integralidade, dentro do prazo prescricional aplicável.
Vedação à compensação de parcelas de parcelamentos em curso
No Direito Tributário brasileiro, o parcelamento é uma hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário63. Há, em suma, duas categorias em sentido amplo de parcelamentos no Direito Tributário brasileiro: (i) o parcelamento ordinário, que pode ser
pleiteado a qualquer momento pelo contribuinte, desde que atendidas as condições previstas na legislação federal (referente a limites de valores de débitos fiscais e prazo máximo para o pagamento integral do débito fiscal); e (ii) os parcelamentos especiais, disciplinados por leis próprias que se tornaram frequentes nas últimas duas décadas, em que, além do parcelamento em si dos débitos fiscais, a lei concede descontos sobre juros e anistia total ou parcial de multas.
Muitas das considerações apontadas acima, no tocante à vedação ao direito de compensar débitos de estimativas mensais de IRPJ e CSLL, se aplicam, também, à proibição à compensação de parcelas de parcelamentos em curso. Ou seja: também no presente caso, há ofensa ao princípio da proporcionalidade.
Sob a perspectiva da finalidade buscada pela vedação ora tratada, como já tivemos a oportunidade de demonstrar acima, o que se buscou foi a antecipação da entrada de valores nos cofres públicos e evitar que, mediante a conjugação do parcelamento, enquanto hipótese de suspensão do crédito tributário, e da compensação, enquanto hipótese de extinção do crédito tributário cuja eficácia é imediata, o contribuinte se utilize de crédito sabidamente inexistente para postergar o pagamento dos seus débitos fiscais.
Iniciando-se pelo teste de adequação, tal como ocorreu no caso anterior, não há dúvidas de que a vedação legal aqui tratada também é apta a prover a antecipação de entrada de recursos nos cofres públicos e a evitar que o contribuinte se utilize da compensação conjugada com o parcelamento para postergar o pagamento de tributos devidos. Logo, é forçoso reconhecer que a medida atende ao teste de adequação.
Passando-se ao teste de necessidade, o que se vê é que, ao tratar contribuintes de boa-fé e má-fé da mesma forma, a vedação aqui tratada acaba por ir muito além do que seria necessário para concretizar a finalidade pretendida. Ora, novamente o que se vê é o recurso a uma presunção absoluta de que todo contribuinte se utilizará do parcelamento e da compensação de parcelas devidas como expediente para postergar o pagamento de tributos, de modo a alcançar um resultado mais vantajoso do que o parcelamento em si já propicia em termos de diferimento do pagamento de tributos. Esta presunção ignora que muitos contribuintes de boa-fé se utilizam de créditos líquidos e certas para compensar débitos fiscais vencidos ou vincendos. Por esta razão, entendemos que a medida não passa pelo teste de necessidade.
Em terceiro lugar, passando-se ao teste de proporcionalidade em sentido estrito, observa- se que a finalidade pública buscada – evitar a postergação indefinida do recolhimento de tributos praticada por contribuintes de má-fé – também não justifica a restrição demasiada que o contribuinte poderá vir a sofrer no tocante ao aproveitamento do seu direito creditório.
Aqui, também, não é difícil imaginar um cenário em que o contribuinte pode vir a ter parte do seu crédito sacrificado caso não possa compensar direito creditório reconhecido judicialmente com débitos de parcelas de parcelamentos em curso. Imagine-se, a título de exemplo, que uma entidade filantrópica tenha em curso um parcelamento relativo a débitos fiscais federais relativos a período passado, em que a entidade não atendia aos requisitos previstos na legislação tributária para a fruição da imunidade constitucional. Imagine-se, ainda, que, após ter preenchido os requisitos legais para a fruição da imunidade, a entidade tenha obtido, também, decisão judicial reconhecendo-lhe o direito de não se submeter à incidência da contribuição ao PIS incidente sobre a folha de salários, prevista no art. 13, incisos III e IV, da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, em consonância com o Recurso Extraordinário n. 636.941/RS, decidido sob o rito da repercussão geral64.
No caso ora narrado, tendo a entidade recolhido contribuição ao PIS após o início da fruição da sua imunidade constitucional, e não se submetendo a nenhum outro tributo federal, questiona-se: com quais débitos fiscais, senão as parcelas do parcelamento tributário em curso, poderá a entidade compensar o seu crédito reconhecido judicialmente?
Caso não seja afastada a vedação legal ora analisada, será forçoso reconhecer que o crédito reconhecido judicialmente será sacrificado.
Não restam dúvidas, portanto, quanto à manifesta desproporcionalidade da medida que, além de não passar pelo teste de adequação, tampouco é capaz dos testes de necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
As penalidades aplicáveis à compensação de tributos federais
No campo das penalidades, observa-se que há duas hipóteses centrais de aplicação da multa no contexto da compensação tributária: (i) multa aplicável em virtude da não homologação de compensação tributária; e (ii) multa aplicável na hipótese de falsidade e má-fé.
Na sequência, ambas as hipóteses serão analisadas.
Penalidade aplicável pela mera não homologação da compensação
Após a transmissão da declaração de compensação, compete à autoridade fiscal homologar a compensação – i.e., o encontro de contas – dentro do prazo de cinco anos. Não homologada a compensação tributária, a autoridade fiscal poderá constituir multa no percentual de 50% sobre o valor do débito, nos termos dos §§ 17 e 18 do art. 74 da Lei n. 9.430/1996, incluídos pela Lei n. 13.097/2015. Confira-se:
“Art. 74. [...]
§ 17. Será aplicada multa isolada de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada, salvo no caso de falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo.
§ 18. No caso de apresentação de manifestação de inconformidade contra a não homologação da compensação, fica suspensa a exigibilidade da multa de ofício de que trata o § 17, ainda que não impugnada essa exigência, enquadrando-se no disposto no inciso III do art. 151 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.”
A multa aplicável sobre o valor do débito objeto da compensação não homologada deve ser constituída de ofício, mediante lançamento, em conformidade com o art. 142 do CTN. Embora o contribuinte detenha a prerrogativa de impugnar o lançamento da referida multa, o § 18 do art. 74 da Lei n. 9.430/1996, em nítido reconhecimento à relação de conexão entre as demandas, dispensa o contribuinte de impugnar a multa na hipótese de o contribuinte já ter apresentado manifestação de inconformidade para questionar a não homologação da compensação tributária pleiteada. Isso não impede, no entanto, que o contribuinte opte por impugnar a multa de ofício, trazendo novas alegações de defesa (autônomas em relação ao mérito da homologação da compensação).
Cumpre destacar que, anteriormente à previsão da multa pela Lei n. 13.097/2015, já se buscou instituir semelhante penalidade através da Lei n. 12.249/2010, a qual foi questionada por incidir sobre o montante dos créditos e não os débitos objeto de compensação tributária, o que implica perda de referibilidade para a adequada mensuração da penalidade adequada ao contribuinte (i.e., penalidade que pudesse ser mensurada na exata proporção do atraso sofrido pelo Fisco no recebimento de recursos)65.
A constitucionalidade desta multa, na sua feição atual, é objeto do Recurso Extraordinário
n. 769.939/RS, cuja repercussão geral já foi reconhecida pelo STF, bem como pela Ação Declaratória da Inconstitucionalidade n. 4.905. No momento em que este artigo está sendo escrito, o julgamento de ambas as ações ainda não foi concluído pela Suprema Corte.
Independentemente do resultado que esta questão venha a ter na esfera judicial, é o nosso entendimento que a multa pela mera não homologação, tal como proposta, é manifestamente inconstitucional, por ofender o direito de petição, previsto no art. 5º, inciso XXIV, alínea a, da Constituição Federal, bem como o próprio postulado da proporcionalidade.
A ofensa ao direito constitucional de petição é manifesta pois o contribuinte é punido por simplesmente pleitear administrativamente a compensação tributária. Não há, na aplicação da multa, a diferenciação entre as situações em que o contribuinte age de boa ou
má-fé. É evidente que, mesmo estando certo de possuir créditos líquidos e certos, se houver a possibilidade de que as autoridades fiscais venham a discordar da existência do referido direito creditório (em muitas ocasiões, porque o crédito é matéria controvertida nos tribunais administrativos e judiciais), o contribuinte se sentirá desencorajado a pleitear a compensação administrativa, mesmo que o seu pleito seja legítimo e de boa-fé.
O crédito pleiteado de boa-fé é aquele que, longe de ser manifestamente inexistente ou, ainda, objeto de fraude, é objeto de um pleito totalmente razoável e válido, ainda que controvertido, fato que deve ser decido pelos órgãos de julgamento administrativos e judiciais. Imagine-se, neste ponto, que o contribuinte decida realizar a reapuração da escrita fiscal da contribuição ao PIS e da COFINS, pois acredita que determinadas despesas incorridas com publicidade e propaganda dão ensejo a crédito das contribuições apuradas na sistemática não cumulativa. Digamos que, após longas discussões perante o CARF e os tribunais do Poder Judiciário, o contribuinte venha a ser derrotado e, consequentemente, o seu direito creditório venha a ser negado. Neste caso, é totalmente defensável a posição do contribuinte, sendo um pleito a priori válido, ainda que este venha a ser vencido e não obtenha êxito em sua tentativa. Havendo razoabilidade a priori do pleito, resta manifesta a boa-fé do contribuinte, não devendo a multa, neste caso, alcançá-lo, sob pena de induzi-lo a não exercer direitos em potencial de crédito perante a Administração Tributária. Ou seja: a multa, neste caso, dissuade o direito de peticionar, discutir, pleitear direito creditório perante o Fisco, que, em muitos casos, poderia se revelar plenamente válido, a depender da interpretação conferida pelos tribunais administrativos e judiciais sobre o direito creditório em discussão.
Sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade, tampouco há dúvidas de que a multa é manifestamente desproporcional66. Conquanto a finalidade seja legítima (i.e., induzir o contribuinte a compensar apenas créditos líquidos e certos, evitando que o Erário Público seja prejudicado com o atraso da satisfação do crédito tributário) e o meio apto à sua concretização, a medida excede manifestamente o necessário para o seu atingimento, haja vista que a penalidade se aplica irrestritamente a despeito de o contribuinte ter agido de boa-fé ou má-fé.
Os direitos constitucionalmente prestigiados que são restringidos com a previsão da multa pela não homologação são, como já apontado acima, o direito de petição, bem como o
próprio direito à propriedade, fulminado, em última instância, com o desincentivo ao exercício do direito de compensar ensejado pela previsão legal da penalidade.
Ademais, não cremos que o fato de a manutenção da multa estar condicionada ao julgamento do mérito da compensação tributária seja capaz de afastar os vícios de validade da multa aqui tratada.
Em primeiro lugar, a desproporcionalidade e a ofensa ao direito de petição devem ser aferidas ainda no plano da hipótese de incidência da multa, e não em momento posterior, pois, independentemente do resultado da discussão quanto à compensação, é fato que o efeito dissuasivo ao exercício do direito constitucionalmente tutelado provocado pela multa é iminente – i.e., no plano da hipótese abstrata de incidência tributária –, não estando condicionado ao resultado final do processo porventura instaurado.
Em segundo lugar, como visto acima, a multa alcança indistintamente tanto situações em que o contribuinte possui a priori um pleito razoável de crédito, sendo, portanto, um contribuinte de boa-fé, quanto hipóteses em que o contribuinte atua em nítida má-fé, como seria o caso de crédito notoriamente inexistente ou objeto de fraude. A circunstância de a multa se aplicar irrestritamente não é de modo algum infirmada pelo simples fato de que a manutenção da multa se encontra condicionada à decisão final acerca da procedência da compensação tributária.
Penalidade aplicável na hipótese de falsidade de declaração e compensação não declarada
Há, ainda, a previsão de multa para hipótese de falsidade e má-fé. Confira-se o art. 18 da Lei
n. 10.833/2003 (com redação dada pela Lei n. 11.488/2007):
“Art. 18. O lançamento de ofício de que trata o art. 90 da Medida Provisória nº 2.158- 35, de 24 de agosto de 2001, limitar-se-á à imposição de multa isolada em razão de não homologação da compensação quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo.
[...]
§ 2º A multa isolada a que se refere o caput deste artigo será aplicada no percentual previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, aplicado em dobro, e terá como base de cálculo o valor total do débito indevidamente compensado.
[...]
§ 4º Será também exigida multa isolada sobre o valor total do débito indevidamente compensado quando a compensação for considerada não declarada nas hipóteses do inciso II do § 12 do art. 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, aplicando-se
o percentual previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, duplicado na forma de seu § 1º, quando for o caso.
§ 5º Aplica-se o disposto no § 2º do art. 44 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, às hipóteses previstas nos §§ 2º e 4º deste artigo.
[...]”
Diferentemente da penalidade anteriormente analisada, neste caso, parece-nos que a multa se revela plenamente proporcional à finalidade pretendida, qual seja, penalizar o contribuinte de má-fé que se utiliza de declaração falsa ou, ainda, de “crédito” que não se reveste das condições mínimas – i.e., as condições que dizem respeito ao “conceito nuclear” de que trata o art. 170 do CTN (crédito próprio e dotado de liquidez e certeza) – para a compensação tributária, hipóteses em que a lei considera a compensação como “não declarada”67. Este é caso, por exemplo, das situações em que o contribuinte busca postergar indevidamente a extinção de débitos fiscais mediante o uso proposital de crédito de terceiro (e.g., crédito detido por empresa coligada do mesmo grupo societário) que, a toda evidência, não estão no escopo do art. 170 do CTN.
Neste caso, diversamente da multa devida pela mera não homologação da compensação tributária, a aplicação é delimitada aos contribuintes de má-fé. Neste caso, não há ofensa ao direito de petição, tampouco ao direito à propriedade, haja vista que sequer se pode cogitar de direito de propriedade a se resguardar.
CONCLUSÕES
Ao longo deste estudo, tivemos a oportunidade de revisitar noções basilares sobre o instituto da compensação no Direito Tributário. Assim, diversamente das visões até então defendidas, em que ora se nega e ora se defende a existência de um direito à compensação à partir do plano constitucional e da legislação complementar, firmamos o entendimento de que o direito à compensação tributária nasce com a lei ordinária.
O legislador ordinário não detém absoluta liberdade para regular o instituto, impondo quaisquer limitações e penalidades ao direito de compensar, pois o referido direito se encontra constitucionalmente tutelado, pelo direito à propriedade, o direito sob o qual se fundamento o direito creditório e o princípio da segurança jurídica. Assim, qualquer limitação ou penalidade que tenha finalidade legítima deverá forçosamente se adequar ao princípio da proporcionalidade para se aferir a adequação, a necessidade e a
proporcionalidade em sentido estrito da limitação ou penalidade em face da finalidade pretendida.
Coibir o abuso do direito de compensar é uma finalidade legítima, desde que nunca esteja pautado na presunção absoluta de que o contribuinte agirá com má-fé no sentido exclusivo de postergar a satisfação dos seus créditos tributários.
No âmbito da compensação de tributos administrados pela RFB, o que se observa é que as limitações e restrições raramente se adequam ao princípio da proporcionalidade. Ao analisarmos a vedação à compensação de estimativas mensais de IRPJ e CSLL, constatamos que, conquanto a finalidade prestigiada pelo legislador seja legítima, a limitação excede manifestamente o que seria necessário para a disciplina da questão, conforme demonstra o próprio histórico do modo como a RFB e a PGFN lidaram com o tema. Semelhante diagnóstico se aplica, também, à vedação à compensação de parcelas de parcelamentos em curso, haja vista que, neste caso, a medida também se mostra excessiva, indo muito além do que é necessário para alcançar a finalidade pretendida. Em ambos os casos, é possível vislumbrar cenários em que o direito creditório do contribuinte pode ser sacrificado no todo ou em parte, em vista da impossibilidade da sua compensação integral dentro do prazo prescricional aplicável. Nestes casos, entendemos que ou bem o prazo prescricional aplicável para o exercício do direito de compensar deverá ser relativizado para permitir que o contribuinte compense o seu crédito na sua integralidade quando não houver débitos suficientes passíveis de compensação, ou bem as limitações ao direito de compensar (as quais não se limitam àquelas objeto de análise específica neste artigo) deverão ser relevadas.
Passando-se às penalidades aplicáveis à compensação tributária, observa-se que, no tocante à multa aplicável pela mera não homologação da compensação, a sua previsão é manifestamente desproporcional, pois não distingue contribuintes de boa-fé e de má-fé, além de dissuadir o contribuinte de exercer o seu direito de petição, ou seja, o direito de pleitear a compensação de potencial crédito líquido e certo. Este diagnóstico, no entanto, não se aplica à multa aplicável às hipóteses de falsidade de declaração apresentada pelo contribuinte ou compensação não declarada, pois, em ambos os casos, é notória a má-fé do contribuinte e a inexistência de direito de propriedade a ser tutelado.
A análise das vedações e das penalidades aplicáveis à compensação tributária de tributos federais demonstra, claramente, que, ao exercer o seu direito, o contribuinte está sujeito a uma miríade de riscos que o colocam em uma situação de extrema insegurança jurídica: do risco de perda de parcela do seu direito creditório ao risco de sofrer penalidade injusta pelo mero exercício do direito de pleitear. Esta situação de insegurança jurídica, atualmente existente no âmbito da compensação de tributos federais, só poderá ser sanada se o contribuinte tiver certeza quanto à possibilidade jurídica de compensá-lo em sua plenitude e de que não sofrerá qualquer penalidade sempre que agir em manifesta boa-fé. Daí a
importância do respeito ao princípio da proporcionalidade na seara da compensação tributária.
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