A REGRA-MATRIZ DE MODULAÇÃO DOS EFEITOS (RMME) NA DECISÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

THE MATRIX-RULE TO MODULATE THE TEMPORAL EFFECTS OF UNCONSTITUTIONALITY DECISIONS IN THE AREA OF TAX LAW


Vinicius Dourado Loula Salum


Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários IBET. Especialista em Procuradoria Jurídica pelas Faculdades Integradas Ipitanga FACIIP. Especialista em Docência Universitária pela Universidade do Estado da BAHIA UNEB. Advogado em Irecê-BA. E-mail: viniciusdourado.adv@gmail.com


Recebido em: 26-07-2019

Aprovado em: 29-09-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-46-19


RESUMO


O artigo pretende construir uma regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME) nas decisões de inconstitucionalidade em matéria tributária. O trabalho transita pelo estudo tanto dos modelos de controle de constitucionalidade quanto do postulado da proporcionalidade, para, enfim, compreender as raízes do instituto da modulação dos efeitos, aplicando esta técnica na hipótese de decisão de inconstitucionalidade de norma jurídica de tributação e no caso da inconstitucionalidade de norma jurídica de desoneração tributária. Trata-se de uma norma de estrutura, que traz no antecedente (hipótese) a descrição de um fato cuja ocorrência somente se verifica após a aplicação do postulado da proporcionalidade em suas três dimensões (adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu), e no consequente prescreve a modificação do comando normativo que declara a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo do Poder Público.

PALAVRAS-CHAVE: CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE, POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE, MODULAÇÃO DE EFEITOS


ABSTRACT


The article intends to set up a matrix-rule to modulate the temporal effects of unconstitutionality decisions in the area of tax law. This paper entails studies about models of judicial review and proportionality principle, to finally, understand the basis of the institute of modulate temporal effects, to apply this technique when there is a decision about the unconstitutionality of tax rule and about the unconstitutionality of tax relief. Upon the achieved result it is an structural rule that establishes the hypothesis of a fact that only occurs after the application of the principle of proportionality in its three dimensions (adequacy, necessity and proportionality stricto sensu) and whose consequence is the modification of the normative command that declares the unconstitutionality of the law or normative act of the Public Power.

KEYWORDS: : JUDICIAL REVIEW, PROPORTIONALITY, EFFECTS LIMITATION


  1. INTRODUÇÃO

    O esquema lógico-formal da norma jurídica, que deu origem, inclusive, à chamada regra- matriz de incidência tributária (RMIT)1, longe de ser um recurso epistemológico restrito aos círculos didáticos do Direito Tributário – especialmente no que concerne à fenomenologia da incidência e aplicação da norma tributária –, revela-se, em verdade, como uma estrutura operacional perfeitamente aplicável ao fenômeno jurídico como um todo.

    Por força do princípio da homogeneidade sintática das regras de Direito2, é possível afirmar que, ali onde estiver presente a norma jurídica em sentido estrito, invariavelmente haverá uma unidade monádica, um esboço lógico, uma estrutura deôntica mínima que pode ser expressa consoante ao seguinte juízo hipotético-condicional: se “A” (hipótese), então deve ser “B” (consequência); assim formalizado em notação simbólica: “D (H ® C)”.


    Esta estrutura lógico-deôntica, que na verdade se aplica aos enunciados linguísticos prescritivos em geral, quando utilizada no âmbito do Direito Constitucional-Tributário, sobretudo em relação à sistemática de controle de constitucionalidade das normas tributárias, é capaz de abrir novos horizontes à compreensão de complexos institutos jurídicos, em especial o da modulação dos efeitos na decisão de inconstitucionalidade – que se constitui, conforme veremos, num atributo inerente ao controle de constitucionalidade e subserviente ao postulado da proporcionalidade.


    Neste diapasão, os estudos tanto do postulado da proporcionalidade quanto do controle de constitucionalidade, conjugados com um enfoque sintático da técnica modulatória, são excelente subsídio para a compreensão deste importante instituto jurídico, especialmente


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    1. Concebida de modo assaz magistral pelo Professor Dr. Paulo de Barros Carvalho, e tão amplamente seguida e desenvolvida por doutrinadores de escol.


    2. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 284-288.


      quando a decisão de inconstitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) envolver a instituição ou desoneração de tributos, ou mesmo a aplicação das normas tributárias de um modo geral – âmbito jurídico assaz sensível e onde frequentemente transitam razões de segurança jurídica, de excepcional interesse social, e uma gama enorme de valores e princípios constitucionais fundamentais.


      Não basta, entretanto, desenvolver e examinar a regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME) apenas sob o enfoque sintático sem levar em consideração sua vasta dimensão semântica e pragmática, haja vista não ser possível efetuar um corte na região subcutânea sem fazer incursões na derme e epiderme do tecido jurídico. Todavia, se por um lado é imperioso admitir a impossibilidade de esgotamento de tema tão complexo, mormente num artigo tão modesto quanto este, por outro não nos furtamos em contribuir – ainda que perfunctoriamente – com o diálogo científico.


  2. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

    A origem do moderno sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade e, especificamente, do modelo norte-americano, é atribuída ao caso Marbury versus Madison (1803)3. O caso é tido, por sua ampla repercussão, como o mais importante precedente acerca do controle de constitucionalidade pelo Judiciário (Judicial Review)4.


    Diz-se que o modelo norte-americano de controle de constitucionalidade é fundado exclusivamente na sistemática do controle difuso, incidental ou concreto justamente por conta do citado precedente, bem como das decisões posteriores que corroboraram a prática de controle nele consubstanciado5. Portanto, é característica especial do sistema norte- americano o fato de o controle de constitucionalidade poder ser exercido por todos os órgãos do Poder Judiciário (difuso), mediante provocação das partes envolvidas no litígio concreto, onde a questão constitucional não constitui o objeto principal da demanda, mas aparece como um mero incidente processual (daí também ser chamado controle incidental).


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    1. Para maior conhecimento da matéria fática envolvendo o referido precedente histórico, confira-se, entre outros, o excelente trabalho de Zeno Veloso (Controle jurisdicional de constitucionalidade: atualizado conforme as Leis 9.868, de 10.11.1999 e 9.882, de 03.12.1999. 3. ed. rev., atual., ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 3/10).


    2. Cf. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5.


    3. Analisando a história do surgimento do controle de constitucionalidade nos EUA, Marcelo Casseb Continentino traz a lume alguns julgados anteriores a Marbury, oriundos de diversas Cortes Estaduais e até da própria Suprema Corte, que, de igual modo, explicam a origem do judicial review no contexto norte-americano, tais como: Holmes v. Walton (1780), Rutgers v. Waddington (1784), Trevett v. Weeden (1786), Bayard v. Singleton (1787), Vanhorne’s Lessee v. Dorrance (1795) e Hylton v. United States (1796). Disto resulta que a origem do judicial review não deve ser explicada isoladamente pelo famoso Marbury v. Madison (1803), mas relaciona-se com outros dois importantes fatores: “primeiro, a prática judicial anterior a Marbury e à própria Constituição americana; segundo, a necessidade de limitar a autoridade do Poder Legislativo” (CONTINENTINO, Marcelo Casseb. História do judicial review: o mito de Marbury. Revista de Informação Legislativa: RIL vol. 53, n. 209, jan./mar. 2016, p. 115-132. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/53/209/ril_v53_n209_p115).


      Embora inicialmente a declaração de inconstitucionalidade somente produza efeitos entre as partes do processo, cumpre ressaltar que a decisão exarada pela Corte Suprema dos EUA possui a circunstância peculiar de adquirir caráter geral e vinculante, em razão principalmente do chamado stare decisis, que consiste na “obrigação da jurisdição de grau inferior seguir a decisão da jurisdição constitucional superior”6. No que se refere à eficácia temporal da decisão de inconstitucionalidade, tem-se, neste modelo, que a norma inconstitucional é considerada nula de pleno direito, e são absolutamente inválidos todos os atos praticados sob a sua égide.


      A teoria da nulidade da lei ou ato normativo inconstitucional surge no direito norte- americano com bastante vigor, para o qual a norma em desconformidade com a Constituição “é considerada absolutamente nula e írrita (null and void)”7. Disto deriva que a natureza da decisão judicial que proclama a inconstitucionalidade de determinada norma é meramente declaratória da situação fática inconstitucional (produz efeitos ex tunc). Destarte, consequência direta desta sistemática é que os atos realizados com base na norma viciada de inconstitucionalidade também devem ser considerados nulos ipso jure.

      O modelo austríaco de controle de constitucionalidade, ao revés, é predominantemente concentrado, principal e abstrato. É exercido direta e exclusivamente (daí a denominação concentrado) por um Tribunal que detém competência originária para conhecer questões de ordem eminentemente constitucionais, e cujas decisões possuem eficácia geral erga omnes. Neste caso, instaura-se um processo em que a questão constitucional é o próprio pedido (objeto) da demanda, constitui-se o núcleo principal da lide: a declaração de inconstitucionalidade de determinado ato normativo. Por conta disso, não se discute direito subjetivo ou relação jurídica concreta nesta sistemática, mas se faz um exame meramente abstrato de normas (controle da lei em tese) no intuito de verificar sua (in)conformidade com a Constituição.


      Com fundamento na teoria kelseniana, a Áustria adota o princípio da anulabilidade da norma inconstitucional. Neste modelo, uma lei inconstitucional não está maculada desde o início, pois, conforme defende Kelsen, a decisão judicial que reconhece a inconstitucionalidade da norma jurídica possui natureza constitutiva e não declaratória8. Consectário lógico é o fato da norma contrária à Constituição poder manter sua eficácia até o momento da decisão de inconstitucionalidade, uma vez que esta opera efeitos prospectivos ex nunc. É como ocorre, por exemplo, na hipótese de revogação da norma


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    4. POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto. Controle da constitucionalidade das leis. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 61.


    5. VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade: atualizado conforme as Leis 9.868, de 10.11.1999 e 9.882, de 03.12.1999. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 178.


    6. Em suas próprias palavras: “Não é, portanto, correto o que se afirma quando a decisão anulatória da lei é designada como ‘declaração de nulidade’, quando o órgão que anula a lei declara na sua decisão essa lei como ‘nula desde o início’ (ex tunc). A sua decisão não tem caráter simplesmente declarativo, mas constitutivo.” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 307)


      jurídica9. De acordo com esta teoria, “a inconstitucionalidade não geraria uma nulidade, mas tão somente a anulabilidade do ato. Como consequência, a decisão que a reconhecesse teria natureza constitutiva negativa e produziria apenas efeitos ex nunc, sem retroagir ao momento de nascimento da lei.”10


      O modelo alemão, por sua vez, possui algumas peculiaridades que merecem ser destacadas, especialmente quando adota técnicas de decisão que trafegam simultaneamente pela teoria da nulidade (sistema norte-americano) e pela teoria da anulabilidade (sistema austríaco) da norma inconstitucional. Outro traço que reforça a junção dos modelos é a adoção simultânea do controle concentrado e do controle difuso de constitucionalidade. Enfim, o modelo alemão surge como uma modalidade de controle misto: um sistema de controle sui generis.


      Em que pese a aproximação com o modelo norte-americano ao adotar a teoria da nulidade de pleno direito da lei inconstitucional, o modelo de controle de constitucionalidade alemão, todavia, desenvolveu algumas técnicas de mitigação desta teoria, especialmente quando estão envolvidas razões de segurança jurídica – que demandam um sopesamento de interesses igualmente consagrados na ordem constitucional.

      Merece especial destaque, neste sentido, a chamada declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade. Nesta técnica decisória, dissocia-se da situação antecedente (a inconstitucionalidade) o respectivo consequente (a nulidade). Abre-se, portanto, a possibilidade de manutenção dos efeitos produzidos pela aplicação da norma deficiente, nada obstante o superveniente reconhecimento de sua inconstitucionalidade pela Corte Constitucional.


      A adoção da técnica pelo Tribunal alemão somente pode ser aferida na análise específica do caso concreto, visto que as prescrições gerais e abstratas da Lei da Corte Constitucional (Bundesverfassungsgericht) não podem encerrar o leque de situações fáticas em que a Corte pode e deve utilizar a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade. Somente diante da específica situação concreta o Tribunal pode chegar à conclusão de que a pronúncia de inconstitucionalidade com efeitos retroativos pode causar mais prejuízo do que benefício ao sistema jurídico como um todo, principalmente quando estão em jogo razões de segurança jurídica. Busca-se evitar, assim, “situação ainda mais distante da vontade constitucional do que a anteriormente existente”11.



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    7. “O sistema austríaco, sintetizando, funciona à semelhança da revogação da lei: a decisão da Alta Corte Constitucional, declarando a inconstitucionalidade, faz com que a norma objeto da ação perca a eficácia. A sentença opera ex nunc ou pro futuro. A lei, cuja inconstitucionalidade foi pronunciada, não é inválida, desde o início, mas conserva a sua força jurídica até o momento em que for cassada (Aufhebung) e retirada do ordenamento.” (VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade: atualizado conforme as Leis 9.868, de 10.11.1999 e 9.882, de 03.12.1999. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 181)


    8. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise c rítica da jurisprudência. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 19.


    9. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3. ed. São Paulo: Saraiva,


      Por fim, o ordenamento jurídico brasileiro adotou tanto a sistemática de controle concentrado (exercido pelo Supremo Tribunal Federal) quanto de controle difuso (exercido por qualquer órgão jurisdicional); em ambos, impera a teoria segundo a qual uma lei inconstitucional é absolutamente nula desde o princípio. Instituído sob a influência do constitucionalismo norte-americano, tradicionalmente se concebe, não somente na prática do controle de constitucionalidade exercido pela Suprema Corte, mas também no bojo da doutrina majoritária, que a lei inconstitucional é nula de pleno direito12 e a decisão que reconhece sua inconstitucionalidade tem natureza meramente declaratória, razão pela qual opera efeitos ex tunc.


      O princípio da nulidade da norma inconstitucional sempre foi acolhido como corolário natural da supremacia constitucional, conquanto não houvesse embasada fundamentação que justificasse, pelo menos entre nós, a invalidade ab initio da norma contrária à Carta Magna. Todo o arcabouço teórico em torno do controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil se limitou a importar a sistemática norte-americana de nulidade ipso jure, sem maiores reflexões que pudessem oferecer solidez e originalidade a uma teoria da nulidade da lei inconstitucional no Direito brasileiro13.


      Nada obstante, do mesmo modo como ocorrera nos EUA e na Alemanha, o desenvolvimento da complexa sociedade de massas, com o consequente surgimento de situações fáticas demasiadamente intricadas, demandou igualmente a evolução do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, de modo a que se desenvolvessem técnicas de amenização dos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade. A crença cega na teoria da nulidade chegou ao ponto insustentável de desconsiderar a racionalidade comezinha do bom senso, sobretudo ao querer atribuir-se às realidades fático-jurídicas – perfeitamente consolidadas sob a égide da norma posteriormente declarada inconstitucional – a fria, simplória e, quiçá, irresponsável alegação de sua inexistência desde o início.


      Neste sentido, em que pese alguns ensaios infrutíferos de alçar dispositivo constitucional que outorgasse ao STF a prerrogativa de modular os efeitos da decisão de inconstitucionalidade14, uma norma veiculada em duas leis ordinárias (o art. 27 da Lei n.


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      1999, p. 228.


    10. Cf. PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Efeitos da decisão de inconstitucionalidade em direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002, p. 37.


    11. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. r ev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 258.


    12. Desde os debates da Constituinte que culminou com a promulgação da Carta Política de 1988 já se propunha a introdução de dispositivo que permitiria ao STF determinar o momento a partir do qual a medida declarada inconstitucional perderia sua eficácia (cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 263). Outrossim, por ocasião do processo de revisão ocorrido em 1994, também houve a tentativa, igualmente frustrada, de incorporação de dispositivo constitucional que autorizasse à Corte dispor sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com base em importante precedente da própria Corte Suprema (RE n. 79.343/BA).


      9.868/199915, e o art. 11 da Lei n. 9.882/199916) foi editada trazendo prescrição desta natureza, com o seguinte enunciado:


      “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”


      Tais dispositivos de lei trazem a possibilidade de o STF modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, atribuindo eficácia ex nunc ou pro futuro à sua decisão, desde que sejam preenchidos os seguintes pressupostos: (1º) estejam em jogo razões de “segurança jurídica”; ou (2º) motivos de excepcional interesse social; e (3º) seja por meio do voto da maioria de dois terços de seus membros. Os dois primeiros requisitos são alternativos (disjuntor includente: “ou”) e o terceiro é cumulativo (conjuntor: “e”).


      Ressalte-se, entretanto, que tais normas em nada inovaram no sistema de controle de constitucionalidade, uma vez que o próprio STF já houvera adotado tal providência muito antes de sua previsão expressa na legislação. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 78.533-7/SP, por exemplo, o Tribunal afastou a eficácia retroativa do decisum para, em nome da boa-fé e da teoria da aparência, manter incólumes os atos praticados por Oficial de Justiça investido no cargo com base em norma posteriormente declarada inconstitucional17.


      Outrossim, em outro julgamento da Corte, o Ministro Gilmar Mendes defendeu a ideia aqui propugnada de que a modulação dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade não deve ser vista como uma inovação trazida pelas Leis n. 9.868/1999 (ADI e ADC) e n. 9.882/1999 (ADPF), mas uma decorrência lógica e natural do juízo de ponderação:


      “[...] resta evidente que a norma contida no art. 27 da Lei 9.868, de 1999, tem caráter fundamentalmente interpretativo. [...] Portanto, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada

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    13. Dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) e da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC).


    14. Dispõe sobre o processo e julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).


    15. O voto proferido pelo Ministro Décio Miranda dá a tônica deste importante precedente: “Toda nulidade há de corresponder a uma finalidade prática. Não se decreta nulidade simplesmente por amor a formalidade que poderia ter sido repetida nas mesmas condições, com ratificação do efeito produzido. Assim, Sr. Presidente, a despeito das judiciosas considerações do eminente Relator, acho o caso compatível com um entendimento mais simples: o funcionário, não autorizado, tinha a seu favor a presunção de legitimidade, porque havia uma disposição regulamentar estadual que previa tal atuação. Tudo isso leva a compor um quadro, em que a aparência de legalidade se acrescenta o fato decisivo da inexistência de prejuízo. Essa longa manus do juiz, investida num funcionário que mais tarde se veio a verificar não teria legitimidade para a prática do ato, mas que, no momento, todos presumiam legítimo, obteve o mesmo resultado que funcionário legítimo conseguiria.” (MIRANDA, Décio. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 78.533-7/SP. Recorrente: Fundição e Modelação Ivaí Ltda. Recorrido: Estado de São Paulo. Relator: Ministro Firmino Paz. Brasília, 13 de novembro de 1981. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 28 abr. 2008)


      no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a ideia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como no direito português, a não aplicação do princípio da nulidade não se há de basear em consideração de política judiciária, mas em fundamento constitucional próprio.”18


      Em verdade, a técnica modulatória constitui-se num apanágio da própria sistemática de controle jurisdicional de constitucionalidade. Este poder outorgado ao STF, entretanto, não é ilimitado, visto que deve passar sempre pelo crivo do postulado da proporcionalidade, sobretudo porque na aplicação da providência modulatória inevitavelmente ocorrerá um choque concreto entre princípios igualmente prestigiados na Carta Magna, como o princípio da nulidade da norma inconstitucional (e, consequentemente, dos atos praticados sob a sua regulação), de um lado, e o princípio da segurança jurídica ou qualquer outro princípio constitucional, de outro.


  3. O POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE

    O termo proporção (do qual advém a ideia do proporcional e, por conseguinte, da proporcionalidade) enseja na mente, incontinenti, um juízo de relação ou comparação entre duas ou mais grandezas. De fato, o conceito do “proporcional” não é algo que se apreende mediante uma noção absoluta, senão eminentemente relativa ou relacional: alguma coisa é proporcional ou desproporcional sempre em relação a outra19.


    Conquanto sirva de norte propedêutico para o estudo da proporcionalidade, esta breve análise terminológica da expressão não é capaz, entretanto, de esgotar seu significado de modo satisfatório, uma vez que a proporcionalidade, sobretudo do ponto de vista jurídico, possui viés muito mais amplo e complexo do que a priori se possa cogitar.

    Atribui-se à Corte Constitucional Federal Alemã (Bundesverfassungsgericht) a primazia de ter sistematizado e ampliado a aplicação do chamado princípio ou postulado da proporcionalidade, ali utilizado como medida de fiscalização – principalmente – das normas infraconstitucionais. Desde então, emergiu na Europa o exame de proporcionalidade como resultado da aplicação do princípio da proibição ou vedação do excesso (Übermassverbot)20, voltado primordialmente à apreciação da atividade legislativa. A lei, já sujeita ao controle


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    1. MENDES, Gilmar. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 197.917-8/SP. Recorrente: Ministério Público Estadual. Recorrido: Câmara Municipal de Mira Estrela e outros. Relator: Ministro Maurício Corrêa, 24 de março de 2004. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 15 mar. 2008.


    2. “Neste sentido, vale acentuar que a palavra alemã para designar proporcionalidade (Verhältnismässigkeit) deixa claro o conteúdo semântico da expressão, pois o termo Verhältnis, naquela língua, significa proporção e também relação.” (PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 43)


    3. Para Suzana de Toledo Barros, os termos proibição de excesso ou vedação de excesso são demasiadamente amplos, pois “sempre que o legislador atua para além da autorização constitucional, a rigor ele comete excesso e não somente quando elabora ato legislativo permissivo de uma invasão ou restrição indevida na esfera de direitos ou liberdades dos cidadãos. Nesse sentido, qualquer vício de inconstitucionalidade verificado redundaria em excesso [...].” (O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 70-71)


      de constitucionalidade, também passou a ser avaliada conforme o exame de proporcionalidade: a adequação (Geeignetheit) e a necessidade (Erforderlichkeit) do produto legislado em relação aos objetivos constitucionais.


      Segundo Canotilho, o fundamento constitucional do postulado (por ele chamado de princípio) da proporcionalidade não é unânime, “pois enquanto alguns autores pretendem derivá-lo do princípio do Estado de direito, outros acentuam que ele está intimamente conexionado com os direitos fundamentais”21.


      Nesta ordem de entendimento, negar existência ao princípio da proporcionalidade no âmbito constitucional pátrio, tão somente pela ausência de previsão expressa na Carta Magna, equivale a desconsiderar o caput do art. 1º, notadamente quando este estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Com efeito, o postulado da proporcionalidade está tão intimamente ligado à própria noção de Constituição e de Estado de Direito (ou Estado Constitucional) que qualquer dispositivo externando-o seria medida absolutamente redundante e desnecessária.


      Mas é necessário identificar a natureza jurídica do referido instituto: se se trata efetivamente de um princípio jurídico, como tem sido proclamado amplamente pela doutrina em geral, se estamos lidando com uma simples regra jurídica, ou se corresponde a um tertium genus, a que denominamos de postulado.


      Tendo em vista que, consoante adverte Paulo de Barros Carvalho, ao jurista “é reservado o direito de fundar a classe que lhe aprouver e segundo a particularidade que se mostrar mais conveniente aos seus propósitos”22, adotamos, neste sentido, a classificação da proporcionalidade como um postulado normativo aplicativo, conforme proposta de Humberto Ávila, para quem “Os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação.” De acordo com o autor, a proporcionalidade não seria nem uma regra nem um princípio, mas uma metanorma ou norma de segundo grau que se dirige ao intérprete com vistas a orientá-lo no processo interpretativo23. Segundo tal noção, o postulado da proporcionalidade se qualifica como norma sobre a aplicação de outras normas, e, neste sentido, funciona como diretriz metódica ou critério norteador na solução de casos concretos, sobretudo quando princípios jurídicos24 de mesma hierarquia aparecem em oposição.



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    4. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1989, p. 315.


    5. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3 ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 119.


    6. Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário: de acordo com a Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41-42.


    7. Que são “normas jurídicas carregadas de forte conotação axiológica” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 257).


      Daí que, se os critérios cronológico (lex posterior derrogat priori), hierárquico (lex superior derrogat inferiori) e da especialidade (lex especialis derrogat generali) servem como parâmetros na resolução de antinomias entre as regras jurídicas25, os eventuais conflitos entre princípios jurídicos de mesma hierarquia (v.g. princípios constitucionais) devem ser solvidos mediante a análise e ponderação dos critérios que o postulado da proporcionalidade oferece.


      Esta análise metódica que consiste na aplicação do postulado da proporcionalidade é procedida por meio de três etapas consecutivas: (1ª) adequação; (2ª) necessidade; e (3ª) proporcionalidade stricto sensu. Nestes termos, o Mestre de Coimbra indica o teor da primeira etapa (adequação) como sendo uma exigência de que o ato do poder público deve ser apto, apropriado e conforme a consecução dos fins subjacentes ao interesse público que justificaram sua adoção: “Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim.”26


      O dever de adequação exige que o meio utilizado pelo Estado para alcançar determinada finalidade seja apropriado, adequado ou apto para alcançar tal desiderato. A indagação subjacente ao exame da adequação é a seguinte: “o meio escolhido contribui para obtenção do resultado pretendido?”27. Através da adequação não se está a fazer qualquer análise quanto ao grau de eficácia das medidas reputadas como aptas a alcançar aquele fim, posto que esta constatação já se reserva ao próximo passo: o exame da necessidade.

      Esta, por sua vez, resume-se na seguinte fórmula: adoção do meio mais idôneo e da menor restrição possível; ou ainda: de dois males, escolha-se o menor, na sintética noção de Xavier Philippe28. Mas foi o Tribunal Constitucional alemão quem melhor definiu o exame da necessidade da medida estatal (especialmente quanto ao ato legislativo): “um meio é considerado necessário quando nenhum outro, igualmente efetivo e que represente nenhuma ou menor limitação a um direito fundamental, pudesse ter sido adotado pelo legislador”29.


      Para efetuar o teste da necessidade, portanto, é indispensável fazer um confronto entre a medida estatal examinada e outra(s) medida(s) do Poder Público que poderia(m) ser igualmente adotada(s) no caso concreto, porém com resultados menos gravosos ou com menor restrição a direitos fundamentais. Segundo Suzana de Toledo Barros, o Tribunal constitucional alemão (BverfG) declara a inconstitucionalidade de uma medida utilizada


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    8. Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Trad. de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1999, p. 93-97.


    9. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1989, p. 315.


    10. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 74.


    11. PHILIPPE, Xavier apud CRETTON, Ricardo Aziz. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e sua aplicação no direito tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 59.


    12. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 68.


      pelo poder público quando é possível recorrer a outra igualmente eficaz porém menos lesiva ao administrado, ou quando se comprova ter sido possível alcançar o mesmo fim com um meio menos restritivo30.


      O juízo da necessidade perpassa sempre por um exame comparativo, donde, a partir de um leque de medidas igualmente adequadas à consecução de uma mesma finalidade constitucional, se extrai aquela que consegue atingir tal objetivo de modo menos lesivo aos direitos fundamentais dos cidadãos ou aos princípios e valores constitucionais eventualmente envolvidos no caso concreto.


      Mas o postulado da proporcionalidade ainda engloba outro tipo complementar de exame, e talvez o mais importante deles: o da proporcionalidade stricto sensu.

      Caso o ato estatal seja adequado e necessário, tem-se ainda de ponderar se o meio por ele utilizado e o valor prestigiado não estão sendo demasiadamente sobrepostos a outros, igualmente importantes. Segundo Ricardo Aziz Cretton, “sua aplicação envolve ao mesmo tempo uma obrigação e uma interdição: obrigação de fazer uso de meios adequados e interdição quanto ao uso de meios desproporcionados31. Não é suficiente examinar a adequação e necessidade do ato estatal, é necessário que se faça ainda um cotejo analítico entre as vantagens e desvantagens do meio utilizado em relação ao fim perseguido.

      Acerca da proporcionalidade stricto sensu, oportuna a doutrina de Helenilson Cunha Pontes, para quem existe a relação de proporcionalidade entre o meio adotado e o fim perseguido quando a vantagem representada pelo alcance dessa finalidade é maior do que a desvantagem decorrente da limitação imposta a outros interesses jurídicos igualmente protegidos no caso concreto32. É nesta etapa da proporcionalidade em sentido estrito que concluímos ser o postulado da proporcionalidade um importantíssimo instrumento metódico para resolução de (aparentes) antinomias entre princípios jurídico- constitucionais no caso concreto. Uma vez que não se pode resolver o conflito entre princípios ao modo tudo ou nada das regras jurídicas (ao cabo do qual uma das regras antinômicas é expurgada do sistema), é necessário, em verdade, “conciliá-los, para possibilitar que ambos sejam observados proporcionalmente33. Após o exame da proporcionalidade em sentido estrito, ambos os princípios colidentes devem permanecer


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    13. Cf. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 77-78.


    14. CRETTON, Ricardo Aziz. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e sua aplicação no direito tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 59.


    15. Cf. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 70.


    16. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. O razoável e o proporcional em matéria tributária. Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2004, vol. 8, p. 174-204, p. 178.


      íntegros e igualmente válidos dentro do sistema jurídico-constitucional – a relativa prevalência de um não importa necessariamente no sacrifício total do outro.


      Portanto, haja vista que o postulado da proporcionalidade – norma para aplicação de outras normas (metanorma) – aplica-se aos casos concretos mediante os critérios metodológicos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, cabe analisar, ao final, de que modo ele pode e deve ser utilizado no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Público, especialmente quando se trata de aplicar o que chamamos de regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME) na declaração de inconstitucionalidade em matéria tributária – onde não raro haverá princípios de natureza constitucional em oposição no caso concreto.


  4. A REGRA-MATRIZ DE MODULAÇÃO DOS EFEITOS (RMME) NA DECISÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

    Uma vez abordada a sistemática de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Público, assim como a natureza jurídica e o modus operandi do postulado da proporcionalidade, cabe agora condensar o conhecimento produzido acima a fim de formular, em sua estrutura analítica, a regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME) na decisão de inconstitucionalidade em matéria tributária.


    Para este fim, nos utilizaremos tanto de exemplos hipotéticos quanto de dois casos concretos retirados da jurisprudência do STF, abordando a RMME nas hipóteses de decisão de inconstitucionalidade de dois tipos de norma: aquela que fundamenta a incidência tributária (RMIT) e aquela que institui desoneração tributária (isenção, alíquota zero etc.).


    1. Hipótese de inconstitucionalidade da norma de incidência tributária


      Suponhamos que o Estado X tenha editado a norma jurídica “N” (geral e abstrata), consistente na regra-matriz de incidência tributária (RMIT) do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), com a seguinte estrutura hipotético- condicional: Hipótese (H): se é o fato da propriedade de veículo automotor no território estadual; Consequência (C): deve ser o pagamento do IPVA (4% sobre o valor venal) pelo sujeito passivo (proprietário do veículo) em favor do sujeito ativo (Estado X).


      Após certo tempo de vigência, a norma “N” é questionada perante o STF no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. Seja por vício no procedimento legislativo ou por contrariedade a outras regras e/ou princípios constitucionais, a Corte Suprema reconhece sua inconstitucionalidade. Neste caso, em homenagem à teoria da nulidade e ao princípio da supremacia constitucional, o STF expede uma norma “S” (geral e concreta), que declara a invalidade ab initio da norma “N”, e cuja estrutura é a seguinte34: Hipótese (H):


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      1. “Na perspectiva analítica, a decisão de inconstitucionalidade é uma norma jurídica, em cujo aspecto relato identifica-se o descumprimento da Constituição funcionando como antecedente, enlaçado a um consequente, que é a invalidação da norma.”


        dado o fato da norma jurídica “N” ter sido editada por órgão incompetente, em desconformidade com o procedimento legislativo ou mesmo contrariando ao conteúdo da Carta Magna; Consequência (C): deve ser a decretação da sua nulidade (a retirada de sua validade), bem como de todos os atos jurídicos por meio dela constituídos (o que inclui as normas individuais e concretas expedidas no ciclo de positivação do Direito35).


        Uma das consequências – e talvez a mais importante – desta declaração de inconstitucionalidade da RMIT (norma “N”), em relação aos contribuintes que efetuaram o pagamento do IPVA (seja espontaneamente, seja após notificação do lançamento tributário ou mesmo no bojo da execução fiscal), é a possibilidade de pleitearem a restituição do indébito tributário, com fundamento nos princípios da legalidade, da moralidade, da boa-fé, da proibição do enriquecimento sem causa e, por óbvio, do próprio princípio da nulidade ab initio dos atos jurídicos constituídos com base em regra inconstitucional.


        Pode ocorrer em algumas hipóteses, entretanto, que a declaração de nulidade da norma “N” é capaz de gerar enormes prejuízos à segurança jurídica, violar princípios constitucionais manifestados sob a forma de relevante interesse social, ou mesmo qualquer outro valor fundamental constitucionalmente protegido. Conforme vimos, nestes casos excepcionais o STF tem ao seu dispor a técnica modulatória, com o fim de atribuir eficácia prospectiva à sua decisão (efeitos ex nunc ou pro futuro), que só pode ser aplicada pelo voto de dois terços dos seus ministros.


        Assim, mediante o uso da técnica de modulação, o STF, ao invés de retirar a validade da norma inconstitucional, mexe apenas na vigência futura da norma “N”. Esta regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME), portanto, constitui-se numa norma de estrutura, na medida em que incide sobre outras normas, regulando a alteração do sistema jurídico em seu aspecto dinâmico. Vale dizer, portanto, que as normas de estrutura, ao dispor sobre o processo de criação, modificação e extinção de outras normas jurídicas, na realidade incidem “sobre a conduta de criar outras normas”, conforme define Aurora Tomazini de Carvalho36.


        Esta norma de estrutura, geral e concreta, que atua diretamente sobre o consequente da norma de declaração de inconstitucionalidade, acaba modificando-a sensivelmente, para o fim de transmudar a invalidade em simples retirada da vigência futura da norma inconstitucional. Com efeito, quando uma norma de incidência tributária é declarada inconstitucional, ou todos os seus efeitos devem ser retirados do sistema jurídico positivo


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        (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Efeitos da decisão de inconstitucionalidade em direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002, p. 36)


      2. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 292.


      3. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 351.


        (hipótese em que o STF termina por invalidar totalmente a regra-matriz de incidência tributária) ou tais efeitos podem ser mantidos, parcial ou totalmente, até o trânsito em julgado da decisão de inconstitucionalidade ou até outro momento específico fixado pela Corte (hipótese em que apenas a vigência futura da RMIT é retirada do sistema)37.


        Eis, portanto, o esquema hipotético-condicional da regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME) na decisão de inconstitucionalidade: Hipótese (H): dado o fato da norma “S” ofender de modo inadequado, desnecessário ou desproporcional a segurança jurídica, outro princípio constitucional sob a forma de excepcional interesse social, ou ainda outro(s) valor(es) fundamentais albergados igualmente na Constituição (critério de proporcionalidade), bem como o voto favorável de dois terços (2/3) dos ministros (critério de formalidade); Consequência (C): deve ser a modificação do consequente da norma “S”, a fim de manter a validade da norma “N” (RMIT) e retirar tão somente sua vigência futura (vigor).


        Mas a utilização desta providência modulatória não é arbitrária, nem fica ao exclusivo alvedrio da Corte Suprema, notadamente porque traz no seu antecedente (hipótese) a descrição de um fato cuja ocorrência somente se verifica após a aplicação da diretriz metódica do postulado da proporcionalidade em suas três dimensões: adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu.


        Importa, dessarte, na verificação da ocorrência fática do evento descrito na hipótese da RMME (em especial do critério de proporcionalidade), realizar os seguintes questionamentos diretivos: (1º) Adequação: a norma “S”, ao declarar a nulidade ab initio da norma “N” (RMIT), é adequada/apropriada/apta para atender aos fins constitucionais a que se destina?; (2º) Necessidade: a norma “S” é o meio mais idôneo (leia-se: menos restritivo a outros valores de natureza constitucional) à consecução desta finalidade, ou existem outras medidas igualmente eficazes e menos lesivas aos valores fundamentais da Carta Magna?; (3º) Proporcionalidade Stricto Sensu: ainda que adequada e necessária à promoção das finalidades constitucionais a que se destina, a norma “S” sobrepõe desproporcionalmente outros valores de mesma hierarquia constitucional, a tal ponto que, ao invés de prestigiar a Constituição, acaba por distanciar-se ainda mais dos objetivos estabelecidos na Lei Maior?

        Se a resposta à primeira questão (exame de adequação) for positiva (sim), a resposta na análise da necessidade for igualmente positiva (sim) e, por fim, a resposta no exame da proporcionalidade em sentido estrito for negativa (não), é certo que o consequente da norma “S” deve ser mantido ileso, pois restou efetivamente constatado que, do confronto entre o princípio da nulidade dos atos inconstitucionais (decorrência natural da


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      4. Cf. LINS, Robson Maia. Controle de constitucionalidade da norma tributária: decadência e prescrição. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 181-182.


        supremacia constitucional) com outro(s) princípio(s) fundamental(is) de mesma hierarquia eventualmente colidente(s) no caso concreto, prevaleceu o primeiro por ser a medida mais idônea à promoção dos objetivos constitucionais. Em resumo, para que seja mantido o consequente da norma “S”, as respostas às questões devem ser cumulativamente: sim e sim e não.

        Se, ao revés, a resposta à análise da adequação for negativa (não), tal circunstância obsta os exames subsequentes: já restará demonstrado que a aplicação desmedida da norma “S” (no que se refere ao seu consequente) não constitui o meio mais idôneo à promoção dos fins constitucionais. Sendo, entretanto, positiva a primeira resposta, passa-se ao exame subsequente. Se a resposta à análise da necessidade também for negativa (não), o resultado será o mesmo da hipótese anterior. Por fim, se a norma “S” for adequada e necessária, ainda será cabível um terceiro e último questionamento (o da proporcionalidade stricto sensu). Se a resposta a este questionamento diretivo for positiva (sim), decerto a aplicação da norma “S” (no que se refere ao seu consequente) não constitui o meio mais idôneo à promoção dos objetivos constitucionais por restringir demasiadamente outros valores e princípios de igual relevância no sistema jurídico. Para se chegar a esta conclusão, as

        respostas aos questionamentos formulados devem ser alternativamente: não ou não ou sim.


        1. Análise de caso concreto


          Em julgados recentes (Recursos Extraordinários n. 556.664-1/RS e n. 560.626-1/RS), o STF declarou a inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei n. 8.212/1991, que previam prazo de 10 (dez) anos tanto para o Fisco realizar o lançamento (decadência) quanto para efetuar a cobrança das contribuições previdenciárias (prescrição)38. Neste julgamento conjunto, o Tribunal deixou consignado que as contribuições previdenciárias possuem natureza tributária e, portanto, a disciplina da prescrição e decadência, por ser reserva de lei complementar, não poderia estar veiculada em lei ordinária (in casu: a Lei n. 8.212/1991), mas deveria seguir o regramento do Código Tributário Nacional.


          No caso em exame, não houve a declaração de inconstitucionalidade de qualquer RMIT geral e abstrata. Todavia, ao retirar a validade das normas veiculadas nos arts. 45 e 46 da Lei

          n. 8.212/1991, fazendo incidir a disciplina do CTN (que prevê prazo decadencial e prescricional de cinco anos), as normas individuais e concretas expedidas e documentadas em lançamentos tributários realizados após os cinco anos da ocorrência dos fatos geradores, ou mesmo as normas individuais e concretas positivadas no bojo de execuções fiscais ajuizadas depois do prazo quinquenal, estariam igualmente eivadas de nulidade, o


      5. Estes precedentes, inclusive, deram origem à Súmula Vinculante n. 08: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-

        Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário.”


        que possibilitaria aos contribuintes autuados ou executados, que efetuaram o pagamento (indevido) das contribuições, pleitearem, inclusive, a repetição do indébito tributário.


        A norma jurídica (geral e concreta) expedida pelo STF (norma “S”) na declaração de inconstitucionalidade teve o seguinte esquema: Hipótese (H): dado o fato de as normas veiculadas nos arts. 45 e 46 da Lei n. 8.212/1991 terem sido editadas em desconformidade com as regras de competência legislativa previstas na Carta Magna; Consequência (C): deve ser a decretação da nulidade de ambas (a retirada de suas validades), bem como de todos os atos jurídicos por meio delas constituídos.


        Sucede que, neste caso, o Supremo também expediu norma de modulação dos efeitos, seguindo voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes:


        “Estou acolhendo parcialmente o pedido de modulação dos efeitos, tendo em vista a repercussão e a insegurança jurídica que se pode ter na hipótese; mas estou tentando delimitar este quadro de modo a afastar a possibilidade de repetição de indébito de valores recolhidos nestas condições, com exceção das ações propostas antes da conclusão do julgamento.

        Neste sentido, eu diria que o Fisco está impedido, fora dos prazos de decadência e prescrição previstos no CTN, de exigir as contribuições da seguridade social. No entanto, os valores já recolhidos nestas condições, seja administrativamente, seja por execução fiscal, não devem ser devolvidos ao contribuinte, salvo se ajuizada a ação antes da conclusão do presente julgamento.

        Em outras palavras, são legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos

        nos arts. 45 e 46 e não impugnados antes da conclusão deste julgamento.”39


        Conforme visto, no caso concreto ora em análise, o STF – lamentavelmente – afastou a incidência do princípio da nulidade dos atos inconstitucionais, bem como desprestigiou os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade, da boa-fé e da proibição do enriquecimento sem causa, com base tão somente numa ideia vaga, imprecisa e demasiadamente superficial de “repercussão” ou de “insegurança jurídica”, sem, contudo, explicitar – por dever de fundamentação (art. 93, IX, da CF/1988) – as diretrizes metódicas impostas pelo postulado da proporcionalidade!


        De fato, não restou constatada ou comprovada a ocorrência fática da hipótese prevista no antecedente da RMME, em especial quanto ao critério de proporcionalidade, muito embora tenha sido observado, apenas, o critério de formalidade que consiste no quórum qualificado de 2/3 (dois terços).


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      6. MENDES, Gilmar F. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 556.664-1/RS. Recorrente: União. Recorrido: Novoquim Indústria Químicas Ltda. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 12 de junho de 2008. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 18 mar. 2011.


        Por tal motivo, a nosso juízo, a RMME fora aplicada de modo absolutamente arbitrário, uma vez que a Corte não demonstrou ter efetuado o necessário cotejo analítico exigido pelo postulado da proporcionalidade, resultando, por fim, numa ofensa excessiva a inúmeros princípios constitucionais e fundamentais norteadores de direitos subjetivos dos contribuintes contra excessos na atividade de tributação (a exemplo do direito de propriedade); e isto a tal ponto que, ao invés de se prestigiar a Constituição com esta ideia imprecisa de “segurança jurídica”, o que se procedeu, em verdade, foi um distanciamento ainda maior das finalidades constitucionais, gerando o efeito inverso da insegurança jurídica.


    2. Hipótese de inconstitucionalidade da norma de desoneração tributária


      Imaginemos, agora, que a União tenha editado a seguinte norma “N” (geral e abstrata), consistente numa isenção do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), com a seguinte composição hipotético-condicional: Hipótese (H): se é o fato da propriedade de bem imóvel rural cuja área seja inferior a dois módulos rurais da localidade; Consequência (C): deve ser o não pagamento do ITR pelo sujeito passivo (proprietário do imóvel) em favor do sujeito ativo (União).


      Decorrido lapso temporal suficiente à incidência e aplicação da norma “N”, esta foi questionada perante o STF em controle abstrato de constitucionalidade. A Corte Suprema reconheceu sua inconstitucionalidade (formal e/ou material) e expediu, por conseguinte, a norma “S” (geral e concreta) com a seguinte estrutura analítica: Hipótese (H): dado o fato de a norma jurídica “N” ter sido editada por órgão incompetente, em desconformidade com o procedimento legislativo ou mesmo contrariando regras e/ou princípios constitucionais; Consequência (C): deve ser a decretação da sua nulidade (a retirada de sua validade), bem como de todos os atos jurídicos por meio dela constituídos (o que inclui as normas individuais e concretas eventualmente expedidas no processo de positivação da regra isentiva).


      Neste sentido, com a decisão de inconstitucionalidade da norma de isenção tributária (norma “N”), e a consequente decretação da sua nulidade, os contribuintes que, com base no benefício fiscal ali outorgado, deixaram de efetuar o pagamento do ITR, podem ser doravante cobrados pelo Fisco Federal – administrativa ou judicialmente – em relação aos cinco últimos anos, pois o princípio da nulidade ab initio dos atos jurídicos constituídos com base em norma inconstitucional é capaz de fundamentar esta nova e retroativa incidência tributária40.



      1. Na hipótese em análise, conquanto haja a possibilidade de se invocar, em favor dos contribuintes, o quanto disposto nos arts. 104, III, e 178 do CTN, entendemos que estes dispositivos não se subsumem ao caso, uma vez que não se trata de revogação da isenção, mas de declaração de inconstitucionalidade (com eficácia ex tunc) da norma isentiva.


        Contudo, assim como no caso da declaração de inconstitucionalidade da RMIT, a adoção desmedida da teoria da nulidade pode eventualmente gerar prejuízos imensuráveis ao princípio da proteção da boa-fé e confiança legítima dos contribuintes (consectário do sobreprincípio da segurança jurídica), aos princípios constitucionais manifestados sob a forma de relevante interesse social ou qualquer outro valor fundamental constitucionalmente protegido. É aí onde pode ocorrer a hipótese da RMME, pelo exame da metanorma de proporcionalidade, por meio dos questionamentos diretivos já tratados alhures.


        1. Análise de caso concreto


          O caso concreto que retiramos da jurisprudência do STF consiste no julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários n. 353.657-5/PR e n. 370.682-9/SC, ocorrido em 25 de junho de 2007. Neste julgado, a Corte mudou completamente seu entendimento acerca da interpretação e do alcance da norma inscrita no art. 153, § 3º, II, da Constituição Federal de 1988 (princípio da não cumulatividade do IPI), para vedar ao contribuinte a possibilidade de creditar-se do imposto (crédito fiscal) nas aquisições de insumos não tributados, isentos ou com regime de alíquota zero. In casu, não houve propriamente uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, mas tão somente uma sensível alteração na hermenêutica constitucional-tributária.


          Na prática, a possibilidade de lançamento na escrita fiscal dos aludidos créditos de IPI diminuía sobremaneira o “peso” do tributo (o que equivale a dizer que havia certa margem de desoneração tributária). Com a virada no entendimento jurisprudencial, modificando a interpretação do dispositivo constitucional, o STF acabou inserindo norma em sentido contrário no sistema jurídico pátrio (desta vez, vedando o creditamento e, por conseguinte, aumentando a carga tributária do IPI).


          Neste caso emblemático, a norma “S” expedida pelo STF (de hierarquia constitucional) teve o seguinte esquema hipotético-condicional: Hipótese (H): dado o fato de a norma que permite o creditamento do IPI nas aquisições de insumos isentos, não tributados ou com alíquota zero ofender o princípio constitucional da não cumulatividade deste imposto (art. 153, § 3º, II, da CF); Consequência (C): deve ser a decretação da sua nulidade (a retirada de sua validade), bem como de todos os atos jurídicos constituídos por sua incidência.


          Diante desta nova hermenêutica constitucional, o Ministro Ricardo Lewandowski propôs que a Corte aplicasse a modulação dos efeitos do julgado, buscando, sobretudo, a proteção da confiança legítima e boa-fé daqueles contribuintes que – durante longo período – se creditaram do IPI nas hipóteses aventadas, albergados justamente pela interpretação autêntica outrora conferida ao caso pelo próprio STF:


          “[...] considerando que não houve modificação no contexto fático e nem mudança legislativa, mas sobreveio uma alteração substancial no entendimento do STF sobre


          a matéria, possivelmente em face de sua nova composição, entendo ser conveniente evitar que um câmbio abrupto de rumos acarrete prejuízos aos jurisdicionados que pautaram suas ações pelo entendimento pretoriano até agora dominante. Isso, sobretudo, em respeito ao princípio da segurança jurídica [...]. Recorde-se, ademais, que o STF ao proceder, em casos excepcionais, à modulação dos efeitos de suas decisões, por motivos de segurança jurídica ou de relevante interesse social, estará realizando a ponderação de valores e princípios abrigados na própria Constituição.”41


          Com base na ponderação de valores em conflito – que deve ser solvido pelo exame do postulado da proporcionalidade – a regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME) proposta pelo Ministro possuiria a seguinte estrutura analítica: Hipótese (H): dado o fato de a norma “S” inserida pelo STF ofender de modo desnecessário ou desproporcional a boa- fé e a confiança legítima dos jurisdicionados, corolários da segurança jurídica (critério da proporcionalidade), bem como o voto de 2/3 dos ministros desta casa (critério da formalidade); Consequência (C): deve ser a modificação do seu consequente, a fim de manter a validade da norma de creditamento do IPI nas hipóteses de aquisição de insumos isentos, não tributados ou com alíquota zero, retirando tão somente sua vigência futura (vigor).


          Contudo, em que pese o brilhantismo da proposição, a RMME não fora aplicada. O STF rejeitou a questão de ordem baseado em dois argumentos principais: (1) o fato de não haver propriamente, no caso concreto, uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o que, segundo a Corte, afastaria a adoção da técnica modulatória42, e (2) a ausência do trânsito em julgado dos acórdãos anteriores43, fato que elidiria a existência de verdadeira jurisprudência em torno da possibilidade de creditamento (daí a inexistência de segurança jurídica a ser tutelada no caso concreto)44.


          O STF, portanto, manteve a incidência do princípio da nulidade dos atos inconstitucionais, fazendo-o sobrepor ao princípio constitucional da segurança jurídica (com seu consectário lógico: a proteção da confiança) sem explicitar, mais uma vez, os argumentos exigidos para fins de análise da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu, deixando, por conseguinte, de fundamentar adequadamente o julgado. Pelo desuso da diretriz metódica


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      2. LEWANDOWSKI, Ricardo. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 370.682-9/SC. Recorrente: União. Recorrida: Indústria de Embalagens Plásticas Guará Ltda. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Brasília, 25 de junho de 2007. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 13 fev. 2008.


      3. Vê-se que o STF, neste caso, preso à literalidade do art. 27 da Lei n. 9.868/1999, manifestou entendimento no sentido de somente utilizar a técnica modulatória nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público em contro le abstrato, esquecendo-se que a RMME é um apanágio do próprio controle de constitucionalidade, conforme temos dito.


      4. Isto tão somente por conta da interposição de Embargos Declaratórios até então pendentes de julgamento.


      5. Cf., entre os votos vencedores, o proferido pelo Ministro Marco Aurélio.


        do postulado da proporcionalidade, a RMME deixou de ser aplicada explícita e corretamente.

        Em nosso entender, data maxima venia, diante da virada radical na jurisprudência da Corte, a decisão deveria ter sido exarada com atribuição de eficácia ex nunc ou pro futuro, notadamente em respeito aos princípios constitucionais da confiança legítima e da segurança jurídica, que militam em prol dos contribuintes.


        De fato, aqueles que, durante muitos anos, escrituraram crédito de IPI nas aquisições de insumos não tributados, sujeitos ao regime de isenção ou de alíquota zero, ficaram repentinamente sujeitos a devolver aos cofres públicos todo o valor que deixou de ser recolhido em função de uma sistemática de creditamento não somente defendida pela doutrina especializada como também legitimada pelas decisões reiteradas da própria Suprema Corte45. Pelo uso das diretrizes metódicas do postulado da proporcionalidade, sobretudo nos exames da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, chegamos à conclusão da incidência da RMME. Vejamos:

        Quanto à Adequação, pergunta-se: a decisão do STF (norma “S”), ao declarar a nulidade ab initio da regra que outorgava aos contribuintes o creditamento do IPI nas hipóteses de aquisição de insumos isentos ou com alíquota zero (norma “N”), é adequada para atender aos fins constitucionais a que se destina, prestigiando a supremacia constitucional e o princípio da nulidade das normas inconstitucionais? Sim.


        Quanto à Necessidade: a norma “S” constitui o meio mais idôneo (leia-se: menos restritivo aos direitos fundamentais dos contribuintes) à consecução da citada finalidade, ou existem outras medidas igualmente eficazes e menos lesivas aos princípios fundamentais da Carta Magna? Não, uma vez que é possível a um só tempo prestigiar a supremacia constitucional sem solapar a confiança legítima dos contribuintes, o princípio da boa-fé e da segurança jurídica, sendo bastante, para tanto, ao invés de fulminar a validade da norma “N”, retirar apenas sua vigência futura (vigor), sem penalizar, por conseguinte, aqueles contribuintes que efetuaram o creditamento do IPI respaldados por uma jurisprudência da própria Suprema corte firmada por quase uma década!


        Diante da desnecessidade da medida (que não se revelou ser o meio mais idôneo), resta prejudicado o exame da proporcionalidade em sentido estrito. Assim, uma vez que, para constatação do critério de proporcionalidade, as respostas aos questionamentos formulados devem ser, alternativamente, não ou não ou sim, com o uso do disjuntor



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      6. Vide, entre outros acórdãos, aqueles lavrados nos Recursos Extraordinários n. 212.484-2/RS e n. 350.446-1/PR, que foram chamados de leading cases nesta matéria, firmando entendimento seguido amplamente pelo próprio STF (v.g. AI n. 252.801/RJ; RE n. 219.020/SC; RE n. 219.318/RS e RE n. 217.358/RS).


      includente (“ou”), restou comprovada, consequentemente, a ocorrência fática da RMME

      neste caso concreto.


      Com efeito, do cotejo analítico entre o princípio da nulidade dos atos inconstitucionais, de um lado, e o princípio da segurança jurídica, de outro, resta induvidoso que as desvantagens decorrentes da retroação do julgado superaram sobremaneira os benefícios que a preservação da eficácia das relações jurídicas – até então legitimamente firmadas entre o Fisco Federal e os contribuintes do IPI – poderia ofertar à ordem constitucional-tributária.


      Eis porque a regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME), conforme o esquema hipotético-condicional “D (H ® C)” acima transcrito, ao contrário do quanto decidido pelo STF, sem dúvida incidiria no caso em análise, por imperativo do postulado da proporcionalidade – fato que, se tivesse ocorrido, o STF estaria prestigiando ainda mais o Estatuto do Contribuinte Brasileiro: a nossa Carta Magna de 1988.


  5. CONCLUSÕES

Diante de tudo quanto exposto no decorrer do presente trabalho, é possível tecer as seguintes e breves conclusões:


1ª) O postulado da proporcionalidade, em suas três dimensões (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), é corolário natural do Estado de Direito e constitui-se numa importante diretriz metódica para resolução de (aparentes) antinomias entre princípios jurídico-constitucionais no caso concreto. 2ª) O modelo de controle de constitucionalidade no Brasil, por influência do sistema norte-americano, adotou a teoria da nulidade ipso jure e ab initio da norma inconstitucional. Neste diapasão, a decisão de inconstitucionalidade, em geral, opera efeitos ex tunc, retroagindo para desconstituir todos os atos praticados sob a égide da norma inconstitucional.

3ª) Todavia, assim como ocorrera nos EUA, e também por influência do constitucionalismo alemão, em alguns casos excepcionais o STF acabou mitigando o princípio da nulidade da norma inconstitucional, passando a adotar a teoria kelseniana da anulabilidade (albergada pelo modelo austríaco). Este entendimento culminou na técnica de modulação dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, prevista posteriormente nos arts. 27 da Lei n. 9.868/1999 e 11 da Lei n. 9.882/1999.

4ª) Mas a regra-matriz de modulação dos efeitos (RMME) não constitui inovação trazida pelos citados artigos de lei, posto ser instrumento inerente à própria sistemática de controle jurisdicional de constitucionalidade. Trata-se de uma norma de estrutura, geral e concreta, que modifica o comando judicial que declara a inconstitucionalidade, traz no antecedente (hipótese) a descrição de um fato cuja ocorrência somente se verifica após a aplicação da diretriz metódica do postulado


da proporcionalidade em suas três dimensões (critério da proporcionalidade), assim como o voto de dois terços dos ministros do STF (critério da formalidade), e no consequente prescreve a obrigação de modificar o consequente do comando de inconstitucionalidade, a fim de manter a validade da norma inconstitucional e retirar tão somente sua vigência futura (vigor).

5ª) Em virtude da ausência de fundamentação adequada na utilização do postulado da proporcionalidade, o STF ora tem utilizado a RMME de modo arbitrário, ora, irrefletidamente, tem deixado de aplicá-la. É o que ocorreu tanto no julgamento da questão relativa aos prazos de decadência e prescrição das contribuições previdenciárias (RE n. 556.664-1/RS e RE n. 560.626-1/RS), quando o Tribunal efetuou a modulação dos efeitos de modo absolutamente injustificável, quanto no julgamento relativo aos créditos de IPI na aquisição de insumos não tributados, isentos ou com alíquota zero (RE n. 353.657-5/PR e RE n. 370.682-9/SC), oportunidade em que, mesmo diante da proposta para aplicar a RMME, o STF, equivocadamente, deixou de procedê-lo. Em ambos os casos o contribuinte brasileiro é quem restou sensivelmente prejudicado.


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