MODULAÇÃO DE EFEITOS DE DECISÕES CONSTITUCIONAIS DO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO: ESPECIFICIDADES E LIMITES
MODULATION OF CONSTITUTIONAL DECISIONS IN BRAZILIAN TAX LAW: PECULIARITIES AND LIMITS
Mestre em Direito Tributário (Faculdade de Direito da USP). Advogado em João Pessoa/PB. Procurador do Município de João Pessoa. Ex-procurador do estado de Sergipe. E-mail: andreborgescoelho@gmail.com
Recebido em: 27-09-2020
Aprovado em: 01-02-2021
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-1
Este artigo analisa as peculiaridades da modulação de efeitos de decisões constitucionais no Direito Tributário. Depois de definir a modulação, à luz de suas origens e finalidades na Alemanha, debruça-se sobre as peculiaridades constitucionais do Direito Tributário brasileiro, para concluir que há entre nós relevantes especificidades que conduzem a um regime particular de modulação. Em seguida, coloca os limites da modulação em matéria tributária no Brasil. À luz dessas condicionantes, analisa, ainda, criticamente a jurisprudência do Supremo Tribunal sobre o tema, para aferir se se desvia ou não do modelo proposto. Conclui com a apreciação do pedido de modulação no RE 574.706/PR.
This article analyzes the specificities of the modulation of constitutional decisions in Brazilian Tax Law. After defining modulation, the peculiarities of Brazilian Constitutional Tax Law are studied to conclude that there are sufficient reasons for a special case of modulation, the limits of which are subsequently indicated. The
Brazilian Supreme Court’s Case Law on the subject is also critically analyzed in comparison with the model proposed by the article.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal brasileira outorgou ao Supremo Tribunal Federal a competência para declarar a inconstitucionalidade das leis, o que, dentro da tradição norte-americana seguida pelo Brasil, importa em extirpar do ordenamento jurídico a previsão inconstitucional, por írrita, com efeitos retroativos, de modo a restaurar com plenitude o estado de constitucionalidade.
Embora seja essa a regra, pode haver razões jurídicas segundo as quais se recomende a manutenção dos efeitos da norma tida como inconstitucional, o que foi reconhecido pelo legislador infraconstitucional com o advento da Lei n. 9.868/1999, que previu o instituto da modulação dos efeitos de decisões constitucionais, a qual já era, no entanto, admitida jurisprudencialmente.
O objetivo deste artigo é analisar se o instituto referido comporta um regime marcado por especificidades no âmbito do Direito Tributário brasileiro.
Dados esses limites, não se discorrerá longamente sobre o tema da modulação em geral; apenas serão postas as premissas suficientes para permitir a análise do tema no ramo tributário.
O percurso do artigo será o seguinte: partindo das premissas sobre a modulação, se tentará responder à pergunta sobre se se justifica um regime jurídico especial para a modulação de efeitos no Direito Tributário, o que se fará pelo exame das singularidades do Direito Constitucional Tributário brasileiro. Respondendo afirmativamente, se estabelecerão as condições para sua aplicabilidade ao Direito Tributário, a partir da análise crítica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
A MODULAÇÃO EM GERAL
Conforme Humberto Ávila, a “‘modulação’ dos efeitos temporais das decisões consiste numa forma de ‘moderar’ os efeitos da anulação”1. Em outros termos, é uma maneira de amenizar as consequências da retirada da norma inconstitucional com efeitos retroativos, conforme a tradição norte-americana seguida pelo Brasil.
A modulação se dá nos efeitos e não se confunde com a mudança do próprio conteúdo da decisão (como no caso de consolidação fática). Tampouco se identifica a modulação com a
facilitação do cumprimento do julgado pela concessão de prazo ou pela fixação de regra de transição, casos em que não se alteraria a extensão da declaração de inconstitucionalidade2.
O instituto tem inspiração na Alemanha, onde se distinguem as declarações de nulidade e de incompatibilidade. À diferença da declaração de nulidade da norma impugnada, na de incompatibilidade, meramente se impede a aplicação da norma e se suspendem os processos em que ela seja aplicável. Em regra, cabe ao legislador normatizar a matéria retroativamente de maneira que atenda à Constituição e, até que esse novo regramento se produza, há um limbo (Schwebezustand)3. Como se nota, a mera declaração de incompatibilidade não é comumente o modo por que se dá a modulação de efeitos no Brasil.
Na Alemanha, só se admite a declaração de incompatibilidade em dois cenários: 1) quando o legislador tem diversas possibilidades de concretizar a Constituição e, portanto, de sanar a inconstitucionalidade; e 2) quando a nulidade traria consequências constitucionais ainda mais adversas do que a manutenção da norma inconstitucional4. Nesses dois casos, é evidente que a declaração de nulidade com efeitos retroativos pode não ser a melhor forma de garantir a supremacia da Constituição. Assim, dá-se ao legislador a oportunidade de corrigir, inclusive retroativamente, o regramento inconstitucional, e o vácuo normativo é só temporário, pois ele fica obrigado à correção.
Embora a declaração de incompatibilidade no sentido indicado possa ser uma forma de “restringir os efeitos” da declaração de inconstitucionalidade, já que se deixará de extirpar a norma do ordenamento, até que o legislador regre a matéria retroativamente, em geral se associa entre nós a modulação à decisão que reconhece a eficácia da decisão declaratória de inconstitucionalidade apenas a partir do trânsito em julgado ou de outro momento fixado pela Corte, mantendo-se, assim, a eficácia da previsão inconstitucional por certo tempo, independentemente da correção retroativa por parte do legislador.
Assim, nosso caso típico de modulação se aproxima do que se chama na Alemanha de declaração de incompatibilidade com extensão da aplicabilidade da norma incompatível (Unvereinbarkeitserklärung mit Weitergeltungsanordnung). Nesse caso, exige-se que a continuidade de aplicação da previsão incompatível com a Constituição traga menos prejuízos do que seu afastamento retroativo5.
Em termos gerais, assim, tanto no Brasil quanto na Alemanha, que seguem o dogma da nulidade, parte-se da premissa pouco disputável de que é a modulação uma via excetiva,
pois configura uma patente contradição do Direito consigo mesmo6: aplica-se a certo ato normativo a maior reprimenda jurídica possível, a declaração de inconstitucionalidade, e, no entanto, não se lhe tolhem todos os efeitos.
Nesse sentido, Misabel Derzi lembra que a atividade do Judiciário, especialmente nas decisões first impressions, é essencialmente retroativa, o que está na raiz do princípio da separação dos poderes, e, além disso, destaca que a Constituição Federal empregou o termo declaração7. Percebe-se, ainda, que, diferentemente de outras constituições conhecidas, que não só preveem expressamente a modulação, mas também a atrelam a pressupostos bastante alargados, tais como “razões de equidade ou interesse público de excecional relevo8”, a brasileira não contemplou expressamente a possibilidade de modulação, menos ainda pôs seus pressupostos.
Embora alguns, a exemplo de Larenz, sejam flexíveis na aceitação da modulação, sob a justificativa de que a Suprema Corte estaria legitimada a atentar para o bem comum, dado que carregaria responsabilidade política, pelo que não se poderia conduzir pela máxima fiat justitia, pereat res publica9, pensa-se somente ser aceitável a modulação se ela promover a Constituição como um todo mais do que sua ausência. Trata-se de decorrência básica do Estado de direito.
Nesse sentido, sustenta Ana Paula Ávila somente ser a alteração do efeito ex tunc adequada “quando, mediante a aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99, resultar a sobrevalência de uma norma também constitucional – aquela norma que tutela os bens preservados pela determinação de efeitos ex nunc, ex tunc parcial (reduzido) ou efeitos pro futuro”10.
Assim, o “excepcional interesse social” não pode ser invocado levianamente para afastar a sanção de nulidade quando assim se estiver promovendo menos a Constituição do que pela retroação completa.
A expressão, aliás, sequer costuma ser estudada. Ana Paula Ávila, por outro lado, recorrendo a um dos permissivos para as desapropriações, percebe que ali há uma vinculação com os interesses das classes sociais menos favorecidas e que qualquer interpretação da locução deverá privilegiar os interesses da sociedade, não os do Estado.
No entanto, conclui pela inconstitucionalidade dessa hipótese de modulação, por não ter guarida constitucional e, ainda, por ser excessivamente indeterminada11.
Conquanto distintamente elevada a estatura do princípio constitucional da segurança jurídica, impõe-se igualmente cautela na invocação de razões de segurança jurídica para a modulação, pois ela tem potencial para atingir os três ideais componentes do referido princípio: a cognoscibilidade, porque gera dúvida sobre a regra efetivamente aplicável aos casos concretos; a confiabilidade, já que cria um problema de orientação e de confiabilidade para os envolvidos, pois o se, então, que caracteriza as regras jurídicas, torna-se um se, então talvez; por fim, a calculabilidade, porquanto compromete as previsibilidades da conduta alheia e a vinculatividade do Direito12.
Desse modo, tem-se que, para atender ao princípio da segurança jurídica em todas as suas facetas, a modulação ainda deve satisfazer os seguintes pressupostos13: excepcionalidade do caso objeto de decisão; e inexistência de inconstitucionalidade manifesta do ato impugnado. Além disso, deve-se poder com ela atingir os seguintes fins14: restaurar o “estado de constitucionalidade”; proteger a segurança jurídica como um todo; e, por fim, evitar “grave” ameaça à segurança jurídica.
Somente se atendidos esses condicionamentos gerais é que a modulação mais promoverá a Constituição do que o contrário.
A MODULAÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO
As especificidades do Direito Tributário Constitucional brasileiro
Já há certo tempo reconhece a doutrina o estatuto autônomo do Direito Tributário.
Embora o entendesse como um ramo especializado do Direito Financeiro, Rubens Gomes de Sousa reconhecia-lhe autonomia, dado que gozaria de autonomia dogmática (princípios e conceitos próprios) e estrutural (institutos e figuras jurídicas próprios)15.
A autonomia, no entanto, não basta para concluir por um regime específico de modulação. É necessário adentrar as notas características desse ramo, em especial no que concerne à sua especial relação com a segurança jurídica constitucional.
A respeito das peculiaridades do Direito Tributário, Paul Kirchhof ensina que esse ramo exige uma proteção adicional à segurança jurídica, pois, no que é comum com o caso brasileiro: 1) exige maior previsibilidade, já que se envolvem bens fungíveis (dinheiro), que se conformam às necessidades presentes, pelo que não se pode admitir a surpresa que seria admissível em outros ramos, como o Direito Atômico, em que só no futuro se podem descobrir as consequências passadas da radiação; 2) envolve uma relação jurídica de trato continuado, que faz exigir um padrão de segurança jurídica mais elevado; 3) é permeado por regras excetivas e especiais (isenções, deduções, exceções etc.) que dificultam um planejamento sistemático; 4) tem potencial para desafiar direitos fundamentais, já que envolve uma invasão à liberdade pessoal, que precisa ser determinada com clareza16.
Johanna Hey, a seu turno, igualmente defende o caráter especialmente protetivo da segurança jurídica tributária, por ser o Direito Tributário um Direito de “administração invasiva” (Eingriffsverwaltung), dadas as evidentes restrições que causa à liberdade e à propriedade, e de administração de massa17.
No âmbito constitucional brasileiro, o Direito Tributário foi agraciado com um capítulo
inteiro próprio, denominado “Do Sistema Tributário Nacional”.
Além disso, percebe-se que a Constituição Tributária brasileira foi marcadamente analítica e conta, no capítulo indicado, com dezoito dos mais longos artigos da Constituição brasileira.
A forma como se deu a constitucionalização desse ramo entre nós pode, ainda, nos dar pistas sobre a resposta buscada. Geraldo Ataliba, em conhecido e respeitado texto sobre a Constituição de 1967, que não mudou nesse ponto em relação à Carta atual, aponta que o sistema constitucional tributário brasileiro é o mais rígido dentre os conhecidos no mundo, pois não só traz hirta discriminação de rendas, mas igualmente rígida distribuição de faculdades tributárias, com os objetivos de evitar bitributação, assegurar autonomia financeira aos entes parciais e evitar conflitos de competência18.
Atualmente, tratando da Constituição Tributária de 1988, conclui Humberto Ávila pela existência de uma segurança jurídica tributária especial. Partindo de que a segurança jurídica é protegida com elevada importância no ordenamento constitucional, que a
assegura por diversos fundamentos independentes, que têm entre si eficácia recíproca, percebe que ela é ainda mais rigorosa e protetiva no Direito Tributário19.
Isso se deve à existência de normas específicas e enfáticas no Sistema Tributário Nacional (legalidade, regras de competência, exigência de lei complementar para determinados assuntos, irretroatividade, anterioridade e abertura do subsistema tributário a direitos e garantias nele não previstos, como o art. 5º, inciso XXXVI, da CF, e.g.)20.
A legalidade tributária, ressalte-se, pela simples leitura do texto constitucional, se revela mais exigente que a comum, visto não se contentar com uma tributação feita “em virtude de lei”, mas impedir mais firmemente a instituição ou o aumento de tributos “sem lei que o estabeleça”21, tudo a concretizar o no taxation without representation. No Brasil, além da legalidade qualificada, há, como se colheu de Ataliba, para a maior parte dos tributos, um segundo e superior requisito para a tributação: a conformidade com as materialidades constitucionalmente previstas.
Em suma, tal é a ênfase do legislador constitucional brasileiro em circunscrever a atuação infraconstitucional tributária do Estado, que é inevitável a maior repulsa à edição de atos normativos desviantes desses padrões sobranceiros do que em relação a outros ramos ou a outras ordens jurídicas.
Condições gerais para a modulação no Direito Tributário brasileiro
Dados esses caracteres específicos do Direito Tributário, já se nota que, precisamente por ver na tributação um agravo à liberdade e à propriedade constitucionalmente asseguradas, foi o constituinte perceptivelmente rígido em limitá-la, pelo que o espaço da modulação, especialmente aquela desfavorável ao contribuinte, é seriamente restrito, se é que não inexistente, como se verá.
Preliminarmente, pois, conclui-se que, se a regra é a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, então, a fortiori, a resposta constitucional à tributação feita em desconformidade com as limitações ao poder de tributar, em especial por infringência às regras constitucionais de repartição de competências, deve ser a completa retirada da inconstitucionalidade do ordenamento jurídico, com efeitos retroativos.
Nos termos da primeira parte deste trabalho, ante a existência de legislação violadora de regras constitucionais que protegem os direitos individuais à liberdade e à propriedade
sobre os quais o Estado avançou, não há outro remédio a não ser a declaração de inconstitucionalidade.
Essa é a solução geral para a declaração de inconstitucionalidade da tributação e, portanto, a resposta-padrão a propostas de modulação favoráveis ao Fisco, visto que o sobreprincípio da segurança jurídica não se presta à restrição de direitos individuais de liberdade22.
Conforme Seer, “a declaração de nulidade da lei tributária tem seu lugar na falta de competência legislativa”, pois, nesse caso, “a ofensa constitucional só é completamente afastada se houver declaração de inconstitucionalidade com efeitos retroativos”23. Se essa é a solução correta na Alemanha, quanto mais não o será no Brasil, em que, como apontado, há regras rígidas de competência e expressas limitações outras ao poder de tributar.
Seguindo o modelo exposto na parte geral, cumpre analisar em que casos tributários seria viável a mera declaração de incompatibilidade. Lá se apontou que o espaço da declaração de incompatibilidade é o da livre conformação do legislador, ou, ainda, quando a declaração de inconstitucionalidade distancie ainda mais o quadro normativo do estado de constitucionalidade. Cuida-se dos casos em que em geral o legislador moveu-se na direção do cumprimento de normas constitucionais normalmente benéficas, porém o fez de modo insuficiente.
Assim, especificamente quanto ao Direito Tributário, seguindo o raciocínio de Seer, haveria espaço para declaração de mera incompatibilidade (e não de nulidade), primeiramente, quando se atenta contra o princípio da igualdade, seja por ocasião da instituição de benefícios fiscais, seja pela tributação de alguns mais gravosamente ao arrepio desse princípio. Nesse caso, segundo a Suprema Corte alemã, a regra é a declaração de incompatibilidade24.
Dando o exemplo de isenção incidente sobre adicionais trabalhistas (adicional de hora extra e adicional noturno), concedidos apenas a trabalhadores que recebiam tais verbas por título meramente contratual (autônomos), mas não aos empregados que têm o direito legalmente assegurado, aponta que há pelo menos duas maneiras de resolver a inconstitucionalidade: abolir o benefício (evidentemente não com efeitos retroativos) ou estendê-lo aos que se encontram na situação equivalente de empregados25.
Em princípio, pensa-se ser essa hipótese igualmente aplicável ao Brasil, visto que não caberia ao Supremo Tribunal Federal fazer essa escolha pelo legislador, de modo que seria
correta a mera declaração de incompatibilidade. O argumento na Alemanha, a separação dos poderes, é plenamente aceitável no Brasil. No entanto, infelizmente, tende-se no Brasil a não chegar à discussão sobre a modulação nesses casos, pois há uma excessiva autocontenção jurisprudencial na análise de benefícios fiscais, ainda que manifestamente violadores do princípio de igualdade.
Como nota Schwindt, no entanto, embora de fato a modulação seja uma solução aceitável no caso de benefício fiscal violador do princípio da igualdade, visto que nem poderia o Judiciário impor a extensão aos prejudicados, menos ainda suprimir o benefício dos privilegiados, pela separação dos poderes, é certo que, no caso de tributação mais gravosa que viole o princípio da igualdade, a nulidade pode ser a solução mais indicada, já que não é possível retroativamente tributar a mais os restantes26. Basta pensar numa lei que tributasse mais gravosamente os advogados. É evidente que a única solução possível, pelo menos para o passado, seria eliminar a distinção, o que levaria à nulidade, sem prejuízo de o legislador buscar novas soluções para o futuro.
Assim, em muitos casos, o ilícito constitucional só será plenamente reparado se a solução contemplar também os contribuintes prejudicados no passado, daí criticar a doutrina tedesca a tendência da Suprema Corte de impor a criação de novas regras apenas para o futuro27. Ainda que sejam casos de declaração de incompatibilidade, nada impediria constitucionalmente (nem mesmo a separação dos poderes) a correção retroativa pelo legislador. É esse, aliás, o próprio sentido original da declaração de incompatibilidade, como visto.
A incompatibilidade declarada com verdadeira restrição dos efeitos da declaração, embora possa ser sanada de diversas formas, inclusive, com a própria extinção do tributo, como se cogitou na Alemanha (caso do Vermögenssteuer), oferece riscos claros à supremacia constitucional, visto que não terá sido reparada a violação constitucional para o passado. Além disso, nem sempre o prazo fixado para a sobrevida dos efeitos da lei inconstitucional é obedecido28, inclusive por razões justificáveis, tais como falta de maioria parlamentar para o encontro de uma solução, como se deu na Alemanha no caso da declaração de incompatibilidade do imposto sobre heranças (privilégios inconstitucionais para herdeiros de empresas)29, pelo que há um clamor, no mínimo, para que se estabeleça a solução que advirá em caso de decurso do prazo fixado.
O segundo caso de admissibilidade da declaração de incompatibilidade, em paralelo com o que se viu na parte geral, é aquele em que a nulidade piora a situação constitucional (o chamado Rechtsfolgenargument30). O Direito Tributário alemão nos oferece o exemplo da insuficiência da proteção do mínimo constitucional contra a tributação pelo imposto de renda. Nesses casos, há uma obrigação constitucional de afastar a tributação, ao fim e ao cabo, pelo próprio conceito de renda e pelo princípio da capacidade contributiva; cuida-se de um verdadeiro dever de proteção contra a tributação. Não há, pois, benefício fiscal. Assim, se o legislador infraconstitucional não realizou plenamente o seu mister, isentando do imposto de renda valor aquém do mínimo existencial, então, evidentemente, a declaração de inconstitucionalidade da faixa de isenção existente, com declaração de nulidade, agravaria sobremaneira a já existente inconstitucionalidade. Aqui, nos termos de Lutz, evita-se o surgimento de um vácuo jurídico ou do caos normativo e “elege-se o caminho da proximidade constitucional relativamente maior”31.
Sendo assim, o espaço de desvio da nulidade se restringe ao âmbito no qual se verificam duas condições necessárias: a existência de dever estatal e de liberdade de configuração do legislador a respeito desse dever. Trata-se, sobretudo, do âmbito de atuação por excelência dos princípios, em que, como há um estado ideal de coisas a promover, há um dever de atuação estatal, visto que um fim foi prescrito, mas há igualmente um âmbito de livre conformação do legislador, já que os meios não foram pré-eleitos pelo constituinte32. Desse modo, se existe um fim a promover e o legislador opta por realizá-lo através do emprego dos tributos, mas o faz de modo atentatório à igualdade, vê-se que, embora haja um dever constitucional de promover o fim, não há necessariamente o dever de promovê-lo pela tributação ou, optando-se por essa via, não de uma maneira única.
Fora das hipóteses delineadas, quando só a nulidade restaura a constitucionalidade, tem- se tributo sem lei, por mera decisão judicial, o que atenta gravemente contra os princípios da legalidade tributária e da separação dos poderes33.
A modulação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Histórico e visão geral
Seja pela elevada constitucionalização do Direito Tributário, seja pelo caráter de massa do processo tributário, ou ainda pela natureza continuada da maior parte das relações
jurídico-tributárias, não chega a surpreender que nesse ramo se travem dos mais relevantes debates respeitantes à modulação no Supremo Tribunal Federal.
Afinal, a sanção de nulidade tem potencial para envolver vultosas quantias monetárias a pagar ou a restituir.
Apesar disso, até a edição da Lei n. 9.868/1999, não se tem notícia de que houvesse a Corte Suprema modulado alguma decisão em matéria tributária. Isso não quer dizer, contudo, que a questão não fosse suscitada ou discutida. Nos casos em que o foi, sempre foi rejeitada, embora por vezes não unanimemente34.
A razão básica de decidir da Corte podia ser bem representada pelo voto do ministro Sepúlveda Pertence na ADI 1.10235, na qual se declarou a inconstitucionalidade de contribuição para a seguridade social sobre a remuneração de autônomos e de empresários, por falta de permissivo constitucional no art. 195, inciso I, da Constituição Federal. Assim se manifestou o ministro:
“Sou, em tese, favorável a que, com todos os temperamentos e contrafortes possíveis e para situações absolutamente excepcionais, se permita a ruptura do dogma da nulidade ex radice da lei inconstitucional, facultando-se ao Tribunal protrair o início da eficácia erga omnes da declaração. Mas, como aqui já se advertiu, essa solução, se generalizada, traz também o grande perigo de estimular a inconstitucionalidade. [...] Por isso, com as vênias do ilustre Procurador-Geral, independentemente do exame do problema, em outras circunstâncias, mantenho, também, a orientação histórica, na doutrina brasileira, da nulidade da lei inconstitucional. Julgo procedente a ação”.
Nota-se que, embora não se excluísse completamente a possibilidade da modulação tributária, restringia-se a medida a situações “absolutamente excepcionais”, sob pena de estimular-se a inconstitucionalidade.
Com a expressa previsão legal, que erigiu a requisitos para a modulação razões de “segurança jurídica” e de “excepcional interesse social”, passou o Supremo Tribunal a sentir- se mais à vontade para lançar mão desse instrumento no âmbito tributário. Ele o faz, contudo, de modo excepcional.
Análises numéricas recentes da modulação em matéria tributária dão conta de que, quando suscitada, é acolhida pela Suprema Corte em cerca de 10% dos casos36.
Em apertada síntese, a jurisprudência da Suprema Corte admite a modulação de efeitos de suas decisões em matéria tributária quando: a) de algum modo entende que isso é exigido pela estabilidade do direito (casos de modificação jurisprudencial, de instrumentos processuais dotados de efeitos prospectivos); ou b) vislumbra excepcional interesse social, normalmente, embora nem sempre, vinculado ao impacto econômico da decisão para o Estado37.
O argumento financeiro na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a sua crítica
Uma linha argumentativa para a modulação são os efeitos financeiros na decisão, que a Fazenda busca enquadrar sob “razões de excepcional interesse social”, alegando, no mais das vezes, que dada a repercussão financeira, haverá prejuízo às políticas públicas estatais, inclusive àquelas de natureza social. Não raro são rechaçados tais argumentos, pelas mais diversas razões, seja por falta de comprovação mínima, seja para evitar dar estímulo à inconstitucionalidade, ou ainda porque a mera cifra do impacto orçamentário não atenderia ao pressuposto legal, que exige vinculação ao impacto social da decisão38.
O caso mais expressivo de modulação por razões financeiras foi o RE 556.66439, em que, decidindo pela inconstitucionalidade da decadência e da prescrição decenais previstas pela lei previdenciária ordinária, restringiram-se seus efeitos para o futuro, resguardando-se discussões em curso antes da decisão. Embora tenha prevalecido essa orientação, destacam-se os protestos do ministro Marco Aurélio de Mello, para quem, como a tese de exigência de lei complementar era pacífica na Corte desde 1969, modular equivaleria a:
“[...] quase sinalizar no sentido de que vale a pena editar normas inconstitucionais porque, posteriormente, ante a morosidade da Justiça, se acaba chegando a um meio termo que, em última análise – em vez de homenagear a Constituição, de torná-la realmente observada por todos, amada por todos –, passa a mitigá-la, solapá-la, feri- la praticamente de morte”.
No que se refere ao excepcional interesse social, embora pontualmente se aplique a situações diversas40 protetivas dos direitos fundamentais dos contribuintes, há uma forte tendência à sua identificação com o impacto econômico e com a proteção ao Erário, o que
leva à criticável monetarização da segurança jurídica e à desconsideração dos direitos fundamentais como Restitutionsnormen41.
As objeções que podem ser aqui levantadas são as mais diversas. A primeira delas é a pouca clareza e a falta de transparência com que a questão é tratada. Conforme apontado acima, o Supremo Tribunal Federal sustenta não admitir a modulação por simples impacto financeiro que não traga um relevante impacto social.
No entanto, no principal caso em que a modulação por essa razão foi admitida (o da decadência e da prescrição decenária), não houve discussão aprofundada sobre o impacto, mesmo porque a modulação foi suscitada ex officio pela Corte. Além disso, há dúvidas sobre se o argumento financeiro, ainda que realmente expressivo, pode autorizar a modulação.
Nesse sentido, toma-se de empréstimo a crítica de Seer, que, na década de 1990, observava uma tendência da Suprema Corte Alemã à corriqueira declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc em matéria tributária, por razões de ordem financeira, inclusive por argumentos de equidade intergeracional, tendo sustentado a Corte o raciocínio de que permitir a restituição importaria em “favorecer o contribuinte do passado em detrimento do orçamento do presente e do contribuinte do futuro”, o que atentaria contra as “exigências do planejamento orçamentário periódico”42.
Pelo menos no Brasil, é certo que não há na Constituição a vinculação direta entre a tributação e os gastos públicos no mesmo exercício financeiro, visto ter-se abandonado de há muito o princípio da anualidade.
Mesmo na Alemanha, em que eventualmente possam ser aceitáveis conclusões diversas nesse ponto, demonstra Seer a insustentabilidade do raciocínio, pois “se as necessidades financeiras do Estado não legitimam a manutenção da tributação inconstitucional, então não se explica por que elas possam impedir temporariamente a efetivação da solução exigida pela Constituição”43.
Ainda quanto a esse argumento financeiro, tem-se que, no Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal traz mecanismos que propiciam ao Estado prevenir-se contra desequilíbrios orçamentários involuntários, nomeadamente através do Anexo de Riscos Fiscais e da previsão de reserva de contingência44. Assim, cabe ao Estado, ante o risco de declaração de
inconstitucionalidade de certo tributo, tomar as providências cabíveis para fazer frente à necessidade de restituição de tributo inconstitucional, ainda que pela elevação constitucional de tributos.
Por fim, na Alemanha também há jurisdição administrativa tributária (e verdadeira coisa julgada administrativa) combinada com um controle concentrado de constitucionalidade45, de modo que, ao lado do argumento financeiro, também existe um argumento de igualdade que visa ao tratamento administrativo igualitário entre os contribuintes no tempo46, o que não guarda correspondência com o sistema brasileiro e que evidentemente é criticável por pretender equiparar os contribuintes numa situação inconstitucional. Na Alemanha, ainda, a suspensão prévia à declaração de inconstitucionalidade (Aussetzung der Vollziehung) é muito mais dificultosa47, o que reforça a concentração do sistema e aumenta o volume de recursos a restituir.
Seja como for, não há defesa contra o enfático alerta de Seer de que a lógica de proteger o Fisco contra restituições vultosas subverte completamente o Estado de direito, pois se o raciocínio é “quanto maior a restituição, maior a chance de modulação”, então, quanto maior o ilícito estatal, menor a chance de se exigir reparação48.
No Brasil, pensa-se que há um argumento adicional contra esse tipo de raciocínio: a coexistência do controle difuso de constitucionalidade com o concentrado. Ora, se é possível aos contribuintes obter desde o início, em primeira instância e liminarmente, a suspensão da exigibilidade de uma exigência tributária inconstitucional, modular, ou pelo menos fazê-lo sem excetuá-los da modulação, é contradizer uma opção constitucional clara, aquela em favor da mais pronta e efetiva reparação contra a inconstitucionalidade.
Destaque-se, ainda, a impossibilidade de proteger alguma suposta confiança do Estado, que não titulariza direitos fundamentais, salvo poucas exceções, em especial no que concerne aos direitos processuais49, assim como a impossibilidade de se defender que a segurança jurídica em sentido objetivo se prestaria a sustentar a necessidade de proteção do Erário, visto que a segurança jurídica deve ser entendida como um todo incindível, nos termos dos ideais parciais já expostos no início deste artigo.
Inclusive, pensa-se que, por interpretação sistemática, se o Estado responde, mesmo sem culpa, patrimonialmente por quaisquer agravos à liberdade ou à propriedade de seus
cidadãos, não há razão para que não o faça quando isso se der através da tributação, ainda que seja farta a literatura administrativa em argumentos para não responsabilizar o Estado por atos legislativos50.
Descendo do altiplano constitucional, importa adicionar razões infraconstitucionais pelas quais se revela que, mais que em outros ramos, no Direito Tributário, a modulação tem o potencial para estimular a aprovação deliberada de legislação tributária inconstitucional por parte do Estado, o que contribui para agravar e estado de inconstitucionalidade que certas modulações ensejam.
Isso se deve em especial às condições normativas pelas quais se dá a repetição do indébito tributário, que ocorrerá sem peias no caso de não haver a modulação da declaração de inconstitucionalidade de exação tributária.
O que se quer dizer é que, mesmo no pior cenário para o Fisco, ou seja, no da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc de uma cobrança tributária com efeitos erga omnes, as consequências jurídicas não são relevantemente desfavoráveis ao Estado e certamente não restituem os contribuintes ao status quo ante.
Primeiramente, à falta de devolução voluntária do indébito, de que se tem pouca notícia no Brasil, a repetição costuma ser judicial, o que importa em custos para o contribuinte. Isso por si só, especialmente se os montantes individualmente envolvidos não forem expressivos, já faz com que alguns dos créditos nunca sejam pleiteados51.
Em segundo lugar, pelo art. 167, parágrafo único, do CTN, os juros só são devidos após o trânsito em julgado, pelo que, em regra, o Estado só terá de devolver o montante indevidamente auferido com correção monetária, condição de financiamento público que não se encontra no mercado e solução de duvidosa constitucionalidade, por atingir gravemente o direito de propriedade52.
Em terceiro lugar, segundo o art. 166 do CTN, quando terceiros tiverem suportado o encargo econômico do tributo, a Fazenda Pública não terá de devolver ao contribuinte “de direito” o montante pago, solução de duvidosa constitucionalidade.
Desse modo, como afirmado, mesmo no cenário da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, já existe um estímulo normativo para aventuras tributárias inconstitucionais.
A par disso, se houver modulação de efeitos, o estímulo à inconstitucionalidade é ainda mais potencializado, pois se, mesmo com a declaração de efeitos ex tunc, o ilícito estatal já compensa, muito mais será vantajoso em caso de modulação.
No mínimo, é de se exigir a preservação do caso precursor e dos paralelos, o que se reconhece até mesmo no sistema austríaco (Fangprämie), em que se não se adota o dogma da nulidade53, sob pena de subverter gravemente a ordem jurídica, de frustrar os mais básicos direitos fundamentais do contribuinte e de tratá-lo como objeto.
O argumento da segurança jurídica na modulação pelo Supremo Tribunal Federal e a sua crítica
Acima já se apontou que a segurança jurídica não se presta à proteção do Erário, ainda que eventualmente haja fundamentação nesse sentido por parte da Suprema Corte54.
Nota-se, ainda, que, embora haja um certo grau de confusão, tem-se que basicamente se vincula o fundamento “segurança jurídica” à mudança jurisprudencial, e o “excepcional interesse social” ao impacto econômico das decisões55, e que, em números, menos de um quarto dos casos de modulação tributária discutidos envolve o impacto financeiro da decisão56.
Quanto a esse primeiro pressuposto, é certo que a proteção da confiança na jurisprudência é relevante. No entanto, têm-se tradicionalmente adotado marcos objetivos, como a exigência de que a mudança jurisprudencial ocorra em relação a decisão anterior do próprio Supremo Tribunal Federal que tenha transitado em julgado57, o que acaba por desproteger aqueles que confiaram na orientação da Suprema Corte proferida com pretensão de definitividade, ainda que não transitada em julgado.
Mais que isso, adotam-se critérios ainda mais artificiais em certos casos, como no da declaração de inconstitucionalidade da taxa de matrícula nas universidades públicas, em que, apesar de pacífica a matéria no Supremo, a ponto de ter-se editado súmula vinculante, considerou-se que, por só poder produzir tal súmula efeitos prospectivos, caberia a modulação58, o que a nosso ver é o mais absoluto contrassenso, visto que implica afirmar
que, quanto mais pacífica e relevante a matéria, menos se protegerá o entendimento no período anterior ao da edição da súmula.
Raciocínio análogo e, a nosso ver, igualmente reprovável, verificou-se na ADPF 190, em que o ministro Barroso votou em favor da modulação com base, dentro outros, no argumento de que a cautelar definida initio litis tem, de regra, efeitos prospectivos59. Ora, ao assim dispor, a Lei da ADI quis regrar os efeitos da própria cautelar, subtraindo ao seu âmbito, dada a precariedade da medida, fatos passados. No entanto, é inadmissível defender, mesmo em tese, que sua decisão confirmatória será sempre dotada de efeitos ex nunc, já que isso importaria em afirmar que graves violações da ordem constitucional, por isso mesmo prontamente afastadas pela Suprema Corte, não podem ser integralmente restauradas.
Ressalte-se, contudo, que, nesse caso concreto, além de ter sido deferida em favor do contribuinte (declarou-se a inconstitucionalidade de lei que previa redução de base de cálculo do ISS), a modulação se deu predominantemente em razão do fato de a suspensão cautelar da previsão só se ter dado muitos anos após a publicação da lei60, de modo a proteger a confiança dos contribuintes que depositaram fé na redução da base de cálculo. O registro crítico em relação ao voto citado, no entanto, permanece.
Ainda que seja caso de mudança de jurisprudência, defere-se muitas vezes a modulação em favor do Estado, como se tivesse ele os mesmos direitos fundamentais do contribuinte e uma confiança a proteger61.
Em relação ao pressuposto de modulação das razões de segurança jurídica, há diversas críticas a fazer.
Primeiramente, há uma proteção claramente insuficiente do contribuinte pela adoção de marcos absolutamente formais, como a exigência de trânsito em julgado de decisão do Supremo Tribunal Federal para se reconhecer modificação de jurisprudência, quando é certo que a confiança numa súmula do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, merece proteção. Nesses casos, embora se possa afirmar que a Suprema Corte não tem de se curvar ao entendimento de Corte inferior, é possível vislumbrar, no mínimo, um ônus institucional de brevidade para que a Suprema Corte decida a controvérsia em caráter definitivo, sob pena de, havendo reversão na última instância após certa demora, ter de proteger a confiança legítima dos que se fiaram na orientação anterior.
Desconsidera-se, ainda, o caráter dinâmico do princípio da proteção da confiança, o qual, ainda que mais se preste à análise no controle difuso, pode ter alguns de seus elementos objetivados, como pela aparência de legitimidade62. Em sentido semelhante, defendendo a modulação favorável ao contribuinte em caso de mudança jurisprudencial, é a posição de Misabel Derzi63.
Quanto à proteção do Estado em face de mudança jurisprudencial no Supremo, merece reprimenda o fato de que se pretenda proteger a suposta confiança do Estado em casos de modificação da jurisprudência, pois já visto que seus direitos fundamentais são muito limitados. Conforme Derzi, no mesmo sentido, não é possível modular a favor do Estado e contra um grupo específico que suportará as consequências da modulação64.
Por fim, é de se perceber que a segurança jurídica, como já indicado, deve contemplar suas facetas todas, e não só pretender proteger a segurança jurídica do passado, restringindo a do futuro65.
Análise do pleito de modulação da Fazenda Nacional no RE 574.706/PR (exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS)
À luz do exposto, quer-se analisar se é devida ou não a modulação pleiteada pela Fazenda Nacional no caso da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS.
É de todo irrelevante discutir o acerto da decisão de mérito proferida para os fins deste estudo. Importa tão somente apontar a conclusão da decisão, aliada ao seu fundamento principal.
Nesse sentido, do voto vencedor da ministra relatora, ao reconhecer a inconstitucionalidade da inserção do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, sustentou-se que “ainda que, contabilmente, seja escriturado, não guarda relação com a definição constitucional de faturamento para fins de apuração da base de cálculo das
contribuições”66.
Nos seus embargos de declaração, a União reiterou seu pedido de modulação, requerendo que a produção de efeitos gerais só se dê “após o julgamento dos presentes Embargos de Declaração e da definição de todas as questões pendentes, supra expostas”67.
Da petição da Fazenda Nacional no processo já citado, extraem-se duas grandes ordens de fundamentos.
A primeira sustenta que o julgamento envolveria “uma tese que claramente rompe com o entendimento histórico dos nossos tribunais, em que pese o RE 240.785, tem potencial de contágio sobre outras exações – da União e dos demais entes – e promove profundas alterações no sistema jurídico-tributário”; chega-se a afirmar ser a decisão uma verdadeira reforma tributária pela via judicial.
A segunda se centra no impacto financeiro e orçamentário, estimado, até 2015, em cerca de R$ 250 bilhões, chamando-se a atenção para as consequências do descontrole das contas públicas, nos seguintes termos: “basta um exercício de memória do cidadão que viveu as consequencias do descontrole das contas públicas, nos anos 80, para observar que o orçamento impacta decisivamente a vida das pessoas”. É relevante destacar que a União, nesse ponto, insiste na repercussão econômica do julgado em questão para outros temas
não expressamente decididos, porém correlatos.
Ainda dentro dessa segunda linha de argumentação de natureza econômica, indica-se que, para compensar a perda de arrecadação e das restituições, haveria que se reduzir gastos, aumentar tributos ou gerar endividamento, com consequências intergeracionais e distributivas relevantes. Tratando da transferência econômica do tributo, aponta-se ainda que seriam beneficiados os produtores economicamente mais potentes, que teriam conseguido transladar esse custo tributário.
No caso concreto, tratando-se do conceito constitucional de faturamento, vê-se que a declaração de inconstitucionalidade se deu por falta de competência constitucional para tributar o valor correspondente ao ICMS, pelo que se trata do âmbito por excelência da nulidade, visto que o Estado tributou sem poder para tanto. Assim, de pronto, em termos estritamente constitucionais, a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc é a única forma pela qual se restaura plenamente o estado de constitucionalidade.
Quanto ao primeiro grupo de fundamentos, trata-se de uma tentativa de invocar a segurança jurídica como estabilidade. Primeiramente, quanto à própria correção do pressuposto do argumento de que teria havido relevante mudança, há uma séria dúvida. Como percebe Humberto Ávila, a decisão de procedência da ação não prova insegurança
jurídica nem no sentido objetivo, pois não compromete a credibilidade do sistema jurídico como um todo, nem no subjetivo, seja porque a União não exerceu direitos fundamentais (que sequer titulariza nesse caso), seja porque, desde 2006, era provável que o resultado fosse desfavorável ao Fisco, com o placar de 6 a 168.
Em segundo lugar, tenta-se invocar a segurança jurídica para a proteção do Estado, o que é indevido, como já visto. Por fim, olvida-se o caráter uno da segurança jurídica, de modo que, ainda que houvesse efetivo agravo à confiabilidade sem a modulação, outras facetas do princípio seriam solenemente ignoradas.
Em relação ao segundo grupo de argumentos, que se refere ao impacto financeiro da decisão, há vários questionamentos a suscitar.
Primeiramente, é de se indagar da precisão dos dados. De 2015 para 2016, houve no Anexo de Riscos Fiscais uma alteração dessa estimativa de R$ 89,44 bilhões para R$ 250 bilhões. Além disso, em resposta a um pedido de acesso à informação, a Receita Federal, que supôs nos seus cálculos que o ICMS correspondia a 9,75% do PIS e da COFINS arrecadados no período considerado, negou-se a justificar o percentual porque não teria encontrado em seus registros dados que o justificassem69.
Ainda que o argumento financeiro fosse aceitável, o mínimo que se pode exigir é a prova rigorosa do valor aproximado de restituições. Não pode a Suprema Corte decidir com relação a fundamento incerto e não provado, sob pena de atentado ao devido processo legal.
Em segundo lugar, mesmo que a modulação fosse possível nessas circunstâncias e mesmo que o dado fosse provado, há que se examinar se a devolução do montante de R$ 250 bilhões realmente tem o condão de gerar as consequências catastróficas alardeadas pela União, ou seja, de provocar um relevante impacto social, e não meramente financeiro, como exigido pela maioria pretoriana.
Assim, deve-se notar que o desembolso certamente não se daria em um mesmo exercício, dados os diversos marcos de trânsito em julgado e os prazos inerentes ao sistema constitucional dos precatórios. Além disso, o valor a ser desembolsado a cada ano, embora relevante, teria impacto limitado no universo da ordem de R$ 3,5 trilhões das receitas federais em 201970. Por derradeiro, à diferença de outros entes públicos, a União tem formas
não tributárias relativamente fáceis de se financiar, como a emissão de títulos. Desse modo, é improvável que houvesse consequências sociais da monta defendida pela União.
Por fim, é imprescindível ressaltar que a grande culpada pelo acúmulo do valor a restituir foi a demora do Judiciário em decidir definitivamente a questão, em afronta, inclusive, à razoável duração do processo constitucionalmente assegurada, o que faz perceber ter o próprio Estado criado a situação da qual ora se pretende beneficiar com a modulação.
Com efeito, foi o Estado-legislador que editou a previsão tributária inconstitucional e foi o Estado-juiz que foi moroso em pôr termo à discussão, o que enseja potenciais razões para impedir a reparação do ilícito, pela lógica perversa e profundamente subversiva do Estado de direito de que, quanto mais inconstitucional a conduta estatal (nesse caso, quanto mais restringidas a liberdade e a propriedade dos contribuintes), maiores as chances de a conduta ficar sem reparação.
Esse problema gerado pelo tempo não é exclusividade do Brasil, tanto é que, na Alemanha, exatamente pelas razões expostas, a doutrina aventa como soluções prévias71: 1) a suspensão da cobrança do tributo de duvidosa juridicidade, mesmo num país de controle concentrado, por parte da jurisdição financeira, o que forçaria um ajuste imediato e paulatino nas contas públicas, transferindo-se para o Estado o ônus da demora do processo; e 2) a criação de um fundo que servisse para fazer face a esse tipo de restituição.
Com o exposto, não se quer defender a promoção do caos. Quer-se destacar apenas que não há fundamentos constitucionais suficientes para sanar problemas fiscais através da tributação inconstitucional e que há outras soluções constitucionais possíveis que não passam pela modulação, sejam elas prévias, como visto acima, sejam posteriores, a exemplo do oferecimento por parte da União aos contribuintes, por lei, de parcelamentos remunerados por juros ou, em último caso, a autorização judicial por parte do Supremo Tribunal Federal, para que haja mais tempo para cumprimento da decisão, sem que se altere, no entanto, sua eficácia, ou seja, considerando-se inconstitucional e restituível toda a tributação em questão, sem qualquer limitação temporal.
A possibilidade de modulação nesse caso concreto toma rumos ainda mais preocupantes se se nota que sua razão de decidir tem sido fundamento para entendimentos penalizadores, aplicados retroativamente, sem qualquer modulação72.
Enquanto isso, em outras ordens jurídicas, que não protegeram com tamanha densidade constitucional quanto no Brasil os direitos fundamentais dos contribuintes, discute-se,
inclusive, a possibilidade de não penalizar a sonegação de tributos que foram declarados inconstitucionais, mas que só se consideram devidos em razão de modulação73.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, percebe-se que a modulação deve ser uma via excetiva e que só pode ser autorizada quando mais promova a Constituição do que a despromova.
No Direito Tributário brasileiro, em que a segurança jurídica foi superprotegida por direitos fundamentais do contribuinte, quando puder ser admitida, a modulação deve compatibilizar-se com os três ideais parciais componentes do sobreprincípio da segurança jurídica, para que algum deles não seja indevidamente ignorado.
Não se pode admitir a modulação de efeitos contra os contribuintes, pois não é dado ao Estado invocar a segurança jurídica em desfavor de seus cidadãos, visto não titularizar, em regra, direitos fundamentais, sobremodo não quando se tratar de ausência constitucional de competência para a tributação, dado que não há nesse caso outro modo de restaurar a constitucionalidade que não a declaração de nulidade.
Se a Benjamin Franklin se atribui famosamente a frase de que só há duas certezas na vida, a morte e os tributos, conquanto a primeira não possa ser contornada pelo Direito, em termos jurídicos, a segunda não se verifica, nem no sentido de inafastabilidade, nem no de absoluta predeterminação pelo Direito. Nesse campo, a certeza deve dar lugar à segurança jurídica, composta de seus três ideais parciais.
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