IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DO ITBI E OS REFLEXOS DO TEMA 796 DE REPERCUSSÃO GERAL

ITBI TAXATION IMMUNITY AND THE EFFECTS OF THEME 796 OF GENERAL REPERCUSSION


Deise Saccaro Laurindo


Pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas. Pós-graduada em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Servidora da Justiça Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: deise.sl@gmail.com



Recebido em: 13-11-2020

Aprovado em: 16-03-2021


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-6


RESUMO


Este artigo propõe uma análise do julgamento do Tema 796 de Repercussão Geral e a reflexão sobre os efeitos decorrentes da limitação à imunidade dele advinda, tendo como princípio as razões de decidir do voto divergente que culminou na fixação da nova tese. A partir de uma análise da imunidade como limitação ao poder de tributar, da doutrina e da legislação correlatas, traça-se uma perspectiva da tributação do ITBI pelos municípios, no exercício de sua própria competência tributária, no intuito de demonstrar o efetivo prejuízo às fazendas municipais no que refere à incidência do imposto sobre o valor de bens imóveis que exceder a integralização de capital social.

PALAVRAS-CHAVE: IMUNIDADE, ITBI, INTEGRALIZAÇÃO, CAPITAL SOCIAL


ABSTRACT


This article proposes an analysis of the judgement of the Theme (Tema) 796 of General Repercussion (Repercussão Geral) and the reflection on the effects resulting from the limitation of the immunity established by such judgement, having as principle the reasons of the divergent vote that resulted in the fixation of a new thesis. Starting from an analysis of the immunity as a limitation on the power to tax, the doctrine and the


related legislation, a perspective of ITBI taxation by the municipalities is outlined, in the exercise of their own tax competence, with the objective of demonstrating the actual damage to the municipal treasury with respect to the incidence of tax over the value of real estates that exceeds the payment of the corporate capital.

KEYWORDS: IMMUNITY, ITBI, CAPITAL CONTRIBUTION, SHARE CAPITAL


  1. INTRODUÇÃO

    No dia 5 de agosto de 2020 o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Tema 796 de Repercussão Geral, cujo título é “[a]lcance da imunidade tributária do ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição, sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, quando o valor total desses bens excederem o limite do capital social a ser integralizado.” A repercussão do tema foi reconhecida em março de 2015 e, mais de cinco anos após, a Corte Constitucional, por maioria, proferiu decisão que negou provimento ao recurso extraordinário da contribuinte.


    Com a devida vênia ao voto divergente, o entendimento aqui defendido é de que o intuito do legislador constituinte almejava objetivos maiores que o arrecadatório, desafiados no julgado do Tema 796. Ademais, traz-se a decisão, de força vinculante, à realidade, a fim de demonstrar alguns potenciais efeitos dos novos contornos conferidos à norma imunizante.


  2. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DO ITBI E O TEMA 796 DE REPERCUSSÃO GERAL

    1. O instituto da imunidade tributária


      As imunidades tributárias, assim como a conceituação e aplicação de tantos outros institutos do direito, ensejam discussões e divergências jurisprudenciais e doutrinárias mesmo após 30 anos de promulgação da Constituição Federal. Exemplo disso é o recente julgado do Supremo Tribunal Federal que resultou na fixação da tese relativa ao Tema 796 de Repercussão Geral, cujo leading case é o RE n. 796.736, e que será objeto de análise mais detida neste breve estudo.


      Antes, contudo, é imperioso que se faça uma digressão acerca do próprio instituto da imunidade.


      O primeiro dos pontos que chama atenção é o de que as imunidades tributárias vêm ao ordenamento no próprio texto constitucional, diferentemente das isenções. Significa dizer que, ao dispor sobre o Sistema Tributário Nacional, o legislador constituinte tratou de ressalvar determinadas situações do campo de competência do poder público relativamente a dados tributos. Não por acaso a Seção reservada à maioria das chamadas imunidades é denominada na Carta de Das Limitações do Poder de tributar, que trata também dos princípios tributários. Já aqui, para que se forme a linha de raciocínio


      proposta, cabe memorar que a interpretação do texto constitucional deve se dar de forma sistemática, mas também teleológica.


      Definidos tais contornos, especificamente sobre a conceituação de imunidade Luciano Amaro sintetiza: “A imunidade tributária é, assim, a qualidade da situação que não pode ser atingida pelo tributo, em razão de norma constitucional que, à vista de alguma especificidade pessoal ou material dessa situação, deixou-a fora do campo sobre que é autorizada a instituição do tributo.”1 Sacha Calmon Navarro Coêlho, por sua vez, é taxativo ao exprimir que “imunidade é uma heterolimitação ao poder de tributar. A vontade que proíbe é a do constituinte. A imunidade habita exclusivamente no edifício constitucional.”2


      Em estudo mais denso e aprofundado sobre o tema, Regina Helena Costa faz uma análise das definições doutrinárias, partindo de consagrados autores como Aliomar Baleeiro, Pontes de Miranda e Amílcar Araújo Falcão, até autores mais contemporâneos, igualmente notáveis, como Paulo de Barros Carvalho, Ricardo Lobo Torres e Roque Carrazza. A Ministra do Superior Tribunal de Justiça, nesta linha, dedica um capítulo de sua obra a esmiuçar o conceito e a natureza jurídica do instituto da imunidade tributária de acordo com os diversos entendimentos manifestados por grandes estudiosos, até trazer o seu próprio conceito, merecedor de registro:


      “A definição do conceito deve observar o fato de o instituto em estudo apresentar dúplice natureza: de um lado, exsurge a imunidade como norma constitucional demarcatória da competência tributária, por continente de hipótese de intributabilidade, e, de outro, constitui direito público subjetivo das pessoas direta ou indiretamente por ela favorecidas.

      Cabe afirmar, portanto, que a imunidade tributária pode ser visualizada sob o aspecto formal e sob o aspecto substancial.

      Sob o prisma formal a imunidade, em nosso entender, excepciona o princípio da generalidade da tributação, segundo o qual todos aqueles que realizam a mesma situação de fato, à qual a lei atrela o dever de pagar tributo, estão a ele obrigados, sem distinção. Assim, sob esse aspecto, a imunidade é a impossibilidade de tributação – ou intributabilidade – de pessoas, bens e situações, resultante da vontade constitucional.

      Sob o aspecto material ou substancial, por sua vez, a imunidade consiste no direito público subjetivo, de certas pessoas, de não se sujeitarem à tributação, nos termos delimitados por essa norma constitucional exonerativa.

      A imunidade tributária, então, pode ser definida como a exoneração, fixada constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de


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      1. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 176.


      2. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 98.


        competência tributária extraível, necessariamente, de um ou mais princípios constitucionais, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por ela delimitados, de não se sujeitarem à tributação.”3


        Ainda sobre os princípios constitucionais que inspiram a norma exonerativa, Ricardo Lobo Torres afirma que as imunidades genéricas previstas no art. 150, VI, da CF/1988 – correspondentes à Seção já referida – se consubstanciam em vedações ao exercício da tributação que têm por fundamento os direitos de liberdade, uma vez que resguardam do poder de tributar bens ou coisas que se afiguram indispensáveis à manifestação da liberdade4.


        Com efeito, a leitura do art. 150, VI, da CF/1988 permite concluir que o seu intento é o de salvaguardar do alcance do poder de tributar determinadas situações que estão intrinsecamente ligadas a valores protegidos pela Constituição, tal como é o caso da liberdade religiosa, por exemplo (art. 5º, VI, da CF). Efetivamente, ao conferir imunidade de impostos aos templos de qualquer culto, a norma constitucional inibe o poder de tributar de qualquer dos entes federados sobre os templos de qualquer que seja a religião, guardando perfeita sintonia com os direitos e garantias previstos no art. 5º no que refere à liberdade de crença. Em acréscimo, é pertinente lembrar que o Supremo Tribunal Federal, instado a dizer sobre a liberdade religiosa em diversos casos, sempre ressaltou que o Estado Brasileiro é laico. Portanto, nada mais coerente que uma norma que excepcione da competência de tributar impostos os templos de qualquer culto, não só por conferir tratamento constitucional idêntico a todos eles, mas por garantir que não seja a carga tributária dos impostos causa de supressão ou mitigação do exercício de um direito social fundamental.


        Retomando as lições de Sacha Calmon Navarro Coêlho, “a imunidade liga-se a valores caros que se pretende sejam duradouros”5, de maneira que esta reflexão deve ser trazida sempre que se pretende verificar sua aplicação a qualquer que seja a hipótese, sem que se olvidem as demais disposições legais e as circunstâncias que permeiam cada caso concreto. A título exemplificativo, cabe menção ao RE n. 330.817/RJ, no âmbito do qual o STF reconheceu a extensão da imunidade do art. 150, VI, d, da CF, aos livros eletrônicos, fixando a seguinte Tese, relacionada ao Tema 593 de repercussão geral: “A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo.” Da ementa do mesmo julgado ainda é pertinente extrair a ponderação que segue, que não obstante se refira aos livros e periódicos, perfeitamente retrata o intento das imunidades em geral, mutatis mutandis:


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      3. COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 58.


      4. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. v. II, p. 320.


      5. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 101.


      “A teleologia da imunidade contida no art. 150, VI, d, da Constituição, aponta para a proteção de valores, princípios e ideias de elevada importância, tais como a liberdade de expressão, voltada à democratização e à difusão da cultura; a formação cultural do povo indene de manipulações; a neutralidade, de modo a não fazer distinção entre grupos economicamente fortes e fracos, entre grupos políticos etc.; a liberdade de informar e de ser informado; o barateamento do custo de produção dos livros, jornais e periódicos, de modo a facilitar e estimular a divulgação de ideias, conhecimentos e informações etc. Ao se invocar a interpretação finalística, se o livro não constituir veículo de ideias, de transmissão de pensamentos, ainda que formalmente possa ser considerado como tal, será descabida a aplicação da imunidade.”6


      Por fim, ainda é oportuno referir que as imunidades, pelo contexto de que emanam e pela proteção a valores que representam, são uma das formas de o Estado atingir as chamadas finalidades extrafiscais da tributação. Ainda que não haja tributação propriamente dita, a limitação de competência imposta pela imunidade revela que o Poder Público lança mão de instrumento que almeja o atingimento de política pública que difere sobremaneira da meramente arrecadatória, inerente a todos os tributos. Assim, ao tornar determinado segmento ou atividade econômica imune a impostos ou contribuições, ele objetiva, em realidade, fomentar ou incentivar tais setores, assim como ocorre com as isenções, as alterações de alíquotas ou a seletividade, observadas em relação a outros tributos7. Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho, inúmeras vezes “a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas situações, tidas como social, política ou economicamente valiosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso”8.


    2. A imunidade específica prevista no art. 156, § 2º, I, da CF/1988 e o Tema 796 de repercussão geral


      Feitas tais breves considerações sobre o conceito de imunidade e sobre as imunidades genéricas, é necessário analisar de forma um pouco mais detida as imunidades específicas, que estão atreladas a um tributo determinado e, portanto, ao ente correlato. Diferentemente das imunidades genéricas, as especiais, ou específicas, “servem a valores mais limitados ou a conveniências especiais”9. Cabe ressaltar, contudo, que ainda que mais limitados os valores, ou vinculadas as imunidades às conveniências a que refere Regina


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      6 RE n. 330.817, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 08.03.2017, DJe-195 31.08.2017.


      1. GOUVEA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 211-214.


      2. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 260/261.


      3. COSTA, Regina Helena. Op. cit., p. 138.


        Helena Costa, certo é que são intentos do legislador constituinte que, tal como em relação às imunidades genéricas, almejam finalidades que desbordam a mera arrecadação.

        É no campo das imunidades específicas que se desenvolve a análise proposta neste trabalho, notadamente no que refere à previsão contida no art. 156, § 2º, I, da CF/1988. Atente-se para sua redação:

        “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

        [...]

        II – transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

        [...]

        § 2º O imposto previsto no inciso II:

        I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;”


        Mais uma vez fazendo alusão às lições da Ministra do STJ, as imunidades ao ITBI constantes no dispositivo transcrito são de natureza objetiva e política. Objetiva porque, ainda que beneficiem pessoas, recaem sobre fatos, bens ou situações, e políticas porquanto “sem constituírem consequência necessária de um princípio, são outorgadas para prestigiar outros princípios constitucionais”10.


        Nessa toada, Sacha Calmon Navarro Coêlho bem delineia qual seria o intuito da norma imunizante quando ensina:


        “A regra colima facilitar a mobilização dos bens de raiz e sua posterior desmobilização, de modo a facilitar a formação, a transformação, a fusão, a cisão e a extinção de sociedades civis e comerciais, não embaraçando com o ITBI a movimentação dos imóveis quando comprometidos com tais situações.”11


        Não é difícil concluir que os princípios prestigiados pela imunidade ao ITBI são imanentes ao exercício da atividade econômica. Efetivamente, ao conceder imunidade à transmissão de bens para integralização de capital subscrito, o constituinte objetivou fomentar a formação de estruturas societárias, vitais à movimentação e desenvolvimento da economia. É imperioso que se atente, neste contexto, que a primeira economia favorecida



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      4. COSTA, Regina Helena. Op. cit., p. 143.


      5. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 247.


        é a local, ou seja, aquela próxima ao ente tributante a quem compete o tributo atingido pela imunidade. Significa dizer que, se a imunidade ao ITBI implica inicialmente uma “perda” de receita, a médio e longo prazo ela provavelmente representará ingresso de recursos que poderão compensar a arrecadação não realizada quando da transmissão dos bens, e os primeiros beneficiados com este retorno são os municípios.


        Relativamente à imunidade aqui debatida são sempre imprescindíveis à melhor compreensão da matéria as lições de Kiyoshi Harada (destaques acrescidos):


        “A imunidade prevista no art. 156, § 2º, I, da Carta Maior é específica para o ITBI, porém possui a mesma natureza das imunidades previstas no seu art. 150, VI, ‘a’ a ‘e’, constituindo cláusula pétrea, tal como aquelas.

        A utilização da conjunção aditiva ‘nem’ pelo inciso I do § 2º do art. 156 retro comprova que estamos diante de duas orações distintas, cada uma delas contemplando uma imunidade do ITBI diferente.

        A primeira parte do dispositivo constitucional refere-se à imunidade autoaplicável, no caso de transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital.

        A segunda parte, pertinente à imunidade do ITBI decorrente de transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, corresponde à imunidade condicionada, pois para a sua fruição o adquirente não poderá ter como atividade preponderante a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

        Logo, tratando-se de transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, a imunidade é incondicional, não tendo sentido a verificação das condições previstas na parte final do inciso I do § 2º do art. 156 da CF, como quer parcela da doutrina e da jurisprudência.

        A ‘transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital’, de que cuida o texto constitucional, significa que os bens imóveis são dados em pagamento do capital subscrito. É preciso que haja correspondência entre o valor dos bens imóveis a serem incorporados e o valor do capital subscrito a ser integralizado. Se o valor dos bens imóveis é insuficiente, nada impede a sua complementação em dinheiro. Se, ao contrário, o valor dos bens imóveis superar o valor do capital subscrito a ser integralizado, deverá a diferença ser objeto de tributação pelo ITBI. O pagamento há de ter correspondência com o conteúdo da obrigação. Se for uma obrigação por quantia certa, não haverá que se cogitar de pagamento por um valor abaixo ou acima dela. [...]”12



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      6. HARADA, Kiyoshi. ITBI, doutrina e prática. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 91.


        Portanto, a imunidade ora em debate, qual seja “transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”, prevista no art. 156, § 2º, I, primeira parte, da CF/1988 é, conforme o autor, autoaplicável, condição inarredável às conclusões que serão tecidas mais adiante.


        Antes, entretanto, importa observar que o Código Tributário Nacional tratou de regular a disposição constitucional sobre a imunidade do ITBI nos seus arts. 36 e 37, sobretudo no que refere à definição do que seja a “atividade preponderante” referida na Carta, mas não delineada por ela. Assim, o art. 36 praticamente reproduz a disposição do art. 156, § 2º, I, dividindo-o em dois incisos, para em seguida trazer o conceito tratado na ressalva da parte final do dispositivo constitucional, consoante disposição do art. 37, in verbis:


        “Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

        § 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

        § 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

        § 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.

        § 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.”


        Guardadas as críticas que possam ser tecidas em relação à recepção de tais dispositivos pela Constituição, sobretudo no que refere à apuração das chamadas atividades preponderantes em intervalos de tempo não determinados pela Lei Maior, a recente decisão do STF no bojo do Tema 796 de repercussão geral encerra as digressões que parte dos estudiosos suscitavam relativamente ao preenchimento da condição referente à atividade preponderante à primeira das imunidades previstas, qual seja a transmissão de bens para integralização de capital social.


        Por ocasião do julgamento daquele tema, intitulado “alcance da imunidade tributária do ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição, sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, quando o valor total desses bens excederem o limite do capital social a ser integralizado”, a Corte Constitucional, por maioria, vencido o Relator Ministro Marco


        Aurélio, fixou a seguinte tese: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”


        Mas o julgado do STF vai além.


        O Ministro Alexandre de Moraes, inaugurando divergência no leading case, invoca a doutrina de Kiyoshi Harada anteriormente reproduzida e passa a fazer uma análise da norma imunizante na consonância dos ensinamentos do doutrinador. Observe-se o seguinte trecho do voto do Relator para o Acórdão:


        “A esse respeito, o já mencionado professor Harada esclarece que as ressalvas previstas na segunda parte do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 aplicam-se unicamente à hipótese de incorporação de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

        É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I. Nesses últimos casos, há, da mesma forma, incorporação de bens, mas que decorre da ‘incorporação que é uma operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações’ (art. 227 da Lei 6.404/1976 – Lei de Sociedades Anônimas); cisão operação pela qual uma sociedade transfere parte de seu patrimônio para uma ou mais empresas (art. 229 da Lei das S.A.); ou fusão – operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar uma nova sociedade que lhe sucederá em todos os direitos e obrigações (art. 228 da Lei das S.A.).

        Em todas essas hipóteses, há incorporação do patrimônio imobiliário de uma sociedade para outra, mas sem qualquer relação com a incorporação (integração) referida na primeira parte do citado inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF, que alude à transferência de bens para integralização do capital.

        Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I – ‘nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil’ – revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão ‘nesses casos’ não alcança o ‘outro caso’ referido na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF.

        [...]


        Ou seja, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso.

        Assim, o argumento no sentido de que incide a imunidade em relação ao ITBI, sobre o valor dos bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, em realização de capital, excedente ao valor do capital subscrito, não encontra amparo no inciso I, do

        § 2º, do art. 156 da CF/88, pois a ressalva sequer tem relação com a hipótese de integralização de capital.

        Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira- se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.

        Revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo – como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital.

        Essa extensão interpretativa em termos de imunidades não é aceita por nossa Suprema Corte, por constituir exceção constitucional à capacidade tributária:

        [...]

        Disso decorre, logicamente, que, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o valor do capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI, pois a imunidade está voltada ao valor destinado à integralização do capital social, que é feita quando os sócios quitam as quotas subscritas.

        Por outro lado, nada impede que os sócios ou os acionistas contribuam com quantia superior ao montante por eles subscrito, e que o contrato social preveja que essa parcela será classificada como reserva de capital. Essa convenção se insere na autonomia de vontade dos subscritores.

        O que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda- se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal.

        Ainda que o preceito constitucional em apreço tenha por finalidade incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o desenvolvimento das empresas, não chega ao ponto de imunizar imóvel cuja destinação escapa da finalidade da norma.”


        O julgado, procedido nos moldes do art. 927, III, do CPC, se reveste do caráter de precedente qualificado e terá força vinculativa, nos termos daquele mesmo dispositivo. Por esta razão, e conforme o art. 926 também do diploma processual, os tribunais “devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, de maneira que não tardará para que seja ele perfilhado por juízes e tribunais de todo o país.


        Nesse diapasão, como esclarecem Fredie Didier Jr., Paula S. Braga e Rafael A. de Oliveira, “as razões de decidir do precedente é que operam a vinculação: extrai-se da ratio decidendi, por indução, uma regra geral que pode ser aplicada a outras situações semelhantes”13. Logo, além de definir a nova tese de repercussão geral, o STF tratou também de esclarecer a questão da imunidade condicionada prevista no art. 156, que não guarda relação com a primeira parte do inciso I do § 2º, aqui abordada. Assim, juízes e tribunais deverão, guardando a estabilidade e coerência referidas alhures, observar também a ratio decidendi do precedente.


    3. A aplicabilidade da tese e a necessidade de lei ordinária municipal


      Diante das considerações até aqui tecidas, já é possível dessumir que não apenas os aspectos expressamente definidos pelo julgado do STF são merecedores de atenção, mas também eventuais desdobramentos deles decorrentes. Com efeito, interpretações demasiado abrangentes acerca da limitação à imunidade constante na tese fixada podem conduzir à falsa premissa de que, tal como a norma imunizante, a tributação do valor que exceder ao da integralização deverá ser prontamente efetivada, silogismo que afluiria em afronta aos próprios princípios e valores que a Constituição almeja proteger com a norma exonerativa, sobre os quais anteriormente se discorreu.


      Explica-se.


      É ponto incontroverso na doutrina e no precedente vinculante do STF que a imunidade referente à transmissão de bens para integralização de capital social é incondicionada. Significa dizer que ela é autoaplicável, ou seja, independe de qualquer regulamentação por lei complementar, sobretudo após o voto divergente condutor do acórdão, que afastou de forma derradeira qualquer digressão que se fizesse quanto às exceções previstas na parte final do inciso I do § 2º com relação à imunidade prevista na primeira parte do mesmo inciso.

      Nessa toada, e retomando as considerações anteriores atinentes à ratio decidendi do precedente qualificado – rememore-se, enfático ao definir que “a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso” –, conclui-se que as restrições que repousam no art. 37 do CTN, quando se refiram à hipótese prevista no art. 36, I, do mesmo diploma, já não encontram fundamento de validade na Constituição Federal. Ora, se antes do julgamento do Tema 796 coexistiam as duas interpretações ao texto constitucional, no sentido de que a imunidade seria excepcionada também em relação aos bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital quando “a atividade preponderante do adquirente for a


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      1. BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de; DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. v. 2, p. 460.


        compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento

        mercantil”, agora não mais.


        Até o julgamento do recurso paradigma, e por força do que dispõe o CTN nos arts. 36 e 37 já referidos, a maioria dos municípios isentava as transmissões de bens destinadas à integralização de capital social e, por vezes, condicionava a manutenção do benefício à aferição da atividade preponderante da pessoa jurídica. O que norteia, entretanto, a atuação dos fiscos municipais são suas próprias legislações, ainda que no mais das vezes meramente reproduzam os dispositivos constitucionais ou do CTN acerca do tema.


        Ocorre que a replicação das normas contidas na Constituição Federal ou no CTN – que não limita o direito subjetivo à imunidade, mas apenas define seus critérios – é deveras singela quando a questão em voga, ao fim e ao cabo, concerne na exoneração do tributo. Não havia maior margem para discussões sobre a natureza desta norma exonerativa quando se considerava a questão nuclear da imunidade a integralização de capital social, a despeito de o valor do imóvel exceder o capital integralizado.


        E não se diga que tal interpretação era equivocada ou incondizente com os intentos da Carta. Neste sentido, o Voto vencido do Relator do Tema 796, Ministro Marco Aurélio, reportando-se ao art. 3º, III, da Constituição, bem assinalou a ideia do legislador constituinte: “A razão de ser da imunidade – e nada surge sem causa, princípio lógico e racional do determinismo – é facilitar o trânsito jurídico de bens, considerado o ganho social decorrente do desenvolvimento nacional, objetivo fundamental da República [...].”


        Ocorre que, com o entendimento sedimentado na tese firmada, abriu-se uma brecha para que as administrações tributárias municipais passem a fazer incidir o ITBI sobre o que exceder ao montante do capital social integralizado, contanto que o bem imóvel aportado supere o valor da integralização.


        O que não tratou o STF, e olvidam os municípios mais ávidos de arrecadação, é que se a imunidade é autoaplicável, a tributação não é. Portanto, minimamente duas outras situações devem ser detidamente analisadas quando o assunto versado for a incidência do ITBI sobre transmissão de imóvel para fim de integralização de capital social: o tratamento conferido pelo município em sua legislação vigente, enquanto ente tributante que detém competência para tanto, e a definição da base de cálculo do imposto à luz do princípio da legalidade.


        Como sói se referiu alhures, não raras vezes os municípios legislam sobre o ITBI reproduzindo nos códigos tributários municipais a previsão atinente à imunidade ao tributo, acrescida das disposições existentes também no CTN e mescladas a outros róis exemplificativos. Ocorre que a imunidade, sendo autoaplicável, não carece de qualquer regulamentação. O que se observa é que as legislações locais que replicam o texto constitucional, em realidade, tratam de legislar acerca de sua própria competência


        tributária, conferida no art. 156, II, da CF/1988 e, agora, alargada pelo STF, diante da limitação à imunidade aqui versada. Nesse contexto, são comuns as leis municipais que apresentam elencos exemplificativos de atos que importem transmissão de propriedade e, portanto, contidos no campo de incidência. Da mesma forma, estas leis elencam também hipóteses em que o imposto não incidirá.


        O tratamento conferido pelas Fazendas Municipais em tais situações, fundamentado em dispositivos de legislação própria, não pode ser pura e simplesmente tomado como observância à imunidade que repousa na Carta, a pretexto de fazer incidir o imposto a despeito de sua própria legislação, inclusive porque não raras vezes impõem condições sequer previstas na CF/1988. Quando o ente municipal legisla em matéria tributária, instituindo o ITBI, estabelecendo sua alíquota e excluindo determinadas hipóteses do campo de incidência, ele está exercendo sua competência para legislar em matéria tributária, observadas as balizas definidas nas limitações constitucionais do poder de tributar.


        Na linha do entendimento acima, aliás, muito bem pontua Roque Antonio Carrazza:


        “Em suma, o Município, no Brasil, é entidade autônoma. Pessoa política, legisla para si, de acordo com as competências que a Carta Magna lhe deu. Nenhuma lei que não a emanada de sua Câmara tem a possiblidade de ocupar-se com assuntos de interesse local.

        Instituindo e arrecadando livremente seus tributos, o Município reafirma sua

        ampla autonomia, em relação à demais pessoas políticas.”14


        Aliás, sobre a perfeita coexistência de normas nacionais e de emanadas de outros entes federados acerca da outorga de exonerações fiscais, cabem as considerações declinadas pelo Ministro Gilmar Mendes nos autos do Agravo Regimental na Suspensão de Segurança n. 3.679/RN:


        “Os institutos da imunidade e da isenção tributária não se confundem. É perfeitamente possível ao Estado conceder, mediante lei, isenção de tributo de sua competência, visto que está atuando nos limites de sua autonomia. Seguindo o mesmo raciocínio, também é possível ao ente federado revogar tal isenção.

        Enquanto não editada a lei a que se refere o § 21 do art. 40 da CF/88, vigem os diplomas estaduais que regem a matéria, que só serão suspensos se, e no que, forem contrários à lei complementar nacional (CF, art. 24, §§ 3º e 4º).

        Na decisão agravada, consignei que, mesmo no caso de edição de lei complementar capaz de conferir eficácia à imunidade estabelecida pelo art. 40, § 21, CF, ainda é


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      2. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 156.


        possível a concessão de isenções que se coadunem com a limitação constitucional

        do poder de tributar.”15


        Saliente-se, ademais, que não por outra razão o art. 150, § 6º, da CF/1988, define que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição”, dispositivo que, aliás, guarda perfeita sintonia com a vedação à isenção heterônoma prevista no art. 151, III, da Carta. Dito de outra forma, apenas o ente a quem compete instituir o tributo pode prever as hipóteses de isenção a ele correlatas.


        É o que ocorre com os municípios.


        O julgado de repercussão geral do STF, pois, se aplicado de maneira direta e a despeito da lei vigente em cada município poderá desencadear lançamentos tributários desprovidos ou contrários à lei, em evidente violação ao princípio da legalidade estrita. Admitir que a fixação da tese em repercussão geral, sedimentada na afirmação de que a concessão de imunidade ao valor excedente à integralização se daria “ao arrepio da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal”, como referiu o Ministro Relator, legitime a atuação das Fazendas Municipais sem o prévio tratamento legal adequado, implica evidente retrocesso e indubitável transgressão a diversas das limitações ao poder de tributar arroladas no art. 150 da Constituição.

        Além disso, é importante que se volte o olhar sobre qual seria o efetivo prejuízo ao Fisco municipal. Para melhor ilustrar o motivo da indagação, propõe-se um exercício rápido: imagine-se uma pessoa física, que resida em um município de médio porte, e receba por herança um imóvel urbano constituído de uma sala comercial, situada neste mesmo local e evidentemente sujeita à incidência de IPTU. Sobre o bem, em virtude da sucessão, houve incidência de ITCD. Algum tempo depois, por força de uma obra de pavimentação asfáltica próxima, o município procedeu à cobrança de contribuição de melhoria, em decorrência de alegada valorização do bem. O proprietário, em seguida, pretende constituir uma empresa, cujo objeto social será a prestação de serviços de assessoria e consultoria em informática – contribuinte, portanto, de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) –, e integralizar sua cota de capital social com o aludido bem, seu único imóvel, cujo valor corresponde ao triplo da integralização. O município, de economia mediana, atento à decisão do STF, vê a possibilidade de fazer incidir sobre os 2/3 excedentes à integralização o ITBI, aumentando, assim, sua arrecadação. A incidência do tributo, contudo, poderia desestimular a constituição da empresa e, neste caso, a despeito de outras questões


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      3. SS n. 3.679 AgR, Rel. min. Gilmar Mendes, j. 04.02.2010, DJe 26.02.2010. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608523. Acesso em: 31 ago. 2020.


        socioeconômicas envolvidas, haveria perda de arrecadação tanto em relação ao imposto de transmissão, como no tocante ao imposto sobre serviços.


        Portanto, a questão do prejuízo aos municípios é mais ampla do que a mera “perda” de arrecadação decorrente da aplicação da norma constitucional relativa à imunidade anteriormente à interpretação conferida pelo STF no âmbito do Tema 796. Considerar a concessão da imunidade um prejuízo aos municípios quando houver integralização de capital por bens imóveis que superem o seu valor pode resultar num efeito rebote para a arrecadação. A primeira economia favorecida com a formação das empresas é, torna-se a dizer, a local, que a longo prazo pode ser prejudicada pela voracidade tributária imediatista.


        O prejuízo se torna um conceito relativo, de dimensões imprecisas, diante da mitigação da limitação ao poder de tributar propiciada por aquele julgado, que restabelece em parte a competência municipal para tributar as transmissões de bens em integralização de capital. E eis o ponto que merece destaque: a limitação da imunidade permitida a partir do julgado do STF nos faz retomar a construção inicial acerca do conceito daquela limitação de tributar, enquanto “norma constitucional demarcatória da competência tributária, por continente de hipótese de intributabilidade”16, nas já citadas palavras de Regina Helena Costa. Ora, se relativizada a imunidade, oportunizada está a tributação, mas como exaustivamente se referiu, nos limites da legislação do município, ente competente para dispor sobre o ITBI. Desta feita, qualquer disposição na legislação infraconstitucional municipal é exercício do próprio poder de tributar, sendo que as isenções, ou não incidências, como tratam muitos entes municipais, longe de serem regulamentação da Norma Suprema – que não carece de regulamentação e nem este seria o instrumento adequado –, são exonerações concedidas pelo próprio município e que permanecem hígidas até disposição legislativa em contrário.


        Dessa forma, quando o município atua na sua esfera de competência, concedendo isenção a determinado tributo, ainda que subsista norma imunizante na Carta, o ente federativo chama para si a concessão da exoneração. Mais uma vez invocando as lições de Harada, por sua sempre excelência, “não há possibilidade de dupla incidência de normas diferentes”. E ele prossegue: “Apenas a norma específica incidirá, afastando a incidência de norma genérica de tributação ou, ao menos, será aplicada exclusivamente a norma específica em prejuízo da norma genérica, o que resultará na não exigência do tributo.”17


        Assevere-se, neste contexto, que eventual revogação das isenções concedidas, que não se opera automaticamente em virtude da nova interpretação conferida à imunidade que outrora possa ter lhes inspirado, deverá constar de norma superveniente do ente municipal, de efeitos prospectivos, aliás. Ademais, não é demasiado lembrar que há muito


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      4. COSTA, Regina Helena. Op. cit., p. 58.


      5. HARADA, Kiyoshi. Imunidade, não incidência e isenção: doutrina e prática. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 93.


        o STF consolidou seu entendimento, por meio da Súmula n. 544, de que: “Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.” O mesmo se dessume do art. 178 do CTN.


        Assim, quando a pretexto da aplicação do Tema 796 um município pretender fazer incidir

        o ITBI sobre o valor dos imóveis excedentes à integralização do capital, deverá, antes de aplicar a letra do julgado, volver à sua própria legislação tributária e, não contemplando ela seus anseios, promover o devido processo legislativo para sua alteração.


    4. Da base de cálculo do ITBI


      Ainda no contexto da aplicação da tese do Tema 796, um outro ponto, que já vinha sendo objeto de controvérsias em algumas municipalidades, é merecedor de destaque, qual seja a definição da base de cálculo do ITBI incidente sobre o excedente à integralização do capital social.


      Isso porque a questão atinente à base de cálculo do imposto é tema recorrente de debates nos tribunais estaduais e já foi objeto de apreciação por julgados inclusive no âmbito do STJ, que sinalizou: “A controvérsia é eminentemente jurídica e tem sido reiteradamente decidida pelo STJ no sentido de que não há identidade entre as bases de cálculo do IPTU e do ITBI e suas respectivas formas de apuração, de modo que os valores lançados podem ser diversos.”18 A Corte, entretanto, no mesmo julgado, refere que “à míngua de outros elementos de informação no acórdão recorrido, o reconhecimento da ilegalidade apontada pela agravante é que demanda reexame probatório”, razão pela qual a matéria não foi apreciada no tocante ao ponto.


      Ocorre que, ainda que se admita que as bases de cálculo dos impostos municipais sejam diversas, aquela referente ao ITBI não pode se desgarrar de critérios previamente previstos em lei. O que se tem observado é a adoção de valores pelas administrações municipais que, embasadas em avaliações alheias à lei, apuram o valor de mercado do imóvel com base em pesquisas voltadas a tal finalidade. Exemplo disso é o valor venal de referência atualmente adotado pelo município de São Paulo19, que tem sido objeto de severas críticas, tais como a de Kiyoshi Harada, ao defender que a “Municipalidade de São Paulo, com o manifesto propósito de aumentar o imposto sem lei, engendrou a figura do Valor Venal de Referência

      – VVR – como base de cálculo desse imposto.” E continua o jurista:


      “Esse VVR resulta de pesquisas de mercado imobiliário feitas por burocratas da Secretaria das Finanças do Município que vão alimentando periodicamente o computador da Secretaria com o valor de mercado relativamente a todos os imóveis



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      1. AgInt nos EDcl no REsp n. 1.566.501/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 17.05.2016, DJe 01.06.2016.


      2. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/fazenda/servicos/itbi/ Acesso em: 25 ago. 2020.


        cadastrados na Prefeitura para fins de IPTU. Esse Valor Venal de Referência disponibilizado no computador do fisco municipal com efeito vinculante ao contribuinte é infinitamente superior ao Valor Venal do imóvel que resulta da aplicação da lei de regência da matéria para fins de lançamento do IPTU, ou seja, da Lei nº 10.235/86. É bom que fique claro, desde logo, que a lei não fixa o valor venal de cada imóvel; ela contém regras objetivas para apuração do valor venal de cada imóvel por ocasião do lançamento pela autoridade administrativa competente.”20


        O mesmo autor, invocado nas razões de decidir do voto divergente do Tema 796, em mais uma de suas obras elucidativas sobre o tema, ainda melhor esclarece a questão, tomando como exemplo mais uma vez o município de São Paulo:


        “A base de cálculo é o valor venal do imóvel que outra coisa não é senão aquele preço que seria alcançado em uma operação de compra e venda à vista, em condições normais do mercado imobiliário, admitindo-se a diferença de até 10% para mais ou para menos. Não se confunde com o valor da efetiva transação imobiliária nem com a base de cálculo de cada imóvel em concreto. Nos chamados tributos avaliáveis (IPTU e ITBI) é preciso não confundir o plano abstrato de eleição de critérios ou métodos avaliativos para se encontrar o valor unitário do metro quadrado do terreno ou da construção, com o plano concreto da constituição do crédito tributário em cada caso, mediante a atividade do lançamento por uma suas modalidades, que é ato vinculado, nos precisos termos do art. 142 do CTN. No Município de São Paulo existe a Lei nº 10.235/86, que fixa as normas e métodos para apuração do valor venal, expressos em seis Tabelas anexas, que possibilitam a apuração do valor unitário do metro quadrado da construção e do terreno. Daí por que inconstitucional o ato do Executivo, que disponibiliza a base de cálculo de cada imóvel cadastrado, obtido mediante pesquisa de mercado, para fins de obtenção da guia de recolhimento do ITBI como determina o Decreto municipal nº 46.288/05, ferindo o princípio da legalidade, além de alterar o regime de lançamento por homologação que, por definição, não subordina o recolhimento do imposto ao exame prévio do fisco.”21


        Portanto, com a limitação do direito à imunidade, o que antes era medida de cunho extrafiscal que almejava uma finalidade social e de fomento à economia, pode acabar reverberando, a pretexto de incremento da receita dos municípios, prática arrecadatória extremamente agressiva, esta sim “ao arrepio” de preceitos e normas. Some-se a isso as diversidades próprias de um país com extensão continental e a falta de transparência


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      3. Disponível em: http://haradaadvogados.com.br/itbi-tjsp-firma-tese-da-alternatividade-da-base-de-calculo-do-imposto. Acesso em: 25 ago. 2020.


      4. HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 581/582.


      quanto aos critérios adotados para avaliação do imóvel, e não é difícil imaginar cenários em que o intento outrora aspirado corre sério risco de se esvair.


  3. CONCLUSÃO

Ao julgar o Tema 796, o STF abre a possibilidade de municípios fazerem incidir ITBI sobre o valor que exceder o montante relativo à integralização do capital social de pessoas jurídicas, em evidente mitigação ao que prevê o art. 156, § 2º, I, da CF/1988.


O precedente qualificado, contudo, não apenas define a tese repetitiva relativa à incidência do imposto sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital quando o montante dos referidos bens exceda o valor integralizado, como dirime as digressões até então existentes sobre a aplicação da exceção prevista no inciso I, in fine, do § 2º, do art. 156 da Carta relativamente à imunidade trazida na primeira parte do mesmo inciso.


Nessa senda, são relevantes as seguintes conclusões sobre desdobramentos do julgamento do Tema 796 abordados:

  1. sedimentado o entendimento de que a exceção referida alhures não se aplica àquela imunidade, conclui-se que as restrições que repousam no art. 37 do CTN, quando se refiram à hipótese prevista no art. 36, I, do mesmo diploma, já não encontram fundamento de validade na Constituição Federal;

  2. a aplicação da tese fixada no julgado não autoriza que municípios prontamente

    passem a tributar as realizações de capital mediante incorporação de imóveis quando o valor destes bens exceder o da integralização. O exercício da competência tributária deve observância ao princípio da legalidade, de maneira que é imprescindível a existência de lei ordinária municipal que preveja a incidência do ITBI sobre os valores dos imóveis que excederem o montante integralizado do capital social das pessoas jurídicas.

  3. instituído por lei o tributo, à municipalidade cabe a adoção de critérios legais na

definição da base de cálculo do ITBI incidente sobre o excedente à integralização do capital social, inadmitida a aplicação de métodos de avaliação que deles estejam desgarrados e configurem, de conseguinte, abusos na cobrança do imposto.


Por fim, as razões que nortearam o voto que conduziu a Corte, por maioria, à fixação da tese jurídica, levaram em conta inclusive o prejuízo dos municípios decorrente da não arrecadação de imposto por força da ampla abrangência da imunidade como foi até então aplicada.


Ocorre que, um olhar mais detido sobre os intentos do constituinte, sobre as finalidades extrafiscais das normas imunizantes e, sobretudo, sobre as dificuldades de empreender no Brasil, aliadas à diversidade cultural e à pluralidade de realidades em um território tão


vasto, não conduzem a outra asserção senão a de que os debates não se encerram com o julgamento de mérito do tema. Ao revés, a pseudossinalização no sentido de que as fazendas municipais estão, agora, imbuídas do direito de fazer incidir o imposto, a despeito de suas próprias normas definidas no exercício de suas competências tributárias, enuncia um provável período de amplo e profundo debate nos Tribunais, que quiçá levará a Corte Suprema a ser novamente instada a dizer sobre o tema.


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HARADA, Hiyoshi. ITBI. TJSP firma a tese da alternatividade da base de cálculo do imposto. Harada Advogados Associados. 16.12.2019. Disponível em: http://haradaadvogados.com.br/itbi-tjsp-firma-tese-da-alternatividade-da-base-de- calculo-do-imposto/. Acesso em: 25 ago. 2020.