LINEAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA
DELINEATIONS ABOUT THE TAX JURIDICAL RELATIONSHIP
Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional, em Direito Registral e Notarial, em Direito Ambiental, Processo Ambiental e Sustentabilidade pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB). Pós graduando em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMPRS). Advogado. E mail: bizinoto.felipe@hotmail.com
Recebido em: 07-09-2020
Aprovado em: 19-03-2021
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-8
Este artigo intenta expor um panorama amplo e outro específico. O primeiro dirá respeito à teoria geral da relação jurídica, um pouco de suas origens e seus elementos. O segundo será a interface entre teoria geral e Direito Tributário, aplicando-se as categorias jurídicas com maior abstração ao segmento tributarista, daí evidenciando a relação jurídica tributária.
This article intends to expose a broad panorama and a specific one. The first will concern the general theory of the legal relationship, a little of its origins and elements. The second will be the interface between general theory and Tax Law, applying the legal categories with greatest abstraction to the tax legal relationship.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O sistema tributário brasileiro se desenvolve a partir da família romano-germânica (civil law), que parte de premissas dotadas de maior abstração jurídica, especialmente (mas não
somente) aquelas editadas pelos órgãos estatais legislativos, que desenvolvem o núcleo dos sistemas jurídicos seguidores da civil law, qual seja, a lei.
Conforme L. Vilanova1, o Direito como um todo desenvolve suas normas jurídicas a partir da figura fundamental da relação intersubjetiva, isto é, a disciplina jurídica trata de certos fatos sociais que tangenciam interações entre dois ou mais sujeitos – não todas as interações (morais, de convívio, de etiqueta etc.), mas aquelas constantes no suporte fático normativo2.
Sem se apegar a certa matéria jurídica é que se desenvolve um arquétipo teórico-estrutural que delineará a ideia de relação que servirá para todos os setores do Direito. Vilanova3 aponta que o papel da teoria geral da relação jurídica se desprende das particularidades de cada seara e retém o núcleo comum, a porção genérica que se realiza no particular.
No Brasil, o Direito Tributário não escapa das ideias desenvolvidas pela teoria geral. Essa inescapável ligação entre geral e particular é que será objeto do desenvolvimento a seguir. Melhor dizendo, o mote deste artigo é inicialmente desenvolver os elementos da teoria geral da relação jurídica e, em um segundo momento, demonstrar sua interface com o sistema tributário por meio da identificação da relação tributária.
TEORIA GERAL DA RELAÇÃO JURÍDICA
O marco teórico geral da relação jurídica encontra seu berço na civilística alemã da Escola Pandectista, um dos três grandes momentos brilhantes ou gloriosos na história jurídica4. Dentro dessa escola se destacam F. C. Freiherr von Savigny, R. von Jhering e B. Windscheid. A Pandectística alemã são reconhecidos três grandes contributos para a ciência jurídica: (i) a teoria do negócio jurídico; (ii) a teoria da pessoa em sentido jurídico; e (iii) a teoria geral da relação jurídica5.
M. A. Domingues de Andrade6, Marcel E. Simões7 e F. C. Pontes de Miranda8 sintetizam os elementos sobre os quais a teorização geral da relação jurídica se debruça: (i) os sujeitos
ativo e passivo, que são os termos da relação e consistem nos centros de imputação jurídica;
(ii) o objeto, que consistente em um comportamento humano que, por sua vez, pode incidir sobre um bem material ou imaterial; (iii) o fato jurídico constitutivo, que é o dado fenomênico contido no suporte fático normativo e de cuja ocorrência resulta a incidência normativa, gerando as constelações jurídicas; e (iv) a garantia, o conjunto de meios que a ordem jurídica coloca à disposição do titular para resguardar suas posições jurídicas ativas.
E por qual motivo o espectro relacional foi teorizado? Qual a relevância dessa teoria para o plano prático?
N. Bobbio9 e F. Wieacker10 contrastam a controvérsia entre F. C. Freiherr von Savigny e A.
F. J. Thibaut sobre os principados alemães estarem preparados ou não para uma codificação, a qual foi efetivada quase um século depois, em 1900. Apesar de Savigny, expoente da Escola Histórica do Direito, ter sido contrário à codificação, suas contribuições para que seu aluno, B. Windscheid, capitaneasse o Código Civil alemão (BGB) são evidentes. Nesse sentido, um dos principais contributos foi o que inspirou a divisão legislativa em parte geral e parte especial, assim como a matriz da disciplina dessas duas partes, a relação jurídica.
É dizer: a tradição legislativa que se iniciou com as codificações, mas nelas não se ateve no plano atual, tem como base a teoria geral da relação jurídica, a qual usualmente consta na chamada parte geral dos códigos ou nas disposições gerais de legislações mais pontuais.
A esse respeito, A. Teixeira de Freitas11 alude à teoria geral do liame jurídico ao afirmar que a parte geral das codificações serve como sede preparatória para a parte especial, eis que trata com maior grau de abstração dos elementos das relações de Direito. Nas leis brasileiras: o Código Civil (CC/2002) tem uma parte geral (arts. 1º a 232); o Código de Processo Civil (CPC/2015) também (arts. 1º a 317); a Lei n. 8.078/1990 tem disposições gerais (arts. 1º a 60); e a Lei n. 9.610/1998 tem disciplina preliminar geral (arts. 1º a 6º).
Muitos diplomas que formam ordenamento legal são tributários da Escola Pandectista, pois a disciplina legal é ordenada com maior abstração na chamada parte geral ou nas disposições preliminares (ou gerais) e ganham maior proximidade com certos segmentos na parte especial ou nas disposições especiais (p. ex., o CC/2002 com os livros sobre contratos, família, sucessões; o CPC/2015 com trechos sobre procedimento comum e procedimentos especiais).
O próximo passo é analisar essas ilações pela óptica tributária brasileira, aliando as categorias mais desprendidas do plano concreto com o segmento em comento, com suas minúcias e implicações.
RELAÇÃO TRIBUTÁRIA E SEUS ELEMENTOS
A partir da visão de F. C. Pontes de Miranda12 e A. Teixeira de Freitas13, a parte geral das codificações costuma vir primeiro, pois determina os conceitos comuns a toda a disciplina que seguirá na lei. Ocorre que essa forma de ordenar não se aplica ao Código Tributário Nacional (CTN), porquanto as chamadas normas gerais constam nos arts. 96 e seguintes, o que causa alguma estranheza lógica para quem vislumbra o CTN em relação, por exemplo, ao CC/2002 e ao CPC/2015, que primeiro tratam de questões gerais e depois discorrem sobre matérias específicas.
Superada essa singularidade por parte do diploma tributário, vê-se que os elementos da relação jurídica desenvolvidos pela teoria geral constam em diversas disposições das normas gerais. A Constituição do Brasil (CRFB) determina o fato jurídico constitutivo tributário ao estabelecer que um tributo só pode ser constituído ou majorado mediante lei (art. 150, inciso I). No plano legal, o CTN traz minúcias sobre a hipótese de incidência tributária ao enunciar que o tributo é definido em lei (art. 114).
Com relação aos sujeitos ativo e passivo, há tratamento pelo CTN dos arts. 119 a 138; sobre o objeto, o tributo, nos arts. 139 e seguintes: constituição, modalidades de cumprimento, extinção, suspensão; acerca das garantias, há uma mescla entre o sistema constitucional tributário (arts. 145 a 162) e o CTN (não apenas, mas com destaque, nos arts. 183 e seguintes).
Esse tratamento legal determina as balizas que delineiam os tributos em geral, independentemente de se tratar de um imposto, uma taxa de serviço público ou de exercício de polícia, ou uma contribuição de melhoria. Todas essas espécies tributárias, segundo o art. 146 da CRFB, encontram algumas premissas gerais, as quais constam no codex tributário.
Indaga-se, enfim, sobre quais os elementos da relação jurídica tributária, exigindo-se, por óbvio, uma resposta alinhada à teoria geral desenvolvida anteriormente.
Com relação ao fato jurídico constitutivo tributário, enuncia o texto constitucional que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios [...] exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (art. 150, inciso I). Na mesma toada, determina o CTN que a relação tributária “é a situação definida em lei” (art. 114). Depreende-se dos enunciados
normativos o que tanto M. Bernardes de Mello14 quanto Valéria C. P. Furlan15 relacionam ao fato constitutivo tributário, a saber, o princípio da legalidade tributária, o qual enuncia que tão somente algumas espécies de lei (atos supralegais, leis ordinária, complementar e delegada, medidas provisórias e emendas à Constituição) podem criar tributos.
Logo, apenas diplomas legais ou similares (ou seja, que têm o poder de constituir, modificar ou extinguir posições jurídicas subjetivas, status ou relações jurídicas dentro do ordenamento jurídico brasileiro) servem de base para, no plano da eficácia, fazer nascer uma relação tributária.
Sobre os polos do liame tributário, uma ideia geral é a de capacidade tributária, que é a aptidão para figurar como sujeito ou ativo ou passivo16. O sujeito ativo da relação é o Fisco, que, regra geral, é o próprio ente tributante (isto é, aquele que tem autorização constitucional e legal de impor o tributo, arrecadá-lo e fiscalizá-lo), ou, excepcionalmente, é outra pessoa, física ou jurídica, de direito público ou privado, legalmente autorizada17.
Aqui cabe expor a divisão entre feição legislativa e feição administrativa tributária: a primeira é indelegável e diz respeito ao poder funcional do órgão legislador em criar o tributo; a segunda é delegável e diz respeito ao poder funcional de efetivamente impor o tributo, aqui entendido como os atos ligados ao seu lançamento, arrecadação e fiscalização18. Nessa segunda feição, que se liga à relação tributária ora tratada, eis que o sujeito ativo é aquele que constitui, angaria e policia o tributo, podendo ser uma entidade juspublicista ou jusprivatista.
Dentro do espectro do Fisco é que se identifica a figura da parafiscalidade, que trata de dividir a feição administrativa tributária mais ainda, porque dissocia aquele que efetiva a tributação mediante o lançamento – o ente tributante – daquele que arrecadará – o ente arrecadador19. Disso tudo é possível conceber o sujeito ativo da relação tributária, o Fisco, como o ente com autorização constitucional para constituir, lançar, arrecadar e fiscalizar a espécie tributária.
Do outro lado do liame tributarista está o sujeito passivo, que é aquele que ostenta capacidade tributária passiva, a qual compreende a aptidão para recolher o tributo20. No
dizer de M. Bernardes de Mello21, o sujeito passivo da relação tributária é a pessoa física ou jurídica (de direito público ou privado) que tem o dever de recolher o tributo. Nessa toada, o CTN enuncia que sujeito passivo “é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária” (art. 121). Geraldo Ataliba22 identifica a figura do contribuinte como aquele que tem intimidade com o núcleo da hipótese de incidência (isto é, o aspecto material), aquele a quem é imputado diretamente o fato jurídico constante na norma tributária. Ocorrendo o fato imponível (o fato concreto que se amolda à abstração jurídica constante na hipótese tributária23), este é atribuível a alguém, o sujeito passivo: por exemplo, titularizar o domínio mobiliário veicular faz incidir o IPVA, cujo contribuinte é o chamado dono do veículo automotor.
Não há confusão do termo passivo com a categoria do contribuinte, eis que o CTN determina que terceiros, ou seja, sujeitos alheios ao fato social que resultou na incidência normativa e no consequente nascimento da relação tributária, tenham de recolher o tributo24. A essa categoria de terceiros se dá o nome de responsável, que, de acordo com Geraldo Ataliba25 e Valéria C. P. Furlan26, são sujeitos que são colocados no polo passivo tributário por determinação legal, não por terem promovido o fato que suscitou a incidência normativa.
As subespécies de sujeitos passivos são, então, o contribuinte e o responsável. O contribuinte é aquele que realiza o fato constante na hipótese legal tributária, ou, nos dizeres de Leandro Paulsen27, aquele que consta no fato social que acarretou a constituição da relação tributária (e, por conseguinte, do tributo devido). Por exemplo, contribuinte do Imposto de Renda é a pessoa física que tem seu patrimônio majorado em razão de acréscimos legalmente considerados como renda.
Com relação ao responsável, as lições de Valéria C. P. Furlan28 e Leandro Paulsen29 permitem defini-lo como o terceiro que não consta no fato social que serviu de hipótese para a incidência normativa tributária (com a consequente criação da relação tributária), mas que está legalmente incumbido de adimplir o tributo. Apesar da confusão constante no texto legal, o CTN determina como responsáveis “os pais, pelos tributos devidos por seus filhos
menores” (art. 134, inciso I). É a mesma ideia de que a um terceiro pode ser imputado o dever de adimplir o tributo de outrem no que diz respeito à infração dolosa à legislação tributária: aqueles constantes no art. 134 do CTN responderão pelo contribuinte, por exemplo.
Ato contínuo, o objeto da relação tributária é o tributo, que compreende a conduta devida pelo sujeito passivo em prol do sujeito ativo do liame instituído por lei. De acordo com o CTN, tributo “é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (art. 3º).
Como ensinam Marcel E. Simões30, M. Bernardes de Mello31 e F. C. Pontes de Miranda32, a relação tributária é de cunho obrigacional e, portanto, tem como objeto imediato a prestação, uma promessa de comportamento que se aplica à seara tributarista, observado o fato de que há o objeto mediato, que pode ser a pecúnia, bens ou posições patrimoniais. Exemplifica-se com a ideia de que o tributo é habitualmente adimplido em dinheiro, o chamado pagamento, todavia, é possível que o devedor realize a prestação ao dar certo imóvel ou móvel ao Fisco.
Como enuncia o texto legal citado, o tributo não nasce em razão de atos ilícitos, e sim de condutas juridicamente consideradas conforme o Direito (ou seja, atos lícitos), por exemplo, a aquisição de renda33 (IR), a venda de um salgado (ICMS ou ISS), a aquisição de um imóvel após celebrada venda e compra (ITBI), a sucessão nas posições ativas patrimoniais deixadas por alguém que faleceu (ITCM), a doação de certa posição patrimonial a outrem (ITD).
Reafirmando a legalidade, o enunciado transcrito estabelece que o tributo é instituído em lei, e as espécies tributárias constantes na Constituição do Brasil são variantes, sendo esta uma abordagem muito utilizada pela doutrina34 a partir da hipótese normativa, especificamente na descrição do chamado aspecto material, que é, para Geraldo Ataliba35, a imagem de um fato jurídico. A divisão trazida por Lourival Vilanova36 do fato jurídico em eventos, que são fatos em que a vontade humana inexiste ou é irrelevante, e em condutas, as espécies fáticas em que a vontade humana é relevante, contribui para a identificação do
ponto cerne da classificação tributária a partir do aspecto material: trata-se da descrição de eventos ou condutas atribuíveis ao contribuinte e cuja tributação a Constituição autoriza37.
Como ensina Luciano de Camargo Penteado38 a partir das lições ponteanas, há evidente diferença entre relação jurídica e fato jurídico: este é fonte daquela, ou seja, os diversos fatos jurídicos são descritos na hipótese normativa e dizem respeito ao que ingressa no plano do Direito, enquanto a relação está no plano da eficácia, como resultado da incidência da norma sobre sua hipótese, fazendo nascer a relação jurídica, as posições jurídicas subjetivas e os status. Assim, ao se falar de hipótese de incidência tributária, está-se no plano da existência, na apreciação de quais dados fáticos constam no teor normativo para que do seu preenchimento surja a relação tributária.
É a norma tributária que contempla os elementos de existência para a identificação das diversas espécies tributárias. A partir da visão da norma, especificamente da sua hipótese de incidência, chega-se à citada classificação com centralidade no aspecto material: e é considerando esse aspecto tributário que se identifica não apenas a espécie de tributo a ser adimplido, mas, também, o próprio ente tributante39, o que leva, em questões práticas, à exclusividade de alguns em detrimento de outros. Por exemplo, a titularidade sobre domínio imobiliário em região urbana é circunstância descrita na norma do IPTU, que é imposto a ser instituído e arrecadado pelo município, excluídos os estados-membros e a União.
Visões da hipótese normativa tributária são divididas de acordo com a leitura constitucional. Uma primeira corrente é a tradicional e tripartite, adotada por Paulo de Barros Carvalho40 e Valéria C. P. Furlan41, os quais afirmam que, com base no art. 145, são três as espécies, quais sejam: os impostos, as taxas e as contribuições de melhorias.
Destoando da visão tradicional tripartite, Leandro Paulsen42 e Anis Kfouri Júnior43 entendem que há quadripartição das espécies tributárias: impostos, taxas, empréstimos compulsórios e contribuições lato sensu (de melhoria, sociais, de intervenção no domínio econômico, de interesse das categorias profissionais ou econômicas e de iluminação pública).
Hugo de Brito Machado44 adere a uma terceira corrente, denominada pentapartida, que considera que as contribuições constantes no art. 149 da Lei Fundamental brasileira formam uma categoria distinta das contribuições de melhorias, eis que aquela espécie tem como hipótese específica o sustento da seguridade social, de interesse das categorias profissionais ou econômicas, e a intervenção no domínio econômico.
Pelo fato de as contribuições de melhorias conterem um suporte fático específico (obras públicas que valorizam bens imóveis dos contribuintes) é que se distinguem das chamadas contribuições especiais, que contemplam hipóteses materiais distintas e relacionadas à manutenção e promoção da seguridade social, de interesses de categoriais profissionais ou econômicas, ou a intervenção na seara econômica45.
Crítica a ser feita à visão tradicionalista é que a interpretação se restringe à literalidade do art. 145 da CRFB, ao passo que a óptica interpretativa sistemática do texto constitucional, suscitada pela visão destoante, tem mais coerência ao analisar que não apenas o citado artigo constitucional expõe espécies tributárias, mas que diversos outros fazem menção a outras classes, como, por exemplo, o art. 149, parágrafo único, ao falar de empréstimos compulsórios, e o art. 195, que fala das contribuições sociais de seguridade social. É considerando as diversas descrições fáticas que a corrente pentapartida desponta e recebe guarida pelo Supremo Tribunal Federal (AgR no AI 658.576/RS, AgR no AI 679.355/RS, RE 111.954/PR), pois a Corte compreende que os empréstimos compulsórios e as contribuições de melhorias têm natureza jurídica autônoma em relação aos impostos, taxas e contribuições sociais.
Como último elemento da interface ora realizada, a garantia tributária compreende o conjunto de normas tributárias postas à disposição do sujeito ativo da relação tributária para tutela de suas posições jurídicas subjetivas ativas. Tais garantias se ligam à diferença entre ação em sentido material e ação em sentido processual (“ação”), pois é viável ao titular da posição ativa resguardá-la tanto judicial quanto extrajudicialmente46.
Exemplo da tutela extrajudiciária é o Fisco poder resguardar o crédito tributário mediante protesto da chamada Certidão de Dívida Ativa (CDA), consoante o art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 9.492/1997. Por outro lado, exemplo da tutela judiciária é o manejo do procedimento da execução fiscal, disciplinado pela Lei n. 6.830/1980.
Com todo o panorama exposto, o seguinte desenho esquemático traduz a relação tributária:
A visão estrutural acima desenvolvida serve não apenas para o desenvolvimento de legislações, mas também para a identificação, dentro do imenso mundo jurídico, de quais relações são regidas pela disciplina tributária, o que permite maior precisão operacional por parte do aplicador do Direito.
Outra utilidade relacionada à identificação dos componentes da relação tributária é não no plano mais abstrato, mas na sua concretização em relação às espécies tributárias, eis que o passo de concretude dado auxilia o operador do Direito, por exemplo, a identificar o ente tributante contra o qual direcionar determinadas reivindicações ou até a suscitar certas celeumas. Um grande exemplo desse passo de “desabstrativização” dado é o caso da tributação dos softwares, que está em análise pelo STF (RE 688.223): o aresto é claro em excluir da qualidade de sujeito ativo da relação tributária a União, entendendo que a controvérsia circunda o ICMS, de titularidade estadual, e o ISSQN, de titularidade municipal.
Outro aspecto prático é que o regime tributário brasileiro contém diversas minúcias aplicáveis a certas espécies tributárias, e a outras, não. Vide, por exemplo, a questão da anterioridade, que se aplica como regra geral, todavia é afastada no que diz respeito aos impostos de importação (II) e de exportação (IE), aos empréstimos compulsórios voltados ao atendimento de despesas excepcionais decorrentes de calamidade pública ou guerra externa (cf. art. 150, § 1º, da Carta da Primavera). É identificando a hipótese fática que gerou a tributação que se vê qual o regime jurídico aplicável e, portanto, quais as garantias que circundam as posições jurídicas ostentadas pelas partes (tanto ente tributante quanto contribuinte e responsável tributário). Nos primeiros exemplos há impostos, o que não resulta em eventual restituição posterior, enquanto o segundo exemplo, além de fugir da anterioridade tributária, resulta no direito do contribuinte a receber dinheiro após cessada a situação extraordinária causadora do empréstimo compulsório.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, estabeleceu-se como ponto de partida a teoria geral da relação jurídica, tendo como base a Escola Pandectista, a qual teorizou quatro elementos que são comuns a toda e qualquer relação regida pelo Direito: (i) os polos ativo e passivo, que são os centros de atribuição de posições jurídicas; (ii) o objeto, que é o comportamento que pode incidir sobre bem material ou imaterial; (iii) o fato jurídico constitutivo, que consta no suporte fático normativo e cuja ocorrência resulta na incidência normativa; e (iv) a garantia, o plexo de meios jurídicos deferidos ao sujeito para resguardar suas posições jurídicas ativas.
Passo seguinte foi a interface com o segmento tributário, a aplicação da teorização geral ao regime jurídico tributarista, cuja relação jurídica tributária tem os seguintes elementos: (i) o sujeito ativo é o Fisco, que pode ou não se identificar com o ente tributante, aquele que impõe efetivamente o tributo, enquanto o sujeito passivo é o contribuinte e, eventualmente, o responsável; (ii) o objeto é o tributo, que é uma prestação patrimonial realizada pelo devedor em prol do credor; (iii) o fato jurídico constitutivo tributário é a lei (atos supralegais, leis ordinária, complementar e delegada, medidas provisórias e emendas à Constituição); e (iv) a garantia tributária é o conjunto de normas constitucionais, legais e infralegais voltadas à tutela judicial e extrajudicial das posições jurídicas subjetivas ativas do sujeito ativo da relação tributária.
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