ABORDAGEM TIPOLÓGICA OU CONCEITUAL DAS REGRAS DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E ALEMANHA
TYPOLOGICAL OR CONCEPTUAL APPROACH TO TAX POWER ALLOCATION RULES: A COMPARATIVE STUDY BETWEEN BRAZIL AND GERMANY
Mestre, Doutor e Residente Pós-doutoral em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Direito Tributário (Graduação e do Mestrado Acadêmico) e Coordenador do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito Milton Campos. Advogado e Professor em Belo Horizonte/MG. E-mail: fredericobreyner@gmail.com
Recebido em: 17-01-2021
Aprovado em: 03-03-2021
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-10
O artigo analisa os sistemas constitucionais tributários de Brasil e Alemanha relativamente às regras de competência tributária e sua abordagem tipológica ou conceitual por meio do método comparado funcionalista. Na Alemanha, a abordagem tipológica foi acolhida pelo Tribunal Constitucional como mecanismo de outorga de liberdade ao legislador na formatação dos impostos, possibilitando-lhe combinar e modificar características dentro de um modelo típico, como contrapartida à ausência de um poder de inventar novos impostos, o que levaria ao risco de petrificação da Constituição. A comparação para com o sistema brasileiro leva à uma conclusão, oposta, uma vez que a Constituição de 1988 expressamente estabeleceu um poder de invenção de novos impostos pela competência residual e extraordinária da União, elegendo duas características rígidas e necessárias (fato gerador e base de cálculo) como parâmetro para se identificar um novo imposto, o que caracteriza a adequação do método conceitual.
The article analyzes the constitutional tax systems of Brazil and Germany regarding the tax power allocation rules and their typological or conceptual approach using the functionalist comparative method. In Germany, the typological approach was accepted by the Constitutional Court as a mechanism for granting the legislator with the freedom to format taxes, enabling him to com-bine and modify characteristics within a typical model, as a counterpart to the absence of a power to invent new taxes that would lead the risk of petrification of the Constitution. The comparison with the Brazilian system leads to an opposite conclusion, since the 1988 Constitution explicitly established the power to invent new taxes by the residual and extraordinary competence of the Federal Union, choosing two rigid and necessary characteristics (taxable event and tax base) as a parameter to identify a new tax, which characterizes the adequacy of the conceptual method.
INTRODUÇÃO
O artigo se dedica ao estudo comparado entre os ordenamentos constitucionais de Brasil e Alemanha relativamente ao estabelecimento da competência tributária dos entes federados1. Seu objetivo é analisar, com recurso ao método comparado, a interpretação e aplicação das regras de competência tributária que preveem a instituição de tributos pelos entes federativos. Mais especificamente, a discussão se trava sobre como devem ser compreendidas essas previsões, na Constituição brasileira, em matéria de tributos de fato gerador não vinculado a uma atuação estatal, para concluir se elas descrevem tais situações com referência não conclusiva aos fatos que podem ser tributados, ou se elas definem essas situações em caráter conclusivo acerca de características necessárias sem as quais os impostos não podem ser validamente reconduzidos à competência tributária. Na primeira alternativa, tem-se a adoção de conceitos de tipo (ou tipos propriamente ditos) e na segunda de conceitos de classe (conceitos de classe, conceitos classificatórios ou, simplesmente, conceitos).
Essa distinção tem inequívoco relevo prático, pois conceitos de tipo e conceitos de classe, apesar de serem ambos técnicas de categorização, implicam metodologia distinta na interpretação e aplicação do direito. A decisão por um ou outro método resulta, respectivamente, em maior ou menor liberdade do legislador na definição das hipóteses de incidência dos tributos. No método tipológico, variações nas características que compõem
o conceito utilizado nas regras de competência tributária são possíveis desde que conservada, do ponto de vista valorativo, a totalidade típica da categoria, pois aquelas características são fluidas, renunciáveis e admitem formas mistas e sobrepostas. No método conceitual as características que formam os conceitos constitucionais das regras de competência são compreendidas como necessárias, e se ignoradas, renunciadas ou alteradas pela lei tributária acarretarão a inconstitucionalidade do tributo.
O estudo do direito tributário brasileiro em comparação ao direito alemão se justifica pela invocação deste último como exemplo de federalismo que também adotou a técnica de repartição de competência tributária. Na literatura brasileira podem ser encontrados autores que invocam o ordenamento alemão como exemplo para sustentar a abordagem tipológica das regras de competência no Brasil2, bem como aqueles que ressaltam as diferenças entre ambas as Constituições que impedem sua invocação enquanto argumento para se chegar à mesma conclusão no direito brasileiro3.
O estudo comparado aqui empreendido tem a função de aperfeiçoar a aplicação das normas jurídicas positivas a partir da identificação de similaridades e diferenças em ordenamentos diversos4. Adota-se assim o método funcionalista de comparação, pois a pretensão é a de “identificar respostas jurídicas similares ou distintas, em conflitos sociais que se assemelham mesmo ocorrendo em lugares distintos do mundo”5.
O artigo iniciará com a descrição dos métodos tipológico e conceitual, identificando uma uniformidade na literatura brasileira, inspirada na doutrina alemã, acerca do que se compreende por tipos e conceitos. Os dois tópicos seguintes serão dedicados à distinção metodológica entre tipos e conceitos e ao diálogo com as ciências cognitiva e da linguagem como fator útil para potencializar as operações jurídicas. Posteriormente, será feita uma análise da distribuição de competência operada pela Constituição brasileira e pela Lei Fundamental no sistema alemão para, em seguida realizar-se a comparação entre os dois sistemas. A conclusão a que se chega é que há uma diferença estrutural entre os sistemas,
o que aponta a necessária adoção de métodos distintos para a abordagem da competência tributária em cada um deles.
A pesquisa teve caráter jurídico-dogmático e compreensivo. Dogmático porque aborda uma construção teórica para embasar decisões6 relativas à correspondência entre a
instituição de um tributo e as regras de competência tributária, e compreensiva7 porque busca, além da descrição do sistema tributário da definição de competências, expor a relação recíproca entre as diversas possibilidades de se conceituar uma situação e a liberdade do legislador em conformar a hipótese de incidência. A metodologia utilizada foi a bibliográfica e documental, baseando-se em livros, artigos, legislação e jurisprudência, de cuja análise extraiu-se a sustentação das conclusões.
CONCEITOS DE TIPO E CONCEITOS DE CLASSE NA LITERATURA TRIBUTÁRIA NACIONAL
De forma geral, a literatura dedicada especificamente ao tema aqui tratado8 não diverge quanto às características dos distintos conceitos empregados, quais sejam, conceitos de tipo e conceitos de classe, respectivamente chamados de tipos e conceitos. Os autores que se dedicaram ao tema também já apontaram equívocos de nomenclatura9 e a indevida confusão dos tipos com outras figuras correlatas10. Em linhas gerais, pode-se afirmar que a doutrina brasileira não se afasta das formulações de Larenz11 a partir da terceira edição de sua Metodologia da ciência do direito para refletir a inexistência de tipos fechados e a distinção entre o raciocínio conceitual e classificatório12.
Derzi13 é a autora da obra pioneira no Brasil sobre a distinção entre tipos e conceitos no âmbito do direito tributário, abordando os diversos sentidos e usos do termo tipo e suas derivações. No contexto de sua obra, os conceitos, aqueles propriamente classificatórios,
são compreendidos como abstrações determinadas por características necessárias e suficientes, rígidas e irrenunciáveis14. Já sobre os tipos, afirma a autora que:
“Os tipos propriamente ditos (ou apenas tipos), stricto sensu, além de serem uma abstração generalizadora, são ordens fluidas, que colhem, através da comparação, características comuns, nem rígidas, nem limitadas, onde a totalidade é critério decisivo para ordenação dos fenômenos aos quais se estende. São notas fundamentais ao tipo, a abertura, a graduabilidade, a aproximação da realidade e a plenitude de sentido na totalidade.”15
Ávila16, por sua vez, baseando-se na distinção entre conceitos pelo critério da “espécie da combinação dos elementos distintivos”, afirma que “o tipo representa uma ‘totalidade’ ‘graduável’ e ‘aberta’, ao passo que o conceito constata uma ‘rígida’ ‘soma de elementos distintivos’”. Schoueri17, por sua vez, se reporta expressamente à obra de Derzi, e suas considerações levam às mesmas conclusões.
Todos os autores citados se colocam de acordo ainda quanto à diferença metodológica decorrente dos tipos e conceitos. Os primeiros, por constituírem descrições ricas de sentido mediante características fluídas, flexíveis, abertas à realidade e renunciáveis, são aplicados a objetos mediante juízos de comparação ou ordenação a partir de uma totalidade valorativa. Os objetos são apreendidos a partir da demonstração de traços típicos reconduzíveis à figura total típica, ainda que as características não estejam presentes em sua integralidade e se encontrem em intensidades ou combinações distintas. Já os conceitos, por constituírem abstrações mediante características necessárias e suficientes, se aplicam a objetos que a eles se subsomem, ou seja, a objetos que apresentem todas aquelas características.
TIPOS E CONCEITOS: OBSERVAÇÕES NECESSÁRIAS À METODOLOGIA JURÍDICA
Algumas observações sobre a metodologia pertinente aos tipos e aos conceitos devem ser feitas quando se restringe a análise ao universo da interpretação e aplicação do direito.
A primeira consideração é que, no plano estritamente jurídico, é de pouco interesse e relevância indagar a forma como as pessoas em geral realizam classificações e a partir delas formulam conceitos, preocupação que está na base do modelo de protótipos construído na ciência cognitiva18. Também é irrelevante indagar a origem extrajurídica de um conceito de
tipo ou de classe19. Essa irrelevância se dá porque o intérprete e aplicador do direito está vinculado ao conceito tal como formulado em sua inserção no direito positivo e em atendimento às demandas jurídicas de rigidez ou flexibilidade na categorização das situações reguladas20.
A conclusão acerca do caráter classificatório ou tipológico de um conceito pode ser inicialmente compreendida com recurso à formulação de Larenz21 segundo a qual primeiro passo da metodologia “é comum ao pensamento mediante tipos e ao pensamento abstractor”. Esse passo comum “consiste em separar, das formas concretas de que se trate, certas propriedades gerais, relações ou proporções designando-as com um nome”. A diferença entre o pensamento tipológico e conceitual abstrato vem num segundo momento, pois
“[...] enquanto que o pensamento por conceitos abstractos condensa tais propriedades em notas distintivas isoladas e a partir destas notas forma, por eliminação, conceitos cada vez mais gerais, o pensamento por tipos mantém unidas as notas distintivas do tipo e serve-se delas unicamente para descrever o tipo como uma nota distintiva do todo”.
Portanto, naquele primeiro passo, a identificação das características que compõem o conceito, ou seja, o significado dos termos e expressões, passa pela interpretação e pela argumentação jurídica. Nesse primeiro passo de interpretação e argumentação se concluirá se o termo empregado comporta definição mediante características necessárias e suficientes, ou se ele não se deixa apreender com tal rigidez. Em algumas situações será possível, já nesse primeiro passo, concluir pela rejeição a algumas dessas alternativas. Isso poderá levar necessariamente ao modo de pensar conceitual, por exemplo, quando o texto normativo se vale de expressões numéricas22. Por outro lado, pode-se chegar inexoravelmente ao pensamento tipológico, como exemplifica o caso das chamadas palavras polares (polar words), às quais não é possível atribuir um conjunto de caraterísticas isoladamente necessárias e conjuntamente suficientes para determinação de sentido23.
Nesse sentido procede a proposição de Ávila segundo a qual a abertura do tipo não se confunde com a abertura própria da linguagem, decorrente de sua indeterminação. Esta afeta todo e qualquer conceito, ou seja, todo e qualquer significado determinado por características utilizadas para se categorizar um objeto. A abertura que caracteriza o pensamento por tipos “diz respeito à possiblidade aberta, a diversas combinações de manifestação dos elementos distintivos que somente recebem o seu significado jurídico com referência a um ponto de vista valorativo”24.
A afirmação de que toda palavra possui um âmbito de vagueza não é determinante no âmbito jurídico para demandar uma abordagem tipológica. É o sistema jurídico que, por seus mecanismos internos, determina e condiciona a atividade de interpretação e aplicação, e que pode exigir, para alimentar seu funcionamento, a necessidade de verificação de características necessárias e suficientes para submeter a situação a determinada regulação jurídica.
Se no primeiro passo do raciocínio jurídico for concluído que um termo ou expressão comporta as duas abordagens, a escolha do modo de pensar não pode ser decidida no plano da interpretação jurídica, ou seja, na atividade de atribuição de sentido ao texto. Passa a ser necessário o segundo passo para justificar um modelo segundo o qual as características do termo ou expressão construídas pela interpretação do direito poderão ser renunciadas ou incrementadas (tipos) ou mantidas em caráter de necessidade e suficiência (conceitos) para justificar uma decisão. Essa justificativa deve se sustentar em argumentos jurídicos recursivamente embasados no próprio ordenamento jurídico. Por isso se afirma que os conceitos são adequados em áreas nas quais se reforça a segurança jurídica, a estabilidade e a rigidez na categorização de objetos, enquanto os tipos são adequados em áreas nas quais se privilegia maior aproximação com a realidade em busca de valores como adaptabilidade e adequação social25.
Essas conclusões devem ser alcançadas depois, e não antes, do exame do direito positivo, pois é este que fornece o suporte a argumentos que direcionam a escolha por tipos ou conceitos. A constituição das premissas a serem adotadas pela decisão acerca da abordagem conceitual ou tipológica vai condicionar o método de aplicação, integrando assim a chamada interpretação metatextual26.
O DIÁLOGO COM A TEORIA DA LINGUAGEM E AS CIÊNCIAS COGNITIVAS E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A METODOLOGIA JURÍDICA DE APLICAÇÃO DE TIPOS E CONCEITOS
Com a contribuição do estudo acerca dos modelos de categorização nas ciências cognitivas e da linguagem é possível potencializar a construção das condicionantes para a identificação de um conceito ou de um tipo quando o primeiro passo de identificação (conforme exposto no tópico anterior) não for conclusivo. É essa contribuição o objeto do presente tópico.
O modo de pensar por tipos deve ser permeado a todo momento por considerações valorativas, ou seja, pelos objetivos da regulação jurídica pautados na totalidade de sentido. Sendo assim, na interpretação dos textos normativos, deve-se buscar a riqueza e plenitude de sentido própria dos tipos, sem que se contente com algumas características isoladas. E na ordenação de objetos ao tipo a totalidade também não pode ser ignorada, pois as características do objeto devem ser todas consideradas para comparação. É permanente nesse método o intuito de se verificar se o tipo conserva sua capacidade de servir de critério de categorização por ordenação com a incorporação de novas características ou com a renúncia de características que anteriormente contribuíam para seu pleno sentido.
Os tipos permitem ao intérprete e aplicador do direito lidar com a vagueza combinatória das características que formam o conceito. Não se demanda o prévio compromisso de exclusão de objetos que não apresentem aquelas características como necessárias à aplicação do conceito. O raciocínio tipológico viabiliza a construção contínua (abordagem diacrônica27) do conceito por meio de juízos comparativos, com renúncia de características anteriormente adotadas e consideração de novas características que aproximem o objeto a ser categorizado aos melhores exemplares da categoria.
As considerações da teoria dos protótipos construída no âmbito das ciências cognitivas são úteis ao permitirem uma comparação entre o tipo jurídico e o protótipo cognitivo como figuras plenas que guiam os juízos de comparação e categorização a partir de seus efeitos e características prototípicas28. O juízo de ordenação ou adequação pode ser enriquecido pela análise cognitiva da semelhança de família (family resemblance), considerada como a distribuição consistente de características comuns ao longo da categoria, a partir do protótipo, pela identificação de um núcleo de conexão pautado pelo objetivo da regulação jurídica29. Além disso, o condicionamento da recondução ao protótipo pela percepção da estrutura do mundo (world perceived structure)30, que é compartilhada de forma
estruturada e não aleatória, permite um meio de controle da ordenação e identificação do limite do atípico, constatado quando nenhuma característica é compartilhada com o exemplar prototípico.
Por outro lado, a conclusão pela abordagem conceitual demanda que o intérprete assuma previamente o compromisso de rejeitar a aplicação do termo a situações que não apresentem as características necessárias e também de rejeitar a consideração de características do objeto para além daquelas consideradas suficientes para definir o conceito. Essa abordagem pode ser potencializada com a contribuição do modelo clássico estruturalista construído na teoria da linguagem. O modelo clássico de categorização da linguística, na vertente estruturalista, apresenta como principal distinção seu caráter relacional e convencional, pautando-se pela mencionada arbitrariedade do signo linguístico e pelo princípio da imanência, segundo o qual a linguagem é sistema autônomo cujos elementos têm valor próprio31. Esse princípio determina que o significado é relacional, diferencial, negativo e intralinguístico32. É relacional e intralinguístico porque o sentido de um termo depende exclusivamente de sua relação com outros termos, não se apoiando em realidades extralinguísticas33. É diferencial e negativo porque os termos adquirem seu conteúdo pela diferenciação que os separam dos demais termos da língua.
Dentre as características do modelo clássico, pode-se ressaltar o pensamento abstrato e descorporificado, que estabelece conceitos e classificações sem uma relação de dependência necessária para com percepções do sujeito sobre a realidade; a construção de significados e categorias por meio de estruturas fixas (condições necessárias e suficientes), analisadas por uma abordagem sincrônica e semântica, independentemente de considerações de ordem diacrônica e pragmática34.
A ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
O sistema constitucional tributário brasileiro é caracterizado pela repartição de competência tributária, na qual cada ente tributante recebeu a possibilidade de instituir tributos mediante atribuição nas respectivas normas de competência. A instituição do tributo representa o exercício da competência tributária por meio de lei (art. 150, I, da Constituição). Caracterizando-se o tributo como uma prestação pecuniária compulsória na definição que lhe dá o art. 3º do CTN, conclui-se que a Constituição não institui o tributo,
mas apenas regula os limites dentro dos quais este pode ser introduzido no ordenamento jurídico35. A partir da previsão constitucional, caberá à lei veicular uma regra de conduta obrigatória de pagar quantia em dinheiro. O intérprete e aplicador deve identificar, baseado na lei, todos os aspectos da situação tributada e todos os elementos da obrigação36 decorrente da relação jurídica instaurada com sua ocorrência.
Na correta expressão de Carrazza37, não se pode falar em poder tributário no Brasil, no sentido de força incontrastável. A competência tributária é a “aptidão para criar, in abstracto, tributos”, aptidão esta disciplinada formal e materialmente pela Constituição.
E isso é suficiente para, em caráter relacional, construir o conceito de incompetência tributária, que se manifesta pela proibição endereçada aos entes federativos de instituir tributos fora da definição substancial de sua competência tributária. Pode ocorrer, portanto, que determinado fato não esteja inserido na competência tributária38 de determinado ente tributante, quer por ter sido atribuído à competência de outro, ou simplesmente por não ter sido atribuído a nenhum dos entes federados. Trata-se da inexistência de fato tributável, ou seja, de incompetência legislativa para eleger determinado fato com hipótese de incidência tributária.
A incompetência tributária, contudo, demanda distinções em razão dos entes federativos e das espécies tributárias. A rigor, a incompetência tributária não acomete a União Federal em matéria de impostos e contribuições sociais para a seguridade social, ou, de forma mais abrangente, em matéria de tributos de fato gerador não vinculado a uma atuação estatal.
Todo e qualquer situação que não constitua um fato vinculado a uma atuação estatal é tributável pela União Federal. Basta que se exerça a competência extraordinária para instituição de impostos prevista no art. 154, II, da Constituição, diante da específica circunstância de guerra externa ou sua iminência, na qual a União Federal pode tanto invadir a competência tributária dos outros entes federativos quanto inventar novos fatos geradores não definidos na Constituição. Mesmo em tempos de paz, mas nesse caso respeitando a competência tributária dos demais entes federativos, é permitido à União, por lei complementar, criar impostos e contribuições para a seguridade social sobre fatos geradores e bases de cálculo não definidos na Constituição, no exercício da competência residual (art. 154, I e art. 195, § 4º). Já os demais entes federativos são permanentemente
incompetentes para instituir impostos sobre fatos não definidos como tributáveis nas respectivas regras de competência tributária39.
A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA NA ALEMANHA E A ABORDAGEM TIPOLÓGICA DOS IMPOSTOS LISTADOS NO ART. 106 DA LEI FUNDAMENTAL ALEMÃ
A Lei Fundamental Alemã (GG) distingue o poder de tributar (autoridade para legislar em matéria tributária) e a titularidade da receita proveniente da arrecadação tributária, inexistindo entre elas uma “estrita correspondência”40. A chamada “equalização financeira” é operada pelo art. 106 GG que, em distribuição vertical, traz uma lista de impostos e aloca a respectiva receita de forma conjunta (Verbundsystem) ou separada (Trennsystem) à federação, estados e municipalidades. Após essa distribuição vertical, o art. 107 (1) GG inicia o segundo passo de equalização, de caráter vertical, e aloca a receita entre Estados e Municipalidades. Após essa distribuição, o art. 107 (2) GG, no terceiro nível, opera uma redistribuição que “basicamente determina pagamentos de um estado para outro (ou da federação para alguns estados) para reduzir desigualdades de força econômica entre estados”41. Ao fim, quanto à arrecadação tributária, o art. 107 (2) 3 GG reconhece que algum nível de desigualdade ainda pode remanescer dentro da federação e prevê uma suplementação federal, por meio de recursos próprios, para “reduzir a distância entre a capacidade financeira padrão dos estados e a capacidade de alguns estados mais pobres”42.
O poder de legislar sobre os impostos listados no art. 106 GG é distribuído pelo art. 105 GG, que é daquele “tecnicamente desvinculado”. O dispositivo sequer garante que impostos cuja arrecadação seja integralmente destinada ao nível federal tenha suas leis por ele aprovadas. Por outro lado, a federação pode regular quase todos os impostos cuja receita é alocada aos estados43. No campo tributário, a distribuição de competência legislativa específica do art. 105 GG tem “precedência” sobre a distribuição “geral” dessa competência operada pelos arts. 70 a 72 GG44.
A União tem competência legislativa exclusiva (art. 105, I GG) e concorrente com os Estados (art. 105, II GG). A primeira é definida pela indicação expressa das “taxas aduaneiras e monopólios financeiros”45. Já a segunda abrange os “outros impostos”, se a respectiva receita é a ela alocada no todo ou em parte, ou se a legislação federal for “necessária para estabelecer condições de vida similares por toda a federação para preservar a unidade econômica”46, com exceção dos impostos locais de consumo e sobre despesas de representação contemplados no art. 105 (2a) GG.
Para esses últimos, a competência tributária é exclusiva dos Estados (Länder). Essa exclusividade está sujeita a uma condição, pois essa competência só existe “enquanto e na medida” em que esses impostos “não sejam análogos aos impostos regulamentados por lei federal” (art. 105 (2a) GG). Já as municipalidades (Gemeinden) não receberam competência tributária da Lei Fundamental, e só podem exercê-la por delegação dos Estados47.
Esse quadro geral de distribuição da competência para legislar sobre os impostos apresenta uma série de divergências. Cite-se, a título de exemplo, discussões que consistem em definir:
se para os impostos cuja receita cabe totalmente à União o exercício da competência concorrente é necessariamente exaustivo, ou se alguma matéria pode ser legislada pelos Estados e, pelo contrário, se nos impostos cuja receita cabe parcialmente à União é necessário ou não que os Estados conservem alguma autonomia mesmo diante da legislação federal48;
se a omissão da União em tributar determinada manifestação de capacidade econômica nos impostos de competência concorrente abre espaço para a incidência criada pelos Estados, ou se isso implica um “poder de veto negativo”49;
se a revogação da lei federal reabre a possibilidade de legislação por parte dos Estados50;
quais são as situações que recaem no âmbito do art. 72 GG e que permitem a legislação federal uniformizadora mesmo para impostos cuja receita não seja alocada em nenhuma medida à União51;
e) quais características devem ser analisadas para se concluir que determinado imposto já foi objeto de legislação federal, impedindo assim que os Estados disponham sobre ele no âmbito da competência concorrente52.
Para o presente trabalho, contudo, dois são os pontos de interesse que podem, pelo estudo comparado, auxiliar a melhor compreensão das regras de competência tributária da Constituição brasileira. Trata-se de saber se a Lei Fundamental prevê um poder de “inventar” novos impostos, distintos daqueles listados no art. 106 GG; e se essa lista deve receber uma abordagem tipológica.
Wiengarten53 indica que a literatura alemã apresenta três posições sobre a lista do art. 106 GG. A predominante, inclusive na jurisprudência, é a de que o dispositivo descreveu “tipos de impostos” (Steuertypen ou Typenbegriffe), adotando a teoria dos tipos. A segunda, minoritária, aborda o art. 105 GG como veiculador de conceitos de classe ou tributários (Klassenbegriffe ou Steuerbegriffe), chamados de essenciais ou básicos. E ainda aponta uma terceira corrente, raramente sustentada, segundo a qual “os tipos de impostos mencionados no Art. 105 e seguintes GG como uma indicação das ‘fontes tributárias’ por trás desses tipos de impostos” (Steuerquellen).
Ávila54 aponta que a literatura alemã compreende aquele sistema tributário como caracterizado por ser “historicamente aberto”. Os arts. 105 e 106 GG, portanto, “não absorvem a configuração dos impostos mencionados na legislação ordinária, mas remetem a tipos de impostos historicamente determinados”. Apesar de representarem uma “restrição constitucional ao poder de tributar”, pois esses modelos tradicionais não podem ser alterados livremente pelo legislador, as fronteiras não são nítidas, pois “os tipos se caracterizam pela possibilidade de se abrir mão dos traços distintivos encontrados pela descrição e pela possibilidade de se graduarem esses traços distintivos”.
Ponto importante para a comparação que aqui se pretende é que a Lei Fundamental Alemã não descreveu os fatos tributáveis por meio de tipos, mas sim elencou “tipos de impostos”. A diferença é apontada por Machado55, sendo o “típico imposto” aquele que o constituinte “previamente conhecia”, “não dando maior atenção ao significado dicionarizado das palavras utilizadas para designá-lo”. Logo, o típico imposto é aquele carregado de historicidade, que traz consigo uma série de características que, na sua apreensão global, formam um exemplo totalizante, ao qual podem ser ordenados, por comparação, impostos
com variações nessas características, desde que conservem o núcleo típico. É nesse contexto que se compreende a afirmação de Ávila56 segundo a qual “a Lei Fundamental Alemã não possui nem dispositivos relativos à competência tributária nem dispositivos referentes a diretrizes materiais para a conformação das hipóteses de incidência dos impostos”. Com efeito, o art. 106 GG listou tipos de impostos, não realizando uma conceituação dos fatos geradores de impostos por meio de tipos.
O segundo ponto se refere à possibilidade de criação de impostos que não se adequem aos tipos do art. 106 GG. O debate da doutrina e da jurisprudência alemã gira em torno de um direito de “invenção tributária”. Englisch e Tappe57 assim resumem a questão:
“Além disso, de acordo com a opinião predominante na literatura jurídica, o art. 105 GG não concede competência para inventar ‘novos’ impostos que não possam ser atribuídos a nenhuma das categorias de impostos mencionadas na regra de alocação de receita do art. 106 GG. Essa visão – compartilhada pelos autores, mas altamente contestada – tem um impacto potencialmente restritivo sobre os poderes tributários da União e dos Estados, especialmente com vistas a impostos especiais sobre tipos específicos de renda ou manifestações específicas de riqueza: atualmente, o art. 106 GG contempla apenas impostos gerais sobre esses indicadores de capacidade econômica do contribuinte e capacidade contributiva para pagamento, com as notáveis exceções do imposto sobre o comércio e o imposto sobre imóveis. A questão não se tornou relevante até agora, pois o Tribunal Constitucional ainda não teve a oportunidade de firmar sua posição na disputa. Isso pode mudar, no entanto, caso o novo imposto sobre combustíveis nucleares, introduzido em 1 de janeiro de 2011, seja constitucionalmente contestado com base em sua eventual caracterização como um imposto real sobre os lucros gerados pelas usinas nucleares, em vez de um imposto de consumo tal como classificado pelo governo federal.”
Como anteviram os autores na passagem acima, a Corte Constitucional Alemã apreciou a constitucionalidade do imposto sobre combustíveis nucleares, posicionando-se sobre os dois pontos acima expostos. A posição da Corte foi pela inconstitucionalidade do imposto, tendo respondido às questões colocadas no sentido de que a lista do art. 106 GG deve receber abordagem tipológica por ter mencionado impostos típicos; e que essa listagem é decisiva e final, inexistindo um direito de invenção de novos impostos para além dos tipos ali descritos. Confirmou-se, portanto, a posição dominante na literatura jurídica alemã em ambas as matérias.
O julgamento58 em questão versou sobre a constitucionalidade da Lei do Imposto sobre Combustível Nuclear (ICN), de 8 de dezembro de 2010, aprovada pela Câmara dos Deputados sem aprovação pelo Senado. Dentre as razões que sustentaram o pedido de declaração de inconstitucionalidade, são importantes para o tema aqui tratado as alegações de que o ICN não é um “imposto de consumo” de acordo com o respectivo tipo previsto no art. 106 (1) 2 GG e que o art. 105 (2) GG, ao mencionar a competência concorrente da União para legislar sobre “outros impostos” está se referindo aos impostos previstos no art. 106 GG59, sendo que fora dos tipos ali previstos inexiste competência legislativa para se inventar novos impostos, como seria o caso do ICN.
A fundamentação da decisão se inicia com a compreensão de que as normas da Constituição financeira, em especial as que preveem a distribuição de receita tributária e competência legislativa têm especial importância na relação entre União e Estados para a “estabilidade constitucional” (§ 59). Não podem a União e os Estados “dispor de suas competências especificadas” na lei fundamental, e nem promover uma “alternância nas competências”. Essas normas projetam ainda um “efeito protetor em relação ao cidadão, que pode confiar em ser onerado apenas dentro da estrutura especificada” (§ 60).
Nos §§ 64 a 68 o Tribunal afirma a abordagem tipológica do art. 106 GG, para concluir, no § 69, que “a atribuição de poderes legislativos aos governos federal e estadual através do Art. 105 CF em conjunto com o Art. 106 GG é conclusiva” e que “fora do regulamento de competências estipulados pela Capítulo X GG no Art. 104a e seguintes, não existe autoridade, seja da União ou dos estados, para promulgar leis sobre impostos”. Entendeu- se que a expressão “outros impostos” do art. 105 (2) GG se refere especificamente aos impostos do art. 106 GG (§ 71), não sendo possível concluir pela “existência de um direito geral de inventar impostos” (§ 72).
Há longa fundamentação na decisão para amparar as conclusões. Mas o ponto de interesse para o presente trabalho está na justificativa que conecta a abordagem tipológica à inexistência de competência para criação de novos impostos (inexistência de um “direito de invenção tributária”). O Tribunal afirma que a abordagem tipológica impede a “petrificação da Constituição”, motivo pelo qual a impossibilidade de criação de novos impostos seria equilibrada pela ampla margem que tem o legislador de atuar limitado por tipos. É ver o § 98 da decisão:
“dd) Não existe o risco de uma ‘petrificação’ da Capítulo X CF e sua estrutura regulatória, alegada pelos proponentes de uma invenção tributária que vá além dos impostos e tipos de impostos mencionados nos artigos 105 e 105 da CF (Bach, StuW 1995, p. 264 <271>; Häde, Finanzausgleich, 1996, p. 162 e seguintes; van Heek, em: van Heek/Lehmann, Die Kernbrennstoffsteuer als ‘Verbrauchsteuer’?, 2012, S. 31 f.) não existe (vgl. etwa: Müller-Franken, in: Berliner Kommentar, Art. 105 Rn. 207 [2008]; Drüen, ZfZ 2012, S. 309 <311 f.>). No âmbito dos impostos e tipos de impostos prescritos pelo Art. 105 e Art. 106 CF, o legislador possui uma liberdade de projeto muito extensa (cf. parágrafo n. 68), da qual fez uso frequente no passado, o que pode ser exemplificado através do imposto especial de consumo: dentro de seu tipo, sal, tabaco, várias bebidas alcoólicas, vinagre, açúcar, iluminantes, cartas de baralho, produtos de ignição, vários produtos energéticos, água mineral, adoçantes, gorduras, café e chá foram sujeitos a tributação. Consequentemente, a questão de saber se existe o direito de inventar tributação fora dos impostos e tipos de impostos mencionados no artigo 106 da CF não teve um papel de destaque na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal até agora.”
Essa argumentação é reiterada posteriormente no § 114 da decisão:
“A interpretação restritiva do catálogo do Art. 106 CF e seus conceitos de tipo abriga o risco de a distribuição de poderes sob a lei de Capítulo X CF se tornar rígida e, portanto, não ser compatível com uma Capítulo X CF suficientemente flexível, ante o pano de fundo da negação de um direito geral de inventar impostos, (Förster, Die Verbrauchsteuern, 1989, p. 38 seg.; Hartmann, DStZ 2012, p. 205 <206>; Waldhoff, ZfZ
2012, p. 57 <58 ff.>).”
A amplitude de considerações imposta pela abordagem tipológica se reflete nos parágrafos seguintes da decisão. O Tribunal não avalia o ICN por aspectos isolados (a exemplo do fato gerador e base de cálculo) como seria próprio de um raciocínio conceitual-classificatório, mas passa a comparar suas diversas características com aquelas que se totalizam em um típico imposto de consumo, quais sejam: a incidência no momento do uso da renda e não de sua obtenção; a diferença entre uso privado e empresarial da renda (meios de produção); a semelhança para com um imposto sobre despesas; o caráter de imposto indireto, exigido do contribuinte mas repassado ao consumidor; a exigência de que o consumo esteja ligado a um bem destinado à satisfação de necessidade permanente; e a transição de bens de consumo de um nexo tributável para transações não tributáveis. Apenas após avaliar esse quadro geral e compará-lo com as diversas características do ICN é que o Tribunal concluiu por sua inadequação ao conceito de um típico imposto de consumo.
CONCLUSÃO: COMPARAÇÃO QUE LEVA À NEGAÇÃO DO USO DE TIPOS NAS REGRAS DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
O estudo comparado aqui proposto demonstra uma profunda distinção entre os mencionados ordenamentos constitucionais.
Em primeiro lugar, nota-se que a justificativa para abordagem tipológica na Alemanha não encontra lugar na Constituição Brasileira. Nesta última inexiste o risco de “petrificação” da Constituição Financeira pela abordagem conceitual das regras de competência, uma vez que o chamado “direito de invenção tributária” foi expressamente contemplado no art. 154 da Constituição, que previu as competências residual e extraordinária da União para criar impostos sobre fatos geradores não previstos nas demais regras de competência tributária. Logo, mesmo em tempos de paz, novos fatos geradores de tributos não vinculados a uma atuação estatal podem ser inventados e criados pela União, desde que respeitadas as prescrições do art. 154 da Constituição. Em suma, se na Alemanha o Tribunal Constitucional reconheceu a leitura tipológica das competências tributárias em contrapartida à inexistência de um direito de invenção tributária, no Brasil a existência desse direito leva ao afastamento da leitura tipológica das regras de competência.
No Brasil, em tempos de paz, a avaliação da correspondência de um imposto às regras de competência dos arts. 153, 155 e 156 da Constituição para concluir que se trata de um imposto já previsto pela Constituição e outorgado a um dos entes federativos se faz pela análise de duas características isoladas e irrenunciáveis, quais sejam, o “fato gerador” e a “base de cálculo”, conforme previsão expressa do art. 154, I, da Constituição. Portanto, se o fato gerador de um imposto corresponder ao fato tributável previsto em um dos incisos dos arts. 153, 155 e 156 da Constituição, e sua base de cálculo guardar com ele pertinência e coerência60, a conclusão irrenunciável é que se trata de imposto de competência do respectivo ente federativo, e sua constitucionalidade depende de ter sido o imposto instituído por lei deste ente federativo que respeite às especificações da lei complementar de normas gerais. Já em tempos de guerra externa ou sua iminência, essa avaliação se restringe às competências tributárias estaduais, distrital e municipais, pois essa conjuntura permite à União instituir imposto que tenha qualquer fato gerador e base de cálculo, estando expressamente autorizada a invasão da competência dos demais entes federativos (art. 154, II, da Constituição).
A seleção constitucional de duas características isoladas, necessárias e suficientes (fato gerador e base de cálculo) a serem verificadas para identificar o conceito de um imposto é incompatível com a necessidade de uma avaliação valorativa global das características típicas de um modelo de imposto. Essa avaliação valorativa global é pertinente à estrutura
constitucional alemã, a exemplo do que feito na decisão sobre a inconstitucionalidade do ICN, na qual o Tribunal Constitucional descreveu múltiplas características típicas de um imposto de consumo para compará-las às características do ICN. A Constituição Brasileira, ao contrário da alemã, seleciona de forma irrenunciável duas características que devem ser verificadas para se concluir se um tributo se enquadra nas regras de competência tributária, apontando assim para a estrutura classificatória.
No plano da estrutura redacional, as diferenças também são visíveis. A Constituição de 1988 se abstém de mencionar, nas próprias regras de competência (arts. 153, 155 e 156), bens específicos. Essa característica do texto constitucional brasileiro mostra a opção por conceitos abstratos. No caso do ICMS, por exemplo, adota-se um conceito abstrato de mercadorias na regra de competência do art. 155, II, da Constituição, optando-se por fazer menções a bens individuais determinados em outros dispositivos, a exemplo de combustíveis, lubrificantes, minerais e energia elétrica. Essa menção individual se dá para atribuição de regimes específicos, como a previsão de imunidade (art. 155, § 2º, X, “b” e § 3º da Constituição) e incidência monofásica com respectiva distribuição da receita (art. 155, § 2º, XII, “h” e § 4º da Constituição).
A Lei Fundamental Alemã por sua vez, em seu art. 106, menciona determinados impostos com o uso de termos com grande amplitude, como o “imposto de consumo” e o “imposto sobre o patrimônio”, e em outras passagens menciona incidências muito específicas, como o imposto sobre a cerveja. Além disso, nota-se que o art. 106 da Lei Fundamental não lista fatos geradores, mas os próprios impostos (típicos impostos), mesclando e repetindo a palavra “impostos” no plural e “imposto” no singular antes de predicá-los com um complemento, a exemplo do art. 106, (1), 4, que menciona “os impostos de movimento de capitais, o imposto de seguros e o imposto sobre letras de câmbio”, o que indica uma referência aos tributos então existentes em sua concretude. Nota-se, portanto, que há uma mescla de critérios com o uso de termos amplos e restritos, no singular e no plural, mencionando impostos de forma isolada ou conjunta em seus incisos61, o que aponta contra o uso uniforme de conceitos abstratos.
No Brasil, como já visto, as regras de competência não mencionam bens específicos, adotando a abstração dos conceitos classificatórios. Além disso, não há uma mescla e nem repetição das expressões “impostos” e “imposto”. Apenas o caput das regras de competências traz a expressão “impostos”, no plural, não reproduzida nos incisos. O caput, portanto, enuncia a regra de competência para instituir impostos “sobre” os fatos tributáveis conceituados nos incisos. O uso uniforme e constante do termo “sobre” no caput das regras de competência demonstra que seus incisos não descrevem impostos anteriormente existentes, mas sim definem as situações que o legislador pode especificar
como constitutivas da hipótese de incidência tributária. O que se conclui é que a estrutura da Constituição Brasileira segue o modelo clássico de categorização, referindo o gênero tributo no caput do art. 145 e suas espécies nos incisos do dispositivo e, quanto aos impostos, os incisos das regras de competência referem-se aos fatos tributáveis “sobre” os quais os entes federativos podem exercer, por lei, sua competência impositiva.
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