O FIM DO VOTO DE QUALIDADE E O PROBLEMA DA DELIBERAÇÃO RACIONAL
THE END OF THE “QUALITY VOTE” AND THE PROBLEM OF
RATIONAL DELIBERATION
Advogado. Especialista em Advocacia Tributária pela Ebradi e em Direito Público pela PUC Minas. Mestrando em Teoria da Argumentação Jurídica e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. E-mail: iancastilhosadv@gmail.com
Recebido em: 07-09-2020
Aprovado em: 22-02-2021
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-12
O problema de pesquisa deste artigo é a racionalidade deliberativa do projeto que põe cabo ao voto de qualidade do CARF do ponto de vista da teoria do discurso. O trabalho é distribuído em quatro partes: (i) a descrição propedêutica de aspectos doutrinários; (ii) as críticas ao voto de qualidade; (iii) a reação da comunidade especializada à mudança legislativa; e (iv) a crítica à racionalidade deliberativa.
The research problem addressed in this article is the deliberative rationality of the project that puts an end to the CARF casting vote from the point of view of discourse theory. The work is divided into four parts: (i) the propaedeutic description of doctrinal aspects; (ii) criticisms of the casting vote; (iii) the re-action of specialists to legislative changes; and (iv) criticism of deliberative rationality.
INTRODUÇÃO
O Direito Tributário é um dos ramos mais delicados dentro das ciências jurídicas, seja pela natural resistência social aos tributos em geral, seja por sua histórica correlação com o autoritarismo. Portanto, sua análise sempre deve ser voltada para um esforço democrático crescente. É neste ambiente que o Processo Administrativo Fiscal (PAF), para as premissas teóricas aqui levantadas, é a forma de criação conjunta da norma de incidência concreta do tributo, de forma que se fazem necessárias a crítica sistemática e a revisão periódica do PAF para o fortalecimento democrático do Direito Tributário. Entretanto, tais revisões e críticas devem ser dotadas de racionalidade discursiva, entendida como correção argumentativa, ou seja, os fundamentos utilizados para criticar o procedimento devem ser objetivamente sustentados com critérios razoáveis e comprováveis.
Este trabalho irá problematizar o que foi sintetizado acima a partir do fim do voto de qualidade no âmbito do CARF. Primeiramente, é necessário que se faça, para o leitor não habituado com o tema, uma breve digressão e ambientação sobre o que ele representa. O Processo Administrativo Fiscal federal é regulado pelo Decreto n. 70.235/1975. Segundo James Marins1, o PAF reparte-se em quatro fases, quais sejam: (a) instauração; (b) instrução);
(c) julgamento; e (d) recurso.
Importa para este trabalho a fase recursal. A primeira instância consiste nas Delegacias de Julgamentos Regionais da Receita Federal, e, com o recurso, o processo direciona-se ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que é regulado pela Portaria MF n. 343/2015. As turmas, segundo a portaria, são compostas por 8 (oito) conselheiros, sendo 4 (quatro) representantes da Fazenda Pública, e 4 (quatro) representantes dos contribuintes. A composição proporcional se dá por decorrência da paridade do órgão, muito embora haja um desequilíbrio em tal paridade, uma vez que o critério de desempate do colegiado é o voto do presidente da turma, representante do Fisco. Quem também decide em instância especial é o próprio Fisco, conforme a prescrição do art. 39 do Decreto n. 70.235/1975.
Ocorre que, com a Lei n. 13.988/2020, denominada Lei do Contribuinte Legal, houve uma guinada no tema. O processo legislativo que deu origem a essa lei deriva da conversão da Medida Provisória n. 899/2020, que regulamenta a transação em matéria tributária. No decorrer do procedimento de conversão, foram realizadas algumas emendas, incluindo a alteração do Decreto do Processo Administrativo Fiscal, por meio do art. 19-E da Lei n. 10.522/2002, de forma a extinguir o voto de qualidade, que assim passa a dispor:
“Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a
que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-
se favoravelmente ao contribuinte”.
Não é difícil encontrar críticas ao instituto, e estas serão retomadas no decorrer do texto. A doutrina vem debatendo seriamente há algum tempo o tema, enquanto o legislador optou, de forma autocrática, por tomar a decisão sem abrir diálogo com a comunidade científica ou com o próprio órgão julgador. Insta salientar que representantes do CARF participaram do processo legislativo para falar sobre as vantagens da transação tributária, de forma que também poderiam participar do debate aqui problematizado.
O problema de pesquisa não se refere diretamente à questão do voto de qualidade, mas sim à racionalidade da deliberação que o extinguiu e os efeitos na racionalidade da deliberação do processo administrativo. A pergunta que se busca responder é se a reforma administrativa é tecnicamente razoável e legitimamente democrática. A hipótese é que tal medida não foi amparada pela comunidade científica, bem como burlou a racionalidade deliberativa do processo democrático, visto que o novo art. 19-E da Lei n. 10.522/2002 é fruto de uma emenda aglutinativa (Emenda Aglutinativa n. 1) que alterou completamente a emenda aglutinada. Além disso, não havia pertinência temática com toda a deliberação que estava sendo realizada na casa legislativa.
Num primeiro momento, serão delimitadas algumas questões propedêuticas sobre o parâmetro doutrinário deste trabalho. Tendo em vista que a tributação se destina às finalidades sociais e às expectativas de direitos dos próprios contribuintes, o processo de criação da norma em abstrato e em concreto deve contar com a participação dos contribuintes, tendo seus interesses e expectativas normativas considerados nas deliberações. No plano abstrato, tal participação se dá principalmente com a decisão sobre as bases imponíveis e aquelas em que não se darão efeitos econômicos (imunidades, isenções, alíquota zero)2; no plano concreto, se dá através da delimitação das arestas da hipótese de incidência ao interpretar os fatos econômicos com repercussão tributária.
Na segunda seção, serão apresentadas algumas das críticas fortes e fracas ao instituto do voto de qualidade, algumas decorrentes da parcialidade do uso desse instrumento jurídico, outras da falta da justificabilidade das decisões e, por fim, críticas normativas à inconstitucionalidade e ilegalidade do instituto. Também serão expostos os dados sobre o seu uso para verificar a falseabilidade dos argumentos ventilados tanto pelo Legislativo quanto pela doutrina.
Na terceira seção, serão compiladas algumas importantes opiniões dadas pelo Núcleo de Estudos Fiscais da FGV, coordenado por Eurico Marco Diniz de Santi, bem como os comentários de grandes tributaristas em webinário do JOTA, com autores como Luís
Eduardo Schoueri e Sérgio André Rocha. Tal análise tem o condão de consolidar as opiniões jurídicas relevantes sobre o tema, o que ataca a razoabilidade da decisão. Ora, se os especialistas se mostram desconfortáveis com a decisão, o sinal amarelo sobre a qualidade da decisão se acende.
A partir desse ponto, serão apresentados os principais argumentos no sentido da irracionalidade deliberativa da legislação, na quarta seção. Percebe-se que as premissas empíricas levantadas pelo legislador partem de dados facilmente falseáveis e que a formulação da situação problemática foi mal feita e, portanto, a resposta também foi ruim. Conforme se verá, o principal argumento para o fim do voto de qualidade é o excesso de uso do instituto por parte do Fisco, o que resta refutado na segunda seção. Se a correção da decisão depende da correção da argumentação, é fácil concluir que a decisão legislativa foi incorreta.
CONSIDERAÇÕES PROPEDÊUTICAS: QUAL PROCESSO ADMINISTRATIVO? Rainer Forst3 diferencia o exercício do poder arbitrário do poder legítimo a partir da ideia de justificação. O poder arbitrário se legitima pela mera força que o Estado tem de impor
suas decisões, e o poder legítimo, pela pretensão de fundamentação que tem a decisão de
uma autoridade. Dessa forma, deve haver instâncias de controle da decisão tomada mediante a deliberação racional. A primeira instância de controle é, certamente, o processo legislativo. Entretanto, em matéria tributária, o processo administrativo possui papel especial, uma vez que consiste no momento em que o tributo legalmente previsto se torna tributo a ser pago.
Nesta perspectiva, o processo administrativo é elemento essencial de racionalidade do exercício do poder de tributar e não pode ser pensado fora da esfera do princípio da fundamentação, essencial para uma democracia deliberativa. Tal afirmativa pode se desenvolver da seguinte forma: o Processo Administrativo Tributário deve levar à última instância a ideia da no taxation whitout representation4, uma vez que, além de haver constituição democrática da legislação tributária – vista de uma perspectiva meramente ideal –, também é possível haver participação do cidadão na construção real do tributo – também de uma perspectiva ideal, ou seja: se em um contexto de tributação sob a égide de um constitucionalismo democrático, espera-se do legislador que, ao estabelecer fatos imponíveis, considere as expectativas normativas da sociedade e os princípios materiais limitadores (capacidade contributiva, isonomia, vedação ao confisco etc.), também se faz
necessário pensar o Processo Administrativo Fiscal como momento oportuno para a cocriação da norma jurídica5.
Defende-se, portanto, um modelo deliberativo do Processo Administrativo Fiscal, em que os sujeitos devem possuir igual possibilidade de influenciar o resultado da decisão. Tanto o contribuinte quanto o Fisco devem ser cocriadores da norma jurídica ao final do processo. Muito embora não haja sempre consenso, a decisão não pode ser resultado da escolha de argumentos ad hoc, mas um processo deliberativo deve ser sustentado em todos os argumentos trazidos dentro do ambiente.
Não há dúvidas de que o processo argumentativo não pode durar eternamente e de que, por isso, argumentos dogmáticos possuem precedência prima facie, bem como existem regras procedimentais, prazos, número limitado de recursos, entre outros elementos. Entretanto, periodicamente cabe ao teórico revisar geneticamente essas mesmas regras para verificar se ainda se justificam. Um bom exemplo disso é o próprio voto de qualidade, que em um contexto democrático de processo administrativo não poderia mais ser realizado na forma regimental anterior. Ocorre que até para essa mudança procedimental há critérios discursivos que devem ser observados e que serão abordados no decorrer do artigo.
No contexto da teoria da argumentação, fortemente defendida aqui, a norma legítima é aquela cujos eventuais destinatários podem se considerar coautores da norma que a eles se destina, porque o procedimento discursivo foi realizado da forma correta, garantindo a argumentação racional e a participação ampla no debate, e assegurando-lhes efetivas possibilidades de alterar a decisão.
Esses elementos propedêuticos se fazem necessários diante do que será falado a partir dos tópicos que se sucedem. Muito embora se defenda um processo deliberativo racional, o problema não está na mera existência do voto de qualidade, mas sim na falta de uma fundamentação nova que delimite a ratio decidendi do Tribunal Administrativo e internalize o dissenso.
ALGUMAS CRÍTICAS SOBRE O VOTO DE QUALIDADE
Não é raro encontrar na mais gabaritada doutrina críticas profundas ao voto de qualidade. Para o professor Sérgio André da Rocha6, se faz necessário reformar administrativamente o CARF, tendo em vista as decisões do colegiado sofrerem com a judicialização. Para o autor,
a reforma administrativa seguiria três grandes etapas: (i) o fim da composição paritária; (ii) independência administrativa; e (iii) decisão definitiva para ambas as partes.
A defesa do fim da composição paritária se deve à necessidade de evitar o maniqueísmo ou o voto por representação. Para o autor, não condiz com os parâmetros democráticos da tributação no Estado moderno a ideia de composição paritária. Em suas palavras, “a representação classista é um modelo superado, de modo que o CARF deveria ser composto integralmente por julgadores selecionados por concurso, com carreira própria”7. O fim da composição paritária tem por finalidade garantir o segundo elemento: a independência administrativa.
A independência administrativa tem por finalidade deslocar o CARF do corpo do Ministério da Fazenda para que se torne um órgão autônomo. Enxerga o autor como saída seguir o mesmo modelo de autarquia especial que é utilizado pelas agências reguladoras8.
Por fim, Rocha aproxima-se do modelo de processo administrativo francês – muito embora, neste modelo jurisdicional, as questões administrativas sejam resolvidas pela própria Administração – ao sugerir que a decisão dada pelo Tribunal Administrativo fosse definitiva tanto para a Fazenda, quanto para os contribuintes. Entretanto, tal modelo possui diversos requisitos:
“Mais uma vez é importante reforçar: esta sugestão só faz sentido acaso seja criado um ente com personalidade jurídica própria e composto por julgadores selecionados por concurso, com prerrogativas próprias dos juízes. Por outro lado, instituído tal Tribunal Administrativo, não faria nenhum sentido que suas decisões se sujeitassem a revisão”9.
Assim, na totalidade das críticas do autor, percebe-se que o CARF é atualmente um órgão relativamente enviesado e dependente. Similares são as críticas de James Marins10, para quem “as decisões favoráveis à Fazenda Nacional são em número extremamente elevado, o que, via de consequência, ocasiona a busca pela tutela do direito na via judicial”.
Numa perspectiva relativamente diferente, Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli11 observa
que “[...] os votos de qualidade ou de desempate são proferidos sem a necessária motivação
específica do dissenso que é imprescindível para dar eficácia à norma que versa sobre esta
espécie de voto”.
Vê-se, portanto, um erro fulcral no voto de qualidade: o dissenso não é absorvido pelo veículo introdutor das normas de decisão, impossibilitando o intérprete de retomar o ato de enunciação e, assim, reconhecer que a ratio decidendi possui um dissenso, para o enfrentar ou buscar um consenso. Em outras palavras, não há a retomada argumentativa dos pontos de dissenso no documento final da decisão, o que tende a atrapalhar a criação de algum tipo de consenso pelo melhor argumento no sentido habermasiano. Assevera o autor ainda que tal dissenso teria o condão de gerar a incidência da norma descrita no art. 112 do Código Tributário Nacional, que afasta a imputação de penalidades e infrações nos casos de dúvida quanto à autoria, materialidade, entre outros elementos.
No mesmo sentido, sobre a fundamentação do voto, faz-se necessária a crítica do ministro Barroso:
“Atribuir dois votos a um mesmo indivíduo no âmbito de um órgão judicante colegiado viola a garantia constitucional da imparcialidade, corolário do devido processo legal, porque: (i) confere influência dupla a uma pessoa na decisão, maximizando o risco de parcialidades, em vez de minimizá-lo; e (ii) o segundo voto será necessariamente igual ao primeiro e não resultado de uma nova apreciação, livre e autônoma, dos elementos apresentados pelos interessados nos autos”12.
Tais críticas se dão pela estrutura argumentativa do voto de qualidade como voto duplo, ou seja, é a repetição do voto de mérito dado pelo presidente da turma, sem uma nova fundamentação sobre os dispositivos abordados. Por tais razões há projetos de lei que visam uma reforma administrativa com o fim do voto de qualidade.
Há ainda três fortes críticas normativas que não podem passar despercebidas: (i) que se pode retirar do princípio da legalidade um subprincípio de in dubio pro contribuinte, “de modo que”, nas palavras de Maria Eugênia Mariz de Oliveira, “somente pode formalizar o lançamento quando restar verificado, acima de qualquer dúvida, que a conduta adotada pelo contribuinte adequa-se perfeitamente à hipótese legal”13; (ii) que do art. 112 pode-se extrair a conclusão de que este não se aplica apenas à imposição de penalidades, mas também à própria exação; (iii) que restaria ferida a paridade.
Quanto à primeira parte da crítica, a própria autora demonstra que é bastante discutível afirmar que exista tal princípio, conforme a doutrina majoritária vem demonstrando14. O
principal argumento é que ele decorre da desigualdade que marca as partes nas relações tributárias e das constantes limitações aos direitos fundamentais impostas pelo Direito Tributário, assim sendo, a Administração Pública precisa provar acima de qualquer dúvida que foram preenchidos os critérios legais para a imputação. Há, entretanto, dois argumentos diferentes que podem ser utilizados contra tal premissa, quais sejam: (i) ela desconsidera a textura aberta do Direito e a imprecisão da linguagem, aceita tanto por positivistas como Hart quanto por não positivistas como Alexy15, logo, nenhuma decisão é indubitável; (ii) um princípio pode ser entendido de diversas formas, seja como mandado de otimização ou como um estado ideal de coisas, mas não há na literatura hermenêutica uma definição que permita uma primazia prima facie de um interesse específico.
Quanto à segunda parte da crítica, o principal argumento é que, ao utilizar o termo “capitulação legal do fato”, o art. 112 do CTN também pode ser empregado para afastar a exação tributária, uma vez que a capitulação legal do fato está ligada à hipótese de incidência16. Ocorre que tal interpretação pode ser afastada no nível meramente linguístico, uma vez que a capitulação legal do fato diz respeito à infração e ao núcleo do tipo, e não à existência ou inexistência de fato imponível. Ora, é possível a penalidade na falta de obrigação acessória, mesmo quando não há efetivo reflexo financeiro do tributo, como no caso de isenções.
A terceira crítica é, sem dúvidas, a mais forte, uma vez que a forma como o voto de qualidade se dava desequilibra a relação paritária, dando a um representante o voto duplo. Entretanto, a mera aplicação do in dubio pro contribuinte também o faria. O voto de qualidade como critério de desempate com outros contornos poderia resolver tais questões. O revezamento da presidência das turmas e a necessidade de redigir um novo documento para a decisão, retomando todos os argumentos, é um bom exemplo.
Há, entretanto, defesas sérias sobre o voto de qualidade e sua adequação ao princípio da paridade, uma vez que “cabe ao presidente da turma o voto ordinário. Havendo empate – o que não significa tenha havido dúvida, mas apenas divisão entre os integrantes da turma
– caberá a ele também o voto de qualidade”17. Por este argumento, existe uma cisão entre a dúvida interpretativa e a divisão dos votos. O voto de qualidade aparece como um critério de desempate, e não é a existência deste que fere a paridade, mas sim dois outros elementos:
(i) o voto de qualidade ser sempre o do Fisco; (ii) o voto de qualidade não consistir em um
novo voto que retoma o debate e argumenta especificamente sobre o dissenso, demonstrando não haver entendimento pacificado.
Um dos projetos de lei que visam o fim do voto de qualidade é de autoria do senador Tasso Jereissati, e reforma os arts. 25 e 37 do Decreto n. 70.235/1972 com o fito de: (i) alternar a presidência das turmas e câmaras do CARF entre representantes do Fisco e dos contribuintes; (ii) no caso de empate, a decisão ser pró-contribuinte. Segundo o autor do projeto, o voto de qualidade desequilibra demasiadamente a balança do julgamento em prol do Fisco, dado que sempre será dado por seus representantes. In verbis:
“Há que se modificar, assim, essas regras que tornam o contencioso tributário federal, muitas vezes, um órgão de homologação da atuação da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Essa é uma das intenções dessa proposta legislativa, por meio da qual é modificada a composição do CARF”18.
Assim sendo, o autor do projeto acusa o CARF de ser um órgão eminentemente pró-Fisco. No mesmo sentido, a MP n. 899 (Contribuinte Legal) passou pela Emenda n. 9 do deputado Heitor Freire, que previa que, quando a decisão tivesse por base um voto de qualidade, ela não se aplicaria às multas qualificadas e de ofício em respeito ao que dispõe o art. 112 do CTN. Entretanto, a redação final por decorrência da Emenda Aglutinativa n. 1 é bem mais radical, e o art. 19-E do Decreto do Processo Administrativo Fiscal dispõe que, quando a decisão não for por maioria, se adotará a tese mais benéfica para o contribuinte no caso de constituição do crédito, expandindo a não utilização do voto de qualidade na aplicação de multas qualificadas e de ofício para toda e qualquer decisão em que não haja maioria.
Faz-se necessário enfatizar que a emenda aglutinada que extingue apenas a multa qualificada e de ofício quando a decisão deriva do voto de qualidade como critério de desempate, muito embora não seja completamente dotada da racionalidade democrática por fugir ao tema da medida provisória que originou o processo legislativo, está muito mais de acordo com os debates que foram amplamente realizados pela doutrina anteriormente19.
Assim sendo, verifica-se que as críticas ao voto de qualidade se dão por dois aspectos: (i) quanto à parcialidade do CARF; e (ii) quanto à forma de fundamentação das decisões baseadas no voto de qualidade. Começaremos pela primeira crítica. Ora, inicialmente, é importante ressaltar a alta taxa de consenso quanto a matérias debatidas no CARF. Como se percebe pelo gráfico infra, a taxa de decisões por unanimidade vem crescendo desde 2017
e, por outro lado, o uso de voto de qualidade caiu mais que pela metade nos últimos três anos.
Fonte: Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (2020).
O segundo dado relevante é quanto ao equilíbrio que há entre votos de qualidade pró- Fazenda e pró-contribuinte. No ano de 2019, cerca de 94,7% das decisões foram tomadas por unanimidade ou maioria, e apenas 5,3% pelo voto de qualidade, em que 4% se referem aos votos pró-Fisco, e 1,3%, pró-contribuinte. No ano de 2020, os votos por unanimidade ou maioria cresceram para 96,8%, e o voto de qualidade caiu para 3,2%, sendo 1,3% pró- contribuinte, e 1,9% pró-Fisco, havendo, portanto, um equilíbrio numérico.
Fonte: Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (2020).
Em outras palavras, a cada 1.000 decisões no ano de 2020, 13 tiveram o voto de qualidade pró-contribuinte, e 19 tiveram o voto de qualidade pró-Fisco. Esse dado refuta a alegação do uso demasiado da técnica por Sérgio André Rocha, bem como as acusações de que o voto de qualidade beneficia apenas o Fisco.
Ademais, percebe-se ainda que o CARF não é um órgão de homologação da decisão das Delegacias de Julgamento Regionais. Doutro modo, percebe-se que a maioria das decisões emitidas pelo Conselho são mais favoráveis ao contribuinte do que ao Fisco. Ainda que seja retirado da equação o recurso de ofício que é mera formalidade contra as decisões de alto vulto, chegamos a uma igualdade técnica, com 3.648 decisões pró-contribuinte e 3.652 decisões pró-Fisco.
Recursos julgados por tipo de recorrente em 2016
Recorrente / Recurso | Favorecido | Total Geral | |
Contribuinte | Fazenda | ||
Contribuinte | 3.164 | 2.962 | 6.126 |
Recurso Voluntário | 2.989 | 2.535 | 5.524 |
Recurso Especial | 175 | 427 | 602 |
Fazenda | 933 | 762 | 1.695 |
Recurso de Ofício | 449 | 72 | 521 |
Recurso Especial | 484 | 690 | 1.174 |
Total Geral | 4.097 | 3.724 | 7.821 |
Fonte: Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (2017).
Percebem-se, portanto, três características do CARF: (i) a crescente consensualidade; (ii) a diminuição gradativa do uso do voto de qualidade; (iii) o equilíbrio numérico das decisões.
Por outro lado, a segunda crítica abordada acima é mais difícil de combater. O voto duplo fere frontalmente a construção de um modelo democrático de Processo Administrativo Fiscal.
Não se pode olvidar que, do ponto de vista econômico, as decisões com maior vulto são pró- Fisco. Desde 2017, R$ 114 bilhões foram decididos por meio do voto de qualidade – R$ 110 bilhões a favor da Fazenda, segundo levantamento obtido pelo Sindifisco em requerimento feito ao CARF20. Entretanto, é natural que, em causas de valores vultosos, haja um maior conservadorismo na decisão de um Tribunal Administrativo – que não tem a palavra final sobre o Direito. Ainda assim, pode-se questionar o mau uso qualitativo do voto de qualidade, sem necessariamente inverter o pêndulo para a vitória absoluta dos contribuintes a partir de outras medidas possíveis.
Ora, como se viu anteriormente, o problema não está na existência do voto de qualidade por si só, visto que este representa uma minoria numérica das decisões do Tribunal Administrativo frente à alta e crescente consensualidade do órgão. Nesse sentido, a forma de extinção dada pela Lei n. 13.988/2020, que define que no caso de empate se dará a decisão mais favorável ao contribuinte, é cercada por uma cápsula que a faz parecer a busca pelo princípio in dubio pro contribuinte, entretanto, desvela-se verdadeiramente como um desequilíbrio da balança do julgamento para apenas um lado, bem como o enfraquecimento institucional do órgão.
Quando se fala em tributos, trata-se do meio pelo qual a Administração abastece o erário para perseguir suas finalidades essenciais definidas pela decisão política fundamental. Sabe-se que a Constituição Financeira nasce limitada pela liberdade individual21, entretanto, não se pode perder de vista que os tributos são o preço que se paga pelas liberdades. Assim, a liberdade individual e a solidariedade consistente no financiamento coletivo e proporcional das funções estatais são valores que devem ser balanceados e ponderados de forma séria, não com argumentos que não condizem com a realidade dos fatos, reducionistas e com viés meramente político ou econômico. A deliberação racional fortalece a democracia, a retórica a enfraquece.
Noutro giro, não se pode fechar os olhos para os erros patentes da legislação. O voto duplo que não reavalia todos os argumentos trazidos pelos dissidentes presta desserviço ao modelo de processo administrativo democrático que é defendido.
O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS?
No dia 15 de abril de 2020, o canal JOTA realizou um webinário com pesquisadores ativos em Direito Tributário, quais sejam, Breno Vasconcelos, Leonardo Alvim, Luís Eduardo Schoueri e Sérgio André Rocha. O debate foi mediado pela professora Bárbara Mengardo, editora do JOTA, e Vanessa Rahal Canado, professora do Insper e assessora especial do ministro Paulo Guedes. Merece especial relevo uma tônica entre as falas dos referidos pesquisadores: a falta do debate para a formulação da proposta de alteração legislativa que colocou fim ao voto de qualidade.
De início, o professor Sérgio André menciona que vê certa normalidade na decisão por voto de qualidade, tendo em vista que:
“Tem temas que são teses. Tem um tema que é muito caro a mim e ao professor Schoueri: tributação de lucros no exterior, se forma uma tese sobre a aplicação de tratados ou não no contexto dessa discussão. Então existe uma tese dos contribuintes e uma tese do conselho. Empata e é normal que esse caso vá para o Judiciário. Não cabe ao Conselho solucionar teses onde você formou blocos de opinião e nesse caso, faz todo sentido que a posição que vá prevalecer no órgão administrativo seja a posição da Fazenda e que o contribuinte siga o caminho de discutir no Judiciário. Mas de fato, seja em casos onde efetivamente existia um problema, seja nesses problemas, talvez exagerados”22.
Nesse sentido, para o pesquisador, o voto de qualidade tende a formar uma espécie de opinião da Corte Administrativa. Ora, o Judiciário é quem diz o Direito, não o CARF. Este último é o órgão de controle de juridicidade de uma imputação tributária. Nesse ponto, há discordância do professor Schoueri, que entende que:
“Criaram-se as teses do Fisco, e a tese do Fisco ia prevalecer e já não se discutia mais. Era apenas passagem porque já se sabia disso. Era necessário que os contribuintes dessem algum tipo de basta nisso, então foi um meio legítimo próprio de buscar fazer uma mudança. No meu ponto de visto o pêndulo foi muito para o outro lado também. Sabemos, existem posições doutrinárias, não é a minha, de que in dubio pro contribuinte, eu não concordo com isso, eu acho in dubio pro legis. Eu não aceito qualquer tipo de interpretação apriorística”23.
Continua o professor Sérgio André sua fala, criticando a constitucionalidade da lei, tendo em vista tratar o referido artigo de uma emenda aglutinativa que alterava o teor da emenda à lei de conversão da MP n. 889. A medida provisória que foi editada tem por base a urgência de uma dada situação que não era a do voto de qualidade. Nas palavras do professor:
“Esse é um ponto importantíssimo, então se a gente pega a Emenda Aglutinativa n. 1 que gerou o art. 28 da Lei 13.988, ela pretendia aglutinar duas emendas individuais, e nenhuma delas trazia esse dispositivo. O dispositivo que era trazido pela emenda individual era um dispositivo que afastava as multas no caso de decisão por voto de qualidade, que é um dispositivo que nós todos aplaudimos e que faz todo sentido que você não tenha aplicação de penalidade numa situação concreta que tenha sido definida por voto de qualidade”24.
Schoueri discorda também desse ponto, uma vez que tal norma visa apaziguar uma situação de conflito entre o Fisco e o contribuinte, tendo em vista uma rivalidade construída por abuso das teses do Fisco. Concorda, entretanto, com o projeto inicial de, no caso de haver empate e decisão por voto de qualidade, extinguir a multa. Soma a tal afirmativa o fato de que toda e qualquer multa deveria ser extinta, até mesmo a de mora – diferentemente da Emenda n. 9.
Breno Vasconcelos, que pesquisa o CARF há cerca de 6 (seis) anos, entende que o voto de qualidade não é um problema em si, mas que há outras possibilidades marginais de melhoria do equilíbrio do referido Tribunal Administrativo. Para o pesquisador, o pêndulo foi demais para o lado do contribuinte – expressão usada pelos quatro pesquisadores. Assevera ainda que o debate sobre a inovação deveria ter sido feito em outro período, ressaltando a importância de “que isso fosse debatido antes da tramitação do projeto de lei da Medida Provisória no Congresso com base em dados, com base em uma sessão pública aberta”25.
O procurador Leonardo Alvim vê a mudança por uma perspectiva de enfraquecimento institucional e da estrutura argumentativa. In verbis:
“A gente tá dizendo agora é que, independentemente da qualidade técnica do voto dado por um conselheiro de contribuinte, ele escreveu uma receita de bolo ou o hino do clube de futebol, ele vai ganhar aquela determinada discussão. Então, se hoje eu tenho um CARF que foi modelado e construído com a preocupação de conselheiros
técnicos que possam acrescentar na discussão jurídica, tenho dúvida de qual vai ser
o cara daqui alguns anos se não tiver essa configuração”26.
Percebe-se que os autores têm preocupações diferentes com a mudança legislativa, que de tal forma podem ser resumidas: o professor Sérgio André tem preocupação patente e coerente com a constitucionalidade e com o meio ardiloso que foi utilizado para a modificação legal; o procurador Leonardo Alvim entende que não há o problema da institucionalidade e de uma abertura para corrupção futura no novo desenho; o professor Schoueri entende que esse deve ser apenas o início do debate; enquanto o pesquisador Breno Vasconcelos adverte que a medida foi uma resposta fraca ao problema do desequilíbrio decisório.
Em outro webinário, desta vez do Observatório do CARF, grupo de pesquisa da FGV coordenado pelo professor Eurico Santi, também foram feitas excelentes considerações. O pesquisador Daniel Souza Santiago enfatiza que “o voto de qualidade, ele existe há décadas e ele nunca foi tão debatido e tão discutido; e acho que ele nunca teve uma relevância tão grande na discussão, e acho que a discussão acabou sendo muito simplificada”27. Sua maior preocupação é que não se deveria alterar o pilar do voto de qualidade, mas sim buscar uma blindagem contra os interesses exógenos sociais, de modo a garantir maior liberdade para votar segundo o Direito.
O pesquisador ressalta que, atualmente, não vê influências políticas de órgãos de interesse que buscam forçar os conselheiros contribuintes para votar de forma específica, diferentemente do temor do procurador Leonardo Alvim no webinário do JOTA. É importante mencionar que ambas as colocações são meramente apreensões intuitivas da realidade. Entretanto, ambos chegam à mesma conclusão: a mudança do pilar do pêndulo do voto de qualidade expõe os conselheiros a pressões exógenas.
No webinário do Observatório foi majoritária a opinião de que o problema do voto de qualidade não era ontológico, não sendo, por isso, a melhor solução a sua extinção, mas algumas mudanças regimentais apenas, conforme exposto pelo pesquisador Breno Vasconcelos, que também destacou o oportunismo legislativo e a ausência de debates prévios com a academia. Ora, a emenda aglutinativa que gerou o artigo foi votada no decorrer de uma pandemia, o que prejudica o debate e, por consequência, a potencialidade democrática do projeto.
UMA RESPOSTA ERRADA PARA UMA PERGUNTA MAL FORMULADA
Extinguir do ordenamento jurídico brasileiro o voto de qualidade tinha como finalidade tornar equânime uma realidade desigual. Neste sentido, é coerente imaginar, no plano abstrato, que o privilégio da Fazenda Pública com esse instituto tende a criar uma situação de desigualdade estrutural, entretanto, o voto de qualidade não existe em abstrato apenas, e por tal razão deve ser analisado concretamente.
Assim sendo, olhando para o problema do Processo Administrativo Fiscal, deu-se uma resposta ruim a uma pergunta mal formulada. Qual é a finalidade da extinção do voto de qualidade? A princípio, é possível imaginar que é reverter uma situação em que a Fazenda usava tal privilégio ao seu bel-prazer. Ocorre que, conforme foi apresentado na segunda seção deste trabalho, o uso do voto de qualidade era minoritário, e por vezes privilegiava também o contribuinte.
Não há que se defender o voto de qualidade no que tange às infrações e penalidades por força do art. 112 do CTN, entretanto, o ponto que está sendo abordado é a constituição do crédito tributário. É importante mencionar que não há aqui uma defesa contundente do instituto, mas sim do processo deliberativo democrático, que deve condizer com a realidade e não deve quedar-se em mera retórica. Neste aspecto, é importante mencionar um pouco da teoria discursiva do Direito, em que este é tratado como um caso especial do discurso prático.
O discurso prático é aquele voltado para a solução de um problema. No discurso prático geral, a valência das proposições pode ser considerada como correta/incorreta, verdadeira/falsa etc. Já no discurso prático especial (Direito), as proposições são entendidas como válidas/inválidas. Eis a principal diferença entre o discurso prático comum e o discurso jurídico: este é limitado pelo aspecto autoritativo do Direito, ou seja, pela dogmática, precedentes etc.
Feita essa diferenciação, não se pode olvidar que há elementos importantes do discurso prático que podem fornecer material relevante para o discurso jurídico. John Rawls28, no início de sua carreira, oferece alguns elementos para a justificação de juízos morais. Para ele, o discurso prático em uma comunidade bem ordenada deveria ser composto por: (a) juízes competentes; (b) juízos ponderados; (c) justificação destes juízos; (d) princípios morais justificáveis.
Juízes competentes seriam aqueles dispostos a participar do debate e a passar por todos os argumentos sem predefinições. Ou seja, são juízes de boa-fé. É importante ressaltar que judge, traduzido como juiz, é um termo genérico para definir aquele que profere o juízo, e não ao servidor público magistrado. Os juízos ponderados são aqueles proferidos sobre casos concretos por juízes competentes que tiveram sua idoneidade assegurada. Por sua
vez, tais juízos devem ser justificados, ou seja, os elementos de sua decisão devem ser expostos e postos à crítica. Assim sendo, os princípios morais justificáveis são aqueles extraídos dos juízos morais ponderáveis e que podem ser, em determinada medida, universalizáveis.
Esse modelo deliberativo será posteriormente somado a outros conceitos importantes para Rawls, tais quais o de posição original e véu de ignorância. Entretanto, como bem ressalta Jürgen Habermas, “[...] condições abstratas, que tornam o julgamento imparcial de questões práticas, não coincidem com as condições sob as quais nós estamos dispostos a agir moralmente”29. Eis o ponto mais delicado da obra de Rawls: o problema da imparcialidade. Entretanto, é necessário frisar que há um elemento bastante importante neste modelo: a busca pelo julgamento imparcial.
Carece o modelo, entretanto, de um método e de pontos a serem efetivamente seguidos, que possam sair do campo da mera abstração e recair sobre a realidade social especializada. No entanto, já se veem em Rawls alguns elementos de uma teoria discursiva, ou seja, em que o discurso e sua forma legitimam os juízos proferidos.
Habermas, ao criticar a teoria da única decisão correta de Dworkin, expõe que:
“A correção dos juízos normativos não pode ser explicada no sentido de uma teoria da verdade como correspondência, pois direitos são uma construção social que não pode ser hipostasiada em fatos. ‘Correção’ significa aceitabilidade racional, apoiada em argumentos. Certamente a validade de um juízo é definida a partir do preenchimento das condições de validades”30.
Sem adentrar na discussão sobre se a análise feita por Habermas sobre Dworkin está correta, pode-se afirmar que a correção de uma decisão não é substancial, mas um procedimento, ou seja, não há objetivamente uma única decisão correta, mas sim a melhor decisão possível com base no procedimento adequado. Tal modelo procedimental de democracia deliberativa se baseia em satisfazer uma série de regras intermediárias, que possuem o condão de levar à melhor decisão possível, ou seja, a decisão racionalmente aceita pelos integrantes daquela determinada esfera.
Robert Alexy usa várias dessas regras, algumas trazidas por Habermas, de forma consolidada na obra Teoria da Argumentação Jurídica31. Algumas regras básicas podem ser citadas, como: nenhum orador pode se contradizer; todo orador pode afirmar aquilo em que de fato acredita; ou sempre que um argumento dogmático for possível, ele deve ser citado.
E algumas dessas regras são mais úteis do que outras para o caso do Direito brasileiro, entretanto, a completude da obra é de especial relevo para uma teoria deliberativa eficaz.
Desde os modelos mais substantivos, como o de Rawls, até os modelos mais procedimentais, como o de Habermas e Alexy, existem alguns pontos em comum que serão apropriados, quais sejam: (a) o que vai legitimar o juízo proferido é a correção do processo deliberativo; (b) a correção do juízo proferido tem correlação direta com os argumentos trazidos no processo do discurso. Assim sendo, um modelo de Processo Administrativo Tributário só será válido se perpassar por alguns critérios de correção argumentativa, bem como de cooperação na criação da norma tributária. Da mesma forma, o processo legislativo que extinguiu o voto de qualidade perde sua racionalidade por dois motivos principais: (i) levantar premissas empíricas sem sua comprovação, como a que afirma o excesso de decisões favoráveis à Fazenda; (ii) não levar ao amplo debate o fim do voto de qualidade.
Visto que há uma margem grande de consensualidade no âmbito do CARF, e que o uso do voto de qualidade é mínimo, fica como questão pendente de resolução a fundamentação do voto de qualidade. Este ponto, de fato, carece de uma reforma. Doutro modo, tal problema poderia ser resolvido meramente com o revezamento da presidência das turmas, ocupada ora por representantes do Fisco, ora por representantes dos contribuintes.
Eis, portanto, os vícios do processo deliberativo que extinguiu o voto de qualidade. O discurso prático voltado para um fim é racional quando esse fim é alcançado, enquanto o discurso prático voltado para o consenso é racional quando o consenso é alcançado. Nas palavras de Habermas,
“Ora, uma asserção pode ser designada racional somente quando o falante satisfaz, a condição necessária para que se alcance o fim ilocucionário, qual seja, chegar a um entendimento mútuo sobre alguma coisa no mundo com pelo menos mais um participante da comunicação; a ação orientada para um fim, por sua vez, só pode ser designada racional quando o ator satisfaz as condições necessárias para a realização da intenção de intervir no mundo de forma bem-sucedida”32.
É valido ressaltar a observação de que, mesmo quando racional, o discurso prático voltado a um fim ou ao consenso pode não alcançar suas finalidades por razões exógenas ao processo deliberativo. Assim, Habermas complementa dizendo que racional é o agente da deliberação que, no campo cognitivo-instrumental, age de forma eficiente ao exteriorizar opiniões fundamentadas, aliando a isso a capacidade de aprender com fracassos, bem como com refutações e insucessos33.
No caso do discurso voltado a uma transformação no mundo objetivo, se aquele que discorre afirma “tomarei a conduta A para mudar o estado de fato de B para C”, o que torna tal discurso racional são os seguintes elementos: se A pode realmente mudar o estado de B; se A é executável; se B é um estado de fato real; e se C é um estado de fato possível.
Já na hipótese do discurso voltado para o consenso, devem-se observar alguns detalhes estruturais. Conforme Toulmin34, um argumento é composto por uma exteriorização problemática, para a qual há uma pretensão de validade de uma possível conclusão, a partir de um fundamento com que tal pretensão deve ser estabilizada. Em síntese, o proponente de um argumento parte de um problema e formula uma possível resposta a partir de um determinado fundamento. Esse fundamento apoia-se em uma regra35, que tem como pedra angular evidências de vários tipos diferentes, assim sendo, deve haver coerência entre o problema abordado – no caso específico, a falta de equidade no voto de qualidade – e sua pretensão de validade do tipo verdadeiro/falso, amparada pelos fundamentos comprovados por critérios empíricos. A referibilidade das asserções descritivas é seu critério de validade. Descrever uma realidade tem total correlação com sua prova com dados empíricos.
As alegações, tanto na doutrina, quanto nas deliberações de que o voto de qualidade garantia uma posição majoritariamente privilegiada ao Fisco, não condizem com a realidade. Já o problema quanto à fundamentação ser real, ele permanece, só que agora em favor do contribuinte. Vê-se, portanto, um duplo sentido da racionalidade do processo deliberativo, tanto na perspectiva de discurso voltado à alteração de uma realidade, quanto na de discurso voltado para o consenso razoável: (i) na primeira perspectiva, parte de um problema não comprovado para um estado de coisas pretendido que não pode ser alcançado por aquele meio; (ii) na segunda, não possui fundamentos que estabilizem a pretensão de validade dos argumentos ventilados como base para a decisão.
Retornando à ideia de correção do processo deliberativo do CARF, o que o torna viciado, da perspectiva adotada neste trabalho, não é a existência do voto de qualidade, mas sim a falta de uma fundamentação que se aproprie do dissenso. Por mais que os representantes do Fisco e dos contribuintes possuam expectativas normativas diferentes, a deliberação racional substitui o agir meramente estratégico. Se em um contexto fático o agir instrumental for visualizado, ele precisa ser suprimido, entretanto, o voto de qualidade não é utilizado apenas em favor do Fisco.
Por outro lado, o exercício argumentativo do voto de qualidade que retomasse o dissenso traria elementos linguísticos que poderiam posteriormente ser reconstruídos, desconstruídos e reutilizados. Os argumentos expostos a críticas no Judiciário, no ambiente acadêmico ou em outras esferas públicas que eventualmente retomem o dissenso fortalecem o processo deliberativo democrático do modelo defendido. Exemplo: se a norma N¹ pode ser interpretada das formas I¹ e I² em decorrência dos fundamentos F¹ e F², respectivamente, a decisão que toma I¹ deve expressar que houve dissenso e que parcela considerável do colegiado votou por I². Desta forma, ao retomar o debate no Judiciário, poderão os participantes do processo deliberativo reduzir seu ônus argumentativo para decidir conforme I², apenas retomando o debate prévio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é demais ressaltar que este trabalho consiste não em uma resposta definitiva para a problemática questão do voto de qualidade e os desdobramentos de sua mudança, mas em um olhar crítico sobre a racionalidade deliberativa de seu uso, bem como de seu fim. Não se nega que a forma como o instituto era utilizado não é a ideal, já que o documento final da decisão consistia no voto inicial do presidente da turma. Sendo utilizado dessa forma, a decisão não retoma o debate nem enfatiza o dissenso. Uma decisão por maioria não necessita que se retomem todos os argumentos, uma vez que se considera relativamente pacificado o entendimento, de forma completamente diferente de uma decisão em que não há tal pacificação e se faz necessário um critério de desempate.
Portanto, a primeira premissa levantada de forma propedêutica é a de que o processo administrativo deve ser o ambiente deliberativo racional de cocriação da norma tributária de forma concreta. Nesse ambiente, não se deve admitir primazia prima facie de nenhum interesse específico, seja do Fisco ou dos contribuintes. A razão comunicativa deve ser institucionalmente incentivada, ou seja, deve o conjunto normativo permitir e obrigar a fundamentação de cada participante, sempre levando em consideração os outros participantes do processo deliberativo.
Após, verificou-se quão espinhoso é o tema e como os doutrinadores discordaram de como foi resolvido o problema do voto de qualidade. Isso por si só já levanta dúvida quanto à razoabilidade da medida. Entretanto, a legitimidade também é posta em dúvida a partir do momento em que, na terceira seção, se retoma o argumento utilizado no processo legislativo para o fim do voto de qualidade, qual seja: o excesso de decisões favoráveis à Fazenda Pública. Entretanto, tal afirmação foi empiricamente contradita.
Desta forma, foram brevemente abordados os debates sobre o problema do voto de qualidade, e pode-se afirmar que a falta de paridade na forma como ele era realizado e a falta da retomada argumentativa do dissenso formado eram os seus defeitos mais evidentes. Duas eram as possíveis soluções: primeira, no caso de empate, o voto de
qualidade deveria consistir em um novo documento que retomasse todos os argumentos suscitados; segunda, poderia ser feito o revezamento da presidência das turmas do CARF entre representantes da Fazenda e dos Cidadãos.
Por fim, com os elementos da teoria da argumentação jurídica se retira uma máxima extremamente importante: uma decisão está correta se a sua argumentação for feita corretamente. Deste modo, se for argumentado que o voto de qualidade deve ser extinto pelo excesso de decisões a favor do Fisco, caso não haja tal excesso, o voto de qualidade não deveria ser extinto. Carece do nível mais básico de racionalidade a decisão legislativa, além de ser tecnicamente inadequada, porque não considera toda a construção teórica prévia e não leva a amplo debate específico sobre o tema. Outras medidas seriam muito mais eficazes se houvesse maior pluralismo de agentes discursivos participando efetivamente do processo legislativo.
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