PROGRESSIVIDADE DO IMPOSTO DE RENDA E CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: OS EFEITOS DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA

INCOME TAX PROGRESSIVITY AND CONSTITUTIONAL CONCRETIZATION: THE EFFECTS OF THE TAX LEGISLATION


Pedro Lucas Alves Brito


Mestrando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo. Advogado. São Paulo-SP. E-mail: plabrito87@gmail.com



Recebido em: 07-01-2021

Aprovado em: 12-03-2021


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-17



RESUMO


O objetivo deste artigo é analisar criticamente os argumentos de que a progressividade do imposto de renda deve ser, necessariamente, vinculada à capacidade contributiva e que a sua instituição somente pode ser feita por meio da prescrição de alíquotas graduais – o que restringiria a liberdade de ação do legislador infraconstitucional. Partindo da investigação da justificação da progressividade e de suas críticas, este trabalho enfrenta esses argumentos com atenção especial à forma como a progressividade para o imposto de renda foi prevista constitucionalmente e busca demonstrar que a consideração dos efeitos da tributação sobre a sociedade e o comportamento dos contribuintes é indispensável para garantir eficácia a essa norma.

PALAVRAS-CHAVE: PROGRESSIVIDADE, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS, FINALIDADE, EFEITOS

ABSTRACT


The purpose of this paper is to critically analyze the claims that the income tax progressivity should be necessarily related to the ability-to-pay principle and to the prescription of graduated rates – what would narrow the scope of action of the legislator. Starting from the justification of the progressivity and its critics,


this paper faces these arguments focusing on the form in which the income tax progressivity was constitutionally prescribed and aims to demonstrate that the tax effects on the society and on the taxpayers’ behavior are key to ensure the effectiveness of this rule.

KEYWORDS: PROGRESSIVITY, ABILITY-TO-PAY, PROGRESSIVE TAX RATES, PURPOSE, EFFECTS


  1. INTRODUÇÃO

    Ao abordar o tema da progressividade do imposto de renda, é comum encontrar o entendimento de que a progressividade exigida pela Constituição Federal para esse tributo seria caracterizada pela instituição obrigatória de alíquotas graduadas de acordo com a capacidade contributiva do contribuinte. Apenas dessa maneira, prossegue o argumento, aqueles que possuem maior renda suportariam uma carga tributária mais elevada em comparação aos menos afortunados. Essa seria a única forma de instituição da progressividade prescrita pela Constituição, e seria vedada a cobrança do imposto de renda de outras maneiras, como em bases proporcionais. A liberdade do legislador infraconstitucional em matéria de progressividade do imposto de renda seria, assim, bastante limitada.


    Este artigo tem por objetivo analisar o argumento acima, especialmente para investigar se a instituição de alíquotas progressivas cumpre a exigência constitucional de progressividade para o imposto de renda. Para tanto, divide-se em quatro partes. Na primeira, investiga as principais teorias que buscam fundamentar a progressividade do imposto de renda, concluindo que todas têm um viés eminentemente extrafiscal e estão sujeitas a relevantes críticas, cujo enfrentamento é necessário para a concretização da progressividade. Na segunda parte, o artigo analisa a ligação entre capacidade contributiva e progressividade e se a primeira deve ser obrigatoriamente observada sempre que se falar na segunda, respondendo a essa questão de forma negativa: ainda que a progressividade possa ser uma forma de concretização da capacidade contributiva, isso não se verifica, nem se deve verificar, em todos os casos e situações. Na terceira parte, passa-se a tratar da controversa questão relativa à vinculação obrigatória da progressividade não mais com a capacidade contributiva, mas com a instituição de alíquotas progressivas, concluindo que

    essa não é uma relação exigida pelo art. 153, § 2º, I, da Constituição Federal, nem é a única forma de alcançar a progressividade no imposto de renda – o legislador infraconstitucional, nessa matéria, tem um campo maior de liberdade do que para outros tributos, como se verá. Na quarta e última parte, considerando a finalidade extrafiscal da progressividade e suas críticas, a inexistência de vinculação obrigatória com a capacidade contributiva e com alíquotas progressivas, investiga-se o que, então, deve ser considerado para que a exigência constitucional de progressividade seja cumprida pelo legislador infraconstitucional, concluindo pela necessidade primordial de observância dos efeitos que a legislação tem na efetiva carga tributária para averiguar se ela é eficazmente progressiva e, nessa medida, cumpre a Constituição Federal.


  2. FUNDAMENTOS DA PROGRESSIVIDADE E SUAS CRÍTICAS

    As principais teorias que buscam fornecer fundamentos para a progressividade são a teoria do benefício, a teoria do sacrifício e a justiça distributiva. Ainda que existam divergências de pensamento entre os estudiosos que defendem uma ou outra corrente, é possível identificar os principais argumentos dessas teorias, que serão aqui expostos. O que importa a este artigo é o caráter eminentemente extrafiscal de todas elas, como se demonstrará.


    Há um certo consenso de que as bases do imposto de renda existente atualmente surgiram no Reino Unido, em meados do final do século XVIII e início do século XIX, para custear os gastos decorrentes das guerras napoleônicas1. Entre 1798 e 1816, sob o comando dos primeiros-ministros Pitt e Addington, foram instituídos e revogados alguns impostos temporários que incidiam diretamente sobre a renda auferida pelos contribuintes, e cujos atributos essenciais foram copiados por outros países, como Prússia e Estados Unidos, lançando alguns dos fundamentos essenciais que estão presentes no imposto sobre a renda dos principais países do mundo atualmente, em especial: a progressividade, a retenção na fonte, a autodeclaração e a tributação em cédulas (ou por tipo de rendimento)2.


    Naquele momento, a progressividade foi justificada, nos dizeres do primeiro-ministro Pitt, na necessidade de todas as classes sociais do país suportarem a sua justa parcela pelos benefícios que o Reino Unido lhes proporcionava, e a contribuição de cada classe deveria ser feita na medida dos seus meios3. É interessante notar dessa fala de Pitt a ideia de que a progressividade está atrelada aos benefícios que o Estado proporciona ao contribuinte, um argumento que remete à teoria do benefício.

    A teoria do benefício percebe os tributos como o preço que o contribuinte paga por benefícios que recebe do Estado – nessa medida, quanto maior for a renda do contribuinte, presume-se que mais benefícios ele aufere e, consequentemente, maior deve ser a tributação4. Contudo, como argumenta Joel Slemrod, essa teoria pode funcionar para serviços mensuráveis, como o fornecimento de água, mas para muitas atividades desenvolvidas pelo Estado, como a segurança nacional ou a justiça, é muito difícil ou impossível medir a quantia exata do benefício recebido, o que resultaria na instituição de uma tributação sobre bases grosseiramente presumidas5. Slemrod acrescenta que, mesmo que fosse possível medir exatamente o benefício que cada pessoa recebe do Estado, ainda assim não estaria


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    1. ZILVETI, Fernando Aurelio. Imposto de renda: indagações acerca do nascimento do tributo no Reino Unido. Revista Direito Tributário Atual n. 29. São Paulo: Dialética; IBDT, 2013, p. 169.


    2. GROSSFELD, Bernhard; BRYCE, James. A brief comparative history of the origins of the income tax in Great Britain, Germany and the United States. The American Journal of Tax Policy v. 2, p. 211-251, 1983.


    3 Ibidem, p. 216-217.


    1. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 399.


    2. SLEMROD, Joel. Taxing ourselves: a citizen’s guide to the debate over taxes. 4. ed. Cambridge: MIT Press, 2008, p. 62.


    justificada a progressividade pela teoria do benefício, pelo contrário, pois isso resultaria em situações esdrúxulas, como os aposentados da previdência pública receberem exatamente o valor que recolheram de contribuição, ou pessoas pobres tendo que pagar tributos além da sua capacidade econômica, já que qualquer benefício que lhes fosse prestado pelo Estado deveria vir acompanhado de um aumento da sua tributação6.

    A segunda teoria utilizada para justificar a progressividade é a teoria do sacrifício: segundo ela, a carga tributária deve ser distribuída de forma que pessoas com a mesma capacidade paguem o mesmo (equidade horizontal), e pessoas com maior capacidade paguem mais (equidade vertical)7. A teoria do sacrifício decorre das teorias utilitaristas, segundo as quais o objetivo da progressividade seria promover o maior bem-estar para o maior número de pessoas – nessa medida, entende-se que R$ 1,00 para um homem rico valeria menos do que para um homem pobre e, como decorrência, o primeiro teria um sacrifício menor para pagar esse real8. Contudo, Blum e Kalven apresentam importantes ressalvas a essa teoria, dentre as quais duas se destacam: (i) ela estaria equivocada em tentar traduzir dinheiro, que pode ser medido em unidades definidas, em unidades correspondentes de satisfação ou bem- estar, algo que não pode ser quantificado – dessa constatação decorre a impossibilidade de medição e comparação do nível de sacrifício feito pelas pessoas9; e (ii) a sua lógica justificaria retirar milhões de reais do contribuinte rico até que não houvesse mais diferença entre ele e o contribuinte pobre, porque, enquanto houver qualquer diferença, a conclusão será sempre que o contribuinte rico deve arcar com o sacrifício10.

    A terceira teoria que busca fundamentar a progressividade é a justiça distributiva. É curioso notar que o primeiro-ministro Pitt, nos primórdios da criação do imposto de renda, ainda que tenha defendido que a carga do imposto de renda recaísse equitativamente sobre os ombros de todos, argumentou fortemente contra qualquer tentativa de utilização do tributo como meio de alcançar a justiça social11. Essa teoria, portanto, não é novidade ou “mais moderna”. Ela nasceu da substituição da teoria do sacrifício pela argumentação de que cada cidadão deve participar nos custos da existência social, e a distribuição desses custos deve ser feita de uma forma entendida como justa, considerando os critérios de equidade horizontal e vertical12. O seu principal argumento repousa no incremento do bem-


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    6 Ibidem, p. 63-64.


    7 MUSGRAVE, Richard A. Progressive taxation, equity, and tax design. In: SLEMROD, Joel. Tax progressivity and income inequality. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 344.


    8 SLEMROD, 2008, p. 65.


    1. BLUM, Walter J.; KALVEN JR., Harry. The uneasy case for progressive taxation. University of Chicago Law Review v. 19, Chicago, 1952, p. 478-479.


    2. Ibidem, p. 467.


    11 GROSSFELD; BRYCE, 1983, p. 216-217.


    12 SCHOUERI, 2018, p. 401.


    estar social promovido pela transferência de recursos dos mais ricos para os mais pobres, o que demanda um sistema de tributação diferenciado e uma política coerente de gastos estatais voltados a esse objetivo13. Atualmente, a teoria da justiça distributiva é aquela que normalmente se entende como a que melhor justifica a progressividade, e é notável como a sua finalidade não é essencialmente arrecadatória, mas extrafiscal, indutora14.


    Como as demais teorias, a teoria da justiça distributiva também é objeto de relevantes críticas. Nesse particular, podem ser feitos questionamentos semelhantes àqueles dirigidos à teoria do sacrifício: não é possível medir bem-estar em dinheiro e, como consequência, não existe qualquer prova de que transferir dinheiro de poucos para muitos levará ao aumento do bem-estar geral15. Outra crítica que pode ser feita é que, além de não ficar claro se o dinheiro adicional arrecadado das famílias mais ricas deve ser utilizado pelo Estado para fornecer serviços ou ser transferido diretamente para as famílias mais pobres, existe uma profunda complexidade envolvendo a destinação dos recursos, pois há atividades em que a participação do Estado é desejável, e outras em que os recursos seriam mais bem empregados se transferidos diretamente aos mais pobres16.


    Além dessas críticas específicas a cada teoria, existem outras mais gerais, mas não menos importantes, que podem ser direcionadas a todas elas. Essas críticas são especialmente voltadas aos problemas que os efeitos da tributação têm na realidade econômica. Nesse particular, Slemrod explica que a mera instituição de tributos mais “pesados” sobre os mais ricos não é suficiente, pois entender quem suporta efetivamente a carga tributária vai além de verificar quem preenche e recolhe a guia de pagamento, já que a carga tributária pode ser repassada, o que implica investigar a elasticidade da oferta e da demanda e o comportamento dos contribuintes em virtude da tributação. O autor dá o exemplo de duas estradas paralelas que as pessoas pegam para ir ao trabalho, em uma das quais, certo dia, se coloca um pedágio: com o tempo, as pessoas da estrada com o pedágio migram para a estrada sem pedágio, deixando esta última sobrecarregada e fazendo com que todos dividam a carga do pedágio (em vez de pagarem em dinheiro na estrada com pedágio, pagarão em tempo perdido na estrada sem pedágio, que pode ser convertido em dinheiro perdido ao se considerar quanto vale a hora de um profissional no mercado)17. Em outras


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    1. POLIZELLI, Vitor B. Progressividade: distribuição de renda e indução. Revista Direito Tributário Atual n. 21. São Paulo: Dialética; IBDT, 2007, p. 367.


    2. ZILVETI, Fernando Aurelio. Princípios de Direito Tributário e a capacidade contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 173; LEÃO, Martha Toribio. A (des)proporcionalidade da progressividade do imposto de renda da pessoa física no sistema brasileiro. Revista Direito Tributário Atual n. 28. São Paulo: Dialética; IBDT, 2013, p. 195; COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 48; POLIZELLI, 2007, p. 367.


    3. BLUM; KALVEN JR., 1952, p. 491.


    16 Ibidem, p. 491-492.


    17 SLEMROD, 2008, p. 66.


    palavras, não basta que a finalidade da progressividade seja adequada, porque ela só se verifica se também forem considerados os efeitos da tributação sobre os particulares.


    Nesse terreno, é comum o entendimento de que a tributação da renda da pessoa jurídica no Brasil seria progressiva, já que a sua alíquota total de 34% (ou de 40% para as instituições financeiras) é maior do que a alíquota máxima de 27,5% cobrada das pessoas físicas. Contudo, Andrea Lemgruber lembra que quem suporta economicamente a carga tributária são sempre as pessoas – o acionista, o empregado, o consumidor, entre outros – e que um aumento da tributação da renda das pessoas jurídicas pode até recair sobre os acionistas ou os donos do capital no curto prazo, já que não há margem para ajustes (fazendo com que o lucro a ser distribuído ao acionista seja tributado de forma “mais pesada” do que o salário recebido pelo empregado que trabalha na empresa), mas a forte tendência é que, no longo prazo, a conta seja paga pelos consumidores e trabalhadores – os primeiros, pelo aumento do preço dos bens e serviços vendidos pela empresa; os segundos, pela redução de salários e benefícios18. Assim, é grande a probabilidade de que o lucro após a tributação permaneça igual ou muito próximo ao que era antes do aumento da carga tributária, e o sócio ou acionista continue auferindo renda semelhante.


    Em outras palavras, o que essas críticas pretendem mostrar é que a pessoa juridicamente designada para efetuar o pagamento do imposto sobre a renda (contribuinte ou responsável) não é necessariamente quem arca com o custo econômico da tributação, porque o comportamento dos contribuintes influencia a carga tributária a que estão sujeitos. Dessa constatação, é possível extrair ao menos uma consequência importante para o Direito Tributário: se os efeitos pretendidos pela norma constitucional de progressividade são facilmente esquiváveis ou repassáveis, a legislação que determina a tributação em bases progressivas deve considerar esse fenômeno e apenas será adequada para atingir os fins almejados constitucionalmente se a sua incidência for eficazmente progressiva. Esse ponto será retomado posteriormente.


    Em resumo, portanto, verifica-se que a progressividade tem uma finalidade extrafiscal independentemente da teoria que se adote. As críticas brevemente expostas e às quais outras poderiam ser acrescentadas revelam que a fundamentação da progressividade não é unânime nem pacífica, mas, não importa qual teoria seja escolhida, todas são objeto de uma crítica comum: a finalidade somente poderá ser alcançada caso se considerem os efeitos que a tributação tem nos indivíduos e na realidade econômica.


  3. ASPECTOS CONTROVERTIDOS: CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS


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    18 LEMGRUBER, Andréa. A tributação do capital: o imposto de renda da pessoa jurídica e o imposto sobre operações financeiras. In: BIDERMAN, Ciro; ARVATE, Paulo (org.). Economia do setor público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 212-213.


    1. Progressividade e capacidade contributiva


      A relação entre capacidade contributiva e progressividade é feita até os dias atuais, sob o argumento de que a última seria uma forma de concretização da primeira19, ou que esta deve necessariamente acompanhar aquela – como narra Zilveti sobre o entendimento de alguns autores20. Não é incomum que autores imbuídos da preocupação legítima de demonstrar que a capacidade contributiva configura restrição ao poder de tributar, e não justificação para a tributação sem lei – o que não merece qualquer reparo –, acabem dando um passo adiante e fazendo uma ligação necessária entre capacidade contributiva e progressividade, esta última entendida apenas como a utilização de alíquotas progressivas e proibição de tributação proporcional e de head tax21. Essa relação necessária entre capacidade contributiva e progressividade, contudo, não se verifica.


      A capacidade contributiva decorre do princípio da igualdade e representa a medida de comparação constitucionalmente obrigatória entre contribuintes e impostos, o que se depreende do art. 145, § 1º, da Constituição Federal22. Nesse terreno, Klaus Tipke esclarece que a igualdade é sempre relativa – porque não se confunde com a identidade – e exige, portanto, um critério de comparação23. Para os impostos, esse critério é a capacidade

      contributiva e, como afirma Humberto Ávila, ela deve ser necessariamente adotada pelo

      legislador “se a hipótese material de incidência da regra de tributação permitir, e não houver nenhuma outra finalidade que possa justificar seu afastamento”24. Em poucas palavras, isso significa que um contribuinte que manifeste capacidade contributiva deverá ser diferenciado, pelo legislador, daquele que não a manifeste.


      Contudo, isso não significa que dois contribuintes que manifestem capacidade contributiva devam ser, obrigatoriamente, diferenciados pela progressividade, porque a presença de uma não exige a da outra. Nesse sentido, Luís Eduardo Schoueri apresenta um exemplo bastante ilustrativo, em que não apenas capacidade contributiva e progressividade não coexistem, mas são antagônicas: considerando que três indivíduos auferiram a mesma renda total ao longo da vida, imagine-se que um deles a obteve com rendimentos constantes (ex.: funcionário público); o outro percebeu rendimentos inicialmente reduzidos, mas que cresceram constantemente ao longo da sua vida (ex.: profissional liberal); e o último recebeu a maior parte ou quase a totalidade desses


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      19 COSTA, 2009, p. 213.


      20 ZILVETI, 2004, p. 181.


      1. FOLLONI, André. Capacidade contributiva e dever fundamental. Revista Direito Tributário Atual n. 42. São Paulo: IBDT, 2019, p. 486-493.


      2. ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 59.


      3. TIPKE, Klaus. Princípio de igualdade e ideia de sistema no Direito Tributário. Tradução de Brandão Machado. In: MACHADO, Brandão (coord.). Direito Tributário: estudos em homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 519-520.


      24 ÁVILA, 2015, p. 59.


      rendimentos durante o período de alguns anos (ex.: um esportista, como um jogador de futebol). Como a capacidade contributiva não é medida tomando por base o período da vida inteira do indivíduo, mas espaços de tempo fracionados, a progressividade fará com que esses três indivíduos terminem por pagar quantias totais a título de imposto de renda absolutamente diversas, ainda que a sua capacidade contributiva total, medida ao longo da sua vida, seja a mesma25.


      Percebe-se, assim, não apenas uma separação desses institutos, mas também a impossibilidade de afirmar que a progressividade sempre privilegia a capacidade contributiva, porque existem situações em que ocorre justamente o oposto: há ocasiões – bastante corriqueiras, aliás, como o exemplo mencionado – em que elas estão desatreladas26. Capacidade contributiva e progressividade, portanto, não apenas não se confundem como podem caminhar em sentidos diferentes. Como ensina Klaus Tipke, “objetivos sociais no mais amplo sentido justificam o desvio do princípio da capacidade contributiva”27. Para a teoria da justiça distributiva, esses objetivos são justamente os fundamentos da progressividade.


      A própria Constituição Federal, inclusive, admite expressamente a existência de progressividade sem capacidade contributiva. É o caso do art. 182, § 4º, II, que autoriza o legislador municipal a instituir, relativamente a propriedades cujo solo urbano não seja edificado, seja subutilizado ou não utilizado, o imposto sobre a propriedade predial e

      territorial urbana de forma progressiva no tempo. O critério temporal relativamente à

      propriedade de bens imóveis, por si só, não é indicativo de capacidade contributiva, mas é um critério eleito pela Constituição Federal para a gradação da progressividade.


      Além disso, como a capacidade contributiva é uma medida de comparação entre contribuintes, ela depende da sua relação com a finalidade que se pretende alcançar ao tratá-los desigualmente, pois é a finalidade que define se a medida de comparação utilizada é adequada28. Enquanto limitação ao poder de tributar, a finalidade da diferenciação feita pela capacidade contributiva é arrecadar tributos apenas dos contribuintes que a manifestem, ou seja, a finalidade é a proteção de direitos fundamentais de liberdade e propriedade de quem não tenha capacidade contributiva. Contudo, essa diferenciação não autoriza que se cobre mais de uns e menos de outros; para tanto, é necessária uma nova diferenciação (progressividade), baseada em uma nova finalidade (benefício, sacrifício ou justiça distributiva). Se assim não fosse, não haveria como reconhecer outra finalidade à progressividade que não a arrecadatória. Nesse caso, entraria em cena o questionamento


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      25 SCHOUERI, 2018, p. 402-403.


      26 LEÃO, 2013, p. 191.


      27 TIPKE, 1984, p. 526.


      28 ÁVILA, 2015, p. 66.


      sobre se a restrição aos direitos fundamentais de liberdade e propriedade, representada pela arrecadação de tributos, poderia, como finalidade, justificar mais restrição a esses direitos fundamentais por meio da progressividade – não é difícil perceber que, enquanto os custos do Estado aumentassem, não haveria limites para a progressividade e, consequentemente, para a restrição aos direitos fundamentais de liberdade e propriedade.


      Inclusive, a Constituição Federal, em seu art. 153, § 2º, I, ao dispor que a progressividade do imposto de renda deve ser concretizada “na forma de lei”, outorgou ao legislador infraconstitucional maior liberdade de ação, porque, afirma Schoueri, sabia o constituinte que a relação entre capacidade contributiva e progressividade não é necessária29. Inclusive, a expressão “sempre que possível”, constante do art. 145, § 1º, da Constituição Federal, reforça essa conclusão. Nessa linha, arremata Zilveti: “a progressividade não é, em si, contrária nem conforme ao princípio da igualdade na tributação. Assim, a progressividade seria aceitável, somente, como um meio de redistribuição de riquezas, no exercício da Justiça Social”30.


      Conclui-se, portanto, que uma suposta vinculação mandatória entre capacidade contributiva e progressividade do imposto de renda não se verifica no Direito brasileiro. Pode-se cogitar disso em relação a uma capacidade contributiva “ideal”, a alguma teoria da capacidade contributiva ou ao Direito estrangeiro, mas essa não foi a opção adotada pela Constituição Federal.


    2. Progressividade e alíquotas progressivas


      Verificou-se, até o momento, que a progressividade é fundamentada em finalidades extrafiscais e que ela não tem uma relação necessária com a capacidade contributiva, sendo apenas uma forma possível para concretizá-la. Cumpre, neste tópico, dar um passo adiante e investigar se, ainda que a progressividade não tenha uma ligação necessária com a capacidade contributiva, haveria tal relação entre a progressividade e a instituição de alíquotas progressivas.


      Na Constituição Federal, a progressividade do imposto de renda está prevista no art. 153, § 2º, I, o qual prescreve que esse tributo “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei”. Nota-se que o legislador constitucional apenas fez menção à progressividade, mas não designou ou especificou uma forma para a sua concretização. Isso é importante porque esse não é o único dispositivo constitucional que trata da progressividade na seara tributária. O art. 149, § 1º, determina que as contribuições sociais para custeio do regime próprio de previdência social da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, cobradas de servidores ativos,


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      29 SCHOUERI, 2018, p. 398.


      30 ZILVETI, 2004, p. 185.


      aposentados e pensionistas, poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões. O art. 153, § 4º, I, prevê que o imposto territorial rural, de competência da União, “será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas”. O art. 156, § 1º, estabelece que o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana

      pode ser progressivo em razão do valor do imóvel e ter alíquotas diferentes de acordo com

      a localização deste. O art. 182, § 4º, II, autoriza o legislador municipal a instituir, relativamente a propriedades cujo solo urbano não seja edificado, seja subutilizado ou não utilizado, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana de forma progressiva no tempo. No art. 195, II, a Constituição Federal prescreve que a seguridade social será financiada pelo trabalhador e demais segurados da previdência social, podendo ser adotadas, em relação às contribuições sociais, “alíquotas progressivas de acordo com o valor do salário de contribuição”.


      Percebe-se, desses dispositivos, uma diferença fundamental em relação à progressividade do imposto de renda. Em todos esses outros casos, a Constituição Federal expressamente definiu o critério que o legislador infraconstitucional deve adotar ao instituir a progressividade: (i) por meio de alíquotas progressivas, para as contribuições sociais para custeio do regime próprio de previdência social da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, para o imposto territorial rural, para o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana e para as contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social; (ii) em razão do valor do imóvel, para o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana; e (iii) em razão do tempo, para o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana.


      Em relação ao imposto de renda, contudo, a Constituição Federal não fixou um critério a ser adotado para a concretização da progressividade, apenas determinou que esse imposto seja informado por ela. Nesse sentido, Ricardo Mariz de Oliveira é bastante elucidativo ao afirmar que “a lei ordinária é livre para adotar as escalas progressivas de bases de cálculo e de alíquotas [...], assim como até a faixa de isenção [...] poderia figurar com alíquota zero ou mesmo inexistir”31. Essa diferença no tratamento dado pela Carta Magna em relação à progressividade do imposto de renda em comparação aos demais tributos não é fortuita, mas decorre da liberdade de conformação mencionada por Mariz para que seja possível adequar a legislação tributária aos efeitos da tributação na sociedade e no comportamento dos contribuintes.


      Assim, considerando uma interpretação literal ou textual, verifica-se que não existe um critério obrigatório previsto constitucionalmente que deve ser adotado quando da instituição da progressividade para o imposto de renda, ao contrário do que ocorre para


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      31 MARIZ DE OLIVEIRA, Ricardo. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 440-441.


      outros tributos, o que confere ao legislador infraconstitucional maior liberdade na concretização da progressividade desse imposto. Relembre-se que a expressão “na forma de lei”, contida no art. 153, § 2º, I, da Constituição Federal, demonstra que o constituinte sabia que haveria situações em que a progressividade poderia não ser aplicável32.

      Não obstante, também é possível chegar à mesma conclusão adotando uma interpretação finalística, voltada à perseguição dos objetivos constitucionais almejados com a progressividade. Retomando as teorias que buscam fundamentá-la, ficou demonstrado o seu caráter eminentemente indutor, de fim extrafiscal. Existem muitos meios que podem ser adotados para alcançar esse fim sem que, necessariamente, haja a instituição de alíquotas progressivas. Nesse particular, Ricardo Mariz de Oliveira entende que a progressividade pode ser positivada tanto por meio de alíquotas progressivas quanto por meio do escalonamento da base de cálculo do imposto, ou até mesmo por ambas as formas33. Pode-se, também, considerar cada rendimento recebido pelo indivíduo de forma individualizada e exigir que, separadamente, todos sejam progressivos. Pode-se cogitar da progressividade apenas em relação à renda global dos indivíduos e não dos seus rendimentos separados, permitindo que, em relação a cada um desses rendimentos, o legislador tenha maior liberdade de realização de políticas fiscais, desde que o resultado global seja progressivo e que haja razões para o legislador agir dessa forma.


      Apenas para ilustrar, considere-se a possibilidade de concretizar a progressividade do imposto de renda através da sua base de cálculo, o que pode ser feito por meio das regras de dedutibilidade das despesas. Se tomada exclusivamente a tabela progressiva prevista para os rendimentos percebidos por pessoas físicas, não é difícil imaginar a sua substituição por um imposto de renda proporcional cuja progressividade esteja nas despesas: a progressão da tributação decorreria da relação entre a base de cálculo e os rendimentos auferidos – desde que haja normas limitando a dedutibilidade de certas despesas, o que já existe –, de modo que, quanto maior fosse a renda, maior seria a parcela percentual de renda a ser tributada, já que não seria possível deduzir toda e qualquer despesa, e as possibilidades de dedução estariam sujeitas a limites34. Para deixar esse cenário mais concreto, adote-se como exemplo a realidade brasileira: como a população de baixa renda é aquela que essencialmente se utiliza dos serviços prestados pelo Estado, como saúde e educação, e, portanto, não se vale (ou vale-se muito pouco) das deduções previstas para esses itens, se a tabela progressiva fosse substituída por uma alíquota única, sendo vedada a possibilidade de dedução de despesas médicas e educacionais e autorizada a dedução, até um certo limite de valor, das despesas que mais impactam as famílias pobres,


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      32 SCHOUERI, 2018, p. 398.


      1. MARIZ DE OLIVEIRA, op. cit., p. 438-439.


      2. Ressalte-se que esse imposto de renda é apenas hipotético, utilizado para ilustrar uma das muitas possibilidades de concretização da progressividade. Nessa medida, não se estão considerando todas as questões jurídicas que ele envolveria, especialmente constitucionais.


        como habitação, aluguel e alimentação35, a carga tributária resultante, incidente sobre as pessoas de alta e de baixa renda, atenderia à progressividade exigida pela Constituição Federal. Dessa forma, ainda que houvesse proporcionalidade em relação à alíquota, haveria progressividade em relação ao tributo efetivamente recolhido, porque as deduções, nesse breve exemplo hipotético, privilegiariam as famílias mais pobres, ao contrário do que ocorre nas regras atuais, que preveem progressividade das alíquotas e regressividade nas despesas.


        Esses são apenas alguns exemplos, aos quais outros poderiam ser adicionados, que demonstram que a progressividade pode ser alcançada de outras formas que não apenas por alíquotas crescentes36. Se há uma finalidade a ser alcançada, deve-se escolher o meio mais adequado e que melhor promova essa finalidade. Isso não implica o abandono da progressividade. Ela deve ser obedecida por ser um meio eleito pelo constituinte, mas – aqui está o ponto crucial – esse meio pode ser concretizado de muitas formas, e não meramente pela instituição de alíquotas progressivas. Todas essas questões devem ser ponderadas pelo legislador, que é aquele que tem a função, os meios e as informações necessárias para realizar essa tarefa37.


        Não parece, portanto, que a melhor interpretação a ser dada à progressividade seja aquela que a vincula necessariamente a alíquotas progressivas, porque isso não garante que a progressividade seja eficaz, ou seja, que, de fato, aqueles que têm mais capacidade contributiva suportem um ônus tributário mais elevado do que aqueles que têm menos. A mera instituição de alíquotas progressivas que, na prática, se mostre neutra ou regressiva não cumpre o mandamento de progressividade previsto na Constituição Federal para o imposto de renda – o que ocorre é exatamente o inverso.


  4. LIBERDADE DO LEGISLADOR INFRACONSTITUCIONAL: A NECESSÁRIA CONSIDERAÇÃO DOS EFEITOS

    Se a adoção de alíquotas progressivas não é obrigatória, resta saber como a progressividade eleita pela Constituição Federal pode ser cumprida pelo legislador, especialmente diante das críticas feitas anteriormente, de que o ônus tributário pode ser repassado economicamente ou que os contribuintes podem adotar comportamentos para se esquivar da tributação. A resposta a essa questão está nas próprias críticas feitas às teorias que procuram fundamentar a progressividade: a necessidade de consideração dos efeitos da tributação. Aqui, retoma-se a constatação de que a legislação tributária apenas atenderá à


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    1. Esses três itens representam 82,5% das despesas das famílias com renda de até dois salários mínimos, de acordo com a última pesquisa sobre orçamentos familiares realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009: despesas, rendimentos e condições de vida. Rio de Janeiro: IBGE, 2010, p. 60. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv45130.pdf. Acesso em: 25 jun. de 2020).


    36 POLIZELLI, 2007, p. 362-363.


    37 FOLLONI, 2019, p. 489-493.


    exigência constitucional de progressividade se for progressiva de forma eficaz, não apenas de forma textual.


    De fato, como os indivíduos buscam alterar o seu comportamento diante da tributação, seja para se esquivar da sua incidência, seja para transferir a carga tributária, a verificação dos efeitos se revela fundamental para que o ônus tributário não acabe sendo arcado por alguém completamente diverso de quem foi eleito juridicamente como o sujeito passivo. Nas palavras de Slemrod, “porque os indivíduos e as empresas podem responder aos tributos mudando o seu comportamento, a verdadeira carga tributária pode ser modificada de maneiras não antecipadas e não pretendidas pelo legislador”38. A consideração dos efeitos das normas tributárias, portanto, é indispensável para a progressividade.


    Nesse terreno, é importante recordar, com Ávila, que a interpretação jurídica não se exaure na interpretação de textos nem na investigação de elementos linguísticos – ela também abrange a interpretação de comportamentos humanos em determinado contexto histórico, cultural e social e a interpretação de qualquer evento, situação ou processo, em especial atos, fatos, costumes, finalidades e efeitos39. Folloni defende a necessidade de adentrar o plano pragmático da linguagem – em que a preocupação são os efeitos que o seu uso causa na comunidade – e, para isso, esclarece que é preciso incorporar ao estudo da linguagem “a preocupação com os efeitos causados no receptor, conscientemente desejados pelo emissor ou não – ou até mesmo conscientemente indesejados”, isto é, deve- se perquirir, por exemplo, os efeitos da norma tributária sobre o cidadão contribuinte40.


    Particularmente no caso da progressividade, a consideração dos efeitos atribui maior eficácia à Constituição Federal do que a consideração apenas dos textos legais. Um texto que, sob a alegação ser progressivo, não promove a progressividade ou, mais grave, resulta em regressividade, afronta a Carta Magna. É uma norma, com o perdão da expressão, “para inglês ver”, porque apenas dá a impressão – equivocada – de que a prescrição constitucional está sendo cumprida. Também por essa razão é que interpretar a progressividade constitucional como progressividade de alíquotas é, por meio de um expediente redutor, diminuir a eficácia da Constituição Federal. Não se pode confundir um imposto formalmente progressivo, proporcional ou regressivo com um eficazmente progressivo, proporcional ou regressivo. O critério de verificação do cumprimento da norma constitucional de progressividade para o imposto de renda não pode ser a forma adotada, mas o efeito que essa forma tem sobre a alocação da carga tributária.


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    38 SLEMROD, 2008, p. 81.


    1. ÁVILA, Humberto. Função da ciência do Direito Tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo. Revista Direito Tributário Atual n. 29. São Paulo: IBDT; Dialética, 2013, p. 187-190.


    2. FOLLONI, André. Ciência do Direito Tributário no Brasil: crítica e perspectivas a partir de José Souto Maior Borges. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 184-186.


      Apesar de não dizer isso de forma expressa, esse parece ser o entendimento de Ricardo Mariz de Oliveira quando, após criticar a pouca ou nenhuma progressividade do imposto de renda das pessoas jurídicas e do imposto de renda das pessoas físicas, afirma existir dúvida acerca da constitucionalidade de certa regra de progressividade que, ainda que promulgada “por qualquer desses mecanismos aparentemente válidos, ou melhor, consentâneos com a literalidade da norma constitucional, se chegue a um resultado incoerente com o seu espírito”41.


      Essa análise – é importante que se sublinhe – e a promoção das alterações necessárias para que se cumpra a progressividade são papel primordial do legislador. Como lembra Folloni, “o Poder Legislativo deve dimensionar as necessidades de arrecadação, as possibilidades de tributação, e toda a conjuntura socioeconômica, ao tomar decisões relativas ao desenho do sistema tributário”42. Além de o legislador cumprir o seu papel constitucional, isso permite que a legislação possa, de tempos em tempos, ser ajustada para que a progressividade possa se readequar a novas realidades.


      Ressalte-se que dar relevância aos efeitos da progressividade não significa que a sua finalidade deixe de ser importante. O reconhecimento da natureza extrafiscal da progressividade permite que ela seja submetida ao postulado da proporcionalidade43, que tem por objetivo verificar se o meio escolhido para se alcançar o fim pretendido é adequado, necessário e proporcional em sentido estrito44. Nessa medida, verificar se o gasto público com os recursos arrecadados está sendo destinado adequadamente também é essencial, e, no caso brasileiro, o desatendimento dessa finalidade e a ofensa ao postulado da progressividade foram objeto de duras críticas45.


      A Constituição Federal exige, portanto, a presença de dois requisitos para o cumprimento da norma de progressividade do imposto de renda: a tributação com efeitos progressivos e a destinação dos gastos de forma adequada à sua justificação. Ambos os requisitos devem estar presentes para que a progressividade seja constitucional. Contudo, antes mesmo de investigar se a finalidade está sendo atingida, é preciso que a progressividade seja eficaz, isto é, que a tributação recaia com efeitos progressivos. De nada adianta o gasto estar de acordo com a destinação se os recursos forem arrecadados de maneira predominantemente regressiva, porque aqueles beneficiados pela destinação da progressividade acabarão arcando com os custos da tributação na maior medida, infirmando o atendimento da finalidade. Também de nada adianta que a tributação tenha


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    3. MARIZ DE OLIVEIRA, 2008, p. 443.


    42 FOLLONI, 2019, p. 490.


    43 LEÃO, 2013, p. 191.


    44 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 477.


    45 LEÃO, op. cit., p. 188-205; ZILVETI, 2004, p. 167-187.


    efeitos progressivos na arrecadação se a destinação não for aquela privilegiada pela Constituição Federal – novamente, não será atendida a progressividade constitucional.


    Não se pode, portanto, falar em progressividade do imposto de renda apenas do ponto de vista meramente textual. A vinculação da progressividade a uma finalidade extrafiscal e a possibilidade de os contribuintes ajustarem o seu comportamento frente à tributação exigem que se considerem os efeitos da legislação para averiguar se, de forma eficaz, a tributação é progressiva. A consideração dos efeitos é indispensável porque, como destaca Yariv Brauner, “apenas indivíduos podem suportar o ônus do tributo e indivíduos não suportam a sua carga nominal”46. Como decorrência, o legislador infraconstitucional deve ter maior margem de manobra para garantir o atendimento da finalidade constitucionalmente protegida. Entender de forma diversa ou pretender vincular a progressividade à capacidade contributiva ou à instituição de alíquotas graduais significa reduzir o conteúdo e o alcance da Constituição Federal.


  5. CONCLUSÕES

Respondendo ao questionamento feito no início deste trabalho, a progressividade do imposto de renda, prevista no art. 153, § 2º, I, da Constituição Federal, não está vinculada à capacidade contributiva de forma obrigatória, porque esses institutos são diversos e têm fundamentos e finalidades diversas, o que faz com que, em certas situações bastante comuns, privilegiar um significa desprestigiar o outro, como ocorre no exemplo das

diferenças de remuneração dos diferentes profissionais ao longo da vida. Portanto, a

afirmação de que a progressividade sempre privilegia a capacidade contributiva não é verdadeira, pois existem situações em que ocorre justamente o oposto. A progressividade também não se traduz em alíquotas graduais progressivas – essa é apenas uma das suas possíveis formas de concretização. A escolha da maneira mais adequada para a instituição da progressividade constitucional é tarefa do Poder Legislativo – sujeita ao controle do Poder Judiciário –, que deve escolher o meio que melhor promova a finalidade da progressividade e que garanta a sua eficácia.


A desvinculação da progressividade da capacidade contributiva e das alíquotas progressivas é positiva, porque dá maior liberdade ao legislador infraconstitucional para buscar um modelo de progressividade – ou para ajustar esse modelo com o passar do tempo e diante das mudanças na sociedade – que enfrente as críticas e os problemas apontados, decorrentes da possibilidade de os contribuintes ajustarem o seu comportamento diante da tributação e conseguirem transferi-la no todo ou em parte ou dela se esquivarem. Nesse cenário, a Constituição Federal reclama maior liberdade ao legislador infraconstitucional para a concretização da progressividade do imposto de renda, mas exige que este considere


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46 BRAUNER, Yariv. Revisitando a (in)sensatez do imposto de renda das pessoas jurídicas. Revista Direito Tributário Atual n. 21. São Paulo: IBDT; Dialética, 2007, p. 93.


os efeitos da legislação, porque a progressividade pretendida constitucionalmente deve ser eficaz, e não meramente formal. A tributação da renda deve, de forma efetiva, recair com maior intensidade sobre aqueles que possuem maior renda do que sobre os demais, o que não pode ser alcançado meramente com a instituição de alíquotas progressivas, mas com a investigação séria e profunda sobre os efeitos econômicos da tributação na sociedade e na economia, possibilitando ao legislador adaptar-se a esses efeitos e buscar concretizar a Constituição Federal na maior intensidade possível, prestigiando-a.


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