FUNDAMENTOS DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

TAX PLANNING CONSTITUTIONAL GROUNDS


Ricardo Mariz de Oliveira


Advogado. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. E-mail: rmo@marizadvogados.com.br



DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-25


RESUMO


Sobre o já demais debatido tema do planejamento tributário, este artigo pretende apresentar o estado da discussão no Brasil e breves considerações a seu respeito. Para tanto, após introdução e observações preliminares, serão expostos os fundamentos constitucionais para o direito ao planejamento tributário e as exigências ou requisitos para um correto planejamento tributário.

PALAVRAS-CHAVE: PLANEJAMENTO, ELISÃO, EVASÃO, SIMULAÇÃO, ABUSO


ABSTRACT


Regarding the ever present issue of tax planning, this article aims to present the state in which the debate finds itself in Brazil, as well as brief considerations with regards to the subject. For this purpose, following an introduction and preliminary considerations, the constitutional grounds for the right to practice tax planning will be presented, as well as the requirements for a correct tax planning.

KEYWORDS: PLANNING, TAX AVOIDANCE, TAX EVASION, SHAM, ABUSE


  1. – INTRODUÇÃO

    O tema do planejamento tributário é um dos que têm sido objeto de mais publicações e decisões ao longo dos últimos tempos, certamente desde os anos 70 do século XX.


    Há uma impressão geral, da qual compartilho, de que nada mais há a ser dito, pelo menos enquanto não for promulgada a lei requerida pela parte final do parágrafo único do art. 116


    do Código Tributário Nacional (CTN), ou que o Supremo Tribunal Federal conclua o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.446/DF.


    É certamente por isso que o assunto já não desperta em mim o mesmo interesse de outras épocas. A despeito disso, provocado duas vezes no meio acadêmico, resolvi adicionar algumas linhas a tudo quanto já foi escrito, sem a menor pretensão de trazer algo novo, mas apenas a de resumir o estado do debate em torno do planejamento tributário, naturalmente com a inserção dos meus pensamentos e opiniões a respeito.


    Não há intenção de fazer uma abordagem completa do assunto, o que demandaria espaço incompatível com o da Revista Direito Tributário Atual e com sua finalidade, e assim, também não é um trabalho exaustivo ou de pesquisa. Ao invés, observando a linha editorial dessa revista, são apenas apresentados os aspectos fundamentais em torno do tema, em forma descritiva e resumida.


    E, nesta introdução, cabe dizer que os fundamentos do planejamento tributário podem ser encarados sob duas perspectivas, que são:



    Antes de adentrar nessas duas perspectivas, cabem algumas observações preliminares.


  2. – OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

    Evidentemente, no mundo dos patrimônios e dos negócios, no qual se situam as manifestações de capacidade contributiva, porque somente nele podem ocorrer fatos geradores de obrigações tributárias, os acontecimentos (ou ausência de acontecimentos) não se dão por acaso, pois tudo é planejado.


    De fato, na realização de atividades ou de simples atos de natureza econômica, individualmente ou não, mas principalmente naquelas desenvolvidas no âmbito empresarial, não se toma qualquer decisão (de investir, de adentrar em um ramo de negócio ou dele sair, de adquirir ou alienar qualquer bem, de adotar determinado modelo de negócio etc.), nem se dá qualquer passo, sem prévio e cuidadoso estudo de todas as consequências das decisões que se deve tomar e das ações que se vai praticar, estudo este que soe ser realizado por profissionais de mais de uma área de conhecimento.


    Isto é planejar a própria realização de atividades patrimoniais e econômicas.


    Neste sentido, planeja-se a localização de um empreendimento, a logística necessária, o suprimento de insumos, a mão de obra qualificada ou não que é necessária, a “expertise” que precisará ser empregada, os recursos financeiros requeridos, as fontes de suprimento desses


    recursos e os respectivos custos etc. O mesmo ocorre antes de se decidir encerrar algum negócio ou alterar o modo de conduzi-lo.


    Por evidente, os custos tributários são componentes inafastáveis dessa enorme e complexa rede de estudos e decisões, pois impactam os preços que poderão (ou podem) ser cobrados no mercado ou a própria capacidade econômica para levar adiante o empreendimento em cogitação.


    Também é assim na realidade dos indivíduos. Embora suas decisões de comprar, vender, viajar, presentear etc. envolvam menor complexidade, cabe-lhes verificar se têm capacidade econômica ou financeira para o que pretendem fazer, e muitas vezes encontram situações mais complicadas, por exemplo, quando planejam sua sucessão.


    Enfim, planejar é ato normal e verdadeiramente necessário para qualquer pessoa proba, consciente e prudente1, o que não justifica a aversão que o planejamento tributário causa em determinados indivíduos ou setores da sociedade, sejam eles juristas ou não.


    Atento a isto, ninguém menos do que o ínclito Professor Hugo de Brito Machado já disse que não se pode sequer considerar moralmente reprovável a conduta elisiva, isto é, nem sob o ponto de vista moral o planejamento tributário é condenável2.


    Ao contrário, são certamente condenáveis, e muitas vezes nem se confundem com planejamento tributário, as práticas ilícitas motivadas pela ganância e realizadas ao arrepio da ordem jurídica.


    Algumas vezes ouve-se alguém dizer que determinado fato “não é planejamento tributário” e assim, somente por não ser, deve ser aprovado, o que revela que, no íntimo de quem assim se manifesta, há a postura predisposta no sentido de que o planejamento tributário seria sempre algo ilícito. Entretanto, ao invés disso, o planejamento tributário correto se desenvolve dentro da lei, e o resultado que acarreta é consequência normal da aplicação das normas legais aos atos realmente praticados pela pessoa3.


    Afinal, nenhuma pessoa ou agente econômico pretende (ou pode ser obrigado a) gastar mais se puder gastar menos, e para isto procura uma mercadoria menos cara, um aluguel


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    1. Muitas vezes planeja-se sem consciência de se estar planejando, como comprar uma passagem aérea em uma ou outra companhia transportadora, ou pagá-la através de um cartão de crédito ou outro.


    2. MACHADO, Hugo de Brito. Elisão e evasão fiscal. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Caderno de Pesquisas Tributárias v. 13. São Paulo: Resenha Tributária/Centro de Estudos de Extensão Universitária, 1988, p. 449. Esse autor fez a seguinte citação de Alfredo Augusto Becker: “É aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida econômica, a de se procurar determinado resultado econômico com a maior economia, isto é, com a menor despesa (e os tributos que incidirão sobre os atos e fatos necessários à obt enção daquele resultado econômico, são parcelas que integrarão a despesa). Ora, todo o indivíduo, desde que não viole regra jurídica, tem a indiscutível liberdade de ordenar seus negócios de modo menos oneroso, inclusive tributariamente. Aliás, seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto, lícitos) para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele meio que determinasse o pagamento de tributo mais elevado. (ALFREDO AUGUSTO BECKER, Teoria Geral do Direito Tributário, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 122).”


    3. Por “atos” entenda-se atos ou negócios jurídicos, ou mesmo omissão deles.


      mais barato, um frete mais em conta etc., e também um modo de operar e de agir que incida em menores encargos tributários. No âmbito das empresas, tal prática inclusive é obrigação dos seus gestores, conforme se depreende do art. 153 da Lei n. 6.404 e do art. 1.011 do Código Civil, pois a empresa se destina a produzir lucro, e lucro se obtém com maiores receitas ou com menores custos (o lucro não “cai do céu”, é resultado do labor).


      Tudo isso é normal, natural e jurídico, desde que praticado com observância do ordenamento jurídico.


  3. – FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO AO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

    Os autores apresentam diversos fundamentos para justificar o planejamento tributário, tais como, principalmente, o princípio da legalidade, o direito à propriedade privada, a liberdade garantida pela ordem econômica centrada na iniciativa privada, a qual engloba a possibilidade de organização e reorganização dos patrimônios e das atividades econômicas privadas.


    Já os críticos do planejamento tributário, sem que excluam frontalmente a possibilidade de ele existir, falam que a legalidade não é estrita, que a propriedade privada deve ser exercida com observância da sua função social, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade solidária, que nenhum direito é absoluto, que a isonomia veda tratamentos desiguais, e outros argumentos menos comuns.


    Tudo isto é verdade, mas o fundamento constitucional verdadeiro do direito ao planejamento tributário é que ninguém é obrigado a praticar o fato gerador de qualquer obrigação tributária.


    Neste sentido, fato gerador é a situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária (CTN, art. 114), e tal situação não é feita pela lei, que apenas prevê hipoteticamente um determinado evento futuro e incerto, que pode ou não ocorrer, elegendo-o como hipótese de incidência de algum tributo segundo a discriminação constitucional de competências tributárias.


    Logo, é possível evitar incorrer (adentrar) nessa situação necessária e suficiente e, portanto, é possível elidir a ocorrência do respectivo fato gerador.


    Isto é permitido porque ninguém é obrigado a fazer ou proibido de fazer qualquer coisa senão em virtude de lei (Constituição Federal, art. 5º, inciso II), significando que alguém somente seria obrigado a praticar o fato gerador se houvesse uma norma imperativa neste sentido.


    Entretanto, não há lei que obrigue a praticar qualquer fato gerador, isto é, não há norma que determine que se pague tributo adentrando forçosamente na situação necessária e suficiente, contra a vontade da pessoa que ainda não é contribuinte.


    Nem poderia haver norma coagindo à prática do fato gerador, pois isto equivaleria a instituir tributo com efeitos confiscatórios, vedado pela Constituição no art. 150, inciso IV, cabendo notar que, na liberdade para praticar ou não o fato previsto hipoteticamente na norma jurídica como gerador de obrigação tributária, é que reside a diferença fundamental entre tributo e confisco. Com razão, ambos são subtrações do patrimônio particular pelo Estado, mas tributo é constitucional e confisco inconstitucional, eis que o tributo nasce de atos voluntários da vida econômica e patrimonial, ao passo que o confisco é a retirada compulsória de patrimônio individual. Venho defendendo esta noção há muitas décadas, e ela foi também proclamada pelo Professor Luís Eduardo Schoueri4.


    Na verdade, se a prática do fato gerador fosse mandatória, não haveria razão para subordinar a incidência tributária à ocorrência do fato gerador previsto em lei, pois esta já deveria estabelecer o “quantum” que cada um deveria recolher ao erário público independentemente da sua capacidade contributiva, dos fatos econômicos e de outros limites ao poder de tributar. Positivamente, tratar-se-ia de regime constitucional nitidamente distinto do nosso.


    E não cabe confundir o fato de a obrigação tributária ser “ex lege”, e não “ex voluntate”, com a liberdade para praticar ou não fatos geradores, pois a obrigação somente nasce por força de lei e se na realidade houver a ocorrência do fato previsto hipoteticamente na norma, sendo esta ocorrência que se situa no âmbito da liberdade individual.


    A doutrina é incontroversa a respeito de que não há um dever jurídico de incorrer no fato gerador, entendendo perfeitamente que a obrigação tributária é “ex lege”, mas depende da voluntária prática dos atos econômicos que possam configurar fatos geradores tributários5.


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    1. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, Capítulo XI, Item 1.3, 2018, p. 531 e 532.


    2. Este é um ponto fundamental da obrigação tributária, indicado pelo Professor Paulo de Barros Carvalho ao prelecionar que o fato gerador é feito pela pessoa, que se torna contribuinte do tributo a cujo fato gerador seus atos deram nascimento (acrescente-se, ou a pessoa não faz o fato gerador e não se torna contribuinte). Em sua tese para Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, explicou ele que “não se dará incidência se não houver um ser humano fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo determina”, acrescentando que “as normas não incidem por força própria” (CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos jurídicos da incidência tributária, 1996. Veja-se também, Direito tributário – linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008,

      p. 169). No dizer de Brandão Machado, inspirado em Pontes de Miranda e tratando exatamente da incidência da norma tributária, “a grande verdade é que o homem, e somente o homem é quem decide se determinado fato produz, ou não, consequências jurídicas” (MACHADO, Brandão. Prefácio do livro Imunidade tributária, de José Wilson Ferreira Sobrinho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996, p. 50). Outro não era o pensamento do Professor Geraldo Ataliba, que identificava o contribuinte como “o promovente ou idealizador do fato que suscitou a incidência (o contribuinte ‘stricto sensu’ – art. 121, parágrafo único, I, do CTN, o sujeito passivo ‘natural’ ou ‘direto’)”, ou o “realizador’ do fato imponível” (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: RT, 1990, p. 89). Para a Professora Misabel Derzi, o contribuinte é “a pessoa que realiza o pressuposto, dele sendo partícipe” (DERZI, Misabel Abreu Machado, notas da autora na atualização da obra Direito tributário brasileiro, de Aliomar Baleeiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 722-725).


      É por esta razão que o propalado “dever fundamental de pagar tributos”6 existe, sim, mas somente quando tenha havido a ocorrência do fato gerador, tal como previsto na discriminação constitucional de competências tributárias e tal como está concretizado pela norma legal do poder competente, conforme a ilustrada tese de doutoramento apresentada pela Professora Martha Toribio Leão perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo7.


      Em suma, como há liberdade para praticar ou não o fato gerador, a consequência lógica, mesmo sem considerar outras garantias constitucionais, é ser lícito planejar e organizar as atividades econômicas com vistas a não incorrer em obrigação tributária, ou a incorrer em obrigação menos onerosa ou postergá-la, tanto quanto é lícito planejar todas as etapas e todos os aspectos da estrutura patrimonial e da cadeia produtiva de lucros. Aliás, estes são os objetivos de qualquer sociedade, mormente as empresariais, e, como já dito, o planejamento faz parte dos deveres funcionais dos seus gestores.


      Numa monografia, muito mais poderia ser acrescentado, e mesmo os pontos acima poderiam ser objeto de considerações mais profundas, mas o objetivo deste artigo limita- se a um breve resumo dos fundamentos.


      Não obstante, vale registrar que, perante princípios constitucionais aparentemente tão antagônicos, dentre aqueles invocados para justificar o planejamento tributário e os que são levantados pelos seus críticos, há que haver a ponderação deles, e nesta ponderação prevalecem a legalidade e a liberdade, porque, não fosse assim, não haveria necessidade da legalidade, dado que bastaria a solidariedade social ou a capacidade contributiva abstrata, para qualquer ente público cobrar o que lhe parecesse devido a ele, possivelmente até com conflitos de pretensões.


      A este propósito, cabe destacar que, fora do direito tributário, ninguém argumenta ou defende que a solidariedade social obriga legalmente uma pessoa a acolher em sua casa um indigente sem-teto, o que deveria ser possível exigir juridicamente se a solidariedade tivesse efeito de norma, por si só e em caráter geral, independentemente de regras concretas.


      Igualmente, vale mencionar que a isonomia pressupõe a existência de fato gerador, porque somente perante determinado fato previsto em lei e ocorrido realmente se pode dar tratamento igual a duas pessoas que estejam na mesma situação, tanto que, por exemplo, um muito rico e um menos rico devem receber tratamento igual se incorrerem em fatos geradores de um mesmo tributo em igualdade de aspectos, valores e condições de um



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    3. O qual tem sido referido várias vezes em votos no Supremo Tribunal Federal, sempre “obter dictum” e como argumento complementar.


    4. LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre a legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018.


      determinado negócio, ao mesmo tempo em que ambos são não contribuintes enquanto não praticarem esse fato tributário.


      Do mesmo modo, a capacidade contributiva não existe sem ocorrência de fato gerador e se esgota quando for extinta a obrigação decorrente de um fato gerador ocorrido, pois é ele que revela a capacidade para contribuir para o Estado, e não algum outro elemento qualquer. Antes dos fatos geradores, somente existem capacidades contributivas potenciais.


      Em síntese, o fato gerador de um tributo e a sua base de cálculo são os referenciais legais para se medir legalmente a capacidade contributiva das pessoas e estabelecer tratamentos iguais entre elas. E não há como falar nessas duas figuras sem ocorrência do fato que gera alguma obrigação tributária, ou além dos limites desta.


      Perante tais evidências, como o planejamento tributário é (deve ser) sempre precedente a todo e qualquer fato gerador, somente a partir deste pode-se indagar sobre isonomia e capacidade contributiva, vale dizer, somente perante os atos efetivamente praticados pode-se (deve-se) aplicar tais conceitos, e não sobre fatos que poderiam ter sido praticados, mas não o foram.


  4. – EXIGÊNCIAS (REQUISITOS) CONSTITUCIONAIS PARA UM CORRETO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

    O planejamento tributário tem validade constitucional pelos fundamentos expostos no tópico precedente, mas depende do atendimento a determinados requisitos para ser juridicamente válido e produzir os resultados almejados.


    Diga-se, de logo, que tais requisitos não estão expressos em alguma norma da Constituição, ou mesmo de lei complementar, mas decorrem do ordenamento jurídico integral, começando pelas diretrizes existentes na Lei Maior.


    Neste sentido, procura-se determinar se um determinado planejamento é ou não válido, dado que, ao se falar em planejamento correto, tem-se em mente aquele que acarrete uma economia tributária possível perante o ordenamento jurídico.


    Os autores empregam diversos termos para diferenciar o planejamento tido como correto do que seja incorreto, e um mesmo termo algumas vezes é empregado em dois sentidos por autores distintos. Todavia, a terminologia mais corrente é de, por um lado, “elisão” para o planejamento correto, pois o resultado deriva de ter sido elidida (evitada) a ocorrência do fato gerador, e, por outro lado, “evasão” para o planejamento inválido porque não elidiu o fato gerador e acarretou a fuga da obrigação tributária derivada do fato ocorrido8.


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    1. “Sonegação” é a evasão qualificada por derivar de ato definido como crime contra a ordem tributária.


      Os requisitos ou exigências para haver elisão, e não evasão, já que não constam de norma expressa e são hauridos do sistema jurídico, desafiam os intérpretes da lei e geram controvérsias e litígios quando da sua aplicação. Tal como quanto aos fundamentos para a constitucionalidade do planejamento tributário, cabe aqui apenas a apresentação dos lineamentos gerais em torno deles.


      De pronto apresentam-se três requisitos, os quais dificilmente encontram objeções.


      O primeiro deles requer que os atos derivados do planejamento tributário sejam anteriores à ocorrência do fato gerador a ser elidido, pela simples razão de que, após, já passa a existir a situação necessária e suficiente a se desencadear o consequente normativo de nascimento da obrigação tributária.


      Em outras palavras, após o fato gerador já há obrigação tributária “ex lege”, e a liberdade para ordenação voluntária dos atos já não mais existe, somente cabendo àquele que antes não era contribuinte, mas agora o é, providenciar a extinção dessa obrigação pelos meios legais.


      É a partir daí que se torna impossível elidir (evitar) a obrigação tributária, e que a evasão (fuga) do cumprimento da obrigação existente, perpetrada por quaisquer artimanhas, além de ser ilegal em si, violará a exigência constitucional da isonomia perante outras pessoas que se encontrem na mesma situação, e restará inobservada a capacidade contributiva dessa pessoa manifestada concretamente pela ocorrência do fato gerador.


      Este primeiro requisito é tão relevante que o legendário Rubens Gomes de Sousa somente se referia a ele para explicar a elisão fiscal.


      O segundo requisito é a observância das normas legais que disciplinam os atos praticados, o que se explica pelo fato de que o ambiente patrimonial e econômico, dentro do qual pode haver incidências tributárias, é regido pelo direito privado, dado que somente há venda, compra, doação, incorporação, sucessão, propriedade ou qualquer outro fato de mutação patrimonial (fatos relevantes para o direito tributário) se forem cumpridas as prescrições das normas desse ramo do direito que tratam de cada um desses eventos. A própria noção de patrimônio corresponde ao conjunto de relações jurídicas atributivas de direitos e obrigações com conteúdo econômico, cuja existência portanto, depende do direito privado (Código Civil, art. 91)9.


      Ou seja, o direito privado é essencial para o nascimento de obrigações tributárias (veja-se, por exemplo, o que determinam os arts. 116, inciso II, e 117 do CTN), mesmo quanto se trate


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    2. Fala-se aqui em direito privado, tal como também se exprimem os arts. 109 e 110 do CTN, porque ordinariamente (na maioria das vezes) são as normas do direito civil que disciplinam os referidos fatos. Contudo, em situações menos costumeiras a disciplina deriva de normas do direito público que acarretam efeitos econômicos correspondentes aos do direito privado, e nestes casos deve-se dar ao direito público a mesma consideração dada ao direito privado.


      de tributo cuja incidência não corresponda a um ato ou negócio jurídico (como é o imposto sobre doações), mas, sim, que incida sobre os seus efeitos econômicos, porque estes pressupõem a ocorrência de um fato regido pelo direito (como é o imposto de renda, que não existe sem atos e negócios jurídicos que acarretem aumento patrimonial)10.


      A essencialidade do direito privado para o nascimento de obrigações tributárias, ou o não nascimento, manifesta-se como requisito para o planejamento tributário poder ser elisivo, pois a eliminação de um tributo depende de ter sido praticado ou omitido validamente um ato, de modo que não haja a formação da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária respectiva.


      Em poucas palavras, podemos dizer que o direito tributário depende do direito privado, porque este rege o ambiente econômico no qual podem existir ou não existir fatos geradores tributários, e uns se distinguem dos outros.


      É neste sentido que o direito privado deve ser observado em qualquer planejamento tributário, porque este deve estar atento aos efeitos que os atos e negócios jurídicos vão produzir, e são estes efeitos que se situam no campo da tributação. Isto é assim para evitar um fato gerador, ou para não entrar em um e adentrar em outro, ou ainda para não adentrar em qualquer um11.


      O terceiro requisito é a ausência de simulação.


      A rigor, a ausência de simulação já está inserida no segundo requisito porque o ato simulado é nulo e, portanto, não produz os efeitos pretendidos pela pessoa autora da simulação, inclusive o de evitar a incidência de algum tributo.


      Ocorre que a simulação é destacada do segundo requisito por duas razões. A primeira é por se tratar do vício jurídico mais comum nos planejamentos fiscais evasivos, isto é, irregulares e ineficazes.


      E a segunda razão, mais substancial do que a primeira, consiste em que, caso se trate de simulação relativa, a invalidade do ato simulador acarreta a validade do ato dissimulado, se este for válido na substância e na forma (art. 167 do Código Civil).


      Sendo assim, a consequência da simulação não é apenas a de inviabilizar o intento de economizar tributo através do ato simulado, pois pode haver a incidência tributária sobre



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    3. Neste artigo, não há campo para adentar em fatos da natureza, o que não prejudica a linha de exposição em virtude de serem excepcionais e de um modo ou de outro são absorvidos pelas regulações legais.


    4. Houve um cidadão abastado que viveu em São Paulo e não queria pagar imposto de renda, em virtude do que aplicava toda a sua fortuna em bens imóveis, os quais mantinha não alugados na expectativa da sua valorização, para posterior venda. Assim, ele legitimamente não pagava imposto de renda sobre aluguéis (que não recebia) e sobre seus ganhos de capital (que obtinha), pois na época havia isenção para estes, e seus únicos ônus tributários eram o imposto sobre a propriedade imobiliária e sua transmissão, que certamente seriam mais onerosos do que o imposto de renda sobre aluguéis.


      o ato dissimulado, que o direito civil prestigia, recupera e protege desde o código de 2002 para que haja higidez do ordenamento jurídico12.


      Aliás, outro não é o mandamento do parágrafo único do art. 116 do CTN, ao determinar que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. Ao assim se agir, abandona-se o ato nulo e recupera-se o ato que foi dissimulado por ele, aplicando-se a este a normatização tributária que lhe é correta.


      Em poucas palavras, repetindo o que já foi dito antes, o planejamento tributário deve ser feito dentro da realidade e da verdade dos fatos, e não se basear em artificialismos de qualquer ordem, como falsidades documentais, distorções contábeis e outros.


      Ainda sobre simulação, cabe dizer que o CTN se refere a ela no art. 149, inciso VII, ao tratar do lançamento e da revisão de ofício, e no citado parágrafo único do art. 116. Também a menciona no § 4º do art. 150, relativo ao prazo para a homologação de lançamento por homologação, e nos arts. 154, 155 e 180, para excluir os benefícios da moratória e da anistia quando haja simulação. Entretanto, em nenhum lugar o código define simulação.


      A falta de definição específica no CTN remete o trato da simulação para as normas do direito civil, como geralmente é aceito pela doutrina e praticado pela jurisprudência.


      Contudo, há uma razão mais fulcral para assim ser.


      É que a simulação não é do fato gerador, e, sim, dos atos e fatos da vida econômica sobre os quais repousam as obrigações tributárias. O fato gerador tributário é consequência de atos e fatos efetivamente ocorridos, e são estes que são simulados para que o fato gerador seja afetado.


      Realmente, não se simula fato gerador, mas a ocorrência que lhe dá origem, e esta, como vimos observando, é a situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, ou seja, situação dependente do direito privado porque regida por este.


      Dizendo por outro modo, quando há simulação, o agente econômico exibe ostensivamente um fato que não é verdadeiro, e este fato não é sujeito à tributação ou é sujeito a uma tributação menos onerosa do que a aplicável a outro fato, que é verdadeiro e que está dissimulado pelo fato ostensivo. Destarte, a simulação está nos atos, e o verdadeiro é que se sujeita à incidência a que o falso não se subsume, ou à incidência mais onerosa do que a


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    5. Por isto, a chamada “simulação inocente” no código de 2002 passou a ser tão nula quanto a nocente.


      do fato artificial13. Outras vezes simula-se fato inexistente para obter alguma vantagem no campo da tributação.


      Este cenário é que explica dever-se aplicar a noção e as regras jurídicas sobre simulação prescritas pelo direito que disciplina a situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, que são as do direito privado.


      Evidentemente, o vício jurídico que pode caracterizar o planejamento tributário evasivo não se restringe à simulação. Assim, pode ser qualquer outro capaz de impedir a eficácia jurídica do ato praticado com o intuito de economia fiscal.


      Dentro da presente apresentação, sem abordar outras possibilidades, é necessário tratar do abuso no exercício de direito. Esta necessidade se impõe em virtude dos rumos que a fiscalização federal tomou depois que se viu derrotada em muitos casos nos quais sustentava ter havido simulação, mas em que as câmaras administrativas de julgamento repeliram a acusação porque efetivamente não havia esse vício.


      Quando isto ocorreu, a fiscalização passou a adotar a teoria de que haveria abuso no planejamento tributário se não houvesse um propósito (motivação) negocial ou extratributário para os atos praticados. Isto virou jurisprudência administrativa, razão pela qual o assunto merece as observações que vêm a seguir.


      A ausência de uma norma de lei complementar, e de norma que tenha validade dentro do Sistema Tributário Nacional insculpido na Constituição de 1988 e complementado pelo CTN, é responsável pelas controvérsias em torno dos limites para o planejamento tributário ser elisivo, e não evasivo. Com efeito, porque não existe disposição legal definindo as exigências para a planificação tributária, não existe qualquer regra no direito positivo brasileiro que fixe seus limites.


      Sendo assim, os limites têm que ser hauridos do ordenamento jurídico total, aplicando-se o direito constitucional e infraconstitucional, nos aspectos atinentes a cada uma dessas esferas.


      O parágrafo único do art. 116 do CTN, retrorreferido e transcrito, veio ao direito positivo nacional com a intenção de ser uma norma limitadora do direito ao planejamento tributário, mediante a colocação de uma fronteira para a sua validade, além da qual se estabeleceria a sua ilegalidade e os atos ou negócios jurídicos poderiam ser desconsiderados. Pretendia-se que fosse uma norma geral antiabuso ou antielisão, tipo de norma que permite desconsiderar, para fins tributários, efeitos de atos e negócios jurídicos mesmo quando (ainda que) válidos perante o direito privado, semelhante a algumas que


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    6. A menor onerosidade também pode ser financeira e não econômica, mediante a postergação do momento em que o tributo deva ser recolhido.


      temos para fins especiais, como as de distribuição disfarçada de lucros e de preços de transferência14.


      Todavia, o parágrafo único do art. 116 da lei complementar ainda carece de lei que discipline a sua aplicação, como ela própria exige na sua parte final15.


      Ademais, por insuficiência de técnica legislativa, esse parágrafo acabou não preenchendo o desiderato do autor do seu projeto, e acabou se reduzindo às situações de dissimulação, ou seja, de simulação relativa, sendo que a norma tributária adequou-se harmonicamente ao tratamento que o direito civil dá à dissimulação, como já foi comentado acima16. Ou seja, o parágrafo único do art. 116 sequer tratou de situações regulares face ao direito privado, como ocorre com as disposições caracteristicamente antielisivas17.


      Voltando à teoria de abuso na prática de atos sem propósito negocial, convém destacar um aspecto fundamental e decisivo. Além de que inexiste norma legal que autorize em caráter geral a desconsideração, desqualificação ou requalificação dos atos jurídicos regularmente praticados, nem mesmo pelo argumento (que não é fundamento legal) de não ter havido motivação negocial, ao contrário, já existiu e vigorou uma norma permitindo a desconsideração de atos e negócios jurídicos por falta de propósito negocial, mas ela perdeu sua eficácia, conforme a própria Constituição Federal, e, por isto, não pode mais ser aplicada.


      Realmente, todo o substrato da teoria que defende a necessidade de motivação negocial passou, em determinada época, a constar de norma legal, a do art. 14, § 1º, da Medida Provisória n. 66, de 2002, que admitia a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos que


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    7. A doutrina alude à “norma geral antielisiva”, ou “antielisão”, ou “antielusão”, ou “antiabuso”, para se referir a normas que tornem sem efeitos tributários práticas que, conquanto válidas perante o direito civil, não sejam do interesse da arrecadação, ou visem protegê-la. Sobre este tema, veja-se OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Norma geral antielusão. Revista Direito Tributário Atual v. 25. São Paulo, IBDT- Dialética, 2011, p. 132.


    8. Em virtude da falta de lei, o Superior Tribunal de Justiça pronunciou-se no Recurso Especial n. 1.107.518/SC (Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 06.08.2009), em que a corte se opôs à própria possibilidade de requalificação dos atos e negócios jurídicos, mediante desconsideração dos mesmos pelas autoridades fiscais, dizendo que “não há o que a doutrina chamou de poder geral da Administração tributária para desconstituir atos e negócios jurídicos (a chamada norma geral antielisão) já que o art. 116, parágrafo único, do CTN é norma de eficácia limitada, carente de lei para produzir efeitos”. No seu voto, a Ministra Relatora fez constar, que “também se levou em conta que tais reorganizações societárias servem como planejamento tributário e que o Fisco tem a faculdade de preencher os vazios legais para otimizar a arrecadação e fiscalização tributárias”, preenchimento que, contudo, evidentemente depende de alteração legislativa. Em síntese, nesse julgado foi reconhecida a possibilidade de haver as chamadas “normas antielisivas”, mas também a necessidade delas para que o fisco possa agir. Há outros julgados reafirmando a necessidade da lei prescrita ao final do parágrafo único do art. 116.


    9. No espaço deste artigo, e ante sua finalidade, não cabe discutir os argumentos que defendem que a “dissimulação” a que alude o parágrafo único do art. 116 seria um acontecimento mais abrangente do que a simulação relativa. Sobre isto: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. A elisão fiscal ante a Lei Complementar n. 104. In: ROCHA, Valdir Oliveira (coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 245; Reinterpretando a norma antievasão do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário n. 76. São Paulo: Dialética, p. 81.


    10. Argumenta-se que, se essa norma somente trata de simulação, ela seria desnecessária, eis que a simulação já está referida em outras disposições do CTN (que estão mencionados atrás). Todavia, o argumento é falho porque as outras regras que aludem à simulação, o fazem para efeitos diversos do que consta do parágrafo único do art. 116, não permitem ou que este autoriza, e também abrangem outras situações em que não há simulação, além de que esse parágrafo requer norma de procedimento especial e complementa o que dispõem os incisos I e II do “caput” do artigo. De qualquer modo, não há como deixar de identificar a situação descrita no parágrafo com a noção de simulação.


      visassem reduzir o valor do tributo, evitar ou postergar seu pagamento ou ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, entre outras hipóteses, quando houvesse falta de propósito negocial, que era definida como sendo a opção pela “forma” mais complexa ou mais onerosa para os envolvidos, entre duas ou mais “formas” para a prática de determinado ato.


      Todavia, além das suas imperfeição e imprecisão, essa norma foi rejeitada pelo Congresso Nacional, que se negou a confirmá-la em lei, quando a medida provisória foi convertida na Lei n. 10.637, da qual foram extraídos o art. 14 e os outros que tratavam do assunto.


      O efeito da não conversão foi a perda de eficácia da regra legal desde a sua edição (art. 62, § 3º, da Constituição Federal), do que decorre o seguinte: como a Medida Provisória n. 66 foi publicada em 30 de agosto de 2002 e a Lei n. 10.637 o foi em 31 de dezembro de 2002, a referida norma foi eficaz tão somente entre 30 de agosto e 30 de dezembro daquele ano, e a partir de 31 de dezembro de 2002 deixou de ter eficácia, não podendo, por conseguinte, ser aplicada para o julgamento de qualquer processo tributário, ainda que a título de argumentação.


      Consequentemente, a teoria do propósito negocial voltou a ser mera teoria, mas não norma legal. Destarte, como a fiscalização está vinculada aos fatos e à lei pelo princípio da legalidade, quando efetua lançamentos (CTN, art. 142, parágrafo único), não pode exercer sua atividade com base em norma legal que existiu, mas foi retirada do ordenamento jurídico nacional por determinação constitucional. Nem os órgãos julgadores podem empregar nos seus julgamentos um fundamento que foi extirpado desse ordenamento, mesmo que o façam ao pretexto de mera interpretação, sendo surpreendente, portanto, que a jurisprudência administrativa federal, cuja função é a de revisar a legalidade dos lançamentos tributários, ainda persista aplicando teoria que foi explicitamente espancada do direito positivo.


      Não há qualquer dúvida de que o preenchimento do espaço vazio referido pela Ministra Eliana Calmon (expressão que já era adotada por Geraldo Ataliba), deixado pela inexistência da lei exigida pelo parágrafo único do art. 116 do CTN, somente pode ser preenchido por alteração legislativa, a despeito da corrente que defende a ideia da necessidade de motivo negocial, corrente esta que se autointitula “moderna” em contraposição à que ela denomina “tradicional”. A este propósito, o Professor Humberto Ávila, inclusive aludindo a essas denominações, proferiu magistral palestra (depois transcrita e publicada18) em novembro de 2006, perante o XX Congresso Brasileiro de Direito Tributário, promovido pelo Instituto Geraldo Ataliba – Instituto Internacional de Direito Público e Empresarial – IDEPE, colocando as coisas no seu devido lugar.


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    11. ÁVILA, Humberto. Planejamento tributário. Revista de Direito Tributário n. 98. São Paulo, p. 74.


      A teoria da falta de propósito negocial foi trazida para o Brasil por imitação do direito comparado, e aqui foi adotada pelo fisco brasileiro por conveniência ante a ausência de norma legal a este respeito em nosso direito positivo. Como asseverou o Professor Luís Eduardo Schoueri, “não se tendo obtido a aprovação legislativa, mediante a conversão da Medida Provisória nº 66, o propósito negocial ingressou por via oblíqua no ordenamento, passando a ser critério de validade nos temas que envolvem planejamento tributário”19.


      Este é o pensamento da esmagadora maioria da doutrina brasileira, convindo fazer referência a uma afirmação pertinente, do Professor Heleno Taveira Tôrres, que, tratando do processo de interpretação dos negócios jurídicos segundo o direito privado, destacou que “será esta interpretação do texto e do fato negocial que permitirá ao intérprete da norma tributária conhecer, juridicamente, a substância do negócio jurídico e sua compatibilidade com a forma adotada, sem qualquer recurso à ‘interpretação econômica’ e quejandos, laborando exclusivamente com categorias jurídicas, visando a identificar a efetividade da demonstração de capacidade contributiva”20.


      Assim, não é possível continuar aplicando a teoria com base em alguns princípios constitucionais que os defensores dessa teoria invocam (tais como capacidade contributiva, solidariedade, isonomia), porque são princípios que já estavam em vigor quando aquela norma legal foi expedida e também quando foi extirpada do direito positivo, além de que, se eles bastassem por si, não teria sido necessário o art. 14 da Medida Provisória

      n. 66, e até o parágrafo único do art. 116 do CTN não teria qualquer razão para existir. Aliás, se fossem suficientes, o princípio da legalidade, que é limite ao poder de tributar, não teria qualquer serventia ou um mínimo de sentido no ordenamento constitucional! Também não seriam necessárias quaisquer normas antiabuso que estão expressas no direito brasileiro, inclusive no direito do consumidor.


      Ademais, são princípios genéricos e abstratos que se chocam com outros princípios constitucionais mais específicos e concretos no direito tributário, requerendo concretização por regras diretivas das relações jurídicas no território nacional.


      Anteriormente, já foi mencionada a necessária ponderação dos princípios constitucionais, mas é de meridiana clareza e sentido lógico que não se pode invocar princípios constitucionais genéricos para cobrar tributos sem lei ou contrariamente ao que a lei determina, pois são princípios que não têm concretude para que se afirme que perante o fisco não valem atos sem motivação negocial. Na verdade, embora tais princípios tenham que ser observados, principalmente pelo legislador tributário, nem de longe eles permitem que se diga que sem motivação negocial os atos e negócios jurídicos válidos perante nosso


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    12. SCHOUERI, Luís Eduardo. O Refis e a desjudicialização do planejamento tributário. Revista Dialética de Direito Tributário n. 232. São Paulo: Dialética, 2015, p. 110-111.


    13. TÔRRES, Heleno Taveira. Direito tributário e direito privado. São Paulo: RT, 2003, p. 141.


      direito não valem face ao fisco, dado que isto seria extrapolar o sentido desses princípios e a própria literalidade como estão expressos na Constituição.


      Por outro lado, exigir tributo somente com base num critério geral e abstrato de capacidade contributiva, ou de isonomia ou de solidariedade social, ou qualquer outro, contrariamente ao princípio concreto e específico da legalidade e às disposições legais que regem os tributos, é dar aos órgãos lançadores o poder de decretar quando há fato gerador ao arrepio das normas em vigor, poder este, contudo, que somente cabe ao legislador, o qual, ao editar as regras legais da tributação, deve, sim, observar aqueles princípios gerais na estruturação e concretização das normas tributárias.


      De resto, tais princípios, contrariamente ao que se dá com as normas que estejam em conformidade com a rígida discriminação constitucional de competências tributárias e às demais regras do Sistema Tributário Nacional, por si sós não dizem qual poder público pode cobrar qual tributo, nem o respectivo valor. Se eles fossem suficientes de per si, União, Estados e Municípios poderiam invocar, cada um para si, a competência para tributar este ou aquele fato alegando os referidos princípios, numa total balbúrdia jurídica, cobrando o que quisessem, quando e quanto quisessem, inclusive disputando entre si a competência para tributar.


      Destarte, a falta de motivação negocial somente poderia ser elemento integrante da disciplina de qualquer obrigação tributária ou da constituição do respectivo crédito se houvesse norma legal neste sentido, isto em atendimento ao basilar princípio do direito tributário brasileiro e das nações democráticas, que é o princípio da legalidade, previsto genericamente nos arts. 5º, inciso II, e 37 da Constituição Federal, e especificamente no art. 150, inciso I, o qual, como limitação ao poder de tributar, estabelece que somente a lei pode criar ou aumentar tributo, do que redunda a garantia de que ninguém pode ser obrigado a pagar tributo senão em virtude de lei. Mesmo assim, se houvesse uma norma exigindo motivo negocial, precisaria conformar-se às superiores e inarredáveis diretrizes da Constituição e do CTN.


      Rejeite-se também o argumento de que a legalidade não é estrita. Com razão, legalidade é legalidade, sem necessitar de adjetivos, e é absolutamente certo que não se pode interpretar a lei tributária (ou qualquer lei) com apego à literalidade e a formalismos, mas também é igualmente certo que se deve interpretar a lei posta no ordenamento sem alterá-la ou adicionando exigência nela inexistente21. Isto se impõe independentemente da postura ideológica e da corrente de pensamento do intérprete, quer dizer, ele sendo positivista, neopositivista, pós-positivista, positivista moderado, modernista, tradicionalista etc. Neste sentido, e também na linha do parágrafo precedente, Fabiana Carsoni Fernandes e Ramon


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    14. A este respeito: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Formalismo e substantivismo tributário – dever moral e obrigação jurídica – e a segurança jurídica? In: Tributação brasileira em evolução – estudos em homenagem ao Professor Alcides Jorge Costa. São Paulo: IASP, 2015, p. 489.


      Tomazela Santos produziram profundo estudo, que se reporta às várias correntes doutrinárias22.


      De mais a mais, no âmbito tributário a lei complementar da Constituição Federal (complementar por determinação do seu art. 146) explicita o princípio da legalidade, reservando somente à lei, em sentido formal e material, a incumbência de disciplinar, entre outros aspectos da obrigação tributária, o seu fato gerador e a sua base de cálculo (CTN, art. 97, incisos I a IV).


      Portanto, a interposição de qualquer circunstância para caracterizar o fato gerador e a base de cálculo, tal como a exigência de motivação negocial, depende de lei, e não do intérprete.


      Estas constatações também demonstram a improcedência da afirmação, muito corriqueira na jurisprudência administrativa, no sentido de que certos atos e negócios, a despeito de válidos perante o direito privado, são inoponíveis ao fisco se não tiverem um motivo negocial, pois, além de que essa imaginária inoponibilidade dependeria de norma que a estatuísse, o fisco não tem normas para ele, relativas aos atos e negócios jurídicos, que sejam distintas das que são aplicáveis às partes destes, valendo novamente verificar que é por decorrência desses atos e negócios jurídicos ou dos seus efeitos econômicos que naturalmente ocorrem e se diferenciam entre si os fatos geradores tributários, ou não ocorrem.


      É curioso notar que tal afirmação somente é feita quando interessa para justificar lançamentos tributários onde invalidades não sejam encontradas. Realmente, muitos autos de infração são emitidos e mantidos com base em ilegalidades existentes perante o direito privado. Isto revela o paradoxo da conclusão de que o direito privado não poderia ser oposto ao fisco somente quando observado pelo contribuinte, mas deveria favorecer o fisco quando o contribuinte praticasse alguma infração ao direito privado, caso em que este seria oposto contra o contribuinte.


      Esta visão distorcida do ordenamento, que atropela o art. 109 do CTN (e também seu art. 110), pretende que haja duas leis distintas, e não uma só, para valerem em relação às duas partes de uma mesma obrigação jurídica tributária, quando, ao contrário, o fisco não tem uma lei só para si, que não valha também para o contribuinte na mesma relação jurídica tributária. E como esta depende dos fatos e atos econômicos regidos pelo direito privado, este não tem como ser ignorado ou desconsiderado.


      Em síntese, o raciocínio desenvolvido daquelas afirmações é incorreto, pois sua conclusão parte de uma premissa falsa, dado que não se trata de opor ou deixar de opor algo ao fisco,



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    15. FERNANDES, Fabiana Carsoni; e SANTOS, Ramon Tomazela. Planejamento tributário: a relação entre legalidade, solidariedade, moralidade e capacidade contributiva. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes (coord.). Direitos fundamentais dos contribuintes: homenagem ao jurista Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Almedina, 2021, no prelo.


      mas de constatar a ocorrência ou não de eventos fáticos e seus efeitos patrimoniais e negociais, tudo como estiver previsto pelo direito privado, e que sejam integrantes da hipótese de incidência prevista em alguma norma tributária. Quando esta é a situação23, primeiramente é necessário constatar a sua regularidade perante as normas do direito privado, bem como os efeitos que acarretam no patrimônio e no mundo econômico segundo as mesmas normas, para a seguir24 se aplicar as normas tributárias a eles correspondentes.


      Com o risco de excessiva exposição, é necessário dizer que há uma lei única, inclusive no direito privado, que deve ser aplicada por igual e sempre, quaisquer que sejam as consequências derivadas dos seus efeitos tributários, seja para nascer uma obrigação tributária, seja para nascer outra ou nenhuma.


      É que o direito privado rege as relações jurídicas interpessoais, estabelecendo direitos e obrigações no âmbito patrimonial e negocial pessoal (além de outros não econômicos), enquanto o direito tributário trata das relações jurídicas entre as pessoas, naturais ou jurídicas e os poderes públicos constitucionalmente autorizados a cobrar determinados tributos.


      Ambos os ramos do direito têm seus campos de aplicação muito bem delineados por seus objetivos, e isto está refletido com absoluta correção no art. 109 do CTN, completado pela norma do seu art. 110, ao explicitar as competências fiscais. E não há desarmonia entre os dois ramos, pois disciplinam relações jurídicas distintas, mesmo quando estejam justapostas.


      Sendo assim, os atos e negócios jurídicos praticados validamente perante o direito privado são o que são, e produzem efeitos previstos por esse direito, perante as partes e também face ao direito tributário, e não podem ser ignorados ou desconsiderados pelo fisco, até porque, se não fosse assim, os arts. 109 e 110 não teriam qualquer função legislativa25.


      A partir desta colocação, podemos passar a outra. Segundo o direito privado, responsável pela disciplina das relações econômicas, o motivo somente invalida o ato ou negócio jurídico se for ilícito, for determinante da sua prática e for comum a ambas as partes (hipótese de nulidade segundo o inciso III do art. 166 do Código Civil). Além disso, conforme


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    16. Veja-se a nota (10) retro.


    17. A sequência é lógica, pois a duas categorias de lei incidem simultaneamente.


    18. É importante anotar que o anteprojeto e o projeto do CTN continham disposições que, tal como a teoria do propósito negocial, visavam reduzir os limites da planificação fiscal e alargar as possibilidades de cobrança de tributos, mas não subsistiram no texto da lei promulgada, o que se deveu à necessidade de atender ao princípio da legalidade. Assim, a teoria da intepretação econômica, ou da interpretação pelos efeitos econômicos dos fatos, que inspirou o anteprojeto do CTN, de autoria de Rubens Gomes de Sousa, influenciado pelo direito alemão, estava espelhada nos arts. 129 e 134. Eles não permaneceram, surgindo o art. 74 no projeto encaminhado ao Congresso Nacional, porque, segundo o relatório da Comissão Especial do CTN, uma norma como aquelas chocar-se-ia com o princípio da legalidade, princípio este que foi francamente adotado pela lei que é o CTN. Mas mesmo o art. 74 do projeto foi abandonado na redação final do CTN, que se completou com a vedação da analogia como meio de preenchimento de lacunas relativas a fatos geradores não previstos em lei, ou suas bases de cálculo.


      a mesma codificação, se o motivo for falso, vicia a declaração de vontade quando estiver expresso como razão determinante para o ato ou negócio (hipótese de anulabilidade prevista no art. 140). Cabe dizer que o motivo é ilícito objetivamente, por ser contrário à lei, ao passo que o motivo é falso subjetivamente, pois é contrário à razão pela qual uma parte foi induzida ao negócio, e daí o primeiro conduzir à nulidade e o segundo à anulabilidade.


      Ao lado disso, o código de 2002 refere-se à causa (ou ao verbo causar) como fato determinante de algum efeito, e na doutrina civilística a causa é considerada como a função do direito ou do contrato porque é determinante dos seus efeitos26, não se confundindo com os motivos pelos quais as pessoas exerçam seus direitos, inclusive o de contratar27. Neste sentido, o código alude à causa como “função” ou “fim” do ato ou negócio jurídico, o que se lê nos arts. 187 e 421, o primeiro a configurar como ato ilícito aquele em que o titular de um direito, ao exercê-lo, exceda manifestamente os limites impostos pelo fim econômico ou social do respectivo ato ou negócio, e o segundo ao descrever a liberdade de contratar, para exigir que seja exercida em razão e nos limites da função social do contrato28.


      Portanto, as situações descritas nos arts. 140 e 166 são aquelas em que, segundo a lei brasileira, o motivo é relevante (consta da descrição normativa), e nelas pode haver abuso no exercício de direitos no plano das relações jurídicas pessoais, a cujas regras somam-se, harmonicamente com elas, a que declara serem lícitos os atos regularmente praticados, vale dizer, sem infração à lei (art. 188, inciso I), e a que prescreve serem lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes, além daquelas que privem de todo efeito o negócio jurídico ou o sujeitem ao puro arbítrio de uma das partes (art. 122).


      De todas essas normas legais (não teorias) decorre que os direitos em geral e o direito de contratar em particular não adquirem validade quando exercidos com manifesto excesso em relação aos respectivos fins, isto é, às suas funções sociais ou econômicas (suas causas) estabelecidas pelas normas que lhes sejam aplicáveis, e que são as funções práticas para as quais eles existem. Ao invés, quando exercidos regularmente, isto é, quando praticados no


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    19. A função do ato ou negócio jurídico corresponde aos efeitos que a lei lhe atribui, ou seja, é a sua substância jurídica que se identifica por suas prestação e contraprestação. Assim, a função a que alude o art. 421 é o efeito prático que o contrato acarreta, efeito este que é descrito pelas normas legais que o regem, e que se confunde com os direitos e obrigações das partes, isto é, com suas prestações e contraprestações.


    20. Sobre as noções de motivo, vontade e intenção: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Reflexões sobre a vontade, a intenção e o motivo ( e objeto e causa) no mundo jurídico. In: PARISI, Fernanda Drummond; TÔRRES, Heleno Taveira; e MELO, José Eduardo Soares de (coord.). Estudos de direito tributário – homenagem ao Professor Roque Antonio Carrazza. São Paulo: Malheiros, 2014. v. 3, p. 139.


    21. Não cabe confundir a função social do direito ou do contrato com a função social da propriedade, traçada no art. 1.228 do Código Civil, nem com benemerência ou solidariedade social. O Superior Tribunal de Justiça esclareceu o que seja a função social do contrat o ao decidir o Recurso Especial n. 803.481/GO (3ª Turma, Ministra Nancy Andrighi, j. 28.06.2005) nos seguintes termos precisos: “A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficente. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes em promover a circulação de riquezas.”


      exercício regular de um direito reconhecido, não se constituem em atos ilícitos (art. 188, inciso I).


      Destarte, quando os motivos forem lícitos, como é o de planejamento empresarial, inclusive tributário, os atos e negócios jurídicos praticados para atendê-los, se forem válidos perante o direito tributário, produzem os respectivos efeitos de direito tributário.


      Isto é assim mesmo quando os agentes econômicos atuem impulsionados pela intenção de economizar tributos, que é natural e não contrária à ordem jurídica. A este respeito, com sua perspicácia característica, o Professor Luciano Amaro acentuou o seguinte29: “Ao discorrer sobre o tema do ‘abuso de forma, abuso de direito e simulação’ em nosso livro ‘Direto Tributário Brasileiro’, ressaltamos inexistir ilicitude na escolha de um caminho fiscalmente menos oneroso, ‘ainda que a menor onerosidade seja a única razão da escolha desse caminho’. Isso porque, se assim não fosse, por um imperativo lógico se teria de concluir pelo absurdo de que o contribuinte ‘seria sempre obrigado a escolher o caminho de maior onerosidade fiscal’, quando dois fossem os caminhos possíveis e ele não tivesse uma razão de ordem civil ou comercial para seguir o caminho de menor tributação”.


      Portanto, qualquer prática lícita pode ser presidida exclusivamente pelo propósito de economizar tributo, já que não há norma legal que se oponha a tal ação e ao respectivo motivo, nem expressa nem implicitamente. E a consideração do propósito extratributário somente pode ser aceita como elemento indiciário da ocorrência ou não de simulação, obviamente com a liberdade da prova em contrário e mediante sua associação a outras circunstâncias do caso.


      Além disso, não há como admitir que a inexistência de propósito negocial seja um preceito geral que suplante dois fatores, um imperativo, outro relevante, quais sejam: (1) que a busca da economia tributária, através de meros atos internos ou de atos ou negócios jurídicos válidos, é ínsita ao nosso sistema legal e tem fundamento constitucional, significando assim não se tratar de intento derivado de motivo ilícito, o que, por si só, poderia ser razão de nulidade das ações; e (2) que o propósito negocial somente pode ser considerado (se se quiser considerá-lo) na perspectiva da efetiva existência de alguma alteração no patrimônio da pessoa ou no seu modo de negociar ou operar, independentemente dos motivos para tal prática, ou seja, não no sentido da inexistência de “business purpose”, mas de inexistência de “business”.


      Motivo ou propósito negocial sempre corre ao lado da ideia de “business purpose”, levantada no histórico caso “Gregory vs. Helvering”, que há quase cem anos inaugurou na


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    22. AMARO, Luciano. O Imposto de Renda nas doações, heranças e legado. In: ROCHA, Valdir Oliveira (coord.). Imposto de Renda – alterações fundamentais. São Paulo: Dialética, 1998. 2º vol., p. 111.


      jurisprudência norte-americana a regra de que o planejamento tributário lícito tem que ter

      um “business purpose”, isto é, uma motivação negocial não tributária.


      Ao se analisar a decisão proferida nesse caso, constata-se que, perante o direito brasileiro, a solução teria sido dada sob a disciplina da simulação e teria que ser observado o princípio da legalidade, conforme expôs Flávio Tudisco30.


      É neste sentido que não cabe falar no Brasil em ausência de “business purpose”, mas se pode falar ausência de “business”.


      Neste quadro, somente é válido referir-se a propósito negocial se se admitir (entender) que ele, independentemente das consequências tributárias (mais ou menos tributo, ou nenhum tributo), é encontrado (existe) na efetiva prática de atos da vida econômica, inclusive quando a pessoa tenha que adotar atos ou negócios jurídicos em virtude de que, sem eles, a sua realidade patrimonial não pode se estabelecer ou se alterar, e, para isto, ela necessariamente observa (e se conduz de acordo com) as causas jurídicas de atribuição patrimonial (efeitos patrimoniais) que a lei atribui a esses atos ou negócios31.


      Mas isto não se confunde com a proibição de fazer ou não fazer por motivo exclusivamente tributário, que seria uma norma imperativa inexistente no direito brasileiro.


      Esta é a única possibilidade de dar à noção do propósito negocial uma intepretação conforme ao Sistema Tributário Nacional, resumindo-se em dizer que há propósito negocial quando a pessoa queira e realize uma ação concreta na sua vida econômica, mesmo conduzida pela intenção de economizar tributo.


      Destarte, somente quando não se verificar alteração patrimonial ou no modo de praticar as atividades econômicas (portanto, quando estivermos perante uma situação apenas aparente, mas não real, ou seja, de ausência de “business” efetivo) é que a economia tributária visada será evasiva, porque dos atos ou negócios não terão decorrido efeitos reais, mas simplesmente aparentes, situação em que ficará evidente que a única motivação foi obter uma pretensa vantagem fiscal, e, principalmente, que esta foi o seu único resultado.


      Porém, mesmo assim, trata-se menos de haver ou não haver propósito negocial, e mais de haver ou não haver atos reais produtores de seus efeitos, ainda que, quando houver, o propósito (motivo) que os impulsione seja tributário.


      Também neste sentido, uma coisa é não haver qualquer negócio ou reorganização a fazer, e serem empregados meios fictícios para criar um negócio ou uma reorganização


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    23. TUDISCO, Flávio. A causa dos negócios jurídicos, a prevalência da substância sobre a forma e o direito tributário brasileiro. Revista Direito Tributário Atual v. 22. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT/Dialética, 2008, p. 207.


    24. Até porque a dissintonia entre as atitudes das partes e a causa do ato ostensivo é indicativa de que este é simulado.


      patrimonial que não exista, sendo a prática destinada apenas a produzir economia tributária. Neste caso, sim, há mera aparência de um negócio ou de uma reorganização, cuja aparência encobre outra realidade tributária.


      Ao contrário, coisa diferente é haver uma efetiva mudança patrimonial, organização ou reorganização a ser feita, por razões econômicas ou empresariais, mas que também permita economia tributária, ou que seja determinada apenas por esta, e a mudança ou reorganização ser processada através de atos ou negócios jurídicos com observância das respectivas causas, ainda que motivos tributários também determinem a escolha dessas ações ao invés de outras.


      Em resumo, o que precisa haver é uma efetiva mudança no estado patrimonial da pessoa ou no “modus operandi” dos fatores de produção econômica que estejam ao alcance dela. A alteração pode ter sido motivada pelas incidências tributárias que pudessem haver antes ou em outras maneiras de organização ou reorganização patrimonial ou operacional, comparativamente com o tratamento tributário ao patrimônio e às operações pelas quais ele é manejado, e que forem decorrentes da alteração, caso em que os efeitos fiscais desta serão consequência natural da conduta adotada.


      É por isso que até se pode reconhecer que nos casos de evasão fiscal o único motivo das ações pode ser o tributário, mas o que o Sistema Tributário Nacional não pode admitir é a afirmação de que toda elisão fiscal somente será válida se houver um motivo extratributário, porque nada nesse sistema impede a pessoa de fazer ou não fazer alguma coisa, inclusive se organizar ou reorganizar, tendo em vista exclusivamente consequências fiscais que a lei atribui aos seus atos, desde que estes sejam efetivos e conformes ao direito vigente. Pelo contrário, há liberdade para fazê-lo32.


      Com certa flexibilidade terminológica, também se pode dizer que há “causa não tributária” na efetiva prática de atos da vida econômica, mediante a adoção de atos ou negócios jurídicos (porque sem eles a realidade patrimonial não se estabelece nem se altera), para isto observando-se as causas jurídicas de atribuição patrimonial (efeitos que a lei atribui a esses atos ou negócios). Daí, neste caso, não haver apenas “causa tributária”, mas haver, sim, “causa não tributária”, que corresponde à prática e à observância dos efeitos patrimoniais que a lei de direito privado atribui aos atos e negócios reais.


      Como já dito antes, são situações radicalmente diferentes, (1) de um lado não haver qualquer negócio, organização ou reorganização a fazer, e serem empregados meios fictícios para aparentar um negócio, uma organização ou uma reorganização que não existe, sendo a prática destinada apenas a produzir economia tributária, caso em que há evasão fiscal decorrente da mera aparência de uma daquelas ações, cuja aparência encobre


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    25. Como fazia o cidadão referido na nota (11), que escolhia os fatos geradores que queria praticar.


      outra realidade, e, (2) de outro lado, haver um efetivo negócio ou uma efetiva organização ou reorganização que também permita economia tributária, ainda que se processe apenas para que esta seja obtida, e a ação ser processada, quando necessário, através de atos ou negócios jurídicos conforme sua causa, caso em que há elisão fiscal porque, além dos demais requisitos, não ocorre abuso na adoção do caminho fiscalmente menos oneroso, porque não se terá verificado a existência de simulação ou de outro vício jurídico.


      Isto é assim inclusive perante o parágrafo único do art. 116 do CTN, que não proíbe o planejamento tributário, e que não é violado quando uma prática seja adotada ao invés de outra.


      Realmente, a planificação tributária correta, que elide a ocorrência de um determinado fato gerador, no dizer de Amaro33, decorre de se fazer algo “em vez” do fato gerador.


      E isto não corresponde à dissimulação da ocorrência do fato gerador ou da natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, que é a conduta expressamente referida na hipótese de incidência (antecedente) da norma desse parágrafo da lei complementar.


  5. – CONCLUSÃO

Enfim, patrimônios e relações econômicas existem e acontecem porque os indivíduos e as empresas agem com ampla liberdade dentro desse domínio, a elas assegurada constitucionalmente, observadas tão somente as determinações legais que se apliquem a cada situação.


Algumas das situações ocorridas no exercício de tais atos com conteúdo econômico são captadas pelo direito tributário tal como elas são e como produzem efeitos patrimoniais e econômicos segundo o direito privado. Outras acarretam consequências tributárias distintas, que podem ser de maior ou menor onerosidade, ou mesmo de ausência de incidência tributária.


O planejamento tributário, tanto quanto o planejamento em torno de todos os demais custos relacionados a essas atividades, é exercício normal da liberdade de organização patrimonial e das atividades econômicas, somente deixando de produzir os efeitos almejados quando viole alguma determinação legal.


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