CRÉDITOS DE PIS/COFINS SOBRE INSUMOS DA ATIVIDADE COMERCIAL
PIS/COFINS CREDITS ON INPUTS OF COMMERCIAL ACTIVITY
LLM em Direito Tributário Internacional pela Vienna University of Economics and Business (Wirtschaftsuniversität Wien – WU). Mestre em Direito Fiscal pela Universidade de Coimbra. Advogado. E-mail: thiago.marques@bicharalaw.com.br
Recebido em: 27-09-2020
Aprovado em: 01-02-2021
DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-47-19
Embora o STJ tenha decidido, em sede de recursos repetitivos, que o conceito de insumo para fins de crédito de PIS/COFINS abrange os gastos importantes para as atividades desenvolvidas pelas empresas, as leis ordinárias de regência da sistemática não cumulativa das contribuições, no inciso que trata dos créditos sobre insumos, aludem apenas às empresas industriais e prestadoras de serviços, o que autoriza a interpretação de que as empresas comerciais não fariam jus a créditos sobre esses dispêndios. No entanto, como decidiu recentemente o STF, em sede de repercussão geral, o PIS/COFINS não cumulativo também está sujeito aos princípios constitucionais, em meio aos quais tem destaque o princípio da igualdade tributária. O presente estudo, a partir de premissas teóricas que destacam o papel de algumas diretrizes metódicas inafastáveis na realização do direito – tais como os postulados da proporcionalidade e da igualdade e a prevalência relativa da igualdade –, demonstra que é inconstitucional a restrição imposta às empresas comerciais no que toca aos créditos sobre insumos da atividade econômica. As empresas comerciais têm o direito a apropriar créditos de PIS/COFINS sobre gastos incorridos com a aquisição de bens e serviços utilizados como insumos em suas atividades econômicas.
Although the STJ has decided, in a binding precedent, that the concept of input for PIS/COFINS credit
purposes encompasses expenses important to the companies’ activities, the ordinary laws governing the non-
cumulative regime of the contributions, in the item that deals with input credits, refer only to industrial and service companies, which authorizes the interpretation that commercial companies would not be entitled to credits on such expenses. However, as recently decided by the STF, also in a binding precedent, the PIS/COFINS non-cumulative assessment is also subject to constitutional principles, among which the principle of tax equality stands out. This study, based on theoretical premises that emphasize the role of some methodical guidelines that cannot be disregarded in the realization of law – such as the postulates of proportionality and equality and the relative predominance of equality –, demonstrates that the restriction imposed on commercial companies with respect to credits on inputs of their economic activity is unconstitutional. Commercial companies are entitled to PIS/COFINS credits on expenses incurred in the acquisition of goods and services used as inputs in their economic activities.
INTRODUÇÃO
Em 2018, a 1ª Seção do STJ deu um importante passo em direção à uniformização da jurisprudência acerca do conceito de insumo para fins de apuração de créditos de PIS/COFINS ao julgar, sob o rito dos recursos repetitivos, o Recurso Especial n. 1.221.170/PR1. Após declarar a ilegalidade da antiga orientação da Receita Federal, então constante das Instruções Normativas n. 247/2002 e n. 404/2004, a decisão da Corte Superior fixou que “o conceito de insumo deve ser aferido à luz dos critérios da essencialidade ou relevância, vale dizer, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de determinado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte”2.
Mas, uma vez fixada a orientação pelo STJ (e até por decorrência dela), outros questionamentos acabam por ser naturalmente suscitados. Nesse sentido, pergunta-se: se insumo é o gasto imprescindível ou importante para a atividade econômica desenvolvida pela empresa contribuinte, por que a valer o teor literal do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 apenas as empresas industriais e de serviços fariam jus a créditos sobre essas despesas, e não as empresas comerciais?
Com efeito, a literalidade dos referidos dispositivos parece sinalizar para um direito que aproveitaria somente as empresas que atuam “na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda”, sem contemplar as empresas
dedicadas à atividade comercial. Essa, inclusive, é a leitura feita pelo Fisco federal, manifestada em parecer normativo publicado ainda em 2018.
Todavia, a disciplina do PIS/COFINS não se esgota nas leis ordinárias de regência do regime não cumulativo de apuração e cobrança das contribuições. Tanto é assim que recentemente o STF indicou, em sede de repercussão geral, que apesar de a Constituição Federal conferir certa liberdade ao legislador ordinário para a conformação da sistemática não cumulativa do PIS/COFINS, “[isso] não exime o legislador de observar os princípios constitucionais gerais, notadamente a igualdade”3.
Com efeito, a igualdade tributária é o que impulsiona o questionamento formulado acima. Afinal, tendo em conta o conceito de insumo fixado pelo STJ e a indicação pelo STF de que o regime não cumulativo do PIS/COFINS deve observar os princípios constitucionais, “notadamente a igualdade”, seria possível compatibilizar a diferenciação de tratamento concernente ao direito a crédito sobre insumos resultante das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 com o necessário respeito à igualdade tributária?
O presente artigo tenta responder essas questões a partir de uma análise centrada em normas que estruturam a aplicação do direito, ou seja, em diretrizes metódicas cuja observância é indispensável e sem a qual ficam caracterizados, por exemplo, o arbítrio e a violação do princípio da igualdade tributária. As diretrizes metódicas destacadas neste estudo são o postulado da proporcionalidade, o postulado da igualdade e a prevalência relativa da igualdade e o decorrente ônus argumentativo para sua superação, frisando, ainda, a necessária distinção entre justificação e explicação para satisfação das exigências provenientes dessas diretrizes.
Para tanto, esta análise tem início com o tópico II, que resgata muito brevemente determinado ponto da decisão proferida pelo STJ (e que já foi objeto de estudo anterior) e o tópico III, que apresenta de forma resumida o impacto do teor literal do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 sobre as empresas comerciais, inclusive na leitura da RFB. Na sequência, o tópico IV apresenta as premissas teóricas que balizam esta análise que, em seguida, são utilizadas no tópico V para testar a compatibilidade entre o princípio da igualdade tributária e a limitação do direito à apuração de créditos sobre insumos apenas às empresas industriais e de serviços. Caminhando para o fim da análise, o tópico VI comenta os impactos, sobre este estudo, advindos da decisão proferida pelo STF em 2020
– que, apesar de ter sido disponibilizada após a elaboração da primeira versão desse artigo, foi incluída em fase de revisão diante de sua enorme relevância para o tema. Finalmente, o tópico VII traz as conclusões e considerações finais.
Em linhas gerais, o presente artigo tenta demonstrar, a partir das premissas teóricas que adota, que a distinção de tratamento tributário conferido pelas leis ordinárias de regência do PIS/COFINS não cumulativo às empresas comerciais – às quais é negado o direito a créditos sobre os insumos de suas atividades econômicas –, por estar em desacordo com as referidas diretrizes metódicas, acaba por violar a igualdade tributária, mostrando-se, por isso, inconstitucional.
STJ: INSUMOS COMO GASTOS IMPORTANTES PARA A ATIVIDADE ECONÔMICA
Como visto acima, a decisão proferida pelo STJ quando do julgamento do REsp n. 1.221.170/PR vinculou o conceito de insumo para fins de creditamento de PIS/COFINS aos “critérios da essencialidade ou relevância”, que remetem “[à] imprescindibilidade ou [à] importância de determinado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte”4. Segundo a decisão, “há que se analisar, casuisticamente, se o que se pretende seja considerado insumo é essencial ou de relevância para o processo produtivo ou à atividade desenvolvida pela empresa”5.
O julgamento do REsp n. 1.221.170/PR pela 1ª Seção do STJ, além de extenso, foi bastante detalhado, dividindo-se entre uma parte geral, que resultou nas teses fixadas pela decisão que devem ser consideradas como precedente vinculante sob o regime dos recursos repetitivos, e uma parte casuística, voltada apenas e especificamente para o caso sob análise naquele julgamento, de interesse da empresa Anhambi Alimentos Ltda. Por ter sido objeto de análise anterior6, os detalhes da decisão proferida pelo STJ por oportunidade do REsp n. 1.221.170/PR não serão reproduzidos neste estudo. De qualquer forma, fica a ressalva de que os desenvolvimentos que se seguirão partem também das premissas e conclusões daquela análise anterior acerca do alcance da decisão proferida pela 1ª Seção do STJ em 2018, de maneira que pode ser recomendável a leitura prévia do referido artigo, publicado na Revista Direito Tributário Atual v. 43.
Para fins do presente estudo, contudo, é preciso resgatar um dos aspectos daquela decisão que foi abordado de forma muito passageira na análise anterior. Trata-se da constatação de que, da forma como construída a decisão final, fruto sobretudo do voto proferido pela Ministra Regina Helena Costa7, tanto o critério da essencialidade (que remete à
imprescindibilidade do dispêndio para a atividade) como o critério da relevância (que remete à importância do dispêndio), isoladamente considerados, bastam para classificar o gasto como insumo para fins de apropriação de créditos de PIS/COFINS8.
Um olhar mais atento à essa constatação revela que, para a qualificação da despesa como insumo no contexto da apuração de créditos das contribuições, é suficiente que essa despesa se mostre importante (atendendo ao critério da relevância) à atividade econômica desenvolvida pela empresa. Afinal, todo gasto “imprescindível” (ou “essencial”) será necessariamente “importante” (ou “relevante”), de modo que o universo dos gastos importantes abrange integralmente o universo dos gastos imprescindíveis9.
A decisão proferida pela 1ª Seção do STJ autoriza essa leitura e, para comprová-lo, é válido considerar o voto proferido pela Ministra Regina Helena Costa, na parte integralmente transcrita para o voto condutor do acórdão. Segundo expõe a Ministra, “[é] possível extrair das leis disciplinadoras dessas contribuições o conceito de insumo segundo os critérios da essencialidade ou relevância, vale dizer, considerando-se a importância de determinado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte”10. Ou seja, a “importância” é a síntese (demonstrada pela Ministra através de seu “vale dizer”) dos critérios da essencialidade e da relevância.
Para evitar questionamentos quanto ao acerto da afirmação de que a importância abrange a imprescindibilidade no contexto da decisão proferida pelo STJ, é válida uma análise (ainda que breve, posto que objeto de estudo anterior, como dito) de cada um dos dois (e apenas dois) critérios admitidos no julgamento de 2018. Nesse sentido, de um lado, “o critério da essencialidade diz com o item do qual dependa, intrínseca e fundamentalmente, o produto ou o serviço, constituindo elemento estrutural e inseparável do processo produtivo ou da execução do serviço”11, ao passo que “a relevância, considerada como critério definidor de insumo, é identificável no item cuja finalidade, embora não indispensável à elaboração do próprio produto ou à prestação do serviço, integre o processo de produção, seja pelas singularidades de cada cadeia produtiva [...], seja por imposição legal [...], distanciando-se, nessa medida, da acepção de pertinência”12.
Os trechos acima (que, deve-se recordar, estavam inseridos em julgamento sobre empresa industrial) são claros ao indicar que o critério da essencialidade aponta para os itens (bens ou serviços) indispensáveis para a produção, enquanto o critério da relevância engloba os itens que, apesar de também integrar a produção, podem ser dispensáveis (ou “não indispensáveis”). O ponto de partida é sempre o mesmo: a atividade econômica (naquele caso, a atividade industrial) e a necessidade de distinção entre os critérios da essencialidade e da relevância têm a ver com o desenrolar do julgamento pela Corte Superior, que em dado momento convergia quanto à necessidade de se reconhecer um conceito de insumo mais abrangente do que aquele defendido pelo Fisco, mas debatia qual a abrangência seria reconhecida ao conceito de insumo: se (i) a abarcar apenas os itens indispensáveis, (ii) a incluir, além dos indispensáveis, aqueles tidos como “pertinentes” (que seriam revelados pelo chamado “teste da subtração”), ou (iii) a abranger, além dos indispensáveis, também os importantes. Como os trechos do voto da Ministra Regina Helena transcritos acima (e transcritos também pelo voto condutor do acórdão) claramente demonstram, a terceira corrente se sagrou vencedora13. Ou seja, a essencialidade e a relevância não são critérios “distintos”. Na verdade, a essencialidade e a relevância apenas revelam distintos graus de abrangência de um mesmo critério, pautado na importância do item para a atividade desenvolvida.
Daí a afirmação de que todo gasto “imprescindível” (ou “essencial”) será necessariamente “importante” (ou “relevante”), de modo que o universo dos gastos importantes abrange integralmente o universo dos gastos imprescindíveis14.
Isso posto e tendo em vista que o contrário não se verifica – nem todo dispêndio “importante” (ou “relevante”) será necessariamente “imprescindível” (ou “essencial”) –, é possível sintetizar a tese fixada pelo STJ relativa ao conceito de insumo para fins de creditamento de PIS/COFINS. Nesse sentido, a verificação de que o gasto é importante no contexto da atividade econômica desenvolvida pela empresa contribuinte será sempre suficiente para sua classificação como insumo para fins de apuração de créditos das contribuições15. Por esse motivo, insista-se, a decisão do STJ concluiu ser “a relevância [a apontar para a importância], considerada como critério definidor de insumo”16.
Tecidos esses esclarecimentos, o presente artigo aludirá apenas à “importância” dos dispêndios no contexto do desenvolvimento das atividades econômicas pelas empresas contribuintes, fixando-se a premissa de que tais alusões englobam a totalidade das despesas que, como proposto pelo precedente do STJ, atendem aos critérios da essencialidade ou relevância, considerando sua imprescindibilidade ou importância.
RFB E A SUPOSTA INEXISTÊNCIA DE INSUMOS NA ATIVIDADE COMERCIAL
As Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 estabelecem a disciplina legal do regime não cumulativo de apuração e cobrança do PIS e da COFINS. O inciso I do art. 3º de tais leis confere às empresas sujeitas a esse regime o direito a descontar créditos calculados em relação a “bens adquiridos para revenda”, ao passo que o inciso II do mesmo artigo atribui o direito a creditamento sobre “bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda”.
A partir do teor literal desses dispositivos, a RFB adotou um entendimento concernente ao direito à apropriação de créditos de PIS/COFINS sobre insumos pautado na distinção entre os setores de atividade das empresas. Nessa visão, por um lado, as empresas que atuam no setor comercial não fariam jus à apropriação de créditos sobre os insumos de sua atividade, posto que o inciso II, ao estabelecer o direito em questão, remete especificamente à “prestação de serviços” e à “produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda”. De acordo com essa linha de interpretação, apenas as empresas dedicadas às atividades de prestação de serviços e de produção ou fabricação de bens ou produtos teriam direito ao creditamento sobre gastos com insumos.
O Parecer Normativo COSIT/RFB n. 5, de 17 de dezembro de 2018, que apresenta as “principais repercussões” em âmbito fazendário da definição do conceito de insumos pelo STJ no julgamento do REsp n. 1.221.170/PR, explorou essa aparente dicotomia normativa para sugerir a “inexistência de insumos na atividade comercial”, afirmando que “somente há insumos geradores de créditos da não cumulatividade da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS nas atividades de produção de bens destinados à venda e de prestação de serviços a terceiros”17. De acordo com o PN COSIT/RFB n. 5/2018, “para fins de apuração de créditos das contribuições, não há insumos na atividade de revenda de bens, notadamente porque a esta atividade foi reservada a apuração de créditos em relação aos bens adquiridos para revenda (inciso I do caput do art. 3º da Lei n. 10.637, de 2002, e da Lei n. 10.833, de 2003)”18.
Em síntese, o posicionamento fazendário registrado em cinco parágrafos que integram o PN COSIT/RFB n. 5/201819 busca apoio no teor literal do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 para afirmar que, como tal dispositivo remete expressamente a “bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda”, não seria possível o crédito sobre bens e serviços, utilizados como insumo na comercialização de bens. Mais do que isso, o PN COSIT/RFB n. 5/2018 é incisivo ao afirmar a “inexistência de insumos na atividade comercial”. Naturalmente, essa leitura da disciplina legal do regime não cumulativo do PIS/COFINS repercute em âmbito administrativo, sendo possível encontrar, por exemplo, soluções de consulta que reproduzem tal entendimento20.
A partir dessa manifestação do Fisco, duas opções se apresentam: ou (i) a RFB interpreta essas leis de forma mais restritiva do que pretendeu o legislador – o que, como bem demonstrou o acórdão proferido no REsp n. 1.221.170/PR, estaria longe de ser uma situação excepcional –; ou (ii) as Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003, de fato, distinguiram os comerciantes dos industriais e prestadores de serviços no que se refere ao direito à apropriação de créditos sobre os insumos das respectivas atividades econômicas.
Essa dualidade, contudo, não parece se verificar no que se refere à forma de questionar a constitucionalidade da restrição aos créditos sobre insumos da atividade comercial. Isso porque, para debater a primeira hipótese (de interpretação excessivamente restritiva por parte do Fisco), considerado o teor literal das disposições em comento, seria preciso avançar sobre os limites da interpretação literal na realização do direito, propondo uma análise alicerçada não só no texto, mas também nos princípios constitucionais e nas diretrizes metódicas que, necessariamente, devem orientar a interpretação e aplicação das leis tributárias. Já para enfrentar a segunda hipótese, de distinção intencional (ou acidental) por parte do legislador, a análise também se inclina para os princípios constitucionais e para as diretrizes metódicas que limitam a atividade legiferante.
Em outras palavras, ao se questionar a interpretação literal do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003, tal como resumida nos §§ 40 a 44 do PN COSIT/RFB n. 5/2018, questiona-se também a possibilidade de o legislador ordinário editar tais leis impondo a distinção nos moldes como identificada pela RFB. Isto porque os fundamentos de tais questionamentos, como será visto, são basicamente os mesmos, sempre alicerçados em princípios constitucionais que orientam (ou deveriam orientar) a tributação e em diretrizes metódicas que são inafastáveis na realização do direito.
Feito esse esclarecimento e seguindo adiante, ao se considerar o posicionamento fazendário resumido nos §§ 40 a 44 do PN COSIT/RFB n. 5/2018 (esteja tal posicionamento alinhado ou não ao intuito do legislador ordinário) sob o prisma do precedente fixado pelo STJ no julgamento do REsp n. 1.221.170/PR, percebe-se que, na prática, a partir da leitura da RFB (ou mesmo da forma como previsto nas Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003) apenas as empresas dedicadas às atividades industriais e de serviços teriam direito à apropriação de créditos de PIS/COFINS sobre todos os gastos importantes (i.e. insumos) para o desenvolvimento de suas atividades, sendo esse direito negado às empresas dedicadas à atividade comercial21.
Todavia, como será demonstrado oportunamente, quer sob a perspectiva de uma interpretação restritiva da autoridade fazendária, quer sob a perspectiva de uma possível atuação (intencional ou acidental) do legislador ordinário no sentido de limitar o direito à apropriação de créditos de PIS/COFINS sobre insumos apenas aos setores industrial e de serviços, restringindo tal crédito para o setor comercial, tal distinção seria incompatível com a igualdade tributária, mostrando-se, por isso, inconstitucional.
Para fundamentar a alegação de tal inconstitucionalidade, é preciso fixar as premissas que pautam o presente estudo, em meio às quais têm papel de destaque, para além do princípio da igualdade tributária, o postulado da proporcionalidade, o postulado da igualdade e a prevalência relativa da igualdade. Isso será feito no tópico IV.
PREMISSAS TEÓRICAS: PRINCÍPIOS E POSTULADOS PERTINENTES AO ESTUDO
Os tópicos II e III resumiram o atual status da questão da apropriação de créditos de PIS/COFINS em relação às despesas com insumos, demonstrando que a concatenação do precedente do STJ e do teor literal do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 (refletido no entendimento da RFB) resulta no reconhecimento do direito ao creditamento das contribuições sobre os gastos importantes apenas para os setores de serviços e produtivo (e.g. indústrias), negando-se tal direito ao setor comercial. Para viabilizar a análise da validade jurídica dessa restrição, este tópico IV estabelecerá as premissas teóricas pertinentes, dando ênfase a algumas diretrizes metódicas que devem orientar a tributação em geral e, em particular, pelo PIS/COFINS.
Regras, princípios e postulados
É premissa do presente estudo a divisão das normas jurídicas em regras, princípios e postulados22, adotando-se definição específica para cada uma dessas espécies normativas. Diante da relevância de tal divisão e definição, bem como dos impactos sobre as construções e conclusões que o trabalho desenvolve, mostra-se igualmente relevante delinear, ainda que brevemente, seus contornos.
Nesse contexto, enquanto as regras são normas imediatamente descritivas, já que se valem da descrição da conduta a ser adotada para estipular obrigações, permissões e proibições, os princípios são normas imediatamente finalísticas, uma vez que definem um estado de coisas, um objetivo a ser promovido, para o que é preciso adotar comportamentos específicos23.
Os postulados jurídicos se distinguem justamente porque orientam a aplicação de outras normas (regras e princípios), oferecendo uma diretriz metódica a ser utilizada pelo intérprete24. Em razão disso, afirma-se que os postulados estão situados em um plano diverso daquele ocupado pelas normas cuja aplicação estruturam, levando à qualificação dos postulados como “normas de segundo grau” ou “metanormas”25. Assim, os postulados permitem averiguar possível violação das normas por eles estruturadas, ao passo que a violação de um postulado consiste na aplicação da norma em desacordo com sua estruturação26. Daí se definir os postulados como “deveres estruturais”, ou seja, como deveres voltados à vinculação e à relação entre determinados elementos27.
Diante da ênfase que será dada no presente estudo não apenas ao papel das regras e princípios na solução de determinadas questões envolvendo a apuração de créditos de PIS/COFINS sobre gastos importantes para o desenvolvimento das atividades econômicas pelas empresas, mas à realização do direito em um sentido mais amplo, tem destaque a tarefa desempenhada pelos postulados como diretrizes metódicas orientadoras da correta aplicação das normas pertinentes à tributação da receita pelas aludidas contribuições.
Postulado da proporcionalidade
Superada a divisão e conceituação das normas jurídicas adotadas neste estudo, parte-se para a análise de algumas normas particularmente relevantes em seu contexto, o que terá início com o exame da proporcionalidade, tida aqui como postulado jurídico.
A estruturação da aplicação de normas sob a perspectiva da causalidade entre meio e fim é desempenhada especificamente pelo postulado da proporcionalidade28. Embora seja muitas vezes referida como princípio jurídico, a proporcionalidade não é alvo de ponderação ou sopesamento quando de uma hipotética colisão com “outro” princípio29. Na verdade, sequer é concebível que a proporcionalidade conflite ou colida com outras normas, o que realça a inadequação terminológica de sua qualificação como princípio30.
Instrumento jurídico de elevada importância, a proporcionalidade evoluiu a partir da limitação do poder de polícia31, alcançando em meados do século XX sua formulação consubstanciada no triplo teste, consistente na avaliação da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito do meio empregado para se promover a finalidade perseguida. Sempre que se estiver diante de uma medida ou norma voltada à promoção de um fim, cabe o exame da proporcionalidade, a ser realizado a partir do triplo teste32.
O primeiro exame, concernente à adequação, impõe que seja empregado pelo legislador ou administrador um meio apto à promoção do fim pretendido33. Não se trata, nesse ponto, de avaliar se a finalidade poderia ter sido fomentada em maior intensidade, com qualidade superior, ou mesmo com maior grau de certeza, mediante opção por meio diverso34. Quando se examina a adequação de determinada medida ou ato normativo, examina-se tão somente se o meio eleito é capaz de promover o fim almejado35.
Na sequência, o exame da necessidade busca verificar a existência de meio diverso a ser empregado para a consecução do fim perseguido que, porém, leve a uma menor restrição de outros direitos quando comparado com aquele escolhido pelo legislador ou
administrador36. Afinal, alcançar determinado fim não justifica o recurso a quaisquer meios37. Por se tratar de uma análise comparativa, o exame da necessidade demanda a verificação da existência de meios alternativos àquele eleito que, além de adequados, mostrem-se menos onerosos38. Contudo, o exame da necessidade não autoriza que as opções por parte do Legislativo ou Executivo sejam anuladas porque em algum aspecto e sob alguma perspectiva outra medida poderia ser utilizada com maior sucesso39. Em respeito à separação dos Poderes, mas sem abdicar do controle da necessidade40, deve-se afastar o meio escolhido quando esse for manifestamente menos adequado do que outro41.
Finalmente, o teste da proporcionalidade em sentido estrito confronta as vantagens provenientes da realização do fim com as desvantagens decorrentes da implementação das medidas adotadas para sua consecução42. Tal análise implica a difícil identificação do ponto de equilíbrio entre os aspectos positivos advindos com a promoção da finalidade e os aspectos negativos resultantes das restrições decorrentes dos meios adotados43, tarefa que exibe alguma subjetividade na valoração de benefícios e malefícios contrapostos44. No exame da proporcionalidade em sentido estrito, deve-se atentar à proporção entre a restrição causada e a promoção efetivada: quanto maior for a desvantagem observada com a adoção da medida, tanto maior deverá ser a vantagem obtida com a finalidade visada45.
Concluído o triplo teste e provando-se a medida (ou norma) adequada, necessária e equilibrada (ou proporcional em sentido estrito), será ela proporcional, o que significa a conformidade de sua adoção com o postulado da proporcionalidade. Ao contrário, caso se constate sua inadequação, desnecessidade ou desequilíbrio (ou desproporcionalidade em sentido estrito), ficará evidenciado que a implementação da medida (ou norma) resulta na
realização do direito sem a devida observância do postulado da proporcionalidade, cabendo ao Judiciário afastar sua aplicação.
O postulado da proporcionalidade, portanto, não é de aplicação facultativa, tampouco é passível de ponderação. As diretrizes metódicas que dele emanam devem necessariamente ser observadas na realização do direito. Daí sua relevância para o exame do direito a créditos de PIS/COFINS sobre os insumos da atividade comercial.
Igualdade
Prosseguindo na análise das normas importantes no contexto do presente estudo, é preciso que essas premissas teóricas também compreendam a igualdade. Para tanto e, sobretudo, para que seja possível compreender como se chegou à sua tríplice dimensão normativa, é preciso iniciar essa parte do estudo pela evolução da noção de igualdade.
Evolução da noção de igualdade
Ligada à tradição aristotélica, mas também amparada no pensamento racionalista e individualista, a igualdade proclamada nos principais textos normativos da segunda metade do século XVIII é tida, em um primeiro momento, como a mera igualdade perante a lei ou na aplicação do direito46. Uma leitura que, vinculada à ideia de igualdade absoluta derivada da fórmula “todos os homens são iguais”, impunha apenas a generalidade da lei, resultando em uma simples exigência formal que apontava, sobretudo, para a prevalência da lei47, mostrando-se impotente contra essa48. Dada a insuficiência dessa visão de igualdade, foi preciso buscar em seu conteúdo uma compreensão mais apropriada49.
Abandonada a ideia de igualdade absoluta50, recuperou-se o valor relativo ínsito à igualdade51, já proclamado por Aristóteles – resumido na afirmação de que, enquanto o igual deve ser tratado igualmente, o desigual exige tratamento desigual, na medida dessa desigualdade –52, direcionando-se o foco da análise para a determinação do que se deve ter por igual e desigual. A solução dessa questão passa inicialmente pela constatação de que só
há igualdade ou desigualdade em termos relativos53, seguindo para a compreensão de que a igualdade pressupõe uma comparação54, o que implica a eleição de um critério de comparação55, bem como de que a igualdade está ligada a valores56, de modo que o referido critério consiste em critério valorativo57. Naturalmente, não é qualquer valor que pode ser mobilizado para fins de cumprimento da exigência jurídica de igualdade: há uma necessária vinculação entre o critério valorativo eleito e a finalidade que será atingida com a qualificação de situações concretas como iguais ou desiguais58. Logo, é a partir da escolha do critério valorativo de comparação que a igualdade será materializada59.
Em síntese, ao longo do desenvolvimento da ideia de igualdade constatou-se a necessidade de suficiente justificação material para a qualificação das situações como iguais ou desiguais a outras60. Ao objetivo igualitário, somou-se a exigência metódica da definição de um critério comparativo condizente com o fim visado e a igualdade, até então voltada para o aplicador da lei, passou a orientar a atividade legiferante61. Sob tal enfoque, a igualdade também representa a proibição do arbítrio62.
Contudo, se todo arbítrio revela injustiça, injustiças também podem ocorrer sem que necessariamente configurem arbítrio, de modo que a compreensão da igualdade não só como conceito negativo (de proibição do arbítrio), mas como verdadeiro corolário da justiça, demanda que se avance ainda mais no exame de sua abrangência63.
Sem negar a relevância do critério valorativo, em uma nova fase da evolução do entendimento da igualdade a atenção é deslocada para o fim almejado, que deve promover
a realização da justiça64: é através da estipulação de uma finalidade justa que se deve alcançar a igualdade65. A igualdade se apresenta não mais como ponto de partida, mas como resultado a alcançar66. O critério valorativo é então visto como meio para atingir o fim pretendido, ao passo que o cerne da preocupação passa ser precisamente que tal fim obedeça à realização do justo67, alcançando-se com isso a igualdade68.
Tríplice dimensão normativa da igualdade e o papel do postulado da igualdade
Resumida a evolução da noção de igualdade, cabe abordar sua tríplice dimensão normativa, posto que a igualdade pode se apresentar como regra, princípio e postulado69.
Em que pese a igualdade seja usualmente referida como princípio, nem sempre se está diante dessa espécie normativa. É verdade que quando, em seu viés imediatamente finalístico, aponta para um estado ideal igualitário a ser promovido, a igualdade assume contornos de princípio jurídico70. Contudo, sua abrangência normativa não se esgota aí. Além de ser possível a igualdade consistir em regra71, é especialmente valioso o papel da igualdade enquanto postulado jurídico.
O postulado da igualdade orienta a aplicação de outras normas jurídicas mediante a exigência de que eventuais equiparações ou desequiparações guardem relação justificada com a finalidade visada e assentem em critérios de comparação compatíveis e coerentes com tal finalidade72. Tais exigências, a exemplo do que se dá com o postulado da proporcionalidade analisado no tópico IV.2, não são passíveis de ponderação ou supressão. É dizer, embora seja possível cogitar ponderação envolvendo a igualdade em sua dimensão normativa de princípio quando ela colide com princípio diverso, não é possível afastar as exigências concernentes à necessária correlação entre determinada distinção, sua finalidade e o critério comparativo eleito para sua implementação73.
Diante da relevância dessa distinção para o presente estudo, é preciso insistir no ponto. Como princípio, a igualdade aponta para uma finalidade a ser promovida, e, nessa dimensão, pode ser objeto de ponderação quando colidir com princípios representativos de outras finalidades também pertinentes ao caso. Isso não ocorre quando a igualdade atua como postulado, exigindo que equiparações e desequiparações sejam justificadas diante da finalidade almejada e sejam baseadas em critérios comparativos coerentes com tal finalidade. Nessa dimensão normativa a igualdade não pode ser afastada74.
Embora na doutrina não seja tão comum distinguir as dimensões normativas da igualdade, a lógica subjacente a esse raciocínio é amplamente aceita. Por um lado, admite-se que o objetivo de tratamento igualitário eventualmente ceda espaço a objetivo outro que se mostre mais relevante no caso concreto, mas, por outro lado, não se admite que equiparações ou desequiparações sejam realizadas sem que apresentem uma relação justificada com a finalidade que se pretende alcançar e sem que estejam apoiadas em critérios comparativos condizentes com essa finalidade75. O mesmo se dá em relação à jurisprudência. Nesse sentido, tratando especificamente da sistemática não cumulativa do PIS/COFINS, o voto condutor do julgamento do RE n. 607.642/RJ, realizado pelo STF em 2020, sob o rito da repercussão geral, apontou ofensa à igualdade quando há diferenciação “sem que o tratamento diferenciado esteja alicerçado em critério justificável de discriminação ou sem que a diferenciação leve ao resultado que a fundamenta”76.
A nomenclatura adotada para aludir a tais exigências inafastáveis (que nesse estudo remetem ao postulado da igualdade) é secundária, importante é a sua aceitação doutrinária, que reforça o ponto aqui defendido.
O postulado da igualdade é diretriz metódica orientadora da realização do direito, dimensão normativa em que a igualdade não colide ou conflita com outras normas, não sendo objeto de ponderação e devendo sempre ser respeitada77. A observância das diversas dimensões normativas da igualdade – que chega a ser vista até mesmo como uma “supernorma”78 – é de indispensável para a realização do direito. Neste estudo, atentar-se-á especialmente para a igualdade enquanto princípio e enquanto postulado jurídico.
Prevalência relativa da igualdade e ônus argumentativo
Visto o alcance da igualdade para este estudo, é ainda necessária uma nota sobre a realização do direito nos casos envolvendo a igualdade, que especificamente neste tópico será abordada em sua específica dimensão normativa de princípio jurídico79.
O fato de ser a igualdade um direito fundamental80 tem implicações relevantes sobre o ônus argumentativo que deve ser suportado para que seja possível justificar a sua superação, ou seja, para que seja possível justificar a prevalência de um tratamento desigual em detrimento da finalidade de tratamento igualitário decorrente do princípio da igualdade – ou, no campo fiscal, decorrente do princípio da igualdade tributária81.
Embora não caiba afirmar que os princípios da igualdade e os dele derivados (tal como o princípio da igualdade tributária) possuem superioridade absoluta diante de outros princípios82, o fato de ser a igualdade um direito fundamental confere aos primeiros uma prevalência relativa em relação a princípios que não trazem sobrejacente um direito fundamental. Daí ser possível falar em uma preferência pelo tratamento igualitário83 ou, pela negativa, em uma “função de não discriminação”84. Essa “presunção de igualdade”85 resulta na diretriz metódica da prevalência relativa da igualdade, da qual decorre o ônus argumentativo para o tratamento desigual. Por força da prevalência relativa da igualdade, para que um princípio P1, sem suporte em um direito fundamental, se sobreponha ao princípio da igualdade (ou da igualdade tributária), é preciso que a justificação dessa sobreposição seja maior do que aquela que seria suficiente para que P1 prevalecesse sobre um princípio P2, também não amparado em direito fundamental86. Entender o contrário implicaria atribuir aos princípios que revelam direitos fundamentais peso relativo similar ao conferido a quaisquer princípios, amesquinhando o papel dos direitos fundamentais87.
Transportando essa lógica para o campo fiscal, aceita a presunção de igualdade entre contribuintes e o consequente dever de tratamento tributário igualitário88, é preciso identificar o que seria uma razão suficiente para justificar um tratamento desigual89. Sem descuidar da relevante diferença entre justificação e explicação90, é preciso buscar fundamentos jurídicos robustos o bastante para justificar a desequiparação de contribuintes, que por princípio fazem jus a um tratamento igualitário91. Isso se dá em virtude da diretriz metódica da prevalência relativa da igualdade e do consequente ônus argumentativo para sua superação92. Não sendo superado o ônus argumentativo, não cabe impor um tratamento desigual em detrimento do princípio da igualdade93.
Justificação e explicação: distinções
Os tópicos anteriores enfatizaram (IV.2) a exigência, decorrente do postulado da proporcionalidade, de que o meio utilizado para a promoção da finalidade visada mostre- se adequado, necessário e proporcional a tal finalidade; (IV.3.b) a exigência, proveniente do postulado da igualdade, de que eventuais equiparações ou desequiparações guardem relação justificada com a finalidade almejada, além de assentar em critérios comparativos compatíveis e coerentes com tal finalidade; bem como (IV.3.c) a exigência, resultante da diretriz metódica da prevalência relativa da igualdade, de que o tratamento desigual seja justificado com observância do ônus argumentativo imposto em prol do tratamento igualitário. Neste tópico, será realizada a distinção entre justificação e explicação, visando com isso delinear o alcance das exigências provenientes dessas diretrizes metódicas.
A explicação e a justificação são razões distintas94. Enquanto a razão explicativa consiste em fornecer a causa de algo ser, acontecer etc., a razão justificativa (que pode ser jurídica)95 traz subjacente uma avaliação sobre a adequação (jurídica) de algo ser, acontecer etc., da forma como é, acontece etc.96 Diz-se que a avaliação é subjacente porque, em termos de sua
estrutura, a explicação e a justificação podem se apresentar de forma bastante semelhante97. Imagine-se, por exemplo, que dois indivíduos são flagrados dirigindo seus automóveis acima da velocidade permitida. Questionado sobre o motivo da infração, o indivíduo A diz que havia recentemente adquirido o automóvel e, curioso sobre a velocidade máxima que esse poderia atingir, buscava descobrir isso dirigindo o mais rápido possível. Por seu turno, o indivíduo B diz que levava em seu automóvel uma pessoa que acabara de sofrer um acidente e, preocupado com a necessidade dessa pessoa receber atendimento médico o quanto antes, buscava chegar ao hospital dirigindo o mais rápido possível. Ambas as razões oferecidas são capazes de explicar as condutas: o indivíduo A estava dirigindo em alta velocidade porque pretendia descobrir a velocidade máxima que o novo veículo seria capaz de atingir; já o indivíduo B estava dirigindo em alta velocidade porque pretendia chegar ao hospital no menor tempo possível. No entanto, enquanto a razão oferecida pelo indivíduo A apenas explica, sem pretender justificar a atitude – o que significa dizer: agir motivado pela curiosidade acerca da velocidade máxima do automóvel não justifica a infração da regra de trânsito que veda a condução de automóveis acima da velocidade permitida –, a razão oferecida pelo indivíduo B traz subjacente uma avaliação de preferência jurídica pela atitude adotada em detrimento da norma violada – o que significa dizer: a necessidade de agir de modo a garantir que uma pessoa necessitada de atendimento médico urgente receba tal atendimento no menor tempo possível pode, dependendo das circunstâncias, sobrepor-se juridicamente à obrigação de respeitar a regra de trânsito que veda a condução de automóveis acima da velocidade permitida98. Daí a razão oferecida pelo indivíduo A ser simplesmente explicativa, enquanto a razão apresentada pelo indivíduo B é justificativa. A primeira apenas explica a infração, a segunda explica e oferece, subjacente, uma justificação99.
Feita a distinção e recordando que o postulado da proporcionalidade implica a avaliação concernente à causalidade entre meio e fim, entre a medida adotada e a finalidade que se pretende promover com a sua adoção, no contexto de uma avaliação jurídica, a adequação, necessidade e proporcionalidade de uma medida (ou norma) apenas podem ser confirmadas através da justificação da adoção da (e preferência pela) medida (ou norma). Não basta explicar que sua adoção se deu para a promoção da finalidade, é preciso justificar sua adequação, necessidade e proporcionalidade especificamente em função da finalidade visada. De modo similar, o postulado da igualdade, que implica a exigência de que eventuais equiparações ou desequiparações guardem relação justificada com a finalidade visada, e assentem em critérios de comparação compatíveis com tal finalidade, exige que sejam
apresentadas não simples explicações, mas razões justificativas capazes de demonstrar que a equiparação ou desequiparação é pertinente à finalidade almejada. Também a prevalência relativa da igualdade e o ônus argumentativo dela decorrente consistem em uma diretriz metódica que em nenhum aspecto é satisfeita com o oferecimento de mera explicação do tratamento desigual, exigindo-se que seja justificado o motivo de o tratamento desigual ser preferível, em termos jurídicos, ao tratamento igualitário, usualmente preferível100.
Nas situações sobre as quais se projetam as exigências dessas diretrizes metódicas, demanda-se justificação jurídica, e não mera explicação. Apenas considerando a distinção entre razão justificativa e razão explicativa será possível verificar se são corretas (quanto à modalidade) e suficientes (quanto ao alcance) as razões oferecidas em determinada situação. Isso é imprescindível, por exemplo, quando o Judiciário avalia o esclarecimento oferecido pelo legislador (ou pela autoridade fazendária) no contexto do julgamento da validade de determinada norma (ou de uma específica interpretação dessa norma).
Proporcionalidade, igualdade (e sua prevalência relativa) e justificação
As considerações tecidas neste tópico IV tiveram o intuito de evidenciar de forma minimamente fundamentada que para o desenvolvimento do presente estudo são relevantes não apenas uma específica divisão e conceituação das normas jurídicas, mas também o papel desempenhado pelas diretrizes metódicas informadas pelo postulado da proporcionalidade, pelo postulado da igualdade e pela prevalência relativa da igualdade, com o consequente ônus argumentativo para sua superação, frisando-se ainda a distinção entre justificação e explicação, imprescindível para a adequada análise jurídica.
Além de incabível sua ponderação ou afastamento, essas diretrizes metódicas devem necessariamente orientar a aplicação das normas jurídicas. O descumprimento de qualquer das exigências provenientes das referidas diretrizes, ou sua realização de modo insuficiente – que pode ocorrer, por exemplo, se a justificação apresentada não for satisfatória –, resultará em falha na realização do direito, impondo-se que o Judiciário atue para assegurar que a interpretação e aplicação das normas cabíveis se dê em conformidade com as diretrizes metódicas pertinentes.
Naturalmente, essa afirmação valerá também para quando o Judiciário vier a ser chamado a analisar a validade da diferenciação entre empresas contribuintes no que se refere ao direito de apropriação de créditos de PIS/COFINS sobre despesas importantes (insumos) para suas respectivas atividades econômicas, nos moldes como promovida pelo inciso II do
art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 e confirmada pelos §§ 40 a 44 do PN COSIT/RFB
n. 5/2018. Sem a estrita observância do postulado da proporcionalidade, do postulado da igualdade e da prevalência relativa da igualdade, com o consequente ônus argumentativo para o tratamento desigual, não pode a diferenciação em questão ser admitida, cabendo ao Judiciário a declaração de sua inconstitucionalidade por violação da igualdade tributária.
DIREITO A CRÉDITOS SOBRE INSUMOS DA ATIVIDADE COMERCIAL Delineadas as premissas teóricas pertinentes, este tópico V demostrará que, ao ser analisada sob o prisma das diretrizes metódicas informadas pelos postulados da
proporcionalidade e da igualdade e pela prevalência relativa da igualdade e decorrente
ônus argumentativo para sua superação, sempre com observância da distinção entre justificação e explicação, a desigualdade no tratamento tributário conferido às empresas que atuam no setor comercial no que se refere ao direito à apuração de créditos de PIS/COFINS sobre os gastos importantes para suas atividades econômicas, na verdade, configura caso de violação das referidas diretrizes metódicas.
Finalidade da diferenciação das empresas a partir do setor de atuação
Para fins do exame de compatibilidade entre determinada desigualdade imposta por medida (ou norma) e as diretrizes metódicas resumidas no tópico IV, é preciso identificar a finalidade visada com o tratamento desigual. Caso contrário, ou seja, na hipótese de não ser possível identificar a finalidade da diferenciação, estar-se-á diante de desigualdade arbitrária, incompatível com o princípio da igualdade101. Por essa razão, quando do julgamento do RE n. 607.642/RJ, sob o rito da repercussão geral, o Plenário do STF consignou que, no trato do PIS/COFINS não cumulativo, “[o legislador deve observar] o princípio da isonomia, a fim de não gerar [...] discriminações arbitrárias ou injustificadas”102.
Assumindo, para fins de melhor desenvolvimento da análise, que a diferenciação em questão não foi arbitrária, para evoluir no exame jurídico da distinção de tratamento tributário das empresas em relação à apropriação de créditos sobre despesas importantes, é preciso identificar a finalidade dessa desigualdade.
Nesse viés, dada a gênese da legislação de regência do regime não cumulativo do PIS/COFINS, a finalidade almejada com a desigualdade de tratamento de empresas a partir do setor de atuação deve ser buscada nas exposições de motivos das Medidas Provisórias
n. 66/2002 e n. 135/2003, posteriormente convertidas nas Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003103.
Ali está registrado que a não cumulatividade do PIS/COFINS “traduz demanda de
modernização do sistema [de custeio da área de seguridade social] sem, entretanto, pôr em risco [o montante da receita obtida com]” essas contribuições104. Em seguida, é dito que “qualquer [proposta de] alteração que tenha por premissa manter o montante arrecadado implica, [sem dúvida], a redistribuição da carga tributária entre [os diversos] setores [da economia]”105.
Ora, a “modernização” do sistema de custeio da área de seguridade social em nada ganha com a restrição do direito a crédito sobre os insumos da atividade comercial, o que leva a concluir (por eliminação) que em meio às finalidades apontadas nas exposições de motivos das Medidas Provisórias n. 66/2002 e n. 135/2003, aquela que talvez guarde pertinência com tal limitação creditícia é a finalidade de “manter o montante arrecadado”.
Em outras palavras, pode-se extrair das referidas exposições de motivos que a diferenciação entre empresas com base nos setores de atuação almejou a finalidade de manutenção da arrecadação das contribuições. Portanto, é a partir dessa finalidade que deve ser examinado o cumprimento das diretrizes metódicas informadas pelo postulado da proporcionalidade, pelo postulado da igualdade e pela prevalência relativa da igualdade e decorrente ônus argumentativo.
Postulado da proporcionalidade e créditos de PIS/COFINS sobre insumos
Remete-se ao tópico IV.2 para recordar que o postulado da proporcionalidade demanda que o meio utilizado para a promoção de determinada finalidade mostre-se adequado, necessário e equilibrado (ou proporcional em sentido estrito) a tal finalidade.
Nesse viés, o exame da adequação já aponta para dificuldades concernentes à validade jurídica da diferenciação de empresas a partir do setor de atuação como medida voltada à manutenção da arrecadação. Isso porque essa diferenciação foca essencialmente no caráter subjetivo da exigência tributária, ao passo que a manutenção da arrecadação reclama por medidas direcionadas ao caráter quantitativo de tal exigência.
Resgatando o que foi visto no tópico IV.4 sobre a distinção entre justificação e explicação, para defender a adequação da diferenciação subjetiva para promoção de uma finalidade quantitativa, não basta que o legislador proponha que, ao limitar o direito de parte das empresas de se creditar sobre os gastos importantes, a diferenciação tem um impacto quantitativo na arrecadação. Nesse caso, não restará justificada sua adequação, apenas terá sido explicada sua adequação à finalidade – o que significa dizer: a medida promove a manutenção da arrecadação porque, ao limitar o direito a crédito de parte das empresas,
impacta positivamente a arrecadação –, sem qualquer avaliação jurídica subjacente para além de oferecer uma razão explicativa. Somente seria possível afirmar existir tal adequação, se tivesse sido apresentada uma justificação jurídica pela preferência dada às empresas dos setores de prestação de serviços e de produção ou fabricação (que têm reconhecido o direito a crédito sobre gastos importantes) em detrimento das empresas do setor comercial (às quais é negado tal direito). Uma simples explicação, aqui, já não basta e, caso não seja justificada, a desigualdade de tratamento tributário das empresas configura arbítrio, infringindo a igualdade tributária.
Essa discrepância fica ainda mais evidente quando se examina a necessidade de distinção das empresas para promover a manutenção da arrecadação – uma análise que não pode descuidar da disciplina integral do regime não cumulativo do PIS/COFINS. Isso porque, comparando-se o regime não cumulativo com o regime cumulativo, verifica-se o aumento das alíquotas das contribuições, bem como a ampliação de suas bases de cálculo106. A esse respeito, o próprio voto condutor do julgamento do RE n. 607.642/RJ, realizado pelo STF com repercussão geral, registrou que “[as Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003] majoraram com grande peso as alíquotas do PIS/COFINS”107. Logo, percebe-se que a finalidade de manutenção da arrecadação foi atendida (com sobra) por medidas de cunho quantitativo, comprovando-se a desnecessidade, para tal fim, de uma medida de cunho subjetivo, consistente na desigualdade de tratamento das empresas. No caso, sequer é preciso que o julgador busque o meio alternativo que seria apto a promover a finalidade almejada com menor prejuízo para o tratamento igualitário das empresas, pois o próprio legislador fez isso ao aumentar as alíquotas e ampliar as bases de cálculo do PIS/COFINS.
Além disso, a constatação de que a finalidade de manutenção de arrecadação foi satisfatoriamente promovida por outras medidas inerentes ao regime não cumulativo das contribuições culmina por também impactar a análise da proporcionalidade em sentido estrito da diferenciação das empresas a partir do setor de atuação. Afinal, se a promoção de tal finalidade foi satisfeita por outras medidas (no caso, pelo aumento das alíquotas e pela ampliação das bases de cálculo), o grau de satisfação dessa finalidade pela medida de diferenciação é significativamente reduzido, podendo-se dizer residual ou até mesmo desprezível. Assim, o contraste entre o grau de promoção da finalidade de manutenção da arrecadação pela diferenciação entre empresas a partir do setor de atuação, por um lado, e o grau de afetação do objetivo de tratamento tributário igualitário das empresas, por outro, aponta para o desiquilíbrio (ou desproporcionalidade em sentido estrito) do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 no que limitam o creditamento de PIS/COFINS
sobre gastos com insumos apenas às empresas industriais e de serviços, impedindo a fruição de tal direito por parte das empresas comerciais108.
Portanto, a diferenciação das empresas a partir do setor de atuação para fins de creditamento de PIS/COFINS sobre gastos importantes é desproporcional à finalidade de manutenção da arrecadação e, por isso, resulta em violação da igualdade tributária109.
Aqui reside a relevância do postulado da proporcionalidade para o presente estudo: uma vez que a igualdade tributária orienta o regime não cumulativo do PIS/COFINS – como já reconhecido pelo STF em repercussão geral110 –, a desequiparação de empresas no que concerne ao direito à apuração de créditos das contribuições sobre insumos sem a devida observância da diretriz metódica informada pela proporcionalidade resulta em inevitável violação da igualdade tributária.
Postulado da igualdade e créditos de PIS/COFINS sobre insumos
Como visto no tópico IV.3.b, o postulado da igualdade impõe que eventuais equiparações ou desequiparações guardem relação justificada com a finalidade visada e assentem em critérios de comparação compatíveis e coerentes com tal finalidade. Tanto é assim que, como será visto em mais detalhes no tópico VI, o voto condutor da decisão proferida pelo STF no julgamento do RE n. 607.642/RJ, em sede de repercussão geral, sinalizou a violação da igualdade quando ocorre diferenciação “sem que o tratamento diferenciado esteja alicerçado em critério justificável de discriminação ou sem que a diferenciação leve ao resultado que a fundamenta”111.
Além disso, especificamente em relação à distinção entre empresas de diferentes setores para fins de reconhecimento do direito a créditos de PIS/COFINS sobre gastos importantes, o tópico V.1 indicou que, a menos que seja considerada arbitrária, tal distinção teria a finalidade de manutenção da arrecadação das contribuições (tendo como referência, naturalmente, o período anterior à introdução do regime não cumulativo).
É possível, partindo dessas premissas, avaliar a compatibilidade (ou não) entre a referida diferenciação de empresas e o postulado da igualdade, indagando-se sobre a existência ou não de relação justificada entre a desequiparação realizada e tal finalidade: a desigualdade de tratamento de empresas que atuam em setores distintos (e.g. setor industrial e comercial) guarda relação justificada com a finalidade de manutenção da arrecadação das
contribuições? Além disso, é preciso cogitar acerca da compatibilidade e coerência entre o critério comparativo eleito (setor de atividade) e a finalidade almejada: adotar o setor de atividade das empresas como critério comparativo é compatível e coerente com a finalidade de manutenção da arrecadação das contribuições?
Indagar sobre a compatibilidade da diferenciação promovida pela legislação com o postulado da igualdade se justifica porque, como recentemente reconhecido pelo STF no que se refere ao PIS/COFINS não cumulativo, tal regime de tributação das contribuições não prescinde da exigência de critério justificável para eventuais discriminações112.
Nesse contexto, para responder à primeira pergunta, inicialmente cabe reiterar que a manutenção da arrecadação é uma finalidade que aponta para os aspectos quantitativos da exigência tributária (e.g. alíquota e base de cálculo), e não para os aspectos subjetivos dessa exigência (contribuintes). Nesse sentido, é preciso recordar que, quando comparado com a sistemática cumulativa de apuração das contribuições, o regime não cumulativo do PIS/COFINS implicou no aumento das alíquotas das contribuições e na ampliação de suas bases de cálculo. Esses foram os ajustes normativos realizados que resultaram não apenas na manutenção da arrecadação, mas em seu aumento, como visto no tópico V.2. Logo, essas são as desequiparações entre empresas (não a partir do setor de atuação, mas do regime de apuração aplicável, com impacto sobre alíquotas e bases de cálculo) que talvez guardem relação justificada com a finalidade de manutenção de arrecadação113. Não há, porém, relação justificada entre a desigualdade de tratamento entre empresas a depender do setor de atuação e a finalidade de manutenção de arrecadação. Nesse particular, não basta que o legislador ou a autoridade fazendária, visando justificar a desigualdade relativamente ao direito de apropriação de créditos de PIS/COFINS sobre gastos importantes, ou seja, despesas incorridas com insumos, ofereça resposta que informe que a desigualdade em questão (direito a crédito ou não) decorre da desigualdade relativa ao setor de atuação das empresas (e.g. setor industrial, com direito a crédito, e setor comercial, sem tal direito). Nesse caso, a desigualdade terá sido apenas explicada – o que significa dizer: foi apresentada uma relação meramente causal entre o setor de atuação (e.g. industrial ou comercial) e o tratamento fiscal conferido às empresas (direito a crédito ou não) –, sem qualquer avaliação jurídica subjacente para além da simples explicação.
Ainda que não fosse essa a conclusão, a análise da compatibilidade e coerência entre os critérios de diferenciação (os setores de atuação das empresas) e o fim almejado (a manutenção da arrecadação), conduziria também à conclusão pela incompatibilidade entre a diferenciação e o postulado da igualdade. Com efeito, a adoção de um critério subjetivo, da forma como as autoridades fazendárias pretendem fazer valer em relação ao regime não cumulativo do PIS/COFINS, não é compatível e coerente com a finalidade de manutenção de arrecadação, sobretudo tendo em vista que, no caso, tal finalidade foi assegurada através do aumento de alíquotas e da ampliação das bases de cálculo.
Dessa forma, a desigualdade de tratamento fiscal das empresas a partir do setor de atuação para fins de apuração de créditos de PIS/COFINS em relação a gastos importantes reflete que, no caso, a norma em questão (inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003) não observa o postulado da igualdade, resultando em violação do princípio da igualdade tributária114.
Prevalência relativa da igualdade e créditos de PIS/COFINS sobre insumos
A diretriz metódica da prevalência relativa da igualdade, examinada no tópico IV.3.c, também aponta para a violação da igualdade tributária quando da distinção entre empresas para fins de reconhecimento do direito a créditos sobre gastos importantes.
Tendo em vista que a finalidade de manutenção da arrecadação foi integralmente satisfeita com as medidas concernentes ao aumento das alíquotas e à ampliação das bases de cálculo das contribuições na passagem do regime cumulativo para o não cumulativo, o grau de satisfação de tal objetivo pela diferenciação das empresas em virtude de seu setor de atuação é residual, até mesmo desprezível, visto que houve não apenas manutenção, mas aumento da arrecadação das contribuições115. Por outro lado, o grau de não satisfação do princípio da igualdade tributária é enorme, posto que, a valer o teor literal da norma (como inclusive aponta a interpretação fazendária), as empresas do setor comercial receberiam tratamento tributário desvantajoso, consistente na impossibilidade de apuração de créditos de PIS/COFINS sobre gastos importantes, quando comparadas a empresas que atuam em outros setores, que têm reconhecido esse direito a crédito.
Assim, o desenvolvimento de uma análise jurídica mais cuidadosa é capaz de demonstrar a incompatibilidade entre a diferenciação promovida pelo inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 e o princípio da igualdade tributária também quando
considerada a diretriz metódica da prevalência relativa da igualdade e o decorrente ônus argumentativo para sua superação.
Também sob essa perspectiva, portanto, não é compatível com a igualdade tributária a limitação imposta às empresas comerciais no que diz respeito ao direito à apuração de créditos sobre os insumos de sua atividade econômica.
STF: PIS/COFINS NÃO CUMULATIVO E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Como última nota antes de concluir a análise, é preciso acrescer que, em 2020, sob o rito da repercussão geral, o Plenário do STF se pronunciou pela constitucionalidade do regime não cumulativo do PIS/COFINS116. Ainda que este artigo não proponha, de forma alguma, a inconstitucionalidade do regime não cumulativo das contribuições como um todo, tendo em vista que a análise apontou a inconstitucionalidade do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 no que toca à limitação, apenas às empresas industriais e de serviços, do direito à apuração de créditos sobre os insumos, restringindo tal crédito em relação às empresas comerciais, é preciso verificar a compatibilidade de tal conclusão com a decisão proferida pela Corte Suprema.
Logo na ementa da decisão proferida pelo STF no RE n. 607.642/RJ é possível notar que, “com a edição da Emenda Constitucional nº 42/03, a não cumulatividade das contribuições incidentes sobre o faturamento ou a receita não pôde mais ser interpretada exclusivamente pelas prescrições das leis ordinárias”. Ou seja, a submissão da legislação ordinária de regência do PIS/COFINS não cumulativo às balizas constitucionais é indiscutível. Cabível, portanto, a análise do conteúdo do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 sob a perspectiva dos princípios constitucionais que orientam (ou deveriam orientar) a tributação, em especial a igualdade. Tanto é assim que, também consoante a ementa do acórdão, “o § 9º do art. 195, ao autorizar alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas em razão de determinados critérios (atividade econômica, [...]), não exime o legislador de observar os princípios constitucionais gerais, notadamente a igualdade”.
Afinal, “a não cumulatividade não pode deixar de estar vinculada aos princípios da isonomia e da capacidade contributiva”117. Isso posto, se por um lado, o “tratamento diferenciado, em si mesmo, não evidencia qualquer vício”, identifica-se ofensa à isonomia quando a diferenciação se dá “sem que o tratamento diferenciado esteja alicerçado em critério justificável de discriminação ou sem que a diferenciação leve ao resultado que a fundamenta”118. Tais construções autorizam o que foi exposto no tópico V.3, acerca da
projeção do postulado da igualdade sobre a questão da apropriação de créditos de PIS/COFINS sobre os insumos da atividade comercial, salientando-se ser esse mais um em meio àqueles casos nos quais “a ausência de critério do legislador também é verificável no rol dos gastos que geram direito a crédito”119.
Em outra passagem, diz a ementa do acórdão do RE n. 607.642/RJ que “é de se extrair um conteúdo semântico mínimo da expressão ‘não cumulatividade’, o qual deve pautar o legislador ordinário, na esteira da jurisprudência da Corte”. Nesse particular, o voto condutor do acórdão observa que “a não cumulatividade tem um parâmetro mínimo que o legislador não pode desrespeitar: evitar o efeito cascata da tributação, isto é, a incidência do tributo sobre o mesmo tributo”120. Retornando à ementa do acórdão, consta dela que, “diante de contribuições cuja materialidade é a receita ou o faturamento, a não cumulatividade dessas contribuições deve ser vista como técnica voltada a afastar o ‘efeito cascata’ na atividade econômica, considerada a receita ou o faturamento auferidos pelo conjunto de contribuintes tributados sequencialmente ao longo do fluxo negocial dos bens ou dos serviços”. Ora, é justamente o efeito em cascata que se verifica quando se impede que as empresas comerciais apropriem créditos de PIS/COFINS sobre itens (bens ou serviços) utilizados como insumo de suas atividades econômicas. Consequentemente, impedir que as empresas comerciais se creditem em relação aos insumos utilizados em suas atividades viola o “conteúdo semântico mínimo da expressão ‘não cumulatividade’” que, consoante decidiu o STF em sede de repercussão geral, “deve pautar o legislador ordinário”.
Nesse ponto, as Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003 não estão apenas “em processo de inconstitucionalização”, como o STF advertiu o legislador em relação ao setor de serviços no RE n. 607.642/RJ. Para o setor comercial, no que tange à restrição de creditamento de PIS/COFINS sobre insumos, a inconstitucionalidade é presente e flagrante. Afinal, reproduzindo outro trecho do voto condutor do acórdão, “como as leis majoraram com grande peso as alíquotas do PIS/COFINS, devem ser previstos efetivos mecanismos de equalização, sob pena de o instituto da não cumulatividade se transformar em mera majoração de tributos e de o art. 195, § 12, do texto constitucional perder sua força”. Atuando em sentido oposto ao de equalizar o efeito cascata das contribuições, a limitação imposta pelo inciso II do art. 3º das leis de regência da sistemática não cumulativa das contribuições às empresas comerciais contribui para a referida “mera majoração de tributos” com desrespeito aos princípios constitucionais tributários.
Por fim, o RE n. 607.642/RJ também corrobora o recurso às exposições de motivos das Medidas Provisórias n. 66/2002 e n. 135/2003, convertidas nas Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003, para fins de identificação a finalidade almejada pelo legislador com a edição de
tais diplomas121, o que, assumindo que a diferenciação promovida por tais normas não decorre de “discriminações arbitrárias ou injustificadas”, reforça a pertinência do desenvolvimento constante do tópico V.1, acerca da finalidade almejada com a desigualdade de tratamento de empresas a partir do setor de atuação, sempre recordando que “reconhecer que o legislador ordinário, [na escolha da técnica de não cumulatividade para o PIS/COFINS], encontra-se diante de área de maior liberdade para disciplinar a não cumulatividade [do que em relação ao ICMS e ao IPI] não significa afirmar que ele possa tudo querer ou tudo prever”122.
CONCLUSÃO
Aproximando-se os 20 anos da edição das medidas provisórias que resultaram nas leis de regência do regime não cumulativo do PIS/COFINS, pode-se afirmar que a disciplina desse regime apresentou, desde a origem, qualidade normativa inferior, colaborando para as disputas entre Fisco e contribuintes envolvendo as contribuições. Consoante posicionamento do STF sobre o tema, trata-se de “[modelo] complexo e confuso, mormente quanto às técnicas de deduções (crédito físico, financeiro e presumido) e aos itens admitidos como créditos”123.
Um dos pontos falhos de tal disciplina consiste na distinção, promovida pelo teor literal do inciso II do art. 3º das Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003, entre as empresas industriais e prestadoras de serviços, que fariam jus à apropriação de créditos de PIS/COFINS sobre os insumos de suas atividades, e as empresas comerciais, que não teriam reconhecido pela legislação ordinária tal direito.
Todavia, a análise das normas jurídicas pertinentes – sobretudo, do princípio da igualdade tributária e de algumas das diretrizes metódicas que orientam sua aplicação, em especial o postulado da proporcionalidade, o postulado da igualdade e a prevalência relativa da igualdade – revela que tal distinção viola o princípio da igualdade tributária, justamente porque em desacordo com as referidas diretrizes metódicas.
Consequentemente, é inconstitucional, por infringir a igualdade tributária, a restrição imposta às empresas comerciais no que concerne ao direito de apuração de créditos de PIS/COFINS sobre as despesas incorridas com a aquisição de insumos utilizados em suas atividades econômicas, nos moldes como prescrito pelo inciso II do art. 3º das Leis n.
10.637/2002 e n. 10.833/2003 e de acordo com a leitura que faz desse dispositivo o Fisco federal, consoante os §§ 40 a 44 do PN COSIT/RFB n. 5/2018.
Por força da necessária projeção do princípio constitucional da igualdade tributária sobre a disciplina ordinária do regime não cumulativo dessas contribuições, reconhecida pelo STF em repercussão geral, as empresas comerciais, assim como as empresas industriais e prestadoras de serviços, têm o direito à apuração de créditos de PIS/COFINS sobre os gastos com insumos de suas atividades econômicas.
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