DO PAU-BRASIL AO BITCOIN: BREVES APONTAMENTOS SOBRE OS IMPACTOS DA DIGITALIZAÇÃO DA ECONOMIA NA TRIBUTAÇÃO

FROM REDWOOD TO BITCOIN: BRIEF NOTES ON THE IMPACTS OF ECONOMY DIGITALISATION ON TAXTATION


Marivaldo Andrade dos Santos


Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Procurador Federal na Advocacia-Geral da União em Brasília/DF. E-mail: marivaldo.professor@gmail.com


Thiago Santos da Silva


Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Professor do Curso de Especialização em Direito Tributário do IBET. Agente Fiscal de Rendas da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo em Campinas/SP. Juiz Fazendário no Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo. E-mail: tssilva@fazenda.sp.gov.br



Recebido em: 11-10-2019

Aprovado em: 26-05-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-45-14



RESUMO


Nesse estudo, pretende-se analisar, brevemente, a história, os conceitos, os fundamentos e os elementos da tributação sobre o consumo no Brasil. Parte-se, inicialmente, do primeiro bem tributado em terras brasileiras, o pau-brasil, analisando-se, na sequência, as legislações posteriores, traçando-se um panorama da tributação sobre o consumo em nosso país. Tal esforço será feito com vistas a estabelecer uma conexão entre a tributação da economia tradicional com a possível tributação das novas realidades tributárias advindas das novas tecnologias, com especial destaque para os impactos da digitalização da economia. O recorte metodológico do presente trabalho se dará sobre a tributação sobre o consumo, mais especificamente sobre a tributação de “mercadorias”.


PALAVRAS-CHAVE: DIREITO TRIBUTÁRIO, MERCADORIA, ECONOMIA TRADICIONAL, DIGITALIZAÇÃO DA ECONOMIA

ABSTRACT


In this study, we intend to briefly analyze the history, concepts, fundamentals and elements of taxation on consumption in Brazil. Initially, we start from the first good taxed in Brazilian lands, the “Redwood”, analyzing, later, the subsequent legislations, drawing an overview of the taxation on consumption in our country. This effort will be made in order to establish a connection between the taxation of the traditional economy and the possible taxation of new tax realities arising from new technologies, with particular emphasis on the impacts of digitization of the economy. The methodological outline of the present work will be about the taxation on consumption, more specifically on the taxation of “goods”.

KEYWORDS: TAX LAW, PRODUCT, TRADITIONAL ECONOMY, DIGITAL ECONOMY


  1. INTRODUÇÃO

    As novas tecnologias têm sido responsáveis por significativa modificação no universo dos operadores do direito, seja no desenvolvimento das atividades, com a criação, por exemplo, da chamada Inteligência Artificial1, seja na influência da mutação de conceitos jurídicos, como fruto da adaptabilidade ao novo contexto.


    Em vista disso, há um profundo debate atualmente sobre a maneira como o Estado poderá atuar na regulamentação e na tributação de novas realidades advindas da economia digital. Talvez a demonstração mais significativa disso seja o intenso e progressivo processo de obsolescência do papel não só como meio de transmissão de dados e informações2, mas também como veículo de realização de transações ou como suporte físico para satisfação de algumas necessidades diárias. A conversão paulatina do material e do palpável em bem intangível repercute nos próprios elementos e institutos do Direito, como por exemplo, o conceito e a dimensão de mercadoria.


    Não resta dúvida de que a materialidade ainda continua sendo o signo predominante que determina a relação entre o contribuinte e o poder tributante. A tributação de realidades intangíveis, todavia, revela-se uma situação desafiadora. Isso porque, já estamos vivendo os efeitos de uma economia digitalizada que está remodelando a interação entre


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    1. A Inteligência Artificial revela-se uma ferramenta auxiliar dos operadores do direito, notadamente, no que tange ao desempenho de atividades repetitivas que não demandam a intervenção humana. Nesse sentido, SILVEIRA, Paulo Antonio Caliendo Velloso da. Tributação e inteligência artificial. In: AFONSO, José Roberto (coord.). Tributação 4.0. São Paulo: Almedina, 2020, p. 465-475.


    2. PACHECO FILHO, José Gomes. E-social: modernidade na prestação de informações ao Governo Federal. Rio de Janeiro: Atlas, 2015. A substituição do papel como suporte físico é ilustrado pelo cumprimento de obrigações eletrônicas interligadas.


      consumidores e os agentes econômicos, bem como redefinindo a relação entre tais agentes e o poder tributante estatal.


      O grande problema é que essa nova Revolução Digital baseia-se na produção e comercialização de uma mercadoria desmaterializada. Diferentemente da clássica Revolução Industrial, agora estamos diante da massificação de uma mercadoria impalpável e incorpórea. Além do mais, a transferência de bens – principalmente de capitais – já não depende dos tradicionais mecanismos de controle do Estado.


      É diante desse cenário que se revela importante proceder ao estudo, a partir de uma visão histórica, da forma como a tributação da mercadoria no Brasil – vista sob uma perspectiva tradicional – tem forte impacto na definição de imposições tributárias incidentes sobre novos bens econômicos imateriais.


  2. BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DA TRIBUTAÇÃO SOBRE OPERAÇÕES MERCANTIS

    A história da tributação do Brasil confunde-se com a sua própria descoberta, haja vista que a partir do momento que se iniciou a colonização, os descobridores começaram a aplicar no novo território todo o arcabouço legislativo português, inclusive as normas de natureza fiscal3. É intuitiva a suposição de que a primeira materialidade tributária nacional tenha recaído sobre a exploração comercial do produto mais valioso que a “joia da coroa” poderia oferecer: o pau-brasil.


    De fato, a Fazenda Real portuguesa, ao outorgar para si o monopólio do valioso bem destinado à tinturaria, exigia dos exploradores a quinta parte resultante do produto da venda da mercadoria, o que ficou conhecido como “o quinto do pau-brasil” ou “vintena”. Surgia, então, o primeiro tributo em terras brasileiras4.


    De lá para cá, foram múltiplas as materialidades que ensejaram a criação de diversos tributos, em razão das variadas atividades econômicas e mercantis experimentadas pelo Brasil ao longo dos séculos. O fato é que, no decorrer desse extenso período, a discriminação das receitas sujeitas à tributação gerou severos problemas de ordem prática, tendo em vista que nem sempre as situações escolhidas correspondiam efetivamente às devidas bases econômicas. A inexistência de uma relação direta entre os impostos e os fatos econômicos que se prestavam a fundamentar as obrigações tributárias implicou, no mais das vezes, a criação de número expressivo de impostos com nominações jurídicas diversas, mas economicamente iguais5.



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    1. MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. 6. ed. São Paulo: Forense, 2002, p. 107-109.


    2. Ibidem, p. 108.


    3. Ibidem, p. 155.


      A partir desse cenário, podem ser realizadas várias análises históricas relacionadas às diversas espécies de tributos criados no âmbito federal, estadual e municipal. Aqui importa discutir a evolução da tributação sob o ponto de vista das operações mercantis, para tentar compreender os desafios da legislação atual, que se baseia em conceitos e realidades econômicas tributárias, as quais ainda não refletem os fenômenos de uma nova economia, vocacionada a incrementar a criação de bens que já não encontram uma correspondência fiel aos conceitos e enquadramentos tradicionais de mercadoria.


      No Brasil, a tributação fundada em operações mercantis compreendeu o que se denominava de tributação sobre vendas. Na visão tradicional, o patrimônio, o rendimento e as transações representavam as fontes essenciais da receita tributária. Rubens Gomes de Sousa ponderava, a partir dessa tripartição, que a tributação incidente sobre as transações civis ou comerciais recaía sobre a circulação das riquezas, por representar um ciclo econômico que pode ser dividido em três fases: produção, transmissão da propriedade do bem produzido e o consumo6.


      Ao que tudo indica, tendo por base essa premissa, a tributação relacionada às operações mercantis tem origem, no Brasil, com a criação do tributo sobre vendas mercantis, que, apesar de ter sido instituído por meio do Decreto n. 22.061, de 9 de novembro de 1932, possui antecedentes que remontam às disposições do Código Comercial (art. 219). Essa referência possui pertinência para se compreender que, criado como um tributo federal, o tributo sobre vendas mercantis transferiu-se para a competência dos Estados pela Constituição de 1934, sob a denominação de “imposto sobre vendas e consignações” – IVC7. A competência para a instituição desse tributo no âmbito dos Estados foi conservada pelas Constituições de 1937 e de 1946.


      É importante ter presente que o imposto sobre vendas e consignações8 se constituía como um tributo multifásico, que incidia sobre todas as fases de circulação da mercadoria, do produtor ao consumidor. Havia uma repercussão da tributação em cascata, já que a cobrança realizada em uma transação não evitava uma nova exigência na operação subsequente. O excessivo ônus suportado pelos contribuintes propiciou o ambiente para a substituição do imposto sobre vendas e consignações por uma nova sistemática, baseada no valor acrescido ou agregado9.



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    4. SOUSA, Rubens Gomes de. A tributação das vendas: sua natureza, desenvolvimento e tendências modernas. Série Prática Fiscal n. 1. O imposto sobre vendas e consignações no sistema tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1956, p. 7.


    7 Ibidem, p. 14-15.


    1. Embora não seja o objeto desse estudo, cumpre anotar que, já na vigência da Constituição de 1934, e nas que se seguiram, houve intensa disputa e reivindicação em relação ao produto da arrecadação do imposto sobre vendas e consignações, no caso das operações interestaduais. Nesse sentido, BRANDÃO JUNIOR, Cândido Salvador. Federalismo e ICMS: Estados-membros em “Guerra Fiscal”. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 99.


    2. COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 3.


      Na tentativa de enfrentar esses problemas é que sobreveio a Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965, que substituiu o imposto sobre vendas e consignações pelo imposto sobre circulação de mercadorias (ICM). A primeira modificação encontra-se no fato de que o ICM alterou a base de incidência do tributo, que deixou de recair sobre negócios jurídicos específicos, passando a exigir a ocorrência de operação de circulação da mercadoria. Outro dado fundamental é que, com o advento do ICM, buscou-se aplicar a técnica da incidência não cumulativa; procurou-se ainda, e de forma ainda mais acentuada, eliminar os conflitos entre os Estados Federados relacionados às operações mercantis interestaduais10.


      Com a superveniência da Constituição de 1988, os Estados-membros tiveram a competência tributária, em certa medida, ampliada, de modo que, pelo inciso II do art. 155 da Carta Magna, esses entes federados passaram a poder instituir imposto sobre operação relativa à circulação de mercadoria e sobre prestações de serviços de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicação – ICMS.


      Por outro lado, as dificuldades, antes enfrentadas na administração do ICM, mantiveram- se após o advento do ICMS. Este trabalho, no entanto, não tem por objetivo discutir os tortuosos conflitos envolvendo os entes da Federação a respeito da fixação da competência para garantir fatias significativas do produto de arrecadação desse tributo.


      A exposição desses aspectos históricos se presta, todavia, a demonstrar basicamente duas situações: (i) que as vendas, as consignações e as mercadorias constituíram as bases materiais da incidência da tributação das transações mercantis no Brasil e (ii) que a tributação das operações relacionadas à circulação de mercadoria iniciou-se com a Emenda Constitucional n. 18/1965, tendo sido o modelo acolhido pela atual Constituição Federal.


      Essas premissas dão o suporte necessário para compreender a interação envolvendo a tributação tradicional da mercadoria e a tributação baseada na digitalização da economia, sobretudo para entender a distinção entre a mercadoria objeto da tributação pelo ICMS e a mercadoria intangível fruto de transações proveniente da nova tecnologia.


  3. O ATUAL ESTÁGIO DA TRIBUTAÇÃO SOBRE MERCADORIAS

    Com o advento das novas realidades econômicas, as matrizes tributárias materiais normativas e interpretativas, fundadas no conceito tradicional de mercadoria, precisam ser ajustadas, a fim de que as transações realizadas na era da “economia digital”11 sejam


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    1. BONILHA, Paulo Celso Bergstrom. IPI e ICM. Fundamentos da técnica não-cumulativa. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, p. 80-81.


    2. A economia digital não representa uma “parte separada da economia dominante”, mas possui, no entanto, características próprias: mobilidade, efeito de redes e uso das informações. Nesse sentido: PICONEZ, Matheus Bertholo. Os princípios da tributação no Estado da fonte e no Estado da residência e os impactos da economia digital no Brasil e no mundo. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 117.


      contempladas de modo inequívoco como hipóteses suscetíveis de incidência tributária. Para efeito da presente discussão, não há necessidade de verificação detalhada de todos os elementos que compõem a estrutura do ICMS, mas tão somente ater-se aos aspectos relacionados ao conceito de mercadoria, pois, com o conhecimento do alcance dessa definição é que se poderá compreender a dimensão dos efeitos da digitalização da economia.


      Não se pode deixar de considerar, no entanto, que desde o advento desse imposto (ainda como ICM) formou-se uma profunda divergência doutrinária em relação aos conceitos de “operação”, “circulação” e “mercadoria”. Para alguns estudiosos, a circulação da mercadoria exigiria a transferência da posse e da propriedade da mercadoria; para outros, a circulação econômica da mercadoria seria elemento indispensável para o aperfeiçoamento do fato gerador, dispensando-se a transmissão da posse ou da propriedade12. Já “operação” constitui qualquer ato ou negócio jurídico que tem por objetivo a transferência de mercadoria13.


      Embora relevante, a discussão acerca das diversas concepções do termo “circulação” (ou mesmo de operação14) não será aprofundada, como dito, porque o objeto central reside na tentativa de confrontar a polêmica em torno do conceito tradicional de mercadoria, tendo por base as repercussões jurídicas que esse termo provoca, mormente na atualidade, com o advento das novas transações tecnológicas que têm desafiado a doutrina e jurisprudência pátria.


      Para fins tributários, o conceito de mercadoria parece não possuir grandes variações, já que, em essência, ainda hoje a doutrina vem emprestando ao termo os traços que eram utilizados no sistema anterior (do ICM).


      De fato, Alcides Jorge Costa definiu mercadoria, para efeito do então ICM, como toda coisa móvel corpórea produzida para ser colocada em circulação, ou recebida para ter curso no processo de circulação. Esclarece que as mercadorias ou são produzidas para serem postas em circulação, ou são recebidas para continuarem seu curso no processo de circulação, até chegarem a consumo15.


      Já Hugo de Brito Machado considera que mercadoria compreende as coisas móveis. Diz que são coisas porque bens corpóreos, pois valem por si e não por aquilo que representam. Mercadoria seria coisa em sentido restrito, já que não são incluídos ações ou dinheiro, entre


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    3. BONILHA, Paulo Celso Bergstrom. IPI e ICM. Fundamentos da técnica não-cumulativa. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, p. 122-123.


    4. COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 96.


    5. Roque Carrazza entende que o ICMS “incide sobre operações com mercadorias (e não sobre a simples circulação de mercadorias). Apenas a passagem de mercadorias de uma pessoa para outra, por força da prática de um negócio jurídico, abre espaço à tributação por meio do ICMS” (CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 47).


    15 Op. cit., p. 99.


    outros. E mais, coisas móveis, porque ficariam excluídos os bens imóveis. Mercadoria seria, então, coisa móvel destinada ao comércio. Além do mais, a destinação representa a característica fundamental da mercadoria, pois só o é a coisa destinada ao comércio16.


    Roque Antonio Carrazza considera que não é qualquer bem móvel que pode ser conceituado como mercadoria, mas tão somente o bem móvel corpóreo (bem material) submetido ao regime de mercancia. Mercadoria é essencialmente vendida com o fito de lucro e o tributo incide sobre os negócios jurídicos regidos pelo direito comercial, que acarretam circulação de mercadoria17.


    Embora haja uma certa tendência de a doutrina delimitar o alcance do sentido de mercadoria, é importante ter presente que o tema está longe de representar uma unanimidade. Basta ver que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ainda não se consolidou sobre o assunto; e é essa indefinição da Suprema Corte sobre a dimensão jurídica do que pode ser concebido como mercadoria que constitui um dos pontos fundamentais da presente discussão.


    Inicialmente, o STF, instado a se manifestar acerca da controvérsia sobre o tratamento tributário do programa de computador (software), por ocasião da análise da comercialização dos chamados “software de prateleira” (off the shelf), considerou que “o conceito de mercadoria não inclui bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo” (RE n. 176.626, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ 11.12.1998)18.


    Ocorre que o assunto exige cautela, haja vista que o STF ainda vai definir, de maneira terminativa, se a corporeidade é determinante para a incidência de ICMS sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados. Na ADI n. 1.945 MC19, em que essa questão foi debatida, a Suprema Corte avançou e, em sede cautelar, admitiu que materialidade não constitui elemento essencial para a caracterização do bem20. A questão fundamental, para o efeito desse estudo, é estar atento ao fato de que, nesse caso, o STF


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    16 MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997, p. 29.


    17 Op. cit., p. 48.


    1. Precedentes específicos: RE n. 285.870 AgR, Segunda Turma, julgado em 17.06.2008; RE n. 199.464, Primeira Turma, julgado em 02.03.1999. Nesse sentido, decisão monocrática: RE n. 621407 AgR-segundo, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 29.04.2020.


    2. “[...] 8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados (art. 2º, § 1º, item 6, e art. 6º, § 6º, ambos da Lei impugnada). Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis.” (STF. ADI n. 1.945 MC, Rel. Min. Octavio Gallotti, Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, data de julgamento: 26.05.2010, data da publicação: DJe-47 11.03.2011)


    3. Nesse sentido, decisão monocrática: ARE n. 1.261.296/GO, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em: 22.05.2020.


      indicou que o conceito de mercadoria poderá ser ampliado, passando a constituir um bem corpóreo ou incorpóreo. Essa decisão demarcou fronteiras.


      A corporeidade, antes vista como elemento essencial para a caracterização da mercadoria, começa a ceder espaço à intangibilidade.


      O reflexo mais claro desse evento, ou dessa ampliação do conceito de mercadoria, associando-a também a bem incorpóreo, encontra-se no Convênio ICMS n. 106/2107, o qual disciplina os procedimentos de cobrança de ICMS nas operações envolvendo bens e mercadorias digitais comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados. Esse ato suscitou o ajuizamento da ADI n. 5.958-DF ainda pendente de análise pelo STF.


      Esse Convênio ICMS n. 106/2107 parece representar uma tentativa de unificar os entendimentos de mercadoria proferidos pelo STF no já citado RE n. 176.626-SP e, cautelarmente, na ADI n. 1.945 MC, na medida em que busca disciplinar a incidência do ICMS sobre mercadorias digitais padronizadas, ainda que comercializadas ou transferidas eletronicamente.


      Embora o objeto central desse trabalho não seja debater a regularidade da tributação disciplinada no Convênio ICMS n. 106/2107, é importante mencionar que a comercialização da mercadoria virtual possui uma forte tendência de atrair a discussão sobre a caracterização dessa atividade como prestação de um serviço ou como uma cessão de um direito, de modo a exigir a incidência do imposto de serviços de qualquer natureza – ISS21. O item 1.05 da Lista de serviços anexa à Lei Complementar n. 116/2003 considera serviços de informática e congêneres o licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.


      A compreensão da dimensão a ser atribuída ao conceito de mercadoria – tendo por base não mais aquelas definições albergadas na economia tradicional, mas nas novas realidades econômicas, cuja base sustenta-se em bens e transações imateriais – constitui o elemento fundamental da tensão que envolve a edição do Convênio ICMS n. 106/2107 e o item 1.05 da Lei Complementar n. 116/2003.


      A delimitação da fronteira entre mercadoria e serviço torna-se tênue22, situação que pode culminar não só em divergências de cunho normativo-interpretativo, mas também em


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    4. Essa tensão já é uma realidade, tendo em vista que alguns Estados da Federação já passaram a regular a incidência do ICMS sob re a disponibilização de bens digitais, com base no Convênio ICMS n. 106/2017. Nesse sentido, MEIRA JUNIOR, José Julberto. Análise da legislação catarinense que enquadrou o software como mercadoria imaterial para fins de incidência do ICMS. Revista Tributária e de Finanças Públicas n. 142. São Paulo, 2019, p. 199-220.


    5. A transmutação do conceito de mercadoria e de serviço, para efeito de incidência do ICMS e do ISS, tem ganhado corpo a partir do RE n. 176.626-SP e da ADI n. 1.945 MC. Nesse sentido, DANIEL NETO, Carlos Augusto. O paradigma da economia digital e os novos conceitos de serviço e mercadoria — reflexos na tributação. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 322-338.


      conflitos entre os entes titulares das competências tributárias23. A estrutura de uma economia tradicional, caracterizada por padrões relativamente rígidos, vai sendo aos poucos abalada. Em uma economia digitalizada é cada vez mais difícil apartar os traços distintivos entre a elaboração de uma mercadoria e a prestação de serviço. Esse fenômeno tende a acirrar as divergências entre Estados e Municípios24.


      Isso demonstra que a ampliação do conceito de mercadoria, para alcançar também bem intangível, poderá resultar em severas dissidências envolvendo as materialidades economicamente tributáveis, devido às inevitáveis confusões próprias da aproximação entre a comercialização de bens incorpóreos e a prestação de serviço, como é o caso das transações envolvendo software.


      Tendo por base a demonstração histórica da tributação da mercadoria, em diversos estágios e processos, bem como o posicionamento doutrinário e jurisprudencial que lhe atribui, em regra, a característica de bem móvel corpóreo com destinação mercantil, pode- se perceber que não há uma correspondência exata entre as bases jurídicas de sujeição da operação mercantil tradicional e aquelas transações oriundas das novas realidades econômicas.


      Como não poderia deixar de ser, essa incongruência ou incompatibilidade produz um ambiente de incerteza e de insegurança jurídica. É diante desse quadro que se passará a discutir, a seguir, as repercussões das atuais normas tributárias – editadas, como visto, sob o signo da materialização ou corporificação da mercadoria – em relação a fatos econômicos que, aceleradamente, tendem à digitalização.


  4. OS IMPACTOS TRIBUTÁRIOS DAS NOVAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS

    Vive-se um momento de profunda alteração dos paradigmas fundamentais em que se basearam e se baseiam a tributação. Apressa-se em dizer que não se está prestes a assistir a um desmonte do arcabouço sobre o qual se sustentam as relações jurídicas que envolvem o direito de tributar e o dever de suportar o ônus fiscal. Não se trata disso. A questão é mais de adaptabilidade, sobretudo dos gestores públicos25.


    Na verdade, encontra-se em gestação um processo que se revela desafiador: a estruturação da economia tradicional, ao menos em parte, está cedendo lugar, iniludivelmente, a um tipo de relação econômica, caracterizada essencialmente pela digitalização, que tende a escapar


    1. Nesse sentido, GALDINO, Guilherme. Streaming: ICMS-Mercadoria, ICMS-Comunicação ou ISS sobre serviço de valor adicionado? Revista Tributária e de Finanças Públicas n. 140. São Paulo, 2019, p. 84-104.


    2. SCHOUERI, Luís Eduardo. Aspectos relacionados à tributação sobre o consumo. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 254-255.


    3. AFONSO, José Roberto. Impactos da Revolução Digital na tributação: uma primeira revisão bibliográfica. In: AFONSO, José Roberto (coord.). Tributação 4.0. São Paulo: Almedina, 2020, p. 217-226.


      do alcance das normas vigentes, já que as regras tributárias não normatizam por completo tal situação ou não captam essa nova realidade, na medida em que ainda não refletem, de maneira clara e objetiva, não só a materialidade a ser tributada, mas também a própria identificação dos sujeitos responsáveis pela concretização dos fatos passíveis de gerar a obrigação tributária.


      Daí se pode ver que se está diante da existência de novos fenômenos que merecem uma delimitação normativa específica ou, na melhor das hipóteses, uma interpretação mais consentânea que venha a aproximar o fato tributável da respectiva lei de regência, respeitando-se a devida regra de tipificação e de subsunção. Ocorre que, no mais das vezes, o modelo tradicional de tributação carece de elementos descritivos e prescritivos em relação às situações impostas pela nova economia digital.


      Está-se a ver de logo que a solução que parece ser a mais tentadora – ao menos se tomada a perspectiva do poder tributante – encontra-se na busca por uma tributação que deixa de observar os estritos termos legais; tendo em vista que, na ausência de uma normatividade específica, há uma tendência em tributar os fatos derivados da economia digital, a partir da aproximação do alcance semântico da materialidade legal vigente eleita como hipótese de incidência. Um bom exemplo dessa situação encontra-se na disciplina da cobrança do ICMS em relação às mercadorias digitais vendidas por transferência digital a que se refere o Convênio ICMS n. 106/2107 e que será objeto de definição pelo STF na ADI n. 5.958-DF, como visto.


      Tendo por base esse contexto e fixadas essas premissas, parece-nos que a mercadoria, ou melhor, o conceito de mercadoria, tem sofrido o influxo direto dessa tendência, consubstanciada, como dito, na dilatação indisfarçada de um dado elemento normativo, a pretexto de se estar exercendo uma atividade interpretativa de conformação ou subsunção. A seguir essa tendência, restará evidente a transgressão do § 1º do art. 108 do Código Tributário Nacional, segundo o qual o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.


      Traz-se à baila o § 1º do art. 108 do CTN, para se destacar que, tendo em vista que a legislação tradicional não tem acompanhado a evolução da economia digitalizada, o risco que se corre é de o poder tributante se encarregar de preencher a lacuna legislativa, por meio de construções que atendam mais aos interesses do fisco do que do próprio contribuinte. Nesse caso, deve-se cuidar para não se abusar da utilização da analogia, ante a ausência de norma tributária específica.


      A atividade de interpretação não pode ser confundida com a atividade de criação. São preciosas as lições de Alfredo Augusto Becker26, ao distinguir a analogia por compreensão


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    4. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 7. ed. São Paulo: Noeses, 2018, p. 140.


      e a analogia por extensão. Segundo esse autor, “na analogia por compreensão há interpretação, porque o que o intérprete faz é a constatação de regra jurídica já existente e resultante do cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico. Isto é, a lei, considerada em si mesma como um ser isolado, não existe como regra jurídica”. Já em relação à analogia por extensão, explica o mesmo autor que “não há intepretação, mas criação de regra jurídica nova”.


      Essa lição faz todo o sentido, em tema relacionado à mercadoria, em particular à mercadoria intangível, fruto da digitalização da economia, porque se pode utilizar os métodos interpretativos (ou a pretexto de utilizá-los) para, na verdade, usar a analogia por extensão, e, por consequência, criar uma “regra jurídica nova”. Por isso, mais uma vez é preciso atentar para a lições de Alfredo Augusto Becker, para quem “cumpre observar que o caso da regra jurídica autorizando a analogia por extensão não se confunde com o caso de regra jurídica tributária com hipótese de incidência exemplificativa [...]. Nos casos de hipótese de incidência exemplificativa não há analogia por extensão (criação de regra jurídica), mas simples analogia por compreensão.”27


      Em momento de transição ou até mesmo de reviravolta paradigmática, a crença no dogma da completude do sistema jurídico28 pode suscitar a falsa ideia de que a integração das normas pode legitimar a exigibilidade de uma dada obrigação tributária. Particularmente no que tange às novas realidades econômicas, parece duvidoso crer que a analogia – entendida como aquele procedimento em que se atribui a uma situação não regulada em lei os mesmos efeitos de outra expressamente regulada – possa suprir a lacuna legislativa, de modo a atender ao critério da tipicidade tributária cerrada ou da legalidade tributária estrita.


      Não se chama a atenção do princípio da tipicidade tributária por acaso. A tributação dos fenômenos próprios da digitalização da economia parece dispensar, ao menos no que tange às singularidades, os meios utilizados pela tributação tradicional29.


      Como acentua Alberto Xavier30, o princípio da tipicidade tributária constitui o meio mais adequado “à plena compreensão do próprio conteúdo de reserva absoluta e, portanto, dos limites que a lei impõe à vontade dos órgãos de aplicação do direito em matéria tributária”,


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    5. Ibidem, p. 142.


    6. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UNB, 1999, p. 146.


    7. No Direito Tributário, em regra, o pressuposto fático de incidência deve manter uma correspondência legal. Cf. POLIZELLI, Victor Borges. O problema do tratamento tributário dos contratos atípicos da economia digital: tipicidade econômica e fracionamento de contratos. Revista Direito Tributário Atual vol. 39. São Paulo: IBDT, 2018, p. 474-506. Nesse particular, diz-se que “no direito tributário, as consequências normativas serão sempre típicas (pois a legislação tributária, ao descrever o fato gerador, cria os seus próprios tipos, ainda que fazendo remissão a tipos de direito civil)”.


    8. XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: RT, 1978, p. 70-71.


      e prossegue, para dizer que os tipos tributários não podem ser criados “pelo costume ou por regulamentos, mas apenas por lei”.


      Ricardo Lobo Torres31 acrescenta que “o princípio da tipicidade tributária é um corolário do princípio da legalidade e, como tal, se subordina à ideia de segurança jurídica. Mas se abre sempre para a ponderação com o princípio da capacidade contributiva e outros vinculados à ideia de justiça.”


      Para Misabel Abreu Machado Derzi32 “tipificar significa criar tipos. Esse modo de pensar é dito tipificante, porque, em trabalho precedente do aplicador da lei, são extraídas as características comuns à maior parte de uma multiplicidade de fenômenos, em tese passíveis de enquadramento na norma e formado o tipo (abstração-tipo), esquema ou padrão”.


      Já foi lembrado que Rubens Gomes de Sousa considerava que o patrimônio, o rendimento e as transações representam as três fontes essenciais da receita tributária. É preciso acrescentar que, para esse mesmo autor, “a tributação da circulação das riquezas, por constituir um ciclo econômico, pode dar lugar a figuras tributárias juridicamente diferenciadas conforme a fase escolhida pelo legislador para assento da imposição”33.


      No atual estágio em que a produção e o ciclo econômico sofrem profundas modificações, as figuras tributárias estão, exatamente, se diferenciando, como destacou Rubens Gomes de Sousa, de tal sorte que cabe ao legislador criar novos mecanismos para ajustar a legislação tributária a uma economia que se revela, diuturnamente, cada vez mais digital. O conceito de mercadoria já não se limita, na prática, a bem corpóreo, como tradicionalmente conceituado pela doutrina. A tributação de bens imateriais, incorpóreos e intangíveis parece ser uma realidade, basta ver a tributação dos fluxos de capitais nas instituições financeiras. Há, todavia, outros aspectos e fenômenos que merecem ser investigados.


  5. A DIGITALIZAÇÃO DA ECONOMIA E AS NOVAS REALIDADES TRIBUTÁRIAS Após esforços histórico, doutrinário e jurisprudencial a fim de se estabelecer o conceito, alcance e limites possíveis à materialidade “mercadorias”, far-se-á aqui uma breve

    abordagem contextual sobre o fenômeno da digitalização da economia, passando-se à



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    1. TORRES, Ricardo Lobo. O princípio da tipicidade no direito tributário. Revista de Direito Administrativo vol. 235. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 193-232.


    2. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 1.262. Além disso, para a autora, o uso da palavra tipo possui três importantes acepções: tipo como ordenação do conhecimento em ordens que admitem as transições fluídas e contínuas, tipo com sinônimo de Tatbestand ou suposto fático da norma jurídica e tipo como técnica administrativa ou judicial de simplificação da execução das leis (especialmente das leis tributárias). Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 335-336.


    3. Op. cit., p. 4.


      análise dos principais possíveis impactos em seara tributária, mais especificamente em relação à tributação sobre o consumo (mercadorias).


      A economia digitalizada é identificada por pelo menos quatro características: grande dependência de intangíveis; uso massivo de dados (notadamente os pessoais); adoção de modelos de negócios multilaterais; e dificuldade de determinação da jurisdição na qual a criação de valor ocorre34. Essas características têm repercussões relevantes em âmbito tributário provocando três grandes alterações no paradigma socioeconômico: (i) desintermediação das transações, (ii) desterritorialização das atividades; e (iii) desmaterialização dos bens35.


      Numa economia digitalizada tal expediente perde cada vez mais sua relevância, já que a cadeia de consumo é significativamente reduzida. O consumidor final tem acesso direto ao produtor do bem adquirido e, no cenário mais otimista, a transação dependerá apenas de mais dois agentes: a plataforma de vendas (Platform Sellers) e a instituição financeira (e.g. operadoras de cartões de créditos). Já num cenário menos otimista (e.g. pagamento com criptomoedas) a operação prescindiria até destes dois, esvaziando de aplicabilidade esta prática do Fisco.


      Nesses últimos casos, a criptografia ponta a ponta inerente às criptomoedas inviabiliza a identificação dos sujeitos que transacionam, deixando patente a falibilidade de uma tributação calcada no modelo de transações intermediadas. No extremo, a tributação de operações de – ou com a utilização de criptomoedas dependeria, exclusivamente, da declaração espontânea do contribuinte ao ente tributante.


      A desterritorialização das atividades é outra alteração de paradigma provocada pelas características da digitalização da economia. Nesse contexto, negócios jurídicos podem ser realizados independentemente de barreiras geográficas. Bens digitais de altíssimo valor agregado são transferidos de jurisdição ao clicar de um botão, o que muitas vezes impede a identificação do fato tributável e da titularidade ativa do tributo exigível.

      Esse fenômeno é observado, principalmente, nos modelos negociais denominados peer to peer exchange (P2P)36, dentre os quais citamos o Bitcoin, já que sua cadeia de transação é exclusivamente digital37. Uma transação com esse bem digital pode ser feita por usuários


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    4. Cf. OECD. Addressing the tax challenges of the digital economy, Action 1 – 2015 Final Report, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. Paris: OECD Publishing, 2015, p. 16. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264241046-en. Acesso em: 04 jun. 2020.


    5. GRECO, Marco Aurélio. Tributação e novas tecnologias: reformular as incidências ou o modo de arrecadar? Um “SIMPLES” informático. In: MONTEIRO, A.; FARIA, R.; e MAITTO, R. (org.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.


    6. Modelo negocial caracterizado pelo contato direto entre o consumidor e o produtor. Cf. IMF STAFF DISCUSSION NOTE – Virtual currencies and beyond: initial considerations. Disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2016/sdn1603.pdf. Acesso em: 08 jun. 2020.


    7. Consigna-se que há a possibilidade da criptomoeda ser custodiada fisicamente, a exemplo das carteiras de hardware (hardware wallets).


      em qualquer localidade do planeta, independentemente de qualquer autoridade aduaneira ou monetária, tanto quando utilizado como meio de pagamento, quanto em operações em que figura como o bem transacionado.


      O bem é digital, sendo transferido por meio eletrônico e, enquanto característica intrínseca às moedas digitais, de maneira criptografada. Além de não existirem barreiras físicas para as transações, também não há possibilidade de identificação daqueles que transacionam o Bitcoin. Um simples comando transfere sua propriedade de um usuário na China para um do Brasil, sendo praticamente impossível para as Administrações Tributárias a identificação da operação.


      Com o crescimento do capital intangível o território perde, necessariamente, sua função de apoio. Esse fenômeno tem especial repercussão em seara tributária, vez que produz efeitos diretos na identificação do local de ocorrência do fato tributável, bem como na determinação do sujeito ativo da obrigação e consequente legislação aplicável.


      Conforme já anotado anteriormente, parte majoritária da doutrina tributária se assenta sobre uma definição materialista de “bens”. Não se cogitava a fruição de determinada utilidade desprendida ou independente de um suporte físico que a constituísse. Corrobora tal constatação o teor da decisão do Recurso Extraordinário n. 176.62638, já mencionada, em que foi reconhecida a tributação dos chamados softwares de prateleiras pelo ICMS, sob o fundamento de que o suporte físico constituiria o corpus mechanicum da produção intelectual (intangível), representando, por esse motivo, uma mercadoria posta em circulação.


      No caso citado, julgado há mais de duas décadas, já se podia perceber o fenômeno do crescimento do capital intangível: se o suporte físico consubstanciava a produção intelectual, o valor desse conjunto corporificado estaria em seu conteúdo intangível (bits) e não no objeto em que se encontrava (átomos).


      Com o avanço das tecnologias, mais especificamente na capacidade das redes de transmissão de dados, a necessidade de suportes físicos para circulação de dados tende a zero. Em contrapartida, o valor das informações cresce exponencialmente. Tal assertiva é perfeitamente verificável no exemplo, já citado alhures, da precificação do Bitcoin.


      Essa criptomoeda, enquanto bem, enquadrar-se-ia, perfeitamente, em qualquer definição tradicional, excetuando-se, obviamente, do caráter de tangibilidade. Posicionamo-nos na


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    8. “Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de ‘licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador’ ‘matéria exclusiva da lide’, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo – como a do chamado ‘software de prateleira’ (off the shelf) – os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.” (RE n. 176.626, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 10.11.1998, DJ 11.12.1998)


      confortável companhia de Marco Aurélio Greco39, para quem, já na longínqua década de 90, em primoroso trabalho sobre a tributação da internet, a tangibilidade é desnecessária para a caracterização de certo bem como mercadoria.


      Não obstante essa tendência facilmente observável, há outro fenômeno, de natureza socioeconômica, que possivelmente mudará as estruturas da tributação sobre a propriedade, o qual é a “servicificação” das utilidades de bens duráveis. Dois ótimos exemplos desse processo são os modelos negociais de assinatura de veículos (e.g. Porto Seguro Carro Fácil e Unidas Sempre Zero) e as plataformas de intermediação de hospedagens (e.g. Airbnb). Não nos ateremos ao tema por sair do escopo do presente trabalho, mas consignamos por representar, claramente, que o dinamismo da realidade possui uma marcha avassaladora em comparação com a “necessária” estática do Direito.


  6. CONCEITOS TRADICIONAIS VERSUS NOVAS REALIDADES

    Expostas as principais alterações advindas do fenômeno da economia digital, voltemos à análise do objeto proposto na introdução do presente estudo: a análise do conceito de mercadoria como instrumento metodológico para a averiguação dos possíveis impactos da digitalização da economia na tributação.


    A tributação de “mercadorias” em nosso sistema constitucional tributário se dá, basicamente, por meio do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ICMS, conforme previsão do art. 155, II, da CF/198840.


    Não se fazem necessárias maiores incursões sobre o texto constitucional para que identifiquemos o descompasso entre o paradigma econômico utilizado quando da instituição do tributo e o novo paradigma imposto pela digitalização da economia. O próprio nomen juris do tributo deixa evidente que sua materialidade evoca a corporeidade dos bens (operação de circulação para as mercadorias e prestação de serviço para os intangíveis) bem como a territorialidade das operações/prestações (“circulação”, “intermunicipal” e “interestadual”). O caractere de intermediação de transação é identificado, patentemente, na figura do substituto tributário, prevista no art. 150, § 7º, da CF/198841.


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    1. GRECO, Marco Aurélio. Internet e direito. 2. ed. São Paulo: Dialética, p. 82-88.


    2. “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

    II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;”


    41 “Art. 150. [...]

    § 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”


    Assim sendo, observa-se, pela mera oposição de características, que os paradigmas não são somente descompassados, mas são sim contrários. Quando se tributa com base na intermediação das transações, estas são cada vez mais desintermediadas; onde se consideram as fronteiras físicas e as barreiras geográficas, as operações prescindem de territorialidade; se o bem necessita de corporeidade para ser tributável, cada vez mais cresce o capital intangível.


  7. CONCLUSÃO

O levantamento histórico da legislação da tributação da mercadoria no Brasil, ainda que realizada de maneira parcial e segmentada, deixa entrever que havia, em cada um desses momentos, por mais divergentes que se apresentassem as leis e normas sobre o assunto, um traço comum: o elemento físico a ser tributado. A realidade demonstra que esse quadro não tende a se alterar em um curto espaço de tempo. O problema é que a realidade também revela que a corporificação da materialidade a ser tributada está se diluindo, em função das profundas mudanças pelas quais passa a economia. O fluxo de riqueza e, portanto, a base tributável tem-se modificado constantemente. Nesse sentido, ainda que não se tenha uma delineação precisa da maneira como as instituições, em particular aquelas responsáveis pela elaboração e execução da legislação, vão enfrentar os grandes desafios advindos com os impactos da economia digital.


As novas propostas de negócio – agora em um ambiente eminentemente digital – impõem profundos desafios à construção de uma legislação compatível com essa realidade. Como demonstrado no presente trabalho, a digitalização da economia poderá conduzir o poder tributante à construção de mecanismos que podem não se revelar próprios para a exigibilidade do tributo, notadamente, no que tange à não observância dos princípios basilares do Sistema Constitucional Tributário. Destacou-se que, na ausência de disposições expressas sobre a matéria, isso poderia ocorrer, equivocadamente, mediante o emprego da analogia, como forma de exigir, de modo direto ou indireto, uma obrigação decorrente da nova realidade digital com base em critérios da economia tradicional, em clara ofensa ao § 1º do art. 108 do CTN.


Ocorre que a percepção que se tem é que o poder tributante – principalmente na esfera municipal e estadual – tende a compreender que a legislação interna já permite ou admite a tributação de algumas das novas materialidades digitais. Basta citar que a intangibilidade de certos elementos tributáveis tem proporcionado sucessivos conflitos federativos, envolvendo municípios e estados; notadamente, divergências sobre a definição e o alcance do que venha a ser serviço ou mercadoria.


Diante de um cenário turvo, em que os elementos fundamentais da tributação da economia digital ainda não estão definidos, deve-se primar pela busca urgente de certeza, de segurança e de previsibilidade da legislação, como forma de se permitir que as novas bases


econômicas, resultantes dos modernos avanços tecnológicos, encontrem nas instituições públicas um ambiente propício para o seu pleno desenvolvimento, sem prejuízo da atividade da Administração Tributária, que – em sendo construídas regras e normas compatíveis com a era da digitalização – poderá exercer o cumprimento da fiscalização das obrigações tributárias com maior rigor, proporcionando, assim, uma arrecadação mais efetiva, sem obstar a plena observância dos direitos fundamentais dos contribuintes.


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