DA FÁBULA À REALIDADE: O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E O PAPEL DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E DA LEGALIDADE NESTE DEBATE

FROM FABLE TO REALITY: THE TAX PLANNING AND THE ROLE OF ABILITY TO PAY AND LEGALITY IN THIS DEBATE

Martha Leão


Professora de Direito Tributário da Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo/SP. Doutora e Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo. Mestre em Teoria do Direito e Democracia Constitucional pelo Istituto Tarello per la Filosofia del Diritto/Università Degli Studi di Genova. Advogada em São Paulo. E-mail: martha.leao@humbertoavila.com.br


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-45-15



RESUMO


O presente artigo objetiva analisar criticamente o papel da capacidade contributiva e da legalidade no debate sobre os limites ao planejamento tributário. Serão examinadas duas questões críticas à teoria de que haveria um direito fundamental de economizar tributos: (i) primeiro, o argumento de que a doutrina nunca teria defendido que a capacidade contributiva ou a solidariedade poderiam ser utilizadas para fundamentar a criação de obrigações tributárias; e (ii) segundo, o argumento de que o papel da legalidade seria irrelevante para o debate acerca do planejamento tributário. A partir do enfrentamento destas questões controvertidas, pretende-se avançar sobre o papel que a capacidade contributiva e a legalidade exercem diante da controversa delimitação dos limites da atuação do contribuinte para economizar tributos.

PALAVRAS-CHAVE: PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, LEGALIDADE, DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR TRIBUTOS


ABSTRACT


This article aims at critically analyzing the role of ability to pay and legality in the debate about the limits to tax planning. Two critical questions to the theory that there is a fundamental right to save taxes will be addressed: (i) first, the argument that the doctrine never argued that ability to pay or solidarity can be used to create tax obligations; and (ii) second, the argument that the role of legality is irrelevant to the tax planning debate. After the confrontation of these controversial questions, the article advances its analysis on the role that ability to pay and legality exert in the controversial delimitation of the limits of the taxpayer’s action to save taxes.

KEYWORDS: TAX PLANNING, ABILITY TO PAY, LEGALITY, FUNDAMENTAL DUTY TO PAY TAXES


[“Es gibt Themen, die sind so vielgestaltig, daß man sie monographisch eigentlich nicht bearbeiten kann und gleichzeit so wichtig, daß man sie gleichwohl in ihrer ganzen Breite in den Blick nehmen muß. Das Verhältnis von Freiheit, Demokratie und Sozialstaatlichkeit nach dem Grundgesetz ist ein solches Thema.”] HEINIG, Hans Michael1.

[“Confesso que não sou um pragmático, principalmente quando lido com o Direito.

Para mim, Direito é ciência, possui institutos, expressões, vocábulos com sentido próprio. Direito é regência da vida em sociedade e representa, acima de tudo, segurança jurídica.”] MELLO, Marco Aurélio2.


INTRODUÇÃO

O debate sobre planejamento tributário não é um debate sobre heróis e vilões. O debate sobre planejamento tributário também não é simplesmente um debate sobre uma doutrina ultrapassada, formalista e tradicional e outra, progressista, visionária e moderna. Tampouco é um debate sobre solidários versus não solidários. Trata-se, ao contrário, de um debate sobre a interpretação dos dispositivos da Constituição, sobre o exercício de direitos fundamentais pelos contribuintes e sobre o exercício do poder de tributar pelo Estado. Não existe, evidentemente, uma dicotomia simplória entre o bom e o mau, o científico e o não científico, ou entre o ultrapassado e o moderno para a resolução desta controvérsia.


Da premissa, contudo, de que não há uma resposta simples ou reducionista para esta questão intrincada não resulta a conclusão de que nenhuma resposta seja, do ponto de


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  1. Em tradução livre: “Existem temas tão complexos que não podem ser tratados monograficamente, e, que, ao mesmo tempo são tão importantes, que precisam ser contemplados em toda a sua amplitude. A relação entre a liberdade, a democracia e o Estado de Bem-estar Social de acordo com a Lei Fundamental é um desses temas.” (HEINIG, Hans Michael. Der Sozialstaat im Dienst der Freiheit: zur Formel vom “sozialen” Staat in Art. 20 Abs. 1 GG. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008, p. 3)


  2. BRASIL, STF, Questão de Ordem no Recurso Extraordinário n. 580.108, Tribunal Pleno, julgado em 11.06.2008, p. 37 do acórdão.


    vista do Sistema Tributário Constitucional posto, mais justificada do que outra. Em outras palavras, o fato de haver interpretações possíveis diante do texto constitucional não significa que não haja interpretações mais fortemente justificadas no próprio ordenamento jurídico do que outras. Não por escolha do intérprete, mas por escolha constitucional na forma de diretivas cogentes (regras), que anteciparam, por parte do constituinte, a ponderação de determinados valores em âmbitos específicos do Direito. O fato de estas regras estarem sujeitas, elas próprias, à interpretação, não significa, como se poderia supor, que o intérprete possui sempre o mesmo grau de discricionariedade e abertura a determinados tipos de argumentos no momento da sua interpretação e no momento da determinação do seu âmbito de aplicação (ou seja, na qualificação do caso concreto para a aplicação da regra). Reconhecer que a interpretação não é uma atividade meramente descritiva, mas também decisional e criativa por parte do intérprete não importa na desconsideração de que o sentido preliminar das palavras prescritas pelo texto tem força vinculante – e que o grau desta vinculação difere de acordo com o grau de restrição dos direitos fundamentais envolvidos3.


    O debate sobre planejamento tributário, portanto, passa, dentre outras questões, tanto pelo papel atribuído à capacidade contributiva, quanto pelo papel atribuído à legalidade. Isso porque as normas reconstruídas a partir das disposições constitucionais que tratam destes dois temas são fundamentais para determinar o argumento de interpretação a ser utilizado pelo intérprete e o âmbito de aplicação das regras tributárias pelo aplicador. Esta não é uma questão do “imaginário” da doutrina ou, noutro dizer, “irrelevante” para o debate científico sobre a matéria.


    Este debate sobre os limites para a realização de planejamentos tributários sempre foi fruto de numerosos trabalhos doutrinários, não havendo qualquer alteração deste fato no cenário recente4. Reitera-se, não obstante seja desnecessário, que há evidentes pontos de concordância e de discordância entre as posições doutrinárias e que o debate acerca dos desacordos é necessário e salutar para o desenvolvimento científico. Não há ganhadores e perdedores nesse debate: o que há é o aprimoramento da Ciência, enquanto “compromisso com um trabalho compartilhado, com base na razão, na liberdade intelectual, na humildade, no respeito e na tolerância”5.



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  3. Sobre a vinculação do intérprete ao texto, vide: LAPORTA, Francisco J. El imperio da la ley – una visión actual. Madrid: Trotta, 2007, p. 176; PECZENIK, Aleksander. On law and reason. 2. ed. Dordrecht: Springer, 2008, p. 336; ALEXY, Robert. The dual nature of law. Ratio Juris vol. 23, n. 2, jun. 2010, p. 167-182 (179); ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. Revista de Direito Tributário v. 79. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 163-183 (179).


  4. A título meramente exemplificativo: GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019; ROCHA, Sergio André. Planejamento tributário na obra de Marco Aurélio Greco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; SILVA, Rômulo Cristiano Coutinho da. Planejamento tributário e segurança jurídica. São Paulo: Quartier Latin/IBDT, 2019; ANDRADE, Leonardo Aguirra de . A informação obrigatória de planejamento tributário e os seus limites. Tese de Doutorado. São Paulo: Largo São Francisco, USP, 2019; FOLLONI, André. Capacidade contributiva e dever fundamental. Revista Direito Tributário Atual vol. 42, ano 37. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2019, p. 484-508.


  5. ÁVILA, Humberto. Ciência do direito tributário e discussão crítica. Revista Direito Tributário Atual vol. 32. São Paulo: Dialética e IBDT, 2014, p. 159-197 (197).


    Nesse contexto e como forma de contribuir para este debate, o presente artigo tem como objetivo analisar duas críticas propostas por obra recente à tese de que haveria direito ao exercício do planejamento tributário, em outras palavras, à tese de que haveria um direito fundamental de economizar tributos e que este direito não poderia ser objeto de ponderação por meio da extensão ou criação analógica de deveres tributários em decorrência da aplicação dos princípios da solidariedade, da capacidade contributiva ou da igualdade6. As críticas são as seguintes: (i) primeiro, a de que nunca se defendeu que a capacidade contributiva ou a solidariedade poderiam ser utilizadas para fundamentar a criação de obrigações tributárias; e (ii) segundo, a de que o papel da legalidade seria irrelevante para o debate acerca do planejamento tributário. Estas críticas podem ser sintetizadas pelos seguintes trechos da obra de Rocha:

    “Não nos parece que haja qualquer passagem, na obra de Marco Aurélio Greco, onde o autor sustente a possibilidade de surgimento de um dever jurídico tributário a partir do valor constitucional solidariedade e do princípio da capacidade contributiva.”7

    “Marco Aurélio Greco tem uma visão mais aberta sobre o princípio da legalidade? Sem dúvida. Essa visão mais aberta tem relação com os limites do planejamento tributário? Não! Os limites do planejamento tributário são encontrados na descrição hipotética na lei do fato tributável.”8


    São estes dois pontos que serão objeto de análise neste artigo. Ao tratá-los, o que se pretende discutir é, de um lado, se a teoria doutrinária acerca da eficácia positiva da capacidade contributiva e da solidariedade não geraria, como consequência, a criação de deveres tributários diretamente a partir destes princípios; e, de outro lado, se a teoria doutrinária que defende a “deslegalização” do Direito Tributário, ou ao menos a sua flexibilização do ponto de vista formal, não geraria, do mesmo modo, efeitos para o debate acerca dos limites do planejamento tributário. É o que se passa a analisar.


    1. O PAPEL DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA NO DEBATE SOBRE PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

      A primeira questão a ser analisada por este artigo diz respeito a saber se parte da doutrina defende, ou não, a criação de deveres jurídico-tributários de contribuir com a arrecadação estatal em decorrência dos valores constitucionais da solidariedade e da capacidade contributiva. A resposta para esta questão é afirmativa, com a devida vênia ao



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  6. Sobre o direito fundamental de economizar tributos, vide: LEÃO, Martha. O direito fundamental de economizar tributos. São Paulo: Malheiros, 2018.


  7. ROCHA, Sergio André. Planejamento tributário na obra de Marco Aurélio Greco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 50.


  8. Ibidem, p. 74.


    posicionamento doutrinário em sentido contrário. Nesse sentido, destacam-se alguns trechos do posicionamento adotado por Greco, na versão mais atual da clássica obra Planejamento tributário:

    “Por outro lado, existe também a norma geral inclusiva (que estabelece que, embora não previsto especificamente, o caso deve ser considerado dentro da incidência) consistente no denominado princípio da capacidade contributiva. Vale dizer, apesar de não estar expressamente previsto o caso, mas por manifestar capacidade contributiva tributada pela lei, então, estará alcançado pela incidência tributária, pois a lei – em última análise – visa captar tais manifestações, pois este é o parâmetro de rateio do custo do Estado.

    [...] O princípio passa a ter o papel de iluminar a interpretação, enriquecê-la, de modo a assegurar a maior eficácia possível aos preceitos existentes; desta perspectiva, a capacidade contributiva passa a ter uma eficácia positiva na aplicação do ordenamento.

    [...] Tal como formulado o dispositivo, o princípio dirige-se também para o aplicador, e no processo de interpretação servirá de critério iluminador do alcance concreto que a lei posta apresente. Desta ótica, se existe capacidade contributiva captada pela lei tributária, ela tem de ser alcançada até onde for detectada; ou seja, o princípio funciona como um vetor do alcance da legislação. Em outras palavras, a lei tributária alcança o que obviamente prevê, mas não apenas isto; alcança também, aquilo que resulta da sua conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva.”9 (Destaques meus)


    A leitura destes trechos, interpretados a partir do sentido preliminar das palavras utilizadas, é bastante enfática com relação ao papel atribuído à capacidade contributiva no Sistema brasileiro, a partir da visão do autor: ela servirá como medida positiva, que direciona a interpretação e o âmbito de aplicação da regra para “ir além do que a lei prevê”. Isso significa dizer que caberá ao intérprete, a fim de respeitar a capacidade contributiva, a solidariedade e a igualdade, construir uma norma mais ampla do que aquela que seria resultante simplesmente do sentido preliminar das palavras utilizadas pela lei (aquilo que a lei “obviamente prevê”) para ir além (“alcança também aquilo que resulta da conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva”). Veja-se que o próprio autor reconhece que isso significará ir além do sentido decorrente da interpretação literal do dispositivo, como forma de garantir a eficácia positiva da capacidade contributiva. Cria-se, a partir disso, uma regra de prevalência na interpretação e aplicação dos dispositivos em matéria tributária: o argumento finalístico no sentido da garantia de captação da



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  9. GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 188 e 345.


capacidade contributiva tem primazia sobre o argumento literal relativo ao sentido preliminar do texto.


Este ponto, portanto, parece ser a divergência da interpretação conferida ao autor por Rocha. Para ele, como isso seria concretizado no momento da qualificação dos fatos, isto é, no momento da reconstrução da norma para a sua aplicação em um caso concreto, então não se poderia afirmar a possibilidade do surgimento de um dever jurídico a partir destes valores constitucionais. A argumentação não procede, pois como o próprio autor reconhece, é exatamente com base na capacidade contributiva e na solidariedade, que Greco defende o direito de a Fazenda Pública desconsiderar atos praticados com o que o autor considera abuso de direito, que decorreria, por exemplo, da atuação com motivação tributária (isto é, a realização de uma operação com a finalidade inequívoca de gerar economia tributária). Nesse sentido, a fundamentação apresentada:


“Na medida em que a lei qualificou determinada manifestação de capacidade contributiva como pressuposto de incidência de um tributo, só haverá isonomia tributária se todos aqueles que se encontrarem na mesma condição tiverem de suportar a mesma carga fiscal. Se, apesar de existirem idênticas manifestações de capacidade contributiva, um contribuinte puder se furtar do imposto (ainda que licitamente), esta atitude estará comprometendo a igualdade, que tem dignidade e relevância até mesmo maiores que a proteção à propriedade (CF, art. 5º).”10

Ao se partir da premissa de que toda manifestação de riqueza autorizada pela regra de competência seria captada pela regra de incidência tributária, se aceita uma regra implícita de que a presença de capacidade contributiva é geradora, ela própria, independentemente do escopo determinado pelo sentido preliminar do texto, da obrigação tributária. Assim sendo, não se pode sustentar, ao mesmo tempo, que a capacidade contributiva tem a função de determinar uma interpretação e um âmbito de aplicação que vai além da lei (ou seja, que impõe um resultado interpretativo mais amplo do que aquele determinado pelo sentido preliminar das palavras utilizadas pelo legislador) e que não se sustenta que a capacidade contributiva leve ao surgimento do dever jurídico tributário. Se a norma resultante da atividade de interpretação e de aplicação do dispositivo sofrerá esta “eficácia positiva” da capacidade contributiva, cujo resultado gerado “vai além da lei”, exatamente com base neste princípio, não se pode sustentar isso e, ao mesmo tempo, afirmar que a capacidade contributiva não será a razão do dever jurídico tributário nesse caso. Estas duas posturas são contraditórias do ponto de vista lógico, porque afirmam A (“a capacidade contributiva determina positivamente um resultado interpretativo que vai além do texto legal”) e não A (“a capacidade contributiva não determina um resultado interpretativo que vai além do texto”) concomitantemente.


É importante mencionar, neste ponto, que a coerência é um postulado normativo. Coerência, do ponto de vista semântico, conota a ideia de “qualidade, condição ou estado de harmonia entre dois fatos ou duas ideias; relação harmônica/conexão”11. Não há um descompasso entre esta definição semântica e o postulado da coerência para o Direito. Nas palavras de Bracker, “um conjunto de sentenças é substancialmente coerente se houver uma conexão positiva entre seus elementos”12. Coerência não significa apenas consistência lógica, não obstante esta faça parte da ideia de coerência. Trata-se de uma exigência maior que esta e que pode ser observada em graus13. Nesse sentido, Peczenick destaca que “quanto mais as declarações pertencentes a uma dada teoria se aproximam de uma estrutura de suporte perfeita, mais coerente esta teoria”14. Segundo Ávila, um conjunto de proposições qualifica-se como coerente se preenche os requisitos de (i) consistência e de (ii) completude. De um lado, consistência significa ausência de contradição: um conjunto de posições é consistente se não contém, ao mesmo tempo, uma proposição e sua negação. De outro lado, completude significa a relação de cada elemento com o restante do sistema, em termos de integridade (o conjunto de proposições contém todos os elementos e suas negações) e de coesão inferencial (o conjunto de proposições contém suas próprias consequências lógicas)15.

O debate aqui enfrentado, portanto, possui um problema de consistência, na medida em que as duas afirmações são incompatíveis entre si, de tal sorte que sendo uma verdadeira, a outra necessariamente terá de ser falsa. Mas não apenas isso: defender a eficácia positiva do princípio da capacidade contributiva compromete a coerência do próprio Sistema Tributário Nacional, tal qual posto na Constituição, porque desrespeita a sua integridade. Embora a Constituição tenha determinado um modo (somente mediante lei) e um critério de graduação (capacidade contributiva) específicos para tributação, parte da doutrina desconsidera uma dessas determinações (o dever de observância à legalidade) e foca apenas na outra (capacidade contributiva). Interpreta-se, portanto, o texto constitucional de maneira incompleta, selecionando arbitrariamente uma norma (capacidade contributiva) em detrimento da outra (legalidade), em nítida afronta à integridade da Constituição.


Ao defender que o princípio da capacidade contributiva possui eficácia positiva a qual impõe ao intérprete e aplicador do dispositivo legal que o resultado da tributação seja aquele que, de fato, capte a manifestação de riqueza, mesmo que ausente legalidade, está- se, sim, criando um dever jurídico a partir da capacidade contributiva. O processo


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  1. HOUAISS, Antônio; e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 488.


  2. BRACKER, Susanne. Kohärenz und juristiche interpretation. Kiel: Nomos Verlagsgesellschaft, 2000, p. 194.


  3. LEÃO, Martha. O Supremo Tribunal Federal e a (in)coerência interpretativa: o caso da quebra de sigilo bancário. Revista Direito Tributário Atual vol. 42, ano 37. São Paulo: IBDT, 1º semestre 2019, p. 336-348 (343).


  4. PECZENIK, Aleksander. On law and reason. 2. ed. Dordrecht: Springer, 2008, p. 132.


  5. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 169-170.


    interpretativo utilizado para atingir este fim (se por meio de uma interpretação finalística da regra, por meio do argumento analógico ou simplesmente pela requalificação dos fatos para desconsiderá-los em sua forma jurídica e considerá-los de acordo com a sua manifestação econômica) é irrelevante para o reconhecimento de que, nessa doutrina, a capacidade contributiva cria o dever de tributar, ainda que a lei em seu sentido preliminar assim não o faça – porque a lei passa a ter necessariamente um resultado interpretativo que vai além do seu texto, a partir da eficácia positiva deste princípio.


    Além de reconhecer que parte da doutrina defende, explicitamente, a criação do dever jurídico de contribuir do ponto de vista tributário a partir da capacidade contributiva, também é preciso enfrentar o fato notório de que é também desta forma que a jurisprudência brasileira vem reconhecendo e aplicando esta teoria doutrinária. Não se ignora que esta aplicação é, muitas vezes, seletiva, desconsiderando outras passagens da referida doutrina. Isso não ocorre apenas com a obra de Greco, mas também com a obra de Nabais, outro autor muito utilizado no tratamento destes casos pela jurisprudência16. Nesse contexto, afirmar que o papel da capacidade contributiva é irrelevante para o debate sobre os limites do planejamento tributário é esvaziar exatamente aquilo que o debate tem de central, ou seja, o papel da capacidade contributiva para a tributação. Este tema não apenas importa, como ele é essencial à discussão, porque é exatamente com base nesta teoria doutrinária que se defende, de maneira bastante acentuada especialmente na jurisprudência administrativa brasileira, que a autoridade fiscal poderia desconsiderar operações praticadas pelos contribuintes com a finalidade de economizar tributos, na medida em que a sua não tributação violaria a capacidade contributiva, a igualdade e a solidariedade – ainda que ausente qualquer violação ao sentido literal da legislação posta.


    É esta a divergência doutrinária existente. Considerando a função atribuída pela Constituição à capacidade contributiva, os impostos não serão cobrados em razão da capacidade contributiva, mas sim graduados por ela. O art. 145 utiliza termos distintos porque as funções são distintas. A função da capacidade contributiva está dirigida ao legislador, para que, ao criar as leis tributárias de acordo com as regras de competência da Constituição, promova no maior espectro possível a capacidade econômica dos contribuintes para contribuir com o financiamento das despesas do Estado. Mas a capacidade contributiva não substitui ou corrige a norma de competência quando esta é subinclusiva, nem a própria lei, quando esta, da mesma forma, abrange um escopo menor do que aquele no qual se manifesta a capacidade econômica17. Noutro dizer, a capacidade contributiva, a partir da função definida para ela pela Constituição, não autorizaria ir além da lei – este é o ponto crucial de divergência. A capacidade contributiva é condição


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  6. Sobre a aplicação seletiva da obra de GRECO pelas autuações fiscais: ROCHA, Sergio André. Planejamento tributário na obra de Marco Aurélio Greco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 149.


  7. MITA, Enrico de. Principi de diritto tributario. Milano: Giuffrè, 1999, p. 77.


    necessária, mas não condição suficiente para a incidência tributária18. Mais que isso: a capacidade econômica não é parâmetro exclusivo – e suficiente – para a justiça do sistema tributário19. Da perspectiva do contribuinte, ela exerce uma função essencialmente negativa, de resistência frente ao poder tributário20. A norma de competência e a lei dependem da existência de capacidade contributiva para serem aplicadas, sendo as discussões acerca do mínimo existencial e dos direitos de compensação de prejuízos exemplos disso. Mas o contrário também é verdadeiro: sem norma de competência e sem lei não há tributação, pelo menos constitucionalmente autorizada, ainda que exista capacidade contributiva manifesta21.


    Logo, este ponto é essencial ao debate acerca dos limites do exercício do direito de atuação para economizar tributos, isto é, sobre os limites das condutas que podem ser adotadas pelos contribuintes com a finalidade de diminuir a sua carga tributária. Desconsiderar este tema na discussão sobre o planejamento tributário significa, no final do dia, esvaziar a própria fundamentação jurídica do debate.


    1. O PAPEL DA LEGALIDADE NO DEBATE SOBRE PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

      A segunda questão a ser analisada por este artigo diz respeito a saber se a defesa de uma “legalidade mais aberta” ou mais flexível tem relação com os limites do planejamento tributário. A resposta é, novamente, afirmativa, respeitadas as opiniões em sentido contrário. Para parte da doutrina, a imperiosa necessidade de se reconhecer a existência de atividade criativa na interpretação e as dificuldades inerentes ao uso da linguagem gerariam como consequência direta a necessidade de se adotar uma postura mais flexível com relação à legalidade. Esta postura é nomeada de várias formas distintas na doutrina, como a “flexibilização da legalidade” ou a “deslegalização” do Direito Tributário, na medida em que a compreensão da sociedade moderna levaria necessariamente à mitigação deste princípio22. No Direito Público, essa tendência também ganhou nomenclaturas diferentes e é tratada como uma visão neopositivista da legalidade, que seria resultado de um sistema constitucional “tendencialmente principialista”. Fala-se, nesse sentido, em um bloco de


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  8. SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento tributário e garantias dos contribuintes: entre a norma geral antielisão portuguesa e seus paralelos brasileiros. In: ALMEIDA, Daniel Freire et al. (org.). Garantias dos contribuintes no sistema tributário: homenagem a Diogo Leite de Campos. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 371-438 (421).


  9. ESCRIBANO, Francisco. La configuracion jurídica del deber de contribuir – perfiles constitucionales. Madrid: Civitas, 1988, p. 261.


  10. TABOADA, Carlos Palao. El principio de capacidade contributiva como critério de justicia tributaria: aplicación a los impuestos directos e indirectos. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de direito constitucional tributário: estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 285-303 (286).


  11. LEÃO, Martha. O direito fundamental de economizar tributos. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 142.


  12. A título exemplificativo: BIANCO, João Francisco. Segurança jurídica e o princípio da legalidade no direito tributário. Revista Direito Tributário Atual vol. 19. São Paulo: Dialética, 2005, p. 16-23 (22); ROCHA, Sergio André. A deslegalização no direito tributário brasileiro contemporâneo: segurança jurídica, legalidade, conceitos indeterminados, tipicidade e liberdade de conformação da Administraç ão Pública. In: ROCHA, Sergio André; e RIBEIRO, Ricardo Lodi (coord.). Legalidade e tipicidade no direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 220-264 (230).


    legalidade, que incorporaria princípios, objetivos e valores constitucionais, e se atribui a esta nova formulação o nome de “princípio da juridicidade” ou da “legalidade em sentido amplo”23.


    O papel da legalidade está diretamente vinculado às questões atinentes aos limites ao planejamento tributário, sendo esta discussão indissociável do papel atribuído à capacidade contributiva na interpretação dos dispositivos e na aplicação das normas (momento no qual se realiza a qualificação dos fatos para a solução do caso concreto). Defender a irrelevância deste ponto, assumindo-o como uma questão meramente secundária, com base no argumento de que os temas de planejamento tributário dependem de análise casuística, que se resolveria apenas a partir da qualificação dos fatos concretos, é, novamente, afastar exatamente aquilo que é central à discussão. A qualificação dos fatos para fins da resolução do conflito não é uma atividade apartada da interpretação jurídica a ser atribuída à lei, que poderia ser isolada, sem a interferência das funções atribuídas pela Constituição à legalidade e à capacidade contributiva. Pelo contrário: a qualificação dos fatos para inseri-los no campo de aplicação do dispositivo legal e, nesse sentido, realizar a subsunção do fato à norma, passa necessariamente pelo papel atribuído à legalidade, no sentido do grau de vinculação que será reconhecido ao intérprete com relação ao texto.


    Ao se adotar uma postura cética da interpretação, no sentido de que o intérprete e o aplicador, diante da complexidade da realidade e das dificuldades inerentes à linguagem, estariam livres para determinar uma interpretação que vai além do sentido preliminar do texto (e, portanto, cria um sentido novo) a partir da aplicação positiva da capacidade contributiva e da solidariedade para fins de extensão do âmbito de aplicação da regra – ou simplesmente para fins de requalificação do fato (independentemente da ausência de ilicitude) para submetê-lo a uma consequência jurídica em razão da presença de um “fato econômico denotativo de capacidade contributiva” –, afasta-se da legalidade em seu sentido de vinculação ao texto e se aceita um grau de discricionariedade por parte da autoridade fiscal que gera consequências diretas ao debate sobre planejamento tributário. Nesse tipo de postura, o próprio controle de legalidade seria afastado e cederia espaço a um controle de “legitimidade”, cujo sentido seria dado pela capacidade contributiva. Alguns trechos nesse sentido merecem destaque:


    “Em suma, não basta ser lícito, a ilicitude é a preliminar. Além de ser lícito precisam ser atendidos outros requisitos para a operação ser aceitável da perspectiva da produção de efeitos perante o Fisco. O grande debate não é sobre legalidade ou ilegalidade, é sobre eficácia ou ineficácia.


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  13. ARAGÃO, Alexandre dos Santos. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Revista de Direito Administrativo vol. 236. Rio de Janeiro, abr./jun. 2004, p. 51-64 (61-62); SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 23-117 (102).


    [...] Ou seja, mesmo que os atos praticados pelo contribuinte sejam lícitos, não padeçam de nenhuma patologia; mesmo que estejam absolutamente corretos em todos os seus aspectos (licitude, validade) nem assim o contribuinte pode agir da maneira que bem entender, pois sua ação deverá ser vista também da perspectiva da capacidade contributiva.

    [...] Em outras palavras, a lei alcança o que obviamente prevê, mas não apenas isto; alcança, também, aquilo que resulta da sua conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva. Trata-se de interpretar a lei não apenas à luz do desenho formal, não apenas da legalidade formal, mas examinar o ordenamento positivo e a realidade concreta irrigados com a ideia de capacidade contributiva.”24


    É preciso, portanto, perceber e analisar as consequências do ceticismo interpretativo no Direito Tributário e, mais especificamente, para o debate do planejamento tributário. Se o intérprete não se vê limitado pelo sentido preliminar do texto, qual a garantia concedida pela lei, no sentido de direito positivado? A lei em seu sentido de limite formal e material para o exercício do poder perdeu seu espaço? A conclusão de Laporta a esta crise, que ele mesmo reconhece, é a necessidade de reafirmação do papel da lei. É necessário, segundo o autor, recordar que o núcleo mais importante e decisivo do ordenamento jurídico deve ser composto por um corpo coerente de leis gerais e abstratas às quais se deve conceder uma deferência privilegiada, defendendo por fim “menos constitucionalismo e mais neocodificação”25. Nesse sentido, é fundamental reestabelecer o papel da lei e a importância da limitação imposta pelo texto. Por essas razões, o autor defende uma interpretação centrada no texto (text-oriented), na medida em que este tem um significado autônomo que depende, sobretudo, das convenções sobre o uso das palavras em determinada comunidade. O significado não pode ser entregue ao leitor do texto, ou seja, ao seu intérprete, porque, do contrário, toda a ideia de império da lei “escaparia entre os dedos”26.


    Como destaca Schauer, desconsiderar o texto como ponto de partida é desconsiderar um aspecto muito importante sobre a própria natureza do Direito27. Tal entendimento poderia levar ao extremo de se entender que o legislador produz formulações ou disposições (mas não normas), enquanto o intérprete (como o juiz) ao adscrever e atribuir significado a estas formulações seria o verdadeiro criador das normas. Com isso, não é possível dizer que o juiz está submetido à norma, já que ele mesmo é o criador desta. Esta construção, contudo, levaria à ruína da noção de império da lei28.


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  14. GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 139; 325 e 345.


  15. LAPORTA, Francisco J. El imperio da la ley – una visión actual. Madrid: Trotta, 2007, p. 167.


26 Ibidem, p. 178-179.


  1. SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 158.


  2. LEÃO, Martha. O direito fundamental de economizar tributos. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 63.


    Estas conclusões também são apontadas por MacCormick ao analisar as consequências de uma teoria da correção judicial baseada tão somente na autoridade do prolator das decisões. Para o autor, se for considerado que a correção de uma decisão depende apenas da autoridade de quem a emite, isso traria como consequência a ideia de que os juízes se tornam, em um sentido puro, atores políticos, ou seja, pessoas que decidem o Direito com base em suas próprias opiniões e quaisquer coisas que lhes sejam relevantes, não havendo nenhum Direito que não seja aquilo que eles decidem nos casos que chegam perante as Cortes29. A consequência apontada por MacCormick neste caso é que, em termos de sociologia ou de teoria política, isso implica a existência de um Poder Judiciário colocado em um primeiro plano do processo político de fazer o Direito: correção, em termos legais, seria o que os juízes dizem que é, e isso seria tudo o que se tem. Nesse caso, os juízes “seriam criadores-do-direito (law-makers) enquanto aplicadores-do-direito (law-sayers)”30. Estas considerações demonstram porque é preciso haver alguma normatividade prévia à interpretação, que vincule e exerça o papel de lei como controle e limite do poder. A interpretação, nesse sentido, pressupõe um significado e não atribui um significado. A interpretação é interpretação de significado, não interpretação de uma enigmática formulação sintática que não quer dizer nada até que o intérprete exerça sobre ela sua “função mágica”31.


    Esta divergência é, portanto, central ao debate do planejamento tributário. Não há desacordo quanto à necessidade de interpretação e ao reconhecimento de que a interpretação também implica tomada de decisão (ou seja, em atividade criativa). Noutro dizer, não se ignora que o próprio argumento literal vai impor dificuldades e será superado, em determinadas situações. A divergência, contudo, é de grau – e é fundamental para o estabelecimento daquilo que a Constituição autorizou ao intérprete e ao aplicador em matéria tributária. Do mesmo modo que a interpretação enquanto atividade não pode ser reduzida sempre a um ato cognitivista ou a um ato criativo (de conhecimento ou de vontade, em outras palavras), a legalidade também não pode, enquanto garantia, ser reduzida a uma única forma ou a uma única graduação. Da mesma forma que cada âmbito do Direito e cada tipo de norma demanda um determinado critério interpretativo, a graduação exigida da legalidade enquanto princípio também não é a mesma em todas as ocasiões, em todos os âmbitos do Direito e em todos os tipos de norma.


    Por um lado, as normas de competência, por exemplo, exigem um maior grau de determinabilidade de seu conteúdo, reservando um espaço muito menor para interpretações finalísticas ou teleológicas; impondo, por isso, a preferência por argumentos linguísticos e sistemáticos. Por outro lado, as normas tributárias extrafiscais e as normas


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  3. MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law: a theory of legal reasoning. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 275.


  4. Ibidem, p. 275.


  5. LAPORTA, Francisco J. El império da la ley – una visión actual. Madrid: Trotta, 2007, p. 181-182.


    de imunidade e isenções se referem a um objeto totalmente distinto, no qual o espaço para considerações e argumentos finalísticos é muito maior32. Isso significa dizer que a legalidade não cumprirá sempre a mesma função ou pelo menos não terá a mesma graduação em todos as normas de Direito Tributário. Há setores que demandam um grau maior de determinabilidade das condutas a fim de garantir a segurança jurídica dos envolvidos em virtude da existência de limitações aos direitos fundamentais. Quanto maior esta limitação, maior esta exigência, como ocorre, por exemplo, no Direito Penal e no Direito Tributário. Esta, contudo, não é uma escolha pessoal do intérprete. É uma decisão da Constituição, ao prescrever legalidades específicas para estes âmbitos do Direito por meio da determinação de limitações expressas com relação ao modo do exercício do poder pelo Estado nestes setores. Esta escolha, por sua vez, não é aleatória, mas vinculada diretamente à restrição de direitos fundamentais existentes nestas áreas: quanto maior for a intensidade da restrição dos direitos fundamentais de liberdade, de propriedade, e de igualdade, maior a exigência de determinabilidade33. Não é, contudo, a mesma exigência existente no Direito Privado, como ocorre na regulação de contratos, por exemplo. Nessa área, permite-se e adota-se um sistema de concreção, em que os termos serão definidos a partir da sua aplicação, como boa-fé, porque nesse caso se regula o próprio exercício da liberdade e não diretamente a sua limitação34.


    O Direito Tributário, ao contrário, convive mal com cláusulas gerais e conceitos indeterminados35. Nesse sentido, o posicionamento de MacCormick, que condena a supersimplificação no debate acerca da interpretação. Como defende o autor, há diferentes objetos a serem interpretados no Direito, há diferentes perspectivas interpretativas, e há argumentos de interpretação apropriados para diferentes objetos. Interpretar enunciados, por exemplo, é diferente de interpretar precedentes, assim como interpretar a Constituição é diferente de interpretar um acordo. E, principalmente, interpretar toda uma prática como o Direito não é o mesmo que interpretar qualquer uma de suas partes36. Estas considerações, voltadas ao tema da interpretação, também podem ser aplicadas à questão enfrentada pela legalidade. Não é possível simplificar o debate acerca da interpretação e da própria legalidade no Direito Tributário. Para que se estabeleçam os limites ao planejamento tributário é fundamental estabelecer a função da legalidade no Sistema Tributário Nacional, reconhecendo a especificidade do grau de determinação e


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  6. LEÃO, Martha. O direito fundamental de economizar tributos. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 64.


  7. ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad juridica: una teoria formal. Madrid: Dykinson, 2000, p. 263. Também sobre o tema, na literatura nacional mais recente: LAVEZ, Raphael Assef. Tipicidade fechada, determinação e cognoscibilidade: a legalidade entre conceitos “indeterminados” e cláusulas Gerais. Revista Direito Tributário Atual vol. 43, ano 37. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2019, p. 356-385.


  8. ÁVILA, Humberto. Eficácia do novo Código Civil na legislação tributária. In: GRUPPENMACHER, Betina (org.). Direito tributário e o novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 61-79 (78).


  9. CAMPOS, Diogo Leite de; e ANDRADE, João Costa. Autonomia contratual e direito tributário (a norma geral anti-elisão). Coimbra: Almedina, 2008, p. 65.


  10. MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law: a theory of legal reasoning. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 139-140.


    previsibilidade exigido em um âmbito do Direito que interfere e limita o próprio exercício dos direitos fundamentais.


    Defender a vinculação maior do intérprete ao sentido preliminar do texto (ou seja, ao argumento literal) para as regras tributárias restritivas de direitos fundamentais, como as regras de incidência, não significa adotar uma concepção “congelada da lei” ou ignorar “as complexidades da realidade”. Esta construção parte da premissa de que ou se aceita a complexidade do mundo e se abre mão desta vinculação ao texto legal ou se vive apegado ao passado, sendo incapaz de lidar com as novas categorias da realidade. Estas posições exemplificam duas posturas radicais, que ignoram a existência de uma vinculação a priori ao texto. A disposição legal já possui algum significado, intersubjetivamente consensuado, que lhe permite transmitir conteúdos prescritivos, ainda que estes conteúdos sejam aperfeiçoados pelo contexto aplicativo37. Em outras palavras, há um significado prévio à interpretação. Nesse sentido, os argumentos linguístico e sistemático, enquanto argumentos institucionais imanentes, ou seja, construídos com base no ordenamento jurídico vigente, a partir da sua linguagem textual e contextual, têm uma proeminência neste tipo de situação38. Noutro dizer, existe uma prioridade, ao menos prima facie, das razões de autoridade39.


    A razão principal para isso decorre da própria existência de um Estado de Direito, no qual os valores democráticos são representados pela participação dos cidadãos nas decisões que regem as suas vidas e a sociedade como um todo, e, principalmente limitam seus direitos enquanto cidadãos livres. O respeito ao texto da lei ou, mais especificamente, à linguagem escolhida pelo legislador, significa respeito aos valores democráticos40. A proeminência deste critério, portanto, passa pela valorização do papel do Poder Legislativo e pela promoção dos ideais democráticos a ele vinculados, como uma forma de respeito à autoridade: se alguém que detém autoridade impõe uma disposição de modo específico, necessariamente usando uma determinada linguagem para fazê-lo, não se respeita a sua autoridade a menos que se leia o texto na linguagem na qual foi registrado. Este debate é central ao tema do planejamento tributário, ainda que se tente discutir o tema simplesmente sob a perspectiva da liberdade do aplicador para a qualificação (e desconsideração) dos fatos diante do caso concreto.


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  11. ÁVILA, Humberto. Juristische Theorie der Argumentation. In: HELDRICH, Andreas et al. (org.). FS für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag. München: Beck, 2007, p. 963-989.


  12. ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. Revista de Direito Tributário vol. 79. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 163-183 (179).


  13. ALEXY, Robert. The dual nature of law. Ratio Juris vol. 23, n. 2, jun. 2010, p. 167-182 (179).


  14. AARNIO, Aulis. Essays on the doctrinal study of law. Dordrecht: Springer, 2011, p. 152.


    1. A IMPORTÂNCIA DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E DA LEGALIDADE PARA O DEBATE

    As considerações anteriores serviram ao propósito de demonstrar que a função exercida pelos princípios da capacidade contributiva e da legalidade é central na discussão acerca do planejamento tributário. O papel atribuído a estes dois princípios pela Constituição é absolutamente fundamental para a resolução dos casos envolvendo o direito de o contribuinte adotar condutas com a finalidade de economizar tributos. Nessa discussão, pouco importa o nome que seja atribuído à atividade do intérprete ou do aplicador (interpretação finalística, consideração econômica, analogia, qualificação a partir da eficácia positiva da capacidade contributiva, dentre outras), o que importa e é central à discussão é verificar se a Constituição autorizou a utilização da capacidade contributiva, da solidariedade e da igualdade como mecanismos aptos à correção do sentido preliminar do texto da lei para fins de garantir que toda manifestação de riqueza fosse captada. Ou se, ao contrário, a Constituição atribuiu funções distintas a estes princípios e aos princípios da legalidade, da liberdade e da segurança jurídica, afastando, nesse tipo de situação, a possibilidade de ponderação entre eles e, nesse sentido, diminuindo a discricionariedade do intérprete e do aplicador de se afastar do sentido preliminar do texto em prol da realização de valores de justiça considerados a partir do “interesse público” na arrecadação.


    É preciso, nesse contexto, enfatizar que do reconhecimento da complexidade do mundo moderno não decorre a ampla liberdade do intérprete e do aplicador para realizar a justiça fiscal, indo além da lei. O reconhecimento acerca da dificuldade inerente ao uso da linguagem e da necessidade de interpretação para a (re)criação da norma não implica a conclusão de que o intérprete e o aplicador possam tomar decisões que não encontrem referibilidade no sentido do texto legal. Da dificuldade de se alcançar certeza não decorre a conclusão de que esta não deve ser buscada na maior medida possível. Com o perdão de uma metáfora simplória, o fato de ser difícil determinar o que é cinza entre escalas de preto e branco não significa que a cor cinza não exista. Querer retirar do centro do debate as questões atinentes à capacidade contributiva e à legalidade, como se estas fossem superficiais, imaginárias ou irrelevantes, termina por afastar do discurso aquilo que é mais central a ele e, ao invés de enfrentar estes argumentos a partir do texto constitucional, afasta-se a própria possibilidade do debate. Trata-se do uso de uma falácia argumentativa: a falácia da dispersão (red herring), que consiste em introduzir na discussão um elemento periférico, secundário ou logicamente irrelevante como forma de distrair a atenção do interlocutor e sutilmente mudar o objeto da discussão41.


    Não é possível, contudo, discutir os limites ao planejamento tributário sem enfrentar a questão central a este debate, qual seja, o papel atribuído pela Constituição à capacidade


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  15. SOCCIO, Douglas; e BARRY, Vincent. Practical logic. 5. ed. Wadsworth: Cengage, 1997, p. 144.


contributiva e à legalidade. As questões fáticas inerentes à solução dos casos concretos não passam ao largo desta discussão, na medida em que a forma de interpretação das disposições legais e a forma de qualificação dos fatos e das provas depende, como premissa, destas questões iniciais.


CONCLUSÕES

O artigo pretendeu demonstrar, a partir da análise doutrinária, que não é verdadeiro afirmar: (i) primeiro, que nunca se defendeu que a capacidade contributiva ou a solidariedade poderiam ser utilizadas para fundamentar a criação de obrigações tributárias; e (ii) segundo, que o papel da legalidade seria irrelevante para o debate acerca do planejamento tributário. Estas afirmações, com a devida vênia, foram – e vêm sendo – repetidas por parte da doutrina e da jurisprudência e precisam ser devidamente enfrentadas porquanto afastam aquilo que é mais central ao debate atinente ao planejamento tributário.


Em primeiro lugar, porque determinar se a capacidade contributiva tem ou não uma eficácia positiva que permite ir além da lei, para utilizar a expressão da doutrina, e com isso, captar o sentido econômico da manifestação de riqueza é crucial ao debate sobre o poder de a autoridade fiscal desconsiderar operações praticadas pelo contribuinte com a finalidade de economizar tributos, ainda que não se verifique qualquer tipo de ilicitude em sua conduta. E, em segundo lugar, porque sustentar que a legalidade, no sentido de vinculação ainda que preliminar ao texto, pode ser afastada no momento da interpretação dos dispositivos legais ou no momento da qualificação dos fatos para fins de subsumi-los à norma também é essencial para que se determine o grau de vinculação da autoridade fiscal (e, em último caso, dos juízes) aos dispositivos legais no momento de enfrentar e solucionar os litígios envolvendo os casos em que se contrapõem os interesses fazendários com relação à arrecadação tributária e os interesses individuais dos contribuintes com relação à economia tributária. Isso é absolutamente central ao debate do planejamento tributário – é esta a realidade, nua e crua, vivenciada pelos casos de planejamento tributário diariamente.


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