DOAÇÕES PARA NÃO RESIDENTES E A SUA TRIBUTAÇÃO PELO IMPOSTO DE RENDA

DONATIONS FOR NON-RESIDENTS AND THEIR TAXATION BY INCOME TAX


Miguel Delgado Gutierrez


Professor Convidado do Centro de Extensão Universitária (CEU) Escola de Direito do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS). Mestre e Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Tributário pelo CEU. Advogado em São Paulo. E-mail: miguel@gmadvs.com.br



Recebido em: 12-12-2019

Aprovado em: 04-03-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-45-17


RESUMO


Este artigo discute a questão das doações para não residentes e a sua tributação pelo imposto de renda. Até há pouco tempo, a doação para não residentes não era tributada pelo imposto de renda, o que foi alterado pela nova legislação sobre o tema. Em virtude dessa alteração, discutimos se é permitida a tributação das doações para não residentes pelo imposto de renda, diante do que dispõem a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional a respeito do assunto. Concluímos que não é admitida a tributação das doações para não residentes pelo imposto de renda.

PALAVRAS-CHAVE: DOAÇÃO, NÃO RESIDENTES, IMPOSTO DE RENDA, TRIBUTAÇÃO


ABSTRACT


This article discusses the issue of the donations for non-residents and their taxation by income tax. Until recently, the donation for a non-resident was not taxed by the income tax, what was changed by the new legislation. By virtue of this change, we discuss whether the taxation of donations for non-residents is allowed


by income tax, in view of what the Federal Constitution and the National Tax Code determine on the subject. We conclude that the taxation of donations for non-residents is not allowed.

KEYWORDS: DONATION, NON-RESIDENTS, INCOME TAX, TAXATION


  1. INTRODUÇÃO

    As pessoas residentes ou domiciliadas no exterior, sejam pessoas físicas ou jurídicas, se sujeitam à soberania tributária brasileira na hipótese de percepção de rendimentos provenientes de fontes situadas no Brasil. A tributação da renda dos não residentes ocorre na fonte, sendo responsável pela retenção e recolhimento do imposto o residente brasileiro que efetua o pagamento do preço do bem ou serviço contratado com o exterior.


    Até há pouco tempo, a não incidência do imposto de renda retido na fonte sobre “os bens havidos, por herança ou doação, por residente ou domiciliado no exterior” era considerada questão pacífica, inclusive diante do que expressamente previsto no revogado art. 690, inciso III, do RIR/19991.


    Essa regra, inclusive, se encontrava em inteira consonância com o art. 6º, inciso XVI, da Lei

    n. 7.713/1988, que dispõe que ficam isentos do imposto de renda os rendimentos percebidos

    por pessoas físicas referentes ao “valor dos bens adquiridos por doação ou herança”.


    Diante desse cenário, o entendimento da Administração Tributária vinha sendo no sentido de que os valores remetidos a título de doação a residente no exterior não se sujeitavam à incidência do imposto de renda retido na fonte (IRRF)2.


    Não obstante, no novo Regulamento do Imposto de Renda, instituído pelo Decreto n. 9.580/2018 (RIR/2018), o art. 754, que corresponde ao aludido art. 690 do RIR/1999, não repete a regra que dispensava a retenção do IRRF quanto aos “valores dos bens havidos por herança ou doação, por residente ou domiciliado no exterior”.


    Destarte, a Solução de Consulta n. 309 da Cosit (Coordenação-Geral de Tributação), de 26 de dezembro de 2018, emitida após a publicação do RIR/2018, adotou solução diametralmente diversa da anteriormente acolhida pela Administração Tributária, dispondo no sentido de que os “valores remetidos a título de doação a residente ou domiciliado no exterior, pessoa


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    1. “Art. 690. Não se sujeitam à retenção de que trata o art. 682 as seguintes remessas destinadas ao exterior: III – os valores dos bens havidos,

      por herança ou doação, por residente ou domiciliado no exterior.”


    2. Solução de Consulta n. 503 – Cosit, de 17 de outubro de 2017: “Assunto. Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF Ementa: remessa de valores ao exterior. Doação a pessoa física. Não estão sujeitas ao IRRF as doações a pessoas físicas residentes e domiciliadas no exterior. Contudo, para ser considerada uma doação, ela deve ser caracterizada pela liberalidade. Por esse motivo, não se considera doação, mas provento passível de retenção, a remessa de valores com natureza contraprestacional, salarial e remuneratória. Dispositivos legais: Decreto n. 3.000, de 26 de março de 1999 – Regulamento do Imposto sobre a Renda (RIR/1999), art. 690, inciso III”.

      No mesmo sentido, a Solução de Consulta n. 108 – Cosit, de 22 de agosto de 2018: “Assunto. Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF Ementa: remessas para o exterior. Doações. Os valores remetidos a título de doação a residente no exterior, pessoa física ou jurídica, não se sujeitam à incidência do IRRF. Dispositivos legais: Código Tributário Nacional (CTN), Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Decreto n. 3.000, de 26 de março de 1999 – Regulamento do Imposto sobre a Renda (RIR/1999), art. 690, III”.


      física ou jurídica, sujeitam-se à incidência do IRRF, à alíquota de 15% (quinze por cento), ou de 25% (vinte e cinco por cento), na hipótese de o beneficiário ser residente ou domiciliado em país ou dependência com tributação favorecida”. Passou a entender a fiscalização que, diante da revogação da norma anteriormente prevista no art. 690, inciso III, do RIR/1999, as doações e heranças recebidas por residentes ou domiciliados no exterior passaram a ser tributáveis pelo imposto de renda retido na fonte (IRRF).


      Neste artigo, pretendemos discorrer acerca do acerto desse novo entendimento do Fisco a respeito da tributação pelo imposto de renda sobre doações recebidas por residentes ou domiciliados no exterior.


  2. DA DOAÇÃO

    A doação é considerada um contrato pelo Código Civil brasileiro, que assim a define em seu art. 538, in verbis:


    “Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.


    Segundo o jurista Antunes Varela, caracterizam a doação três elementos fundamentais.


    Em primeiro lugar, a doação é um contrato típico ou nominado cuja causa reúne dois requisitos essenciais: “a) a transferência de bens ou vantagens do patrimônio de uma pessoa (doador) para o de uma outra (donatário); b) o espírito de liberalidade, a que os antigos autores chamavam o animus donandi3.


    A doação implica uma transferência de bens ou vantagens do patrimônio do doador para o do donatário. Ocorre, dessa maneira, um empobrecimento voluntário do doador correspondente ao enriquecimento do donatário. Esse é o elemento objetivo da doação, sem o qual não se aperfeiçoa o contrato.


    Na definição de Orlando Gomes, a doação é um “contrato pelo qual uma das partes se obriga a transferir um bem de sua propriedade para patrimônio da outra, que se enriquece na medida em que aquela empobrece”4.

    O segundo requisito da doação é o espírito de liberalidade ou animus donandi, que constitui seu elemento subjetivo. É preciso que o doador queira enriquecer o donatário a suas expensas, não bastando a gratuidade.


    A liberalidade, ainda segundo Orlando Gomes, é traço decisivo da doação, consistente na

    “vontade desinteressada de fazer benefício a alguém, empobrecendo-se ao proporcionar à


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    1. VARELA, Antunes. Doação. In: FRANÇA, Rubens Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 29, p. 168.


    2. GOMES, Orlando. Contratos. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 211.


      outra parte uma aquisição lucrativa causa. A intenção liberal concretiza-se, em suma, no

      intuito de enriquecer o beneficiário”5.


      É essencial, portanto, que o ato do doador seja espontâneo, além de gratuito, do contrário não haverá doação.


      Por esse motivo, a Administração Tributária entende que não se considera doação a remessa de valores ao exterior com natureza contraprestacional, salarial e remuneratória6.


  3. DA DOAÇÃO E A SUA TRIBUTAÇÃO PELO IMPOSTO DE RENDA

    A doação, como visto acima, provoca um empobrecimento do doador e um correspondente acréscimo patrimonial para o donatário.


    Em função disso, surge a dúvida sobre se esse acréscimo patrimonial experimentado pelo donatário deve ou não ser tributado pelo imposto de renda.


    Adotado um conceito abrangente de renda, todos os acréscimos patrimoniais constituem renda. Assim, as heranças, legados e doações que aumentam o patrimônio dos herdeiros, legatários ou donatários constituiriam renda e, portanto, seriam passíveis de tributação. Segundo os economistas que adotam essa concepção compreensiva da renda, as heranças, legados e doações aumentam o poder econômico dos herdeiros, legatários e donatários. Por essa razão, havendo um aumento na riqueza líquida dos herdeiros, legatários e donatários, tal aumento deve ser considerado renda7.


    Conforme o vigente sistema constitucional, à União foi atribuída, dentre outras, a

    competência para instituir imposto sobre a “renda e proventos de qualquer natureza”, o



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    1. Ibidem, p. 213.


    6 Ver Solução de Consulta n. 503 – Cosit, de 17 de outubro de 2017: “Assunto. Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF Ementa: remessa de valores ao exterior. Doação a pessoa física. Não estão sujeitas ao IRRF as doações a pessoas físicas residentes e domiciliadas no exterior. Contudo, para ser considerada uma doação, ela deve ser caracterizada pela liberalidade. Por esse motivo, não se considera doação, mas provento passível de retenção, a remessa de valores com natureza contraprestacional, salarial e remuneratória. Dispositivos

    legais: Decreto n. 3.000, de 26 de março de 1999 – Regulamento do Imposto sobre a Renda (RIR/1999), art. 690, inciso III” (destacamos).


    1. Kevin Holmes, com base nas contribuições dos economistas G. von Schanz, Robert M. Haig e Henry C. Simons, faz menção a um conceito abrangente de renda, que visa explicar o conceito econômico de renda, por ele designado de modelo Schanz-Haig-Simons. Esse conceito é um modelo compreensivo da renda, que vê a renda como o aumento no poder econômico de uma pessoa em um período de tempo. Em sua forma mais prática de mensuração, o modelo se foca na soma dos gastos com consumo, acrescida do aumento líquido do patrimônio e da renda imputada durante o período de mensuração. De acordo com esse modelo, nenhuma diferenciação é feita quanto à natureza ou à fonte da renda pessoal. Todo acréscimo patrimonial de riqueza da pessoa em qualquer período, inclusive o decorrente de h eranças e doações, entra na base de cálculo do imposto (The concept of income. A multi-disciplinary analysis. The Netherlands: IBFD, 2000. p. 35, 83 e 421). A respeito do tema, confiram-se, também, os ensinamentos de Richard A. Musgrave: “The concept of taxable income which has gained increasing acceptance among fiscal theorists is that of total accretion. Income is defined to equal consumption during a given period, plus increase in net worth. According to this concept, all accretions to wealth are included, in whatever form they a re received or from whatever source they accrue. Factor earnings such as rents, interest, profits, and wages are included along with gifts, inheritances, gambling profits, and any kind of windfalls. All of these accretions are included, independent of whether they are expected, and whether they are realized (translated into cash). Similarly, all diminutions of wealth are allowed for, whether they take form of wear and tear, technical obsolescence, decline in value due to change in the market, gambling losses, or what not” (The theory of public finance. New York: McGraw-Hill Book Company, 1959. p. 165).


      qual “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade” (art. 153, inciso III e § 2º, inciso I, da Constituição Federal).


      Por sua vez, o conceito de renda constante do texto constitucional veio a ser explicitado pelo art. 43 do Código Tributário Nacional, segundo o qual:


      “Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

      1. – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

      2. – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

        § 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.

        § 2º Na hipótese de receita ou de rendimentos oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo”.

        Dessa forma, para o deslinde da controvérsia sob exame, é importante definirmos os conceitos de “renda” e de “proventos de qualquer natureza” previstos, respectivamente, nos incisos I e II do art. 43 do Código Tributário Nacional.


        Ao definir o fato gerador do imposto de renda, o art. 43 do Código Tributário Nacional, em seu inciso I, considerou a renda como o fluxo de bens provenientes de uma fonte produtora. Essa fonte abrange tanto bens materiais como também a capacidade individual, ou seja, a habilitação da pessoa para trabalhar e produzir. A renda é obtida pelo esforço da pessoa, aplicando a fonte produtora. Essa definição alinha-se ao conceito clássico de renda tributável e corresponde à “teoria da fonte”8.


        Nesse sentido, a clássica definição de renda como produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos já constava da legislação do imposto de renda desde a década de 1940 (Decreto-lei n. 5.844/1943, art. 10).


        Essa definição de renda está baseada na também clássica distinção entre renda e patrimônio. O patrimônio ou capital é o montante da riqueza possuída por um indivíduo em um determinado momento. Já renda é o aumento ou acréscimo do patrimônio,



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    2. TILBERY, Henry. Comentário ao art. 43. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 1. p. 288.


      verificado entre dois momentos quaisquer de tempo (em geral, esses dois momentos são o início e o fim do exercício financeiro).


      A “teoria da fonte” enquadra na renda tributável somente as receitas que afluem regularmente de fontes permanentes9. As “teorias da fonte”, que têm sua origem no Direito romano, veem a renda como fruto dos bens de capital10. Elas só consideram a renda provinda da fonte, excluindo do conceito de renda os ganhos e perdas de capital decorrentes da venda da própria fonte. A renda advinda da venda do fruto é tributável; já o ganho de capital advindo da venda do pomar não é tributável.


      A concepção de renda como o ganho regular (que se repete no tempo) derivado de fonte permanente exclui o ganho de capital do conceito de renda, por ser este eventual e irregular. Assim, o inciso I do art. 43 do Código Tributário Nacional não permitiria a tributação do ganho de capital.


      Quanto ao inciso II do art. 43 do Código Tributário Nacional, a expressão “proventos de qualquer natureza”, entendidos como os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior, constitui, segundo Henry Tilbery, a aplicação da “teoria do acréscimo patrimonial”11. Para o autor, essa redação autoriza a tributação, pela lei ordinária, dos ganhos de capital12.


      Alcides Jorge Costa possui o mesmo entendimento sobre o art. 43 do Código Tributário Nacional. Para o jurista, de acordo com o texto em vigor, renda é o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. Já proventos de qualquer natureza são os acréscimos patrimoniais não compreendidos na expressão renda. Dessa forma, “o CTN não deixa dúvida sobre a possibilidade de a lei ordinária tributar os acréscimos patrimoniais não resultantes da poupança de renda, ou seja, os ganhos de capital. Ao mesmo tempo, faz uma distinção entre renda como fruto periódico de um capital e renda como acréscimo patrimonial. A primeira fórmula atende à teoria da fonte, a segunda à teoria do acréscimo


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    3. A respeito do tema, explica Alcides Jorge Costa: “Como diz, com propriedade, Walter Ryser, o conceito de renda pode ser examinado na ótica da produção, na da repartição e na do emprego da renda ou seu consumo. Na ótica da produção, a renda pode ser definida como o produto de uma fonte natural ou criada pelo homem que, ele mesmo e sua capacidade podem ser considerados como um capital. Essa noção de renda como fruto periódico de uma fonte permanente foi certamente sugerida pela economia agrícola. [...] O ponto de vista mais importante é o da produção e é a ele que podem ligar-se as teorias chamadas da ‘fonte’, que, grosso modo, entendem como renda apenas o produto periódico de uma fonte permanente” (Conceito de renda tributável. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Imposto de renda: conceitos, princípios, comentários. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1996. p. 25).


    4. Cf., a respeito, LANG, Joachim. The influence of tax principles on the taxation of income from capital. In: ESSERS, Peter; RIJKERS, Arie (orgs.) The notion of income from capital. Amsterdam: IBFD, 2005. p. 18.


    5. TILBERY, Henry. A tributação dos ganhos de capital. São Paulo: Resenha Tributária, Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 1977. p. 288.


    6. Sobre o tema, ensina Aliomar Baleeiro: “O debate sobre esse assunto tem empolgado vários espíritos e pode ser resumido em duas teorias, que ambas têm sido invocadas pelas legislações fiscais dos vários países: a) renda é atributo quase sempre periódico da fonte permanente da qual promana, como elemento novo criado e que com ela não se confunde (STRUTZ, FUISTING, COHN); b) a renda é o acréscimo de valor pecuniário do patrimônio entre dois momentos (SHANZ, HAIG, FISCHER)” (Direito tributário brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 182).


      patrimonial, mas de modo original, uma vez que, na doutrina do acréscimo patrimonial,

      este é renda e não alguma coisa diferente”13.


      Portanto, o Código Tributário Nacional acolhe tanto a teoria da fonte, no inciso I do seu art. 43, quanto a teoria do acréscimo patrimonial, no inciso II do mesmo artigo. A nosso ver, de acordo com o aludido dispositivo legal, a hipótese de incidência do imposto de renda deve necessariamente contemplar um acréscimo patrimonial.


      Já tivemos a oportunidade de nos pronunciar a respeito, no seguinte sentido:


      “A renda e os proventos representam novas riquezas acrescidas a um patrimônio já existente. Ou seja, o fato juridicamente hábil a gerar a incidência do Imposto de Renda, segundo o art. 43 do Código Tributário Nacional, é o acréscimo patrimonial experimentado pelo contribuinte ao adquirir uma riqueza nova.

      Esse acréscimo patrimonial pode ser originado do capital aplicado ou da produção de trabalho do contribuinte, caso em que o produto auferido é conceituado como renda (art. 43, I, do Código Tributário Nacional), ou pode ser derivado de qualquer outra origem, e a ele é dado o nome de provento de qualquer natureza (art. 43, II, do Código Tributário Nacional).

      Em outros termos, a hipótese de incidência do Imposto de Renda deve necessariamente contemplar um acréscimo patrimonial, e todos os fatos imponíveis devem representar a efetiva ocorrência de um acréscimo patrimonial”14.


      Nesse sentido, aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “Na verdade, por mais variado que seja o conceito de renda, todos os economistas, financistas e juristas se unem em um ponto: renda é sempre um ganho ou acréscimo de patrimônio” (RE n. 89.791-RJ, 1ª Turma)15.


      Como visto, caso seja adotado um conceito abrangente de renda, esta deve ser definida de forma bastante ampla, refletindo todo o crescimento da riqueza de uma pessoa num determinado período de tempo16. Nesta concepção, levada às suas últimas consequências, adentrariam as mais-valias e os ganhos de capital e, também, as aquisições de bens novos a


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    7. COSTA, Alcides Jorge. Op. cit., p. 30.


    8. GUTIERREZ, Miguel Delgado. Imposto de renda: princípios da generalidade, da universalidade e da progressividade. São Paulo: Quartier Latin, 2014. (Série Doutrina Tributária, 11). p. 54.


    9. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Revista Trimestral de Jurisprudência n. 96, p. 781.


    10. A respeito do assunto, confiram-se os ensinamentos de Richard A. Musgrave e Peggy B. Musgrave, seguidores da teoria do acréscimo patrimonial, sobre a definição de renda: “Analisando do lado dos usos da renda, tal definição equivaleria ao aumento da rique za líquida do indivíduo mais o seu consumo durante o período considerado. Todo incremento ao valor da riqueza pessoal deveria ser incluído, independentemente dele ser regular ou flutuante, esperado ou inesperado, realizado ou não. As rendas provenientes de todas as fontes deveriam ser tratadas uniformemente e combinadas numa medida global de renda, à qual seriam aplicadas as alíquotas do imposto. Sem tal amplitude no conceito de renda, um esquema baseado em alíquotas progressivas não atinge o seu propósito de adaptar o imposto à capacidade de pagamento do contribuinte. Esse enfoque a respeito do imposto de renda, apresentado por Henry Simons, tem sido amplamente aceito por aqueles que estudam o problema tributário” (MUSGRAVE, R. A.; e MUSGRAVE, P. B. Finanças públicas: teoria e prática. São Paulo: EDUSP, 1980. p. 205-206).


      título gratuito, ou seja, decorrentes de heranças ou doações, pois representariam um incremento patrimonial do contribuinte.


      Contudo, se a tributação dos ganhos de capital é pacificamente admitida pela doutrina dominante, muito se discute a respeito da possibilidade da tributação das doações e heranças pelo imposto de renda17.


      Com efeito, além da definição genérica do art. 43 do Código Tributário Nacional, a legislação do imposto de renda não contém uma definição específica do que se deva entender por renda ou proventos de qualquer natureza.


      Assim, a maior parte das controvérsias sobre a inclusão de determinados eventos econômicos no conceito de renda ou proventos de qualquer natureza foi sendo resolvida pela legislação esparsa posterior ou pela jurisprudência.


      Não nos parece, contudo, que, diante das controvérsias a respeito do conceito de renda ou proventos de qualquer natureza, possa se entender que o legislador é inteiramente livre para fixar tal conceito, como já foi sustentado18. Com efeito, a lei ordinária, ao definir os conceitos de renda ou os proventos de qualquer natureza sujeitos à tributação, não é livre para escolher qualquer base imponível, mas deve respeitar o conceito de renda e proventos de qualquer natureza constante da Constituição e do Código Tributário Nacional. As definições adotadas pela lei ordinária devem ser construídas e interpretadas tendo em vista a discriminação constitucional de competências tributárias e sujeitam-se ao teste de constitucionalidade em função da sua compatibilidade com essa discriminação. O Congresso pode até limitar ou restringir o conceito de renda e proventos de qualquer natureza previsto na Constituição, mas não pode ampliá-lo além dos limites compatíveis com a discriminação constitucional de competências.


      Veja-se, por exemplo, o caso das doações para residentes ou domiciliados no exterior que, de acordo com o art. 690, inciso III, do RIR/1999, não estavam sujeitas a tributação pelo imposto de renda.


      Com o advento do novo Regulamento do Imposto de Renda, a Administração Tributária passou a entender que os valores remetidos a título de doação a residente ou domiciliado no exterior, pessoa física ou jurídica, sujeitam-se à incidência do imposto de renda retido na fonte (IRRF).



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    11. É o entendimento de Alcides Jorge Costa: “Os ganhos de capital são tributados sem que se dispute a legitimidade desta tributação em face da Constituição. Na verdade, trata-se de problema a meu ver resolvido há muito tempo e que sequer comporta discussão” (op. cit., p. 31).


    12. Rubens Gomes de Sousa defendia a concepção segundo a qual renda é aquilo que a lei disser que é: “Não seria, portanto, exagerado ampliar a definição para dizer que o imposto de renda é aquele que incide sobre o que a lei define como renda” (A evolução do conceito de rendimento tributável. Revista de Direito Público v. 14, p. 339).


      De acordo com a Solução de Consulta n. 309 da Cosit, de 26 de dezembro de 2018, a renda e os proventos de qualquer natureza auferidos por residentes ou domiciliados no exterior, provenientes de fontes situadas no País, sujeitam-se ao IRRF, de forma isolada e definitiva, independentemente de sua natureza, segundo prescreve o art. 741, inciso I, do RIR/2018.


      Ainda segundo a aludida solução de consulta, excetuam-se da incidência do imposto apenas os casos expressamente previstos em legislação própria ou ainda os constantes de tratados e convenções internacionais. Dessa forma, a isenção ou imunidade concedida pela legislação brasileira às pessoas físicas e jurídicas residentes e domiciliadas no Brasil não se estendem, automaticamente, aos residentes e domiciliados no exterior.


      Somente existe, na legislação tributária, hipótese de isenção sobre a renda para doação cujo beneficiário seja pessoa física residente no País, conforme o art. 6º, inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988, combinado com o seu art. 1º.


      Observa a Cosit que o anterior Regulamento do Imposto de Renda (RIR/1999) continha previsão, em seu art. 690, inciso III, de não retenção do IRRF nas remessas de valores havidos por doação por residente ou domiciliado no exterior. Sendo assim, durante a sua vigência, as remessas em questão estavam livres da retenção.


      No entanto, no entendimento da Administração Tributária, o RIR/1999 foi revogado pelo novo Regulamento, que nada dispõe a esse respeito, razão pela qual a dispensa de retenção não mais se aplica.


      Sendo assim, segundo a Cosit, incide o IRRF nas remessas ao exterior a título de doação para beneficiário residente ou domiciliado no exterior, pessoa física ou jurídica.


      Com a devida vênia, não concordamos com o entendimento esposado pela Cosit na Solução de Consulta n. 309, de dezembro de 2018, como exporemos a seguir.


      Em nossa opinião, os valores recebidos a título de doação sem dúvida representam um acréscimo patrimonial para aquele que os recebe. Não resta dúvida de que o donatário experimenta um enriquecimento quando recebe uma doação. Mas, de outro lado, o doador sofre um empobrecimento ao fazer a doação. Assim, essa transferência patrimonial não cria um novo poder econômico. Simplesmente há um aumento no patrimônio do donatário, e uma diminuição correspondente no patrimônio do doador.


      Destarte, nas doações, entendemos que não pode o acréscimo patrimonial experimentado pelo donatário ser tributado.


      A tributação das transferências patrimoniais não está autorizada pelo art. 43, inciso I, do Código Tributário Nacional, pois este se refere à aquisição de disponibilidade de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. Ora, as


      transferências de capital não podem ser consideradas produto do capital ou do trabalho do contribuinte, pois advêm de terceiros que não este.


      Essa opinião é sufragada por aqueles doutrinadores, tal como Rubens Gomes de Sousa, que entendem que uma determinada soma de riqueza, para constituir renda, deve provir de uma fonte patrimonial determinada e já pertencente ao próprio titular da renda. Assim, o dinheiro recebido por herança ou doação não seria renda, pois não provém de uma fonte preexistente no patrimônio do indivíduo que a recebe19.


      Na mesma senda, Modesto Carvalhosa entende que não pode haver tributação das doações e heranças pelo imposto de renda. Para o jurista, a renda deve provir de uma fonte patrimonial já pertencente à própria pessoa anteriormente. Portanto, “somente constitui renda tributável, aquela originada no patrimônio preexistente da própria pessoa, ou seja, a obtida a título oneroso, entendida esta última palavra como o esforço ou o risco da aplicação de um patrimônio material ou imaterial, numa determinada atividade, pelo próprio indivíduo que irá pagar o tributo (aplicação de capital = juros; trabalho = salário)”20.


      Conclui o jurista no sentido de que o acréscimo patrimonial que tiver sua origem em doações ou heranças não é renda, pois tanto a doação quanto a herança não são frutos do patrimônio que já era de titularidade do contribuinte, mas constituem capital que se transmitiu de uma pessoa qualquer para a titularidade do contribuinte21.


      Portanto, as transferências patrimoniais só poderiam ser consideradas proventos de qualquer natureza, nos termos do art. 43, inciso II, do Código Tributário Nacional. Normalmente, a doutrina assimila a figura conceituada no referido inciso aos ganhos de capital, que podem ser caracterizados pela presença de um benefício auferido na alienação


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    13. GOMES DE SOUSA, Rubens. Compêndio de legislação tributária. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1954. p. 198.


    14. CARVALHOSA, Modesto. Imposto de renda. Conceituação no sistema tributário da Carta Constitucional. Revista de Direito Público v. 1, ano 1, p. 190, jul.-set. 1967.


    15. Ibidem, p. 194. Em sentido contrário, veja-se o entendimento de Roberto Quiroga Mosquera: “Do exposto acima, parece-nos cristalino que os valores recebidos a título de doações ou heranças podem ser tributados tanto pelo IR, quanto pelo imposto sobre transmissão gratuita ou causa mortis de direitos quaisquer, uma vez que, na hipótese daquele primeiro tributo, estar-se-á tributando a mutação patrimonial que representa um acréscimo de direitos reais ou pessoais (elementos patrimoniais). A doutrina que se manifestou contrária a tal entendimento argumentou que se deveria agregar ao conceito de renda, além do elemento temporal tradicional (termo inicial e t ermo final), um outro conceito temporal de patrimônio, ou seja, a fonte patrimonial da renda deveria pertencer ao próprio titular dela, no momento em que esta se verifica. Bulhões Pedreira, no mesmo sentido, afirmou que as transferências de capital, por se originarem de patrimônios de terceiros, não se consideram ‘renda poupada’ ou ‘capital acumulado’, as quais seriam as fontes produtoras de renda e proventos de qualquer natureza. Dessa forma, se a fonte geradora do acréscimo patrimonial não integra o conjunto de direitos patrimoniais do beneficiário, não se pode sujeitar o incremento decorrente de doação ou herança ao IR. O aludido professor, caminhou no mesmo trilho, inadmitindo a incidência do imposto sobre a renda sobre os valores recebidos a título de doações ou heranças. Se assim é, se a fonte geradora de acréscimo patrimonial não integra o conjunto de direitos patrimoniais do beneficiário, não se pode sujeitar o incremento decorrente ao IR. Ora, a teoria no sentido de que a renda deve ser gerada de fonte própria, parece-nos que não é critério suficientemente seguro para afastar a incidência do IR sobre majorações patrimoniais verificadas por atos de transmissão gratuita de direitos, ou por atos sucessórios. Trata-se de argumento econômico que não se coaduna com a materialidade do imposto sobre a renda previsto no Texto Constitucional. Dizer que não se pode tributar os valores recebidos a título de doações e heranças pelo imposto sobre a renda e pelo imposto sobre transmissão gratuita de direitos é o mesmo que afirmar que o Município não está autorizado a tri butar as mutações patrimoniais que se constituem numa transmissão inter vivos onerosa de bens imóveis, pelo fato de o vendedor da referida operação ter auferido renda nessa operação. Na hipótese de doação, apresenta-se a mesma situação, com a única diferença de que a transmissão se faz a título gratuito” (IR sobre doações ou heranças e a Lei n. 9.532/97. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Imposto de renda: alterações fundamentais. São Paulo: Dialética, 1998. v. 2. p. 209-210).


      de bens ou direitos pertencentes ao indivíduo por preços superiores aos da sua respectiva aquisição22.


      Ora, nas transferências patrimoniais não há um ganho de capital decorrente da alienação de bens e direitos que estão no patrimônio do contribuinte. Nas transferências patrimoniais há um fluxo de bens e direitos de um patrimônio para outro. O patrimônio do transmitente dos bens e direitos se reduz, aumentando em igual valor o patrimônio do beneficiário da transferência de capital. Ou seja, uma das partes na transação sofre redução no seu patrimônio em idêntico e concomitante benefício da outra. O fluxo de bens e direitos conceituado como transferência patrimonial não pode ser definido como rendimento sujeito à tributação, pois se assim fosse não se estaria tributando a renda ou os proventos percebidos, mas sim o próprio capital23.


      Na doação, o donatário não aufere um ganho de capital decorrente da alienação de bens ou direitos que estavam no seu patrimônio. O patrimônio deste é aumentado em virtude de uma decisão do doador, que lhe fez a doação. Há um aumento do capital do donatário correspondente à diminuição patrimonial experimentada pelo doador.


      É certo que o art. 43 do Código Tributário Nacional, ao definir o fato gerador do imposto de renda, empresta à expressão “proventos de qualquer natureza”, constante da Constituição, o sentido de “acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”. Assim, poder-se-ia concluir que quaisquer acréscimos patrimoniais estariam sujeitos ao imposto de renda. Tal sentido, contudo, conduziria a uma ampliação da base do imposto incompatível com a discriminação constitucional de competências. Isso porque entendemos que nem todo acréscimo patrimonial é necessariamente renda, pois pode resultar de transferências patrimoniais, tais como doações, heranças, a contribuição para o capital das pessoas jurídicas e a restituição do capital aplicado nas pessoas jurídicas, entre outros fatos.


      A seguir, procuraremos explicar melhor nossa afirmação.


      Em primeiro lugar, como lembra Alberto Xavier, um argumento histórico no sentido de que o art. 43 do Código Tributário Nacional não incluiria os acréscimos patrimoniais decorrentes de aquisições a título gratuito resulta de a versão final do caput desse artigo


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    16. No que se refere à apuração do ganho de capital das pessoas físicas, determina o § 3º do art. 3º da Lei n. 7.713/1988: “Na apuração do ganho de capital serão consideradas as operações que importem alienação, a qualquer título, de bens ou direitos ou cessão ou promessa de cessão de direitos à sua aquisição, tais como as realizadas por compra e venda, permuta, adjudicação, desapropriação, dação em pagamento, doação, procuração em causa própria, promessa de compra e venda, cessão de direitos ou promessa de cessão de direitos e contratos afins”. Quanto à apuração do ganho de capital das pessoas jurídicas, deve-se observar o disposto no art. 31 do Decreto-lei n. 1.598/1977: “Serão classificadas como ganhos ou perdas de capital, e computados na determinação do lucro real, os resultados na alienação, inclusive por desapropriação (§ 4º), na baixa por perecimento, extinção, desgaste, obsolescência ou exaustão, ou na liquidação de bens do ativo não circulante, classificados como investimentos, imobilizado ou intangível. [...]” (destacamos).


    17. Justamente por isso é que o art. 6º, inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988, consolidado no art. 35, inciso VII, alínea “c”, do novo Regulamento do Imposto de Renda (RIR), aprovado pelo Decreto n. 9.580, de 22.11.2018, concedeu isenção do imposto de renda para o valor dos bens adquiridos por doação ou herança.


      ter rejeitado o projeto da Comissão elaboradora da Reforma Tributária, que redigira esse dispositivo legal da seguinte forma: “o imposto da competência da União sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de acréscimo patrimonial a título oneroso ou gratuito24.


      Assim, ao ser excluído o acréscimo patrimonial a título gratuito pelo legislador, não pode incidir o imposto de renda sobre as doações.


      Mas há outro argumento que, em nossa opinião, leva à impossibilidade de tributação das doações, que não decorre do conceito de renda consagrado em lei complementar, mas das regras constitucionais que delimitam a competência tributária dos vários entes políticos integrantes da Federação brasileira.


      Com efeito, no regime federativo, onde coexistem em um mesmo território duas ou mais ordens de poderes autônomos, a discriminação de rendas atribuídas privativamente a cada ente federativo é imperativa para o equilíbrio do sistema e o desenvolvimento de sua economia.


      É o caso do nosso sistema tributário, que se assenta na técnica da discriminação das rendas entre as entidades autônomas da Federação. No Brasil, várias são as pessoas políticas exercentes do poder de tributar e, portanto, titulares de competências impositivas: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Entre eles é repartido o poder de tributar.


      Por isso, a Constituição Federal de 1988 adotou, como as anteriores, uma discriminação de rendas exaustiva, integral e completa. A cada entidade autônoma da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) foi conferida competência expressa para instituir impostos, taxas e contribuições de melhoria. A Constituição estabeleceu a privatividade tributária e tornou evidentemente exclusivo de cada esfera o tributo que lhe foi destinado, de modo que tal atribuição não pode ser modificada por lei ordinária nem por lei complementar25.

      Segundo Humberto Ávila, a Constituição Brasileira caracteriza-se pela extensão das regras de competência que prevê para a instituição dos tributos dos entes federados. Nos arts. 145 a 162, são estabelecidas regras que delimitam constitucionalmente o poder que cada ente possui, não concedendo liberdade ao legislador para alterar os fatos que podem ou não ser objeto de tributação.


      Assim, de acordo com o jurista, a Constituição Federal não permitiu a tributação pelo estabelecimento de princípios, o que abriria caminho para a tributação de todos e


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    18. XAVIER, Alberto. Distinção entre doação remuneratória e doação em contemplação do merecimento para efeitos fiscais. Revista Dialética de Direito Tributário n. 209, São Paulo, fev. 2013, p. 147.


    19. Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: RT, 1989. p. 600.


      quaisquer fatos condizentes com a promoção dos ideais traçados na Constituição. Ao contrário, a Constituição optou pela atribuição de poder por intermédio de regras especificadoras dos fatos que podem ser objeto de tributação. Tal opção resulta na proibição de livre ponderação do legislador a respeito dos fatos que ele pode tributar, mas não previstos na Constituição. Destarte, ampliar a competência tributária com base nos princípios da dignidade humana ou da solidariedade social contraria a dimensão normativa escolhida pela Constituição26.


      Essa rígida discriminação de competências assegura à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios autonomia financeira, bem como impede a ocorrência de bitributações. Nesse sentido, confiram-se as pertinentes considerações de Roque Antonio Carrazza sobre o tema:


      “A Constituição aponta as competências tributárias privativas de cada pessoa

      política.

      No Direito brasileiro, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, no tocante à instituição de tributos, gozam de privatividade ou, se preferirmos, de exclusividade. A bem dizer, todos eles têm faixas tributárias privativas.

      [...]

      As normas constitucionais que discriminam as competências tributárias encerram duplo comando: 1) habilitam a pessoa política contemplada – e somente ela – a criar, querendo, um dado tributo; e 2) proíbem as demais de virem a instituí-lo. Efetivamente, a reserva de competência tributária importa, a contrario sensu, interdição, que resguarda a eficácia de sua singularidade. Ao mesmo tempo que afirma a aptidão daquela pessoa política para criar aquele determinado tributo, nega a das demais para fazerem o mesmo, ou seja, para o instituírem. É cláusula vedatória implícita, de endereço erga omnes, salvo, é claro, o próprio destinatário da faculdade, a pessoa política competente, nos termos da Constituição Federal”27.


      O sistema tributário brasileiro, estabelecido na Constituição, procura prevenir os conflitos de competência. De fato, de acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “o sistema tributário constitucional repartiu os fatos geradores de tal forma que cada um corresponde a um imposto nominado e que cada imposto corresponde a uma pessoa jurídica de direito público, União, Estado ou Município”28.


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    20. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário: de acordo com a Emenda Constitucional n. 42, de 19.12.03. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 158-159.


    21. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 609-612 (destaques do original).


    22. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira: Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969 . São Paulo: Saraiva, 1972. v. 1. p. 161.


      No caso dos impostos, a competência para instituí-los foi dada de forma privativa sobre fatos específicos determinados, evitando-se os conflitos de competência entre as pessoas políticas titulares de competências impositivas.


      Em virtude disso, caso fosse instituído o imposto de renda sobre as heranças e doações, estaríamos diante de uma bitributação jurídica que, além de condenável do ponto de vista financeiro e econômico, é implicitamente vedada pelo ordenamento jurídico tributário brasileiro, já que, sendo o Brasil um Estado federal, as competências tributárias de cada entidade da federação estão bem delineadas em nossa Constituição Federal29. A nossa Constituição não admite o chamado “concurso de competências”, sendo rigorosamente vedada a invasão de competência entre as diversas pessoas de direito público interno.


      A instituição de um tributo por pessoa política incompetente viola frontalmente a Constituição, acarretando a nulidade do ato que indevidamente cria tributo alheio. A lei assim produzida, maculada por vício insanável, não tem eficácia jurídica.


      Conforme Humberto Ávila, enquanto limitação ao poder de tributar, as regras de competência qualificam-se como limitações expressas e materiais, na medida em que, sendo expressamente previstas na Constituição Federal (arts. 153 a 156, especialmente), estabelecem pontos de partida para a determinabilidade conteudística do poder de tributar30.


      Explica o jurista que, já que “os impostos que podem ser instituídos pela União, pelos Estados e pelos Municípios são estabelecidos pela indicação de pressupostos de fato e de conceitos jurídicos (arts. 153 a 156), o Poder Legislativo não pode modificar o conceito ou a forma dos institutos implícita ou explicitamente utilizados pela Constituição (art. 110 do CTN). Do contrário a própria distribuição de competência seria alterada”.


      Conclui que, tendo os pressupostos de fato e de direito sido definidos pela Constituição, cada atribuição de competência representa, ao mesmo tempo, uma limitação material, no sentido de que, a partir de cada distribuição de competência, decorre uma limitação não constante da seção das “limitações ao poder de tributar” da Constituição31.


      Destarte, entendemos que no sistema tributário brasileiro as doações não podem ser submetidas ao imposto de renda, pois já são objeto do imposto previsto no art. 155, inciso I,


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    23. Sobre o conceito de bitributação jurídica, preleciona Gerd W. Rothmann: “Em sentido jurídico, ocorre bitributação internacional quando houver exigência de impostos idênticos ou comparáveis por vários Estados soberanos, do mesmo contribuinte e em relação ao mesmo objeto tributável e mesmo período tributário. [...] Dos conceitos acima referidos decorrem as seguintes características da bitributação jurídica, que a distinguem da dupla imposição: a) exigência de impostos por soberanias fiscais originárias distintas (pluralidade de soberanias); b) identidade do objeto tributável (fato gerador tributário); c) identidade do sujeito passivo (contribuinte); d) identidade do período tributário; e) identidade do tributo” (Bitributação internacional. In: FRANÇA, Rubens Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 11. p. 449-450).


    24. ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 159.


    25. Ibidem, p. 247.


      da Constituição, de competência privativa dos Estados e do Distrito Federal32. Ou seja, a Constituição retirou do campo de incidência do imposto de renda os acréscimos patrimoniais resultantes de doações, pois a União não tem competência para instituir imposto sobre transmissões a título gratuito33.


      De acordo com a rígida discriminação constitucional de competências tributárias da nossa Constituição Federal, cabe aos Estados e ao Distrito Federal a competência para a instituição de impostos sobre doações34. A União não está autorizada a instituir imposto cuja base de cálculo ou fato gerador seja o mesmo do imposto sobre doações, nem mesmo dentro da sua competência residual, prevista no art. 154, inciso I, da Constituição Federal35.


      É que, de acordo com a Carta Magna, a competência residual da União há de ser exercida mediante lei complementar, e só abrange impostos que sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição Federal (art. 154, inciso I). Ora, se a União, no exercício de sua competência residual, criar um imposto sobre doações, estará infringindo o aludido art. 154, inciso I, da Constituição Federal, pois estará criando imposto com fato gerador ou base de cálculo próprios do imposto discriminado no art. 155, inciso I, da Constituição, de competência dos Estados e do Distrito Federal.


      Como explicamos acima, entendemos que a tributação das doações pelo imposto de renda não está autorizada pelo art. 43, inciso I, do Código Tributário Nacional, pois este se refere à aquisição de disponibilidade de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho


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    26. Alcides Jorge Costa chega à mesma conclusão: “No que diz respeito a doações e heranças, creio não ser possível submetê-las ao imposto de renda por serem objeto de imposto específico, de competência dos Estados. É verdade que nada impede que o legislador constitucional crie dois impostos diferentes incidindo sobre a mesma matéria, embora seja desaconselhável do ponto de vista econômico. No caso, contudo, parece-me que a Constituição retirou do campo do imposto de renda os acréscimos patrimoniais resultantes de heranças e doações” (op. cit., p. 32). No mesmo diapasão, a lição de Sacha Calmon Navarro Coêlho: “Quanto à tributação pelo imposto de r enda das heranças, legados e doações, verifica-se a sua impossibilidade por decisão expressa do constituinte que sobre eles criou o imposto sobre a transmissão de quaisquer bens, direitos e doações e o outorgou à competência dos Estados-Membros” (Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 198).


    27. No caso, se a lei estadual que criar o imposto sobre doações eleger como contribuintes desse imposto o donatário, estará havendo uma bitributação jurídica, já que haverá a incidência de impostos idênticos ou equiparáveis em relação ao mesmo contribuinte, ao mesmo fato gerador e a períodos idênticos, exigidos por duas pessoas de direito público interno distintas (Estados e União). Já se os contribuintes forem distintos, estaremos diante de uma bitributação econômica, que ocorre quando o mesmo objeto é tributado em relação a distintos sujeitos passivos. Seria o caso da dupla tributação do lucro da empresa pelo imposto de renda da pessoa jurídica e, também, pelo imposto de renda da pessoa física, no caso da distribuição de lucros. Salientamos que, no Estado de São Paulo, a Lei Estadual

      n. 10.705, de 28.12.2000, que dispõe sobre o imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos, elege como contribuintes do imposto, na doação, o donatário (art. 7º).


    28. Para Humberto Ávila, “a instituição de um sistema rígido inserto numa República Federativa conduz a uma repartição de competências marcada exatamente por conceitos mínimos, na medida em que os mesmos fatos não poderão ser tributados por mais de uma pessoa política de direito interno” (op. cit., p. 203). Mais à frente, lembra o autor que o “conceito de renda pode ser construído a partir da Constituição também por meio da sua distinção relativamente a outras hipóteses de incidência que a própria Constituição estab elece. Novamente: é o postulado da unidade da Constituição que exige a atribuição de um significado próprio a cada norma” (op. cit., p. 367).


    29. A não incidência do imposto de renda sobre as aquisições não onerosas já foi afirmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE n. 117.887-6/SP, relator Ministro Carlos Velloso, cuja ementa ora transcrevemos: “Constitucional. Tributário. Imposto de Renda. Renda – conceito. Lei n. 4.506, de 30.XI.64, art. 38, C.F./46, art. 15, IV; CF/67, art. 22, IV; EC 1/69, art. 21, IV. CTN, art. 43. I. – Rendas e proventos de qualquer natureza: o conceito implica reconhecer a existência de receita, lucro, proveito, ganho, acréscimo patrimonial que ocorrem mediante o ingresso ou o auferimento de algo, a título oneroso. C.F., 1946, art. 15, IV; CF/67, art. 22, IV; EC 1/69, art. 21, IV. CTN, art. 43. II. – Inconstitucionalidade do art. 38 da Lei 4.506/64, que institui adicional de 7% de imposto de renda sobre lucros distribuídos.

      1. – R.E. conhecido e provido” (DJ de 23.4.1993, p. 6923, destacamos).


        ou da combinação de ambos. Ora, as doações não podem ser consideradas produtos do capital ou do trabalho do contribuinte, pois advêm de terceiros que não este.


        Portanto, as doações só poderiam ser consideradas proventos de qualquer natureza, nos termos do art. 43, inciso II, do Código Tributário Nacional. Normalmente, a doutrina assimila a figura conceituada no referido inciso aos ganhos de capital, que podem ser caracterizados pela presença de um benefício auferido na alienação de bens ou direitos por preços superiores aos da sua respectiva aquisição.


        Muito embora nas transmissões por doação o donatário adquira os bens ou direitos e obtenha um acréscimo patrimonial equivalente ao valor venal do bem ou direito recebido, pode-se afirmar que há uma diferença nos fatos geradores do imposto sobre doações e do imposto de renda. Enquanto o fato gerador do primeiro imposto é a transmissão da propriedade, o do segundo é a aquisição de disponibilidade sobre acréscimos patrimoniais. Contudo, considerando-se que o acréscimo patrimonial auferido pelos donatários seria equivalente ao valor venal dos bens ou direitos recebidos, conclui-se que a base de cálculo dos dois tributos seria a mesma.


        Assim, a União, de acordo com o art. 154, inciso I, da Constituição, não pode instituir imposto com a mesma base de cálculo de imposto de competência dos Estados, ainda que no uso de sua competência residual.


        Do exposto, conclui-se que a União não pode instituir imposto de renda sobre doações, a não ser na excepcional hipótese prevista no art. 154, inciso II, da Carta Magna36.

        As considerações feitas acima levaram a que a legislação ordinária da União declarasse não incidir o imposto de renda sobre aquisições de bens ou direitos a título gratuito. É o que dispõe o art. 6º, inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988, consolidado no art. 35, inciso VII, alínea “c”, do Regulamento do Imposto de Renda (RIR), aprovado pelo Decreto n. 9.580, de 22 de novembro de 2018:


        “Art. 6º Ficam isentos do Imposto sobre a Renda, os seguintes rendimentos

        percebidos por pessoas físicas:

        [...]

        XVI – o valor dos bens adquiridos por doação ou herança”.


        Na verdade, o dispositivo legal veio apenas esclarecer que as doações estão fora do âmbito material do imposto de renda, pois não tipificam nem renda nem proventos de qualquer natureza. Conclui-se que a legislação ordinária apenas explicitou situação de não


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    30. Determina o art. 154 da Constituição Federal: “Art. 154. A União poderá instituir: I – mediante lei complementar, impostos não compreendidos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição; II – na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua criação”.


      incidência do imposto de renda, já que a Constituição Federal retirou do campo de incidência do imposto de renda os acréscimos patrimoniais resultantes de doações. Trata- se, assim, de verdadeira hipótese de isenção didática, ou de não incidência, e não propriamente de uma isenção37.


      Por isso, entendemos que a doação, ainda que seja feita para pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior, não pode ser objeto de tributação pelo imposto de renda, pois sua tributação é da competência tributária privativa dos Estados e do Distrito Federal.


      Por fim, uma última observação a ser feita a respeito do assunto refere-se ao fato de que as disposições legais que disciplinam o imposto sobre residentes no exterior não contêm uma definição expressa do que se deve entender pelos conceitos de “rendimentos”, “ganhos de capital” ou “demais proventos pagos” nelas utilizados38.


      Segundo Alberto Xavier, comentando a respeito de dispositivos semelhantes do revogado RIR/1999, na “ausência de uma definição expressa, a doutrina entendia que tais conceitos devam ser interpretados à luz das disposições que regem a hipótese de incidência do imposto de renda das pessoas físicas, para as quais implicitamente remetem, mediante a técnica da remissão por absorção39.

      Mais adiante, o autor explica que aludido método da remissão por absorção traduz-se numa absorção das normas da legislação reguladora das pessoas físicas, em especial a Lei n. 7.713/1988, que definem a determinação dos rendimentos e ganhos de capital em causa40.


      Ora, essa remissão à legislação que regula a hipótese de incidência do imposto de renda das pessoas físicas para disciplinar o imposto de renda sobre residentes no exterior novamente leva à aplicação do acima referido art. 6º, inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988, que determina de forma expressa a não incidência do imposto de renda sobre aquisições de bens ou direitos a título gratuito.


      1. CONCLUSÕES


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  1. No mesmo sentido, confira-se o entendimento de Alberto Xavier: “Apenas nos permitimos criticar a impropriedade técnica da Lei n. 7.713/88 quando caracteriza como ‘isenção’ um fenômeno que tecnicamente reveste a natureza de uma não incidência de origem constitucional. É que, enquanto na isenção a lei pode, em princípio, legitimamente tributar, mas não o faz em virtude de regra excepcional impeditiva da incidência, na não incidência a lei declara que certa matéria não está sujeita ao imposto porque não se encontr a incluída na tipicidade do seu fato gerador. Ora, é este precisamente o caso das aquisições a título gratuito que não se incluem no fato gerador do imposto de renda por expressa disposição constitucional, segundo a qual tais aquisições são da competência tributária privati va dos Estados e do Distrito Federal” (op. cit. na nota 24, p. 145).


  2. Ver, por exemplo, o art. 744 do RIR/2018.


  3. XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 437.


  4. Ibidem, nota 29, p. 438.


As pessoas residentes ou domiciliadas no exterior, sejam pessoas físicas ou jurídicas, se sujeitam à soberania tributária brasileira na hipótese de percepção de rendimentos provenientes de fontes situadas no Brasil.


Até há pouco tempo, a não incidência do imposto de renda retido na fonte sobre “os bens havidos, por herança ou doação, por residente ou domiciliado no exterior” era considerada questão pacífica, inclusive diante do previsto no art. 690, inciso III, do RIR/1999.


Não obstante, no novo Regulamento do Imposto de Renda, instituído pelo Decreto n. 9.580/2018 (RIR/2018), o art. 754, correspondente ao aludido art. 690 do RIR/1999, não repete a regra que dispensava a retenção do IRRF quanto aos “valores dos bens havidos por herança ou doação, por residente ou domiciliado no exterior”.


Destarte, a Solução de Consulta n. 309 da Cosit (Coordenação-Geral de Tributação), de 26 de dezembro de 2018, emitida após a publicação do RIR/2018, adotou solução diametralmente diversa da anteriormente acolhida pela Administração Tributária, dispondo no sentido de que os valores remetidos a título de doação a residente ou domiciliado no exterior, pessoa física ou jurídica, sujeitam-se à incidência do IRRF.


A doação é um contrato gratuito em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.


Trata-se de um contrato típico ou nominado cuja causa reúne dois requisitos essenciais: a) a transferência de bens ou vantagens do patrimônio de uma pessoa (doador) para o de uma outra (donatário); b) o espírito de liberalidade.


A doação provoca um empobrecimento do doador e um correspondente acréscimo patrimonial para o donatário.


Em função disso, discute-se se esse acréscimo patrimonial experimentado pelo donatário deve ou não ser tributado pelo imposto de renda.


Para os economistas que adotam um conceito abrangente de renda, todos os acréscimos patrimoniais constituem renda. Portanto, as heranças, legados e doações, que aumentam o patrimônio dos herdeiros, legatários ou donatários, constituiriam renda, sendo passíveis de tributação pelo imposto de renda.


Conforme o vigente sistema constitucional, à União foi atribuída a competência para instituir imposto sobre “a renda e proventos de qualquer natureza”, o qual “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade” (art. 153, inciso III e

§ 2º, inciso I, da Constituição Federal).


O conceito constitucional de renda constante do texto constitucional veio a ser explicitado pelo art. 43 do Código Tributário Nacional, que determina que o imposto de renda e


proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade

econômica ou jurídica de “renda” ou de “proventos de qualquer natureza”.


Segundo a doutrina, o inciso I do art. 43 do Código Tributário Nacional consagrou a “teoria da fonte”, que enquadra na renda tributável somente as receitas que afluem regularmente de fontes permanentes, enquanto que o inciso II do aludido artigo teria acolhido a “teoria do acréscimo patrimonial”, pelo qual a renda deveria ser definida de maneira ampla, refletindo todo o crescimento da riqueza de uma pessoa num determinado período de tempo.


A “teoria do acréscimo patrimonial”, levada às suas últimas consequências, levaria à tributação das mais-valias e dos ganhos de capital, bem como das aquisições de bens novos a título gratuito, ou seja, decorrentes de heranças ou doações, pois representam um incremento patrimonial do contribuinte.


Não obstante, se a tributação dos ganhos de capital é pacificamente admitida pela doutrina dominante, muito se discute a respeito da possibilidade da tributação das doações e heranças pelo imposto de renda.


O anterior Regulamento do Imposto de Renda (RIR/1999) continha previsão, em seu art. 690, inciso III, de não retenção do IRRF nas remessas de valores havidos por doação por residente ou domiciliado no exterior. Sendo assim, durante a sua vigência, as remessas em questão estavam livres da retenção.


No entanto, no entendimento da Administração Tributária, o RIR/1999 foi revogado pelo novo Regulamento, que nada dispõe a esse respeito, razão pela qual a dispensa de retenção não mais se aplica.


Sendo assim, a Administração Tributária passou a entender que incide o IRRF nas remessas ao exterior a título de doação para beneficiário residente ou domiciliado no exterior, pessoa física ou jurídica.


Não concordamos com o entendimento esposado pela Administração Tributária.


Em nossa opinião, na doação ocorre uma transferência patrimonial pela qual o donatário experimenta um enriquecimento patrimonial, e o doador tem o seu patrimônio correspondentemente diminuído.


A tributação das transferências patrimoniais não está autorizada pelo art. 43, inciso I, do Código Tributário Nacional, pois este se refere à aquisição de disponibilidade de “renda”, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. Ora, as transferências patrimoniais não podem ser consideradas produto do capital ou do trabalho do contribuinte, pois advêm de terceiros.


Portanto, as transferências patrimoniais só poderiam ser consideradas proventos de qualquer natureza, nos termos do art. 43, II, do Código Tributário Nacional.


Nas transferências patrimoniais não há um ganho de capital decorrente da alienação de bens e direitos que estão no patrimônio do contribuinte. Nas transferências patrimoniais há um fluxo de bens e direitos de um patrimônio para outro. O patrimônio do transmitente dos bens e direitos se reduz, aumentando em igual valor o patrimônio do beneficiário da transferência de capital. Ou seja, uma das partes na transação sofre redução no seu patrimônio em idêntico e concomitante benefício da outra. O fluxo de bens e direitos conceituado como transferência patrimonial não pode ser definido como rendimento sujeito à tributação, pois se assim fosse não se estaria tributando a renda ou os proventos percebidos, mas sim o próprio capital.


Outrossim, um argumento histórico no sentido de que o art. 43 do Código Tributário Nacional não incluiria os acréscimos patrimoniais decorrentes de aquisições a título gratuito resulta de a versão final do caput desse artigo ter rejeitado o projeto da Comissão elaboradora da Reforma Tributária, que incluía nesse dispositivo legal o acréscimo patrimonial a título oneroso ou gratuito.


Outro argumento que leva à impossibilidade da tributação das doações decorre das regras constitucionais que delimitam a competência tributária dos vários entes políticos integrantes da Federação brasileira.


A Constituição Federal de 1988 adotou uma discriminação de rendas exaustiva, integral e completa. A cada entidade autônoma da Federação foi conferida competência exclusiva expressa para instituir impostos, taxas e contribuições de melhoria. A Constituição estabeleceu a privatividade tributária e tornou exclusivo de cada esfera o tributo que lhe foi destinado, de modo que tal atribuição não pode ser modificada por lei ordinária nem por lei complementar.


Dessa forma, entendemos que no sistema tributário brasileiro as doações não podem ser submetidas ao imposto de renda, pois já são objeto do imposto previsto no art. 155, inciso I, da Constituição, de competência privativa dos Estados e do Distrito Federal. Ou seja, a Constituição retirou do campo de incidência do imposto de renda os acréscimos patrimoniais resultantes de doações, pois a União não tem competência para instituir imposto sobre aquisições a título gratuito.


Do exposto, conclui-se que a União não pode instituir imposto de renda sobre doações, a não ser na excepcional hipótese prevista no art. 154, inciso II, da Carta Magna.


As considerações feitas acima levaram a que a legislação ordinária da União declarasse não incidir o imposto de renda sobre doações, conforme dispõe o art. 6º, inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988.


A nosso ver, o aludido dispositivo legal veio apenas esclarecer que as doações estão fora do âmbito material do imposto de renda, pois não tipificam nem renda nem proventos de qualquer natureza. A legislação ordinária apenas explicitou situação de não incidência do imposto de renda, já que a Constituição Federal retirou do campo de incidência do imposto de renda os acréscimos patrimoniais resultantes de doações. Trata-se de verdadeira hipótese de isenção didática, ou de não incidência, e não propriamente de uma isenção.


Por isso, entendemos que a doação, ainda que seja feita para pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior, não pode ser objeto de tributação pelo imposto de renda, pois sua tributação é da competência tributária privativa dos Estados e do Distrito Federal.


Por fim, é importante ressaltar que as disposições legais que disciplinam o imposto sobre residentes no exterior não contêm uma definição expressa do que se deve entender pelos conceitos de “rendimentos”, “ganhos de capital” ou “demais proventos pagos” nela utilizadas.


Na ausência de uma definição expressa, a doutrina entende que tais conceitos devam ser interpretados à luz das disposições que regem a hipótese de incidência do imposto de renda das pessoas físicas, para as quais implicitamente remetem, mediante a técnica da remissão por absorção.


O aludido método da remissão por absorção traduz-se numa absorção das normas da legislação reguladora das pessoas físicas, em especial a Lei n. 7.713/1988, que definem a determinação dos rendimentos e ganhos de capital em causa.


Essa remissão à legislação que regula a hipótese de incidência do imposto de renda das pessoas físicas para disciplinar o imposto de renda sobre residentes no exterior novamente leva à aplicação do art. 6º, inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988, que determina de forma expressa a não incidência do imposto de renda sobre aquisições de bens ou direitos a título gratuito.


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