ANÁLISE DA OCULTAÇÃO DE DOCUMENTOS E DA AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO EM AUTUAÇÕES FISCAIS A PARTIR DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

ANALYSIS OF THE CONCEALMENT OF DOCUMENTS AND THE LACK OF MOTIVATION IN TAX ASSESSMENTS IN THE PERSPECTIVE OF THE DUE PROCESS OF LAW


Vladimir da Rocha França


Professor Associado do Departamento de Direito Público da UFRN, Mestre em Direito Público pela UFPE e Doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. E-mail: vladimirrfranca@yahoo.com.br


André Elali


Professor Associado do Departamento de Direito Público da UFRN, Mestre e Doutor em Direito com Estágios de Pesquisa no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht, da Queen Mary University of London e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. E-mail: andreelali@me.com


Ênnio Ricardo Lima da Silva Marques


Mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela UFRN. E-mail: ennio.marques@hotmail.com



Recebido em: 24-02-2019

Aprovado em: 31-07-2020


DOI: http://dx.doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-45-24


RESUMO


No contexto da necessidade arrecadatória do Estado para manutenção de sua estrutura, não se podem olvidar as regras e garantias esposadas no ordenamento jurídico, mormente no Sistema Tributário. O respeito à motivação nos lançamentos e autuações fiscais se apresenta como garantia à segurança jurídica e à legalidade à qual está submetida a Administração Pública. Este artigo tem como objeto o exame da ocultação de documentos e provas em atos de lançamentos tributários, pretendendo demonstrar algumas concepções atuais


a respeito do devido processo legal e da legalidade em matéria tributária. Propõe-se realizar uma análise a partir do ordenamento jurídico nacional e da jurisprudência a respeito do dever de motivação do ato administrativo fiscal e das consequências de sua não observação. Conclui-se pela abusividade do ato de lançamento de créditos tributários que omite documentos ao sujeito passivo, por arbitrariedade e ausência de critério, resultando ofensa ao dever de motivação ao qual está sujeita a Administração Pública.

PALAVRAS-CHAVE: ATO ADMINISTRATIVO, MOTIVAÇÃO, LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO, OCULTAÇÃO DE DOCUMENTOS, LEGALIDADE, DEVIDO PROCESSO LEGAL


ABSTRACT


In the context of determining the law of the State to maintain its structure, it is not allowed to apply the rules and guarantees provided for in the legal system, especially in the Tax System. Omission to motivation in tax entries and assessments is presented as the guarantee of legal certainty and legality to which it is subject the Public Administration. This article aims to examine the concealment of documents and the validation of acts of tax entries, in order to prevent some conceptions about the tax process and the legality in tax matters. It is proposed to analyze the national legislation and the case law of the duty to motivate the fiscal year and the consequences of not observing it. It is concluded that the act of posting tax credits that omits documents to the tax-payer is abusive, due to arbitrariness and lack of criteria, resulting in an obligation to qualify the right.

KEYWORDS: ADMINISTRATIVE ACT, MOTIVATION, TAX ASSESSMENT, CONCEALMENT OF DOCUMENTS, LEGALITY, DUE PROCESS OF LAW


  1. INTRODUÇÃO

    O dever de motivação do ato administrativo se estabelece no ordenamento jurídico brasileiro como premissa básica de conformidade da atuação da Administração Pública. Enquanto instrumento que resguarda o administrado de arbitrariedades por parte do Estado, funciona como parâmetro para a concretização do controle da legalidade. Também na perspectiva do Direito Tributário, a motivação dos atos administrativos se apresenta como imprescindível na concretização do necessário equilíbrio das relações jurídicas.


    A ausência de motivação – e motivação adequada – no lançamento tributário constitui verdadeira barreira ao exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa. Sua ocorrência, mediante lançamentos desprovidos de fundamento legal e/ou de elementos de prova, viola as estruturas do Estado de Direito.


    O exame de casos concretos em que a Administração Pública violou o dever de motivação dos atos administrativos de lançamentos tributários revela um movimento preocupante:


    visando-se ao aumento de receitas tributárias, para fazer face à crescente e ineficiente despesa pública, agentes públicos, em dados casos, se utilizam de mecanismos interpretativos arbitrários e ilegais, constituindo créditos tributários, hipóteses de responsabilidade tributária, e eventualmente causam processos penais tributários. Tais situações revelam, sistematicamente, práticas questionáveis de presunções e generalizações de condutas antijurídicas sem suporte em provas, as quais se distanciam do modelo de Estado de Direito e se reaproximam do conceito de “razões de Estado”1.


    Casos de falta de motivação violam as estruturas da legalidade da Administração e se aproximam de excessos argumentativos baseados em ideologias pessoais de política e de justiça, replicando-se o modelo da “tirania de valores”, mesmo que com a “melhor das intenções”2. Um claro exemplo de tais práticas que prejudicam o sistema jurídico, gerando falhas e incoerências com os próprios objetivos do Estado, é a ocultação de documentos fiscais em atos administrativos que constituem créditos tributários. A ocultação de documentos utilizados pela fiscalização tributária, per se, constitui um grave exemplo de imoralidade e ilegalidade cometidas por agentes públicos. Além de violar a estrutura dos atos administrativos, ofendem frontalmente as bases do devido processo legal e da proteção da confiança. Não por outra razão, um dos temas que mais preocupam os juristas é a insegurança jurídica no Brasil. Afinal, uma das qualidades de um sistema jurídico é a sua coerência, que se concretiza por meio de um ambiente de estabilidade e previsibilidade.


    Pretende-se examinar situações em que agentes tributários, sem motivação, ocultam documentos utilizados em procedimentos administrativos, violando a necessária proteção da legalidade e do devido processo legal3.


  2. A MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO

    São elementos do ato administrativo, compondo sua estrutura, segundo Paulo de Barros Carvalho, o fato-evento e o fato-conduta4. O fato-evento corresponde à motivação do ato administrativo, que pode ser expressa ou implícita. Será expressa quando verbalizada no texto do veículo introdutor, e implícita quando, num ato administrativo vinculado, possa ser alcançada a partir do conteúdo do ato em contexto semântico-pragmático com o ato-


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    1. DANTAS, Rodrigo Numeriano Dubourcq. Direito Tributário sancionador. Culpabilidade e segurança jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 77.


    2. SCHMITT, Carl. La tirania de los valores. Revista de Estudios Políticos n. 115. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1961. p. 65.


    3. Importante destacar que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, reiteradamente, tem afastado presunções e generalizações contra os agentes econômicos. Como exemplo, cite-se o acórdão, de dezembro de 2018, do processo n. 11516.723043/2013-04, que consignou: “A reestruturação societária, perpetrada pelo contribuinte, por si só, não desfigura a operação, notadamente quando a fiscali zação não demonstra a ocorrência de dolo, fraude ou simulação”. Em modo absolutamente lógico, o acórdão do CARF, da 3ª Câmara, consignou um método aparentemente irrepreensível para um ambiente jurídico adequado e baseado na legalidade: se não houver prova de dolo, fraude ou simulação, não pode a autoridade tributária presumir que reorganizações empresariais e societárias sejam desqualificadas do ponto de vista da fiscalidade.


    4. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2015.


      fato que orientou sua produção. Assim, tem-se por motivação a proposição descritiva do motivo do ato que se encontra no lugar sintático de antecedente numa norma individual e concreta5.


      No âmbito do Direito Tributário, o que se denomina fato-evento corresponde à descrição do evento tributário em linguagem jurídica. Essa motivação expressa pelo fato-evento se consubstancia no elo jurídico apto a interligar a norma individual e concreta à regra-matriz de incidência tributária, apresentando, assim, os referenciais de espaço e tempo imprescindíveis ao controle da legalidade do ato-norma administrativo tributário6.


      O dever de motivação é, portanto, princípio constitucional que obriga toda a Administração Pública e o Poder Judiciário7. Pretende-se, com ela, assegurar a legalidade, a moralidade, a inafastabilidade da jurisdição e a ampla defesa e o contraditório. Por motivação se infere a explanação, a fundamentação, a explicitação dos motivos, a causa e a justificativa do ato. Trata-se da apresentação clara dos elementos que levaram ao convencimento da autoridade em torno da caracterização de determinado ato lícito ou ilícito. Em matéria tributária, para sua caracterização, cumpre considerar-se a norma jurídica que autoriza a atribuição de responsabilidade, os fatos tributários e não tributários, e a relação de pertinência lógica entre todos eles e o ato administrativo expedido. É mediante a motivação, pois, que se concretiza o controle da legalidade, de modo a evitar o arbítrio e possibilitar o efetivo exercício do contraditório8.


      Tomando-se em consideração que a motivação não se limita à indicação de pressupostos de fato e direito contrariados pelo sujeito passivo, mostra-se imprescindível que, além de indicar o motivo do ato, a Administração Pública seja obrigada a apresentar provas acerca de suas alegações. Nesse sentido, a presunção de validade não exime a Administração do dever de comprovar a ocorrência do fato jurídico. Se alguma obrigação tributária foi pretensamente descumprida, compete reconhecer ao Fisco o dever de comprovar que o fato jurídico tributário ocorreu, uma vez que tal demonstração é pressuposto necessário ao fenômeno da incidência.


      O art. 10, inciso III, do Decreto Federal n. 70.235/1972, é bastante claro quanto à necessidade de descrição do fato que ensejou a autuação. Trata-se, sobremaneira, da exigência de


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    5. SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Auto de infração e lançamento tributário: elementos, pressupostos, vícios e anulação. 2012. Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/main_artigos_index.php?PID=269016&printpage=_. Acesso em: 30 jul. 2019.


    6 SANTI, 2012.


    1. FRANÇA, Vladimir da Rocha.Estrutura e motivação do ato administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. Vide o art. 1º, caput, o art. 5º, inciso LIV, e § 2º, e o art. 93, incisos IX e X, todos da Constituição Federal.

      Vide o art. 2º, caput, e parágrafo único, inciso VII, e o art. 50 da Lei Federal n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Vide o art. 11 do Código de Processo Civil.

    2. FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária do administrador e o dever de motivação do ato administrativo. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. 2018. Disponível em: https://www.ibet.com.br/responsabilidade-tributaria-do-administrador-e-o-dever-de- motivacao-do-ato-administrativo-por-maria-rita-ferragut/. Acesso em: 30 jul. 2019.


      motivação do ato administrativo. Contudo, aqui é importante destacar que não se trata da mera atribução à Autoridade Fiscal de redigir no ato de lançamento a conduta praticada. Exige-se mais: deve a Administração apresentar a verdade efetiva dos fatos. Isso porque o art. 9º do referido decreto impõe ao Fisco o dever de formalizar os autos de infração ou notificações de lançamento instruindo-os com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito. Essa concepção tem fundamento lógico em dois importantes institutos atinentes ao processo administrativo: a exigência de busca pela verdade material a que está sujeita a Administração Pública e o devido processo legal, instruído pelos princípios da ampla defesa e do contraditório.


      A verdade material é impositiva à Administração Pública, de modo que deve o julgador, no âmbito do processo administrativo, sempre buscar a verdade, mesmo que para isso tenha que se utilizar de outros elementos além daqueles apresentados pelo interessado9. É que, se tem a Administração por finalidade o alcance efetivo do interesse público fixado por lei, somente poderá fazê-lo buscando a verdade material10.


      Por outro lado, por força do art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, são assegurados aos administrados os direitos à ampla defesa e ao contraditório como mecanismos de efetivação do devido processo legal (e constitucional). Tratando--se de imposição emanada de ente estatal, e que atingirá indubitavelmente a esfera de direitos do interessado, não pode o lançamento tributário se constituir em um ato imperativo e autoexecutivo11.


      Assim, se é certo que não somente cabe como impõe-se à Administração a apuração por todos os modos da realidade efetiva dos fatos, certo também é que deverá fazê-lo mediante um procedimento administrativo pautado no devido processo legal, oportunizando, portanto, ao autuado conhecer cabalmente não somente os fatos apontados por ilícitos como também o conjunto probatório no qual se fundou a Autoridade Fiscal. Inter alia, a não apresentação das provas do ato administrativo fiscal se consubstancia mesmo em falta de motivação do ato, maculando-o de nulidade e sem possibilidade de convalidação. É que não é possível convalidar ato-norma administrativo no qual ausente qualquer de seus elementos estruturais12.


  3. A OCULTAÇÃO DE PROVAS PELO AGENTE FISCAL



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  1. FERRAZ, Sergio; e DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 109.


  2. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 502.


  3. TORRES, Heleno Taveira. Processo administrativo fiscal é garantia constitucional insuprimível. Consultor Jurídico, 13 maio 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mai-13/consultor-tributario-processo-administrativo-fiscal-garantia-constitucional- insuprimivel. Acesso em: 1 jul. 2020.


  4. SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Forma, evento, fato relação jurídica, fontes e validade no Direito. In: (coord.). Curso de especialização em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2007.


    O sistema jurídico tributário não apenas se baseia na segurança jurídica, mas também tem raízes na democracia. O povo deve se fazer representar por mandatários à sua escolha e determinar quais tributos irão gravar sua renda e seu patrimônio. O Executivo e o Legislativo estão vinculados à vontade popular, como determina a teoria da repartição de poderes13.


    Estabelecida a norma tributária segundo tal princípio, resistirá o contribuinte à tributação, nos limites do Estado de Direito. A resistência é um direito do contribuinte de ajustar-se ao sistema tributário. A autoridade fiscal, por outro lado, deve se sujeitar ao comando da lei. Não pode ampliar as hipóteses normativas de acordo com suas premissas de justiça ou de ideologia política.


    Um ponto que demanda atenção extrema, portanto, é a expedição de atos de lançamento de créditos tributários que não outorgam aos sujeitos passivos acesso integral aos documentos utilizados no procedimento fiscalizatório. É evidente que o ato administrativo de lançamento não é lícito se não apresenta ao sujeito passivo os documentos que deram lastro à sua expedição. Ora, o sistema regula tal tema de modo sistemático por meio de regras que não podem ser flexibilizadas. Nesse sentido, o Decreto Federal n. 7.235/1972 dispõe claramente que:


    “Art. 59. São nulos:

    1. – os atos e termos lavrados por pessoa incompetente;

    2. – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com

      preterição do direito de defesa”.


      Também o Decreto n. 7.574/2011, ao regulamentar o processo de determinação e de exigência de créditos tributários da União, determina:


      “Art. 12. São nulos (Decreto n. 70.235, de 1972, art. 59):

      1. – os atos e os termos lavrados por pessoa incompetente; e

      2. – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa.

      Art. 38. A exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade isolada serão formalizados em autos de infração ou notificações de lançamento, distintos para cada tributo ou penalidade (Decreto n. 70.235, de 1972, art. 9º, com a redação dada pela Lei n. 11.941, de 2009, art. 25). [...]

      § 1º Os autos de infração ou as notificações de lançamento, em observância ao disposto no art. 25, deverão ser instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos



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  5. LANG, Joachim; e TIPKE, Klaus. Direito Tributário. Tradução da 18. ed. por Luiz Doria Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 126.


    e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do fato motivador da

    exigência”.


    A jurisprudência, sistematicamente, tem realizado intervenções pontuais para afastar ofensas em atos administrativos que violam a motivação e o devido processo legal. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tem se posicionado em favor da anulação de lançamentos que ocultam do sujeito passivo documentos utilizados no procedimento administrativo14.


    É de se consignar, também, que a ocultação de documentos por parte dos agentes fiscais afronta outro mecanismo importante no controle de excessos por parte do Poder Público, qual seja, a proporcionalidade15, em suas diferentes acepções: a adequação (Geeignetheit); a necessidade (Erförderlichkeit); e a proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit). No caso, é inadequada uma imputação do Estado sem apego à lealdade, à transparência do agir estatal e à legalidade. E adequação, como se sabe, é sinônimo da conjugação de critérios racionais e não arbitrários16. Reitere-se, nesse sentido, que o meio escolhido pelo sistema jurídico deve ser adequado para atingir o resultado almejado, revelando conformidade e utilidade ao seu fim, além de ser o menos excessivo possível à sua consecução.


    Não é demais relembrar a lição de Geraldo Ataliba quando consigna que:


    “o Direito é, por excelência, acima de tudo, instrumento de segurança. Ele é que assegura a governantes e governados os recíprocos direitos e deveres, tornando viável a vida social. Quanto mais segura a sociedade, tanto mais civilizada. Seguras são as pessoas que têm certeza de que o Direito é objetivamente um e que os comportamentos do Estado ou dos demais cidadãos dele não discreparão”17.


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  6. Nesse sentido: “Ementa: contribuições sociais previdenciárias. Cerceamento de defesa. Não disponibilização de todos os documentos. Nulidade. Lançamento. Violação ao requisito de validade do ato administrativo. Vício material. Prejuízo comprovado. Considera -se cerceado o direito de defesa quando o contribuinte não tem acesso a todos os documentos da ação fiscal que motivaram a lavra tura do Auto de Infração ou da NFLD, maculando o conteúdo do ato administrativo, requisito essencial para sua validade, o qual, uma vez desrespeitado e comprovada a ocorrência de prejuízo, acarretará o reconhecimento de vício material e a consequente nulidade do ato viciado e dos posteriores que dele dependam ou sejam consequência. Processo Anulado. Decisão: Acordam os membros do colegiado, por maioria de votos, dar provimento ao recurso, reconhecendo a nulidade por vício material. Vencido o conselheiro Carlos Alberto Mees Stringari, que entendeu que todos anexos eram de conhecimento da recorrente” (CARF – Recurso Voluntário. Acórdão n. 2403-001.360. Relator Cid Marconi Gurgel de Souza. Processo n. 10320.007158/2008-15. Data da sessão: 19.06.2012). O voto condutor destacou a dificuldade posta à defesa em razão da ausência constatada de documentos, fornecidos pelo próprio contribuinte, durante o procedimento fiscalizatório, mas suprimidos pela fiscalização quando da autuação e ciência do lançamento do crédito tributário. Asseverou ser dever da fiscalização instruir os autos de infração com todos os elementos de prova que serviram para a formação do juízo de que o sujeito passivo houvesse incorrido em descumprimento de obrigação tributária, por força do art. 38 do Decreto Federal n. 7.574/2011. Ainda, destacou tratar-se de ofensa ao princípio do devido processo legal, e aos decorrentes princípios do contraditório e da ampla defesa, caracterizando-se a nulidade da autuação por vício material consubstanciado na ausência de motivação.


  7. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 185.


  8. MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p. 326.


  9. ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 184.


    Leciona Gouveia também que a segurança jurídica está associada ao que se denomina proteção da confiança, derivando da própria estruturação do Estado de Direito, que se vincula à “preocupação com o conhecimento do Direito aplicável, impondo que as respectivas fontes sejam públicas e prospetivas na sua vigência”18. Destaca o autor que o Estado de Direito requer que “o quadro normativo vigente não mude de modo a frustrar as legítimas expectativas geradas nos cidadãos acerca de sua continuidade, com a proibição de uma intolerável retroatividade das leis, assim como a necessidade de essa alteração de expectativas constitucionalmente tuteladas ser devidamente fundamentada”. Como pontua o autor lusitano, “a proteção da confiança pretende instituir um clima de estabilidade entre o poder público e os cidadãos destinatários dos respectivos atos”19.


    CONCLUSÕES

    A necessidade de aumento de receitas tem gerado, em determinados casos, a violação às estruturas do Estado de Direito por parte da Administração Pública. Tem sido comum a expedição de atos administrativos de lançamentos tributários desprovidos de motivação e que são incoerentes com a legalidade e o devido processo legal.


    O dever de motivação inclui a obrigação de franqueamento, ao sujeito passivo dos lançamentos tributários, de todos os documentos utilizados nos procedimentos administrativos. Quando ocorrer a ocultação de documentos nesses casos, estar-se-á diante de caso inequívoco de nulidade dos atos administrativos, devendo-se apurar, nas esferas próprias, a atuação dos agentes públicos.


    O ato de lançamento de créditos tributários que omite documentos ao sujeito passivo se qualifica como ilegal e abusivo. Viola regras jurídicas claras e se mostra como recurso arbitrário do agente do Estado. O sistema do direito deve prevalecer para garantir um status de equilíbrio ao Estado Fiscal/Regulador.


    O cometimento de ilegalidades por agentes fiscais gera incoerências substanciais no modelo do Estado de Direito, dentro das estruturas da moral tributária e da legalidade, como limitador do poder tributário.


    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007.


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  10. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito da Segurança – cidadania, soberania e cosmopolitismo. Lisboa: Almedina, 2018. p. 95.


  11. Ibidem, loc. cit.


ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica no Direito Tributário – entre permanência, mudança e realização. Tese apresentada como requisito parcial ao concurso de Professor Titular do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009.


          . Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011.


          . Teoria dos princípios. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.


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          . Forma, evento, fato relação jurídica, fontes e validade no Direito. In: (coord.). Curso de especialização em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2007.


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