Coisa Julgada sobre Questão Constitucional Tributária

Res Judicata in Constitutional Tax Matter

Luiz Guilherme Marinoni

Professor Titular da Universidade Federal do Paraná. Vice-Presidente da International Association of Procedural Law. Advogado. E-mail: guilherme@marinoni.adv.br.

Fernanda Donnabella Camano

Pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário). Advogada. E-mail: fernanda@camano.com.br.

Recebido em: 5-7-2021

Aprovado em: 20-10-2021

Resumo

Desde a edição do Código de Processo Civil de 2015, em que se previu a coisa julgada sobre questão prejudicial decidida incidentemente no processo, de que depende a resolução do pedido (art. 503, § 1º, I a III, e § 2º), anunciadora de intensa novidade no processo judicial tributário, quase nenhuma atenção tem sido dedicada a tal instituto pelos que militam na área tributária. Este estudo aborda uma das perspectivas do tema, isto é, a da resolução da (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária, concluindo pela possibilidade de caracterizar questão prejudicial sobre a qual recai a coisa julgada, em qualquer espécie de ação/medida judicial antiexacional. Para tanto, a pesquisa construirá a interpretação do inciso III do § 1º do art. 503 e desenvolverá o argumento de que a apreciação e a decisão da questão constitucional, enquanto prejudicial solucionada incidentalmente pelos juízes e Tribunais, não são de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: coisa julgada, questão prejudicial, decisão de (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária, art. 503, § 1º, III, do Código de Processo Civil, competência, juízes/Tribunais.

Abstract

Since the enactment of the Civil Procedure Code of 2015, which introduced the applicability of res judicata on prejudicial matter ruled incidentally in the proceeding, upon which depends resolution of the case (article 503, § 1, I through III, and § 2), representing significant novelty in judicial tax litigation, little attention has it received from those who act in the tax area. This study approaches one of the perspectives of the topic, i.e., ruling of (un)constitutionality of the basic rule of taxation, concluding for the possibility of characterization of prejudicial matter upon which res judicata shall apply, in any judicial anti-enforcement action/measure. For that, the study will interpret subsection III, of § 1, of article 530, and will develop the argument that analysis and ruling of the constitutional matter, since prejudicial and ruled incidentally by judges and Courts, is not under the sole jurisdiction of the Federal Supreme Court.

Keywords: res judicata, prejudicial matter, ruling of (un)constitutionality of the basic rule of taxation, article 503, § 1, III of the Civil Procedure Code, jurisdiction, judges/Courts.

1. Introdução

Nos últimos anos, a discussão da coisa julgada em matéria tributária focou atenção no impacto dos precedentes obrigatórios sobre os efeitos das decisões definitivas obtidas pelos contribuintes nas ações judiciais antiexacionais1 de cunho preventivo (isto é, nas ações declaratórias negativas e nos mandados de segurança), diante das relações jurídicas de trato continuado (cujos eventos homogêneos se repetem no tempo)2.

A razão de ser de tal debate monotemático, iniciado em 1992, diz respeito a que inúmeros contribuintes obtiveram decisões judiciais transitadas em julgado eximindo-lhes do pagamento da Contribuição Social sobre o Lucro, instituída pela Lei n. 7.689/1988 e, posteriormente, quando esgotado o prazo para o ajuizamento de ação rescisória por parte da União, o Supremo Tribunal Federal decidiu, incidentalmente, pela sua constitucionalidade (Recursos Extraordinários n. 138.284/CE3 e n. 146.733/SP4) e, mais tarde, o mesmo ocorreu no controle principal e abstrato (ADI n. 15-25). Apenas em 2016, a Corte reconheceu a repercussão geral da matéria nos Recursos Extraordinários n. 949.297/CE6 e n. 955.227/BA7, ainda pendentes de julgamento, em que apreciará se e como as decisões proferidas no controle incidental e, ainda, no principal e abstrato de constitucionalidade afetam a coisa julgada em sentido contrário obtida pelos contribuintes8.

No entanto, diversas são as perspectivas em que se insere o “macrotema” da coisa julgada em matéria tributária, além da apontada. Uma delas conecta-se à questão prejudicial prevista no § 1º, I a III, e no § 2º do art. 503 do Código de Processo Civil, objeto de análise neste breve texto e que quase nenhuma atenção tem sido dedicada pelos que militam na área tributária. É certo, ainda, que a vertente da coisa julgada sobre a questão prejudicial comporta “subtemas” além do ora apresentado como, por exemplo, a possibilidade de beneficiar terceiros (art. 506 do CPC) nas relações jurídicas envolvendo o Fisco, ou a proibição da rediscussão das consequências jurídicas atribuídas aos fatos na decisão sobre questão que, em razão de sua complexidade, exigem ambas um exame aprofundado em outras oportunidades.

Este estudo tem como objetivo demonstrar que, a partir do Código de Processo Civil de 2015, a decisão sobre a questão constitucional em matéria tributária, prolatada em quaisquer das espécies de ações/medidas judiciais antiexacionais visando atacar a exigibilidade do crédito tributário com fundamento na (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência9 que o suportou, caracteriza questão prejudicial de que depende a resolução do pedido, passível de transitar em julgado. Referida constatação deriva do art. 503, § 1º, I a III, e de seu § 2º do Código que, por si sós, nos permitiriam aquela conclusão.

Todavia, para que se torne mais clara a aplicação daquele dispositivo e de seus parágrafos no âmbito do processo judicial tributário, cuja questão decidida tem natureza constitucional, discorreremos sobre a evolução histórica do contencioso judicial nessa seara (especialmente no plano federal), desde a Constituição Federal de 1988 até nossos dias, em que se detecta um contexto atual inteiramente modificado em relação ao outrora existente entre Fisco e contribuintes.

Ainda, será definido o conceito de questão prejudicial no Código de Processo Civil de 2015, inteiramente dissociado da perspectiva italiana de Chiovenda, influenciadora da doutrina brasileira e do Código de 1973, no sentido de que a coisa julgada se limitava à decisão sobre a lide e às partes, revelando uma quebra desse paradigma.

Tal traçado paralelo evolutivo de ambas as realidades – a instrumental tributária (processo judicial tributário) e a puramente instrumental (CPC) – pode ser visualizado como retas coordenadas cruzando o ponto de confluência da boa-fé e da proibição de comportamento contraditório, da coerência do direito e da eficiência dos atos emanados pelo Poder Judiciário, enfim, da segurança jurídica (assecuratória da estabilidade, liberdade e igualdade).

A apresentação desse panorama tem por objetivo demonstrar que qualquer interpretação que se pretenda construir a respeito do “macrotema” da coisa julgada tributária, especialmente sobre questão, depende do conhecimento contextualizado (histórico) da matéria. Logo, é a base para a exegese dos demais “subtemas” a serem desenvolvidos em outras oportunidades.

Uma vez que o presente texto analisará a questão constitucional e sua definitividade, é imprescindível fixar o sentido do inciso III do § 1º do art. 503 do Código de Processo Civil, de forma a demonstrar que, ao prescrever que a coisa julgada sobre a questão prejudicial depende de o juízo ser competente em razão da matéria e da pessoa para decidi-la como questão principal, não obsta a coisa julgada sobre a resolução daquela questão exarada incidentalmente nas demandas tributárias.

Isso porque, a exegese de tal comando deve ser integrada ao art. 62 do Código10, de modo que, se o juiz for absolutamente incompetente para decidir a questão prejudicial enquanto principal, aquela (prejudicial) não faz coisa julgada, o que não é o caso ora tratado, seja porque todos os juízes e Tribunais detêm competência para resolver a questão constitucional incidentemente invocada, seja porque, ao fim e ao cabo, seria possível conceber que a (in)constitucionalidade pode ser arguida e apreciada como questão principal na ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária. De tal maneira que a decisão da questão constitucional nos casos concretos entre Fisco e contribuintes não se relaciona com a competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal para resolvê-la nos modos principal e abstrato pelos instrumentos próprios (ADI/ADC).

2. A evolução do cenário de excessiva litigiosidade no contencioso judicial tributário para o contexto cooperativo

O contencioso judicial tributário, desde a Constituição Federal de 1988, passou a experimentar um ambiente de excessiva litigiosidade, calcada especialmente na iniciativa dos contribuintes em atacar a exigibilidade dos respectivos créditos, ao fundamento da inconstitucionalidade das regras-matrizes de incidência editadas logo após a promulgação do Texto, cujos critérios materiais conotam eventos que se repetem no tempo (relações jurídicas de trato continuado).

Para a compreensão da evolução desse cenário até o contexto atual, é importante discorrer sobre a história da experiência judicial tributária desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Para tanto, referir-nos-emos às discussões de grande relevância entre os contribuintes e o Fisco Federal advindas com o Texto de 1988 (as denominadas “teses tributárias”), em que se destacam os litígios sobre a exigência: (i) da Contribuição ao Finsocial11, mantida pelo art. 56 do ADCT (para as empresas comerciais e mistas), nos termos do Decreto-lei n. 1.940/1982, e instituída (para as empresas exclusivamente prestadoras de serviços) pela Lei n. 7.689/1988; (ii) da Contribuição Social sobre o Lucro, criada pela Lei n. 7.689/198812; (iii) da Contribuição ao PIS, exigida pela Lei Complementar n. 7/197013; e (iv) da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), pela Lei Complementar n. 70/199114.

Tais conflitos a respeito das “teses tributárias” inundaram os cinco Tribunais Regionais Federais do País, difundindo-se uma prática de advocacia contenciosa judicial tributária de massa15, ou seja, um ambiente de incontáveis demandas sobre a mesma questão a assoberbar o Poder Judiciário.

Ainda que tais discussões tenham contribuído para a interpretação do direito tributário a partir da recém-editada Constituição de 1988, levando o Supremo Tribunal Federal a definir as espécies tributárias16 e a fixar os parâmetros para o exercício da competência impositiva da União nessas situações, o fato é que os conceitos então definidos pela Suprema Corte serviram de apoio aos litígios supervenientes.

Um exemplo é aquele verificado a partir do voto do Ministro Carlos Velloso, no Recurso Extraordinário n. 150.755/PE17 (Finsocial das empresas exclusivamente prestadoras de serviços), julgado em 1993, quando, para considerar o art. 28 da Lei n. 7.738/1989 em conformidade ao Texto Constitucional (art. 195, I), afirmou que o conceito de receita bruta eleito por tal dispositivo correspondia ao de faturamento (para fins fiscais), assim definido como o produto de todas as vendas da pessoa jurídica (e não somente aquelas acompanhadas de faturas).

Essa definição serviu de pressuposto para os contribuintes colocarem em xeque a exigibilidade da Contribuição ao PIS e da Cofins nos termos do § 1º do art. 3º da Lei n. 9.718/1998, mediante o ajuizamento massivo de ações judiciais, o que levou a Corte18 a se valer de seus julgados históricos e atualizar aquele conceito de receita bruta, entendido como a soma das atividades operacionais da pessoa jurídica.

Novamente, em 2017, quando se decidiu a “tese do século” da exclusão do ICMS da base de cálculo daquelas Contribuições, objeto de discussão massificada perante os Tribunais Regionais Federais, a Corte efetuou um resgate de seus julgados anteriores19 a respeito do que se considera receita bruta.

Constata-se, assim, um movimento “autopoiético” das discussões judiciais tributárias, que se retroalimentam para gerar novos, sucessivos e massificados conflitos.

Ocorre que, desde então, o contencioso judicial tributário vem sofrendo radical transformação: se, por um lado, agregaram elementos a potencializar a complexidade litigiosa, por outro, tal cenário vem cedendo espaço, nos dias atuais, a um ambiente propício à cooperação entre Fisco e contribuintes. A postura cooperativa, por sua vez, pressupõe a boa-fé e a proibição de adotar comportamento contraditório ao que outrora se firmou.

Dos elementos incrementadores da conflituosidade tem-se (i) o fato de que a solução jurisdicional acerca das “teses tributárias” oportunizou os litígios derivados (“teses filhotes”), a exemplo do retorno ao Judiciário das instituições financeiras e sociedades seguradoras, por força da interpretação atribuída pela União ao precedente firmado em 200520, no sentido de que, se o faturamento abrange as receitas próprias das atividades empresariais, então os juros, o spread e os rendimentos financeiros obtidos em virtude de aplicação dos recursos relativos às reservas técnicas no mercado financeiro deveriam submeter-se à tributação pela Contribuição ao PIS e pela Cofins, por consistirem expressão monetária do resultado das atividades financeira e seguradora21.

Também, (ii) a partir do Texto de 1988, as Procuradorias passaram a representar as Fazendas Públicas em juízo22 e, assim, a se capacitar na defesa judicial nos embates com os contribuintes. Esse fato explica a razão pela qual nos primeiros anos de vigência do Texto de 1988, muito embora tenham se proliferado as discussões judiciais tributárias de iniciativa dos contribuintes (“teses tributárias”), as Procuradorias das Fazendas Públicas apresentavam tímida atuação no contencioso judicial tributário, o que não tardou para se organizarem como instituição. Como consequência, as discussões tributárias tornaram-se mais complexas e duradouras.

Por fim, (iii) foram aprimorados os instrumentos de cobrança do crédito tributário23, levando os contribuintes, em contrapartida, a buscar o Poder Judiciário a cada nova exigência (seja para atacar as sucessivas exigibilidades ou para discutir aspectos periféricos à obrigação tributária).

Não obstante, desde 2016, observa-se a produção de inúmeros atos normativos (expedidos pelo Legislativo e pelo Executivo), especialmente no plano federal, tendentes à redução dos conflitos judiciais24. Um exemplo é a possibilidade de os contribuintes apresentarem “Pedido de Revisão de Débito Inscrito em Dívida Ativa” (PRDI), depois de notificados do ato de inscrição em Dívida Ativa (art. 6º, II, b, da Portaria PGFN n. 33/201825), de modo a instaurar o litígio na fase administrativa, em vez de na judicial. Ainda, em 2020, foi editada a Lei n. 13.988, a qual dispôs sobre a transação tributária, seguida da publicação de edital, em maio de 2021, em que a União propôs a primeira transação no “contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica” (“teses”).

A evolução histórica apontada demonstra que o combate à excessiva litigiosidade é uma realidade hoje experimentada no contencioso judicial tributário, amplificada pelo Código de Processo Civil de 2015, o qual outorgou máxima eficiência ao ato emanado pelo Poder Judiciário. A partir de tal panorama, discorreremos acerca da coisa julgada sobre questão prejudicial decidida incidentemente no processo, instituto inteiramente remodelado pelo Código e desvinculado do histórico restritivo do julgamento do litígio e das partes26.

Bem por isso, não se pode interpretar a coisa julgada sobre resolução da questão da (in)constitucionalidade tributária apartada da evolução histórica, tanto do direito processual tributário quanto do direito processual, retas coordenadas convergindo para a coerência do direito, a eficiência dos atos emanados pelo Poder Judiciário e a segurança jurídica.

3. A evolução da coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015: a coisa julgada sobre questão

A doutrina de Chiovenda, que está à base tanto do art. 34 do Código Processual italiano27 quanto do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, afirma que a coisa julgada apenas recai sobre a decisão da lide e restrita às partes, consistindo as resoluções antecedentes do juiz em meros “raciocínios lógicos” não acobertados pela definitividade28.

Alguns intérpretes imaginam que há conceitos jurídicos verdadeiros e eternos, especialmente quando delineados por juristas estrangeiros que, em determinada época, gozaram de grande reputação e, sem dúvida, muito contribuíram para o desenvolvimento do direito, como Chiovenda, o responsável pelo conceito de “questão prejudicial” que até hoje persiste no Código italiano e, estranhamente, ainda seduz aqueles que hoje olham para o Código brasileiro de 2015.

Isto é, não são poucos os que têm interpretado o art. 503 do Código de Processo Civil, que expressamente se refere a “questão prejudicial”, com base no que diz a doutrina que formulou um dos possíveis conceitos de questão prejudicial, ainda que esse possa ter influenciado o Codice di Procedura Civile de 1942. Ora, é pouco mais do que absurdo imaginar que o Código brasileiro de poucos anos atrás tenha que ser interpretado com base num conceito jurídico formulado para outra época ou que possa ter marcado um código europeu de quase um século atrás.

É evidente que não há qualquer motivo para atribuir à expressão “questão prejudicial”, inserida no art. 503 do Código, o significado que se conferiu à pregiudiziale do art. 34 do Codice di Procedura Civile, ou o mesmo sentido que se deu à questão prejudicial apta a abrir ensejo à ação declaratória incidental na vigência do Código de Processo Civil de 1973, quando rigorosamente se seguiu a doutrina chiovendiana das primeiras décadas do século passado.

A ação declaratória incidental foi configurada a partir da premissa de que a coisa julgada depende de pedido29, tendo essa premissa se baseado, entre outros pontos, na ideia de que a coisa julgada requer manifestação da vontade e consequente delimitação do objeto litigioso30. A opção de “escolher” o que da decisão transitará em julgado seria admissível ao tempo do individualismo francês, em que prevalecia a liberdade do cidadão em face do Estado. Ocorre que, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, modificaram-se as relações familiares e de propriedade (as relações socieconômicas), descaracterizando o individual em face do coletivo, com o surgimento de novos conceitos jurídicos, como o de sindicato – e de suas relações com as empresas privadas –, trust, cartel, além da substituição da soberania dos Estados por uma sociedade das nações – vontades supranacionais das comunidades –, a demandar nova articulação jurídica31.

De outro lado, a admissão de coisa julgada sobre questão prejudicial, nos termos do art. 503, objetiva garantir a segurança jurídica e a coerência do direito, evitando a rediscussão do que já se discutiu e decidiu, ainda que não em virtude de pedido. Como é óbvio, essa opção legislativa não apenas desvincula a coisa julgada do pedido ou da ação incidental, como torna sem razão de ser, por simples consequência lógica, a noção de questão prejudicial própria à ação declaratória incidental.

Sublinhe-se que, não obstante alguém possa pensar que deve interpretar a “questão prejudicial” do atual Código como se estivesse diante da fracassada ação declaratória incidental do Código de 1973 – claramente baseado, também nesse aspecto, no Código italiano –, nunca houve unanimidade quanto ao conceito de questão prejudicial nem mesmo na Itália. A doutrina italiana atribuiu diversos significados ao termo “questão prejudicial” para demonstrar que, ao lado da questão prejudicial própria à declaratória incidental do art. 34 do Codice di Procedura Civile, existiria aquela capaz de dar origem à coisa julgada sem necessidade de declaratória incidental32.

Nesse sentido, Vittorio Denti advertiu que além de a questão prejudicial constituir objeto de processo autônomo, há uma outra espécie de questão prejudicial, caracterizada (i) pela necessidade de sua preventiva ou antecedente solução e (ii) pela potencial idoneidade da sua decisão para definir o processo33.

Por sua vez, Michele Taruffo, se valendo da lição do seu mestre – Vittorio Denti – ao escrever “collateral estoppel e giudicato sulle questioni”34 observou que não deveria existir razão para dúvida de que a questão prejudicial se verifica não apenas quando a decisão a seu respeito define o processo, mas também quando é decidida de modo a que o processo prossiga rumo à solução da controvérsia sobre a relação prejudicada ou em direção ao julgamento do pedido.

A intencional desvinculação da coisa julgada sobre questão prejudicial da propositura de ação declaratória incidental, claramente delineada nos parágrafos e incisos do art. 503, é suficiente para evidenciar que a questão prejudicial do Código de Processo Civil de 2015 está em outro contexto, em um em que a coisa julgada tem objetivo completamente distinto daquele que anteriormente lhe foi reservado no sistema brasileiro, nas águas da herança que lhe foi transmitida pelo direito italiano.

Questão prejudicial, na perspectiva da coisa julgada que sobre ela recai, ou seja, na realidade do atual Código de Processo Civil, é a que necessariamente deve ser decidida para se julgar o pedido ou é a questão de que “depende o julgamento do mérito”, conforme o art. 503, § 1º, I, do Código de Processo Civil.

Aliás, tanto a questão de direito que requer a aferição de um fato – como a culpa ou a responsabilidade civil na ação ressarcitória –, quanto à questão de direito que reclama aplicação ou interpretação de uma norma ou a qualificação jurídica de uma cláusula contratual, constituem questões prejudiciais de que depende o julgamento do mérito35. Sublinhe-se que o art. 503 tem clara e indisfarçável inspiração no direito estadunidense, particularmente no § 27 do Restatement Second of Judgments36, admitindo a aplicabilidade do collateral estoppel às questões de direito que exigem a aferição de fato e às questões que reclamam saber, diante dos fatos, o significado de uma norma ou a sua aplicabilidade.

E obviamente não poderia ser de outra forma, na medida em que uma questão prejudicial, de que depende o julgamento do pedido, invariavelmente requer a investigação de fato ou juízo sobre a aplicabilidade ou o significado de uma norma, situação tratada neste artigo quando o contribuinte põe em xeque a exigibilidade do crédito tributário ao fundamento da inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência.

3.1. Os fundamentos da coisa julgada sobre questão: proibição de comportamento contraditório, coerência do direito, eficiência do Poder Judiciário e segurança jurídica

Como dito, o art. 503, § 1º, I a III, e § 2º do Código de Processo Civil têm sua “matriz” no collateral estoppel norte-americano, especialmente na Seção 27 do Restatement Second of Judgments.

Nos Estados Unidos, o instituto nasceu preocupado com a coerência do direito, a autoridade e a eficiência das Cortes e a administração da justiça. Todavia, o estoppel tem suas origens no direito inglês do século XI (que buscou raízes germânicas) como o estoppel by record, ou seja, na proibição de as partes negarem suas declarações antes aduzidas no processo, calcado na boa-fé objetiva e na proibição de argumentar algo incompatível ao que outrora dito. Somente mais tarde (século XV) o estoppel inglês passou a demandar um julgamento final (estoppel by judgment), abrangendo as questões decididas decorrentes das manifestações das partes e, assim, não se descolou da boa-fé objetiva. Dessa maneira, o estoppel inglês não guarda relação com a coisa julgada ao estilo romano, o que fica claro a partir de como o instituto se desenvolveu nos Estados Unidos, em que se verificam dois tipos do gênero “preclusão”: “claim preclusion”, tutelando a coisa julgada sobre o pedido, e a “issue preclusion”, em que a coisa julgada sobre questão impede a relitigação da questão em ação diversa.

Pode-se afirmar que a boa-fé objetiva e a vedação ao comportamento contraditório não são exclusivas de determinado ramo de positivação do direito, espraiando-se na totalidade da ordem jurídica como um dever jurídico geral, notadamente das partes no processo, de se comportarem eticamente, daí decorrendo a confiança nos atos produzidos não apenas pelos cidadãos, como também pela Administração e pelo Poder Judiciário, diretrizes reafirmadas no Código (arts. 5º e 6º37).

Leciona Misabel Derzi que, na medida em que o sistema jurídico falha em matéria de proteção da confiança, a responsabilidade pela confiança decorre da necessidade ético-jurídica do sistema. Aduz que38: “paira o fato inegável de que a eticização contemporânea do Direito corresponde à reintrodução da boa-fé como valor (honestidade, crença, fidelidade, lealdade, honra), como princípio, como conceito indeterminado e como cláusula geral”. Vale observar que nas relações entre o Estado e os particulares, enquanto a proteção da confiança se amolda aos atos emanados pelo primeiro (ou seja, o Estado deve assegurar a confiabilidade de seus atos), a boa-fé objetiva tem aplicação bilateral (Estado e cidadãos). O agir cooperativo das partes é uma consequência da observância de tais princípios39.

A coerência do direito (racionalidade) demanda, quando possível, o estabelecimento de critérios objetivos para sua aferição, em prol da certeza dos atos emanados pelos diversos atores jurídicos. Tal diretriz se torna ainda mais evidente quando se trata de decisões judiciais dotadas de definitividade, de sorte não fazer sentido que uma mesma questão seja resolvida mais de uma vez pelo Poder Judiciário e com o risco de produção de decisões contraditórias.

Por esse motivo, as lições de Barbosa Moreira, válidas para uma determinada época, carecem de qualquer sentido nos dias atuais. O autor40 utiliza um exemplo em matéria tributária, qual seja, “se se cobra em juízo, do mesmo contribuinte, tributo idêntico, de incidência periódica, em exercícios subsequentes, e, sem qualquer alteração no sistema vigente, ora se acolhe, ora se rejeita a arguição, feita pelo réu, de inconstitucionalidade da lei tributária”, mesmo nessa hipótese, a questão constitucional de que depende a resolução do pedido não é passível de transitar em julgado, porquanto o juiz da segunda demanda prestaria “natural reverência” à decisão proferida naquela primitiva. Sustenta o autor que caso assim não ocorresse, “é preferível abrir ensejo à divergência lógica do que impor a consagração definitiva de uma injustiça”. Acontece que, atualmente, a possibilidade acenada pelo autor da “natural reverência” do segundo juiz ao estabelecido na demanda primitiva não encontra ressonância na pragmática, pois o contribuinte pode ajuizar ações em distintas jurisdições, o que reiteradamente se dá, sendo praticamente impossível que o juiz da segunda tenha ciência do que aconteceu na primeira, ainda que a parte contrária seja o mesmo Fisco, em razão das inúmeras regras de competência de cada unidade da Administração Tributária. Ademais, não se pode aceitar que nas relações jurídico-tributárias de trato continuado ora seja proferida decisão sobre a inconstitucionalidade da norma jurídica de que depende a solução do pedido, ora seja resolvida no sentido de sua validade, de modo que o contribuinte obtenha decisões incompatíveis acerca de idêntica questão apenas porque os períodos exigidos do crédito tributário e a soma são diversos.

Nessa medida, a coisa julgada sobre questão conecta-se à eficiência do Poder Judiciário, reafirmada pelo art. 8º do Código de Processo Civil41. Tal comando não se dirige apenas ao juiz como prolator da decisão, mas aos comportamentos das partes (Fisco42 e contribuintes), vedadas a relitigar quando devidamente prestada a tutela jurisdicional.

Por fim, ao se concretizarem os preceitos normativos citados, a calculabilidade e a previsibilidade do direito se manifestam na pragmática, isto é, a segurança se revela na dinâmica jurídica, enfatizada pelos arts. 926 e 927, §§ 3º e 4º, do Código43 que, a despeito de constarem das disposições gerais relativas aos precedentes obrigatórios, são vetores de todo o sistema normativo processual.

O Estado moderno configura o “espelhamento” de uma sociedade que o constituiu. Naquelas capitalistas, em que se tomam por base o apoderamento da propriedade e a busca pela produção/circulação de riqueza, o dinamismo do capitalismo só pode ser assegurado quando se confia no porvir, quando há, nas palavras de Eros Grau44, previsibilidade e calculabilidade, em suma, segurança. O direito previsível exerce papel fundamental para a defesa dos direitos das minorias, cuja única possibilidade de apoderar-se da condição de cidadãos repousa na confiança de que é aplicável a todos indistintamente sem desvios próprios de subjetivismos em prol de apenas alguns.

A renegação da coisa julgada sobre a questão decidida pelo Poder Judiciário põe em xeque a previsibilidade e a calculabilidade do direito, a liberdade e a igualdade45, bases do Estado Democrático.

Portanto, não há como dissociar a interpretação da coisa julgada sobre a questão prejudicial prevista no art. 503, § 1º, I a III, e § 2º do Código de Processo Civil de sua matriz, o collateral estoppel norte-americano, bem como dos vetores do Estado de Direito assinalados neste tópico, aliados ao contexto de cooperatividade atualmente vigente nas relações entre Fisco e contribuintes, de modo a raciocinar o instituto como se em sua essência fosse “o mesmo” daquele vigente no Código de 1973, isto é, interpretando-o ainda ao modelo de Chiovenda quando a coisa julgada dizia respeito apenas à solução atribuída à lide e às partes.

4. A questão da (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária de que depende a resolução do pedido nas ações/medidas judiciais antiexacionais

A obrigação tributária nasce uma vez ocorrido o evento conotado na hipótese de incidência e constituído em linguagem competente do lançamento, atividade vinculada e obrigatória do Estado-Administração (art. 142, parágrafo único, do CTN46) ou do “autolançamento” pelo contribuinte, assumindo os seguintes estágios, de acordo com o ciclo de positivação daquela norma jurídica:

i) obrigação tributária potencial: (a) quando a regra-matriz de incidência se encontra no sistema do direito positivo (válida), mas ainda não é dotada de vigência; ou (b) quando o evento descrito no antecedente abstrato ainda não ocorreu no plano fenomênico;

ii) obrigação tributária efetiva: surge com a ocorrência do evento na realidade e sua constituição pela linguagem do lançamento ou do “autolançamento”. Nessa categoria, inclui-se a situação em que o Fisco ou o contribuinte ainda não emitiram a linguagem competente de sua constituição, muito embora presentes as condições para tanto;

iii) obrigação tributária exaurida: ao entregar a soma em dinheiro (crédito) ao Fisco, o contribuinte cumpre o dever jurídico que lhe cabia, rompendo-se o vínculo obrigacional.

Levando em conta os três momentos relativos à obrigação tributária, o contribuinte que pretende colocar em xeque a exigibilidade do crédito tributário com fundamento na inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência terá a seu dispor a possibilidade de ajuizar as ações/medidas judiciais antiexacionais, classificadas em: (i) ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária e mandado de segurança preventivo, tendentes a declarar uma situação (juízo de certeza) relativa àquela obrigação tributária potencial47; (ii) ação anulatória de débito fiscal, mandado de segurança repressivo, embargos à execução fiscal e, ainda, exceção de pré-executividade48, objetivando anular ou extirpar a eficácia da obrigação tributária previamente constituída; e (iii) ação de repetição do indébito tributário ou declaratória/mandamental do direito à compensação, em que a obrigação tributária foi constituída e, também, extinta pelo pagamento, considerado, contudo, indevido, de sorte a ensejar o dever jurídico do Fisco de restituir o montante ao contribuinte.

Para os efeitos deste texto, os instrumentos enumerados têm em comum o fato de o contribuinte colocar em dúvida seu dever de entregar os valores a título de tributo ao Fisco, com fundamento na inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária, de forma a instaurar o estado de conflito com o Fisco.

A depender de qual das ações/medidas judiciais antiexacionais foi proposta pelo contribuinte, objetiva-se a produção dos seguintes efeitos: obstar a aplicação da regra-matriz de incidência tributária, ou seja, pré-excluir a juridicidade; anular ou extirpar a eficácia do lançamento ou do “autolançamento”; ou juridicizar o fato do indébito tributário. Para que o juiz decida pela paralisação da aplicação da regra, ou pela nulidade ou extinção dos efeitos da obrigação tributária, ou, ainda, pela juridicização do indébito, resolvendo o litígio, é preciso solucionar a questão da (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária.

Dessa solução depende o julgamento do pedido em quaisquer das ações/medidas judiciais antiexacionais e, não há dúvidas, configura questão prejudicial passível de transitar em julgado.

Assim ocorreu em mandado de segurança preventivo impetrado por sociedade anônima, cujas atividades/produtos comercializados encontram-se submetidos à sistemática da substituição tributária, nos termos da legislação mineira, isto é, do art. 22, § 10, da Lei n. 6.763/1975 e do art. 21 do Decreto n. 43.080/2002. A empresa-contribuinte pleiteou o “direito de lançar em sua escrita fiscal como créditos pretéritos e vindouros o valor do ICMS recolhido a maior, com a respectiva atualização monetária”, ou seja, pretendeu obter provimento jurisdicional para creditar em sua escrita fiscal o montante a maior recolhido do que aquele efetivamente cobrado (na operação subsequente) por força do regime de substituição tributária. Objetivou, assim, a definição (juízo de certeza) acerca de como se concretizaria, na prática, aquele regime fiscal.

Como a legislação em tela autoriza o contribuinte a “ressarcir-se” apenas na situação em que não se efetive o fato gerador, a controvérsia chegou ao Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário interposto pelo contribuinte49. No dispositivo decisional, o relator afirmou: “Na qualidade de prejudicial, declaro a inconstitucionalidade dos arts. 22, § 10, da Lei n. 6.763/1975, e 21 do Decreto n. 43.080/2002, ambos do Estado de Minas Gerais”. Significa afirmar que, para conceder o direito ao creditamento pleiteado, o Judiciário reconheceu como questão prejudicial a inconstitucionalidade da norma jurídica tributária impugnada.

Não se trata de mera “cognição” da questão constitucional sem vinculação a um julgamento efetivo, até porque no momento em que a questão da (in)constitucionalidade é posta pelo contribuinte como necessária à resolução do pedido, não se sustenta a posição de que a coisa julgada ainda se submeta à autonomia da vontade e ao princípio dispositivo reinantes no final do século XVIII e no início do século XIX, contexto inteiramente diverso e revelado pelo Código de Processo Civil. Ademais, em matéria tributária, especialmente nas hipóteses em que o contribuinte ataca a exigibilidade do crédito tributário com fundamento na inconstitucionalidade da norma-padrão de incidência, cujos eventos se apresentam homogêneos e sucessivos, carece de racionalidade admitir que a mesma questão, então definida pelo Poder Judiciário, possa ser tantas e quantas vezes rediscutida apenas porque o período de exigência do crédito tributário e a soma são distintos50.

No entanto, mesmo após as considerações acima, poder-se-ia objetar que não haveria como admitir a coisa julgada sobre a decisão da questão da (in)constitucionalidade da norma-padrão de incidência tributária, por força do disposto no art. 503, § 1º, III, do Código de Processo Civil, o que não se sustenta, como demonstrado a seguir.

5. A exegese do art. 503, § 1º, III, do Código de Processo Civil e sua aplicação à questão da (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária

Não obstante inexistam dúvidas de que a decisão de (in)constitucionalidade em ação/medida judicial antiexacional condiciona a resolução do pedido, há vozes51 no sentido da impossibilidade da coisa julgada enquanto questão prejudicial nesse contexto, por força da exegese atribuída ao art. 503, § 1º, III, do Código, o qual dispõe:

“Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.

§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se: [...]

III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.”

Escrutinaremos os argumentos contrários à formação da coisa julgada sobre a solução da questão da (in)constitucionalidade para, em momento posterior, demonstrarmos sua improcedência. Tal dialética é salutar, pois contribui para o desenvolvimento do direito.

A fim de tornarmos a exposição mais clara, dividiremos as alegações desenvolvidas pelos adeptos da teoria contrária daquela apresentada neste texto em pressupostos quanto à competência e ao procedimento para resolução da questão constitucional.

No que tange à competência, em primeiro lugar, compreendem que a decisão da questão de (in)constitucionalidade é exclusiva do Supremo Tribunal Federal em sede do controle abstrato de constitucionalidade, isto é, por meio das ações declaratórias de constitucionalidade (ADI/ADC), único órgão competente para analisar a questão constitucional como questão principal. Nesse sentido, excluir-se-ia a coisa julgada sobre a questão prejudicial relativa à (in)constitucionalidade nas ações/medidas judiciais antiexacionais, uma vez que nesses casos sua apreciação caberia inicialmente aos juízes e Tribunais locais, em nítida afronta à competência privativa da Corte Suprema.

Alegam que, mesmo que se admitisse a apreciação da questão constitucional pela Corte de forma incidental – o que se daria pelo recurso extraordinário –, não se “sanaria” o vício inicial da incompetência dos juízes e Tribunais locais para resolverem a (in)constitucionalidade como questão principal, tampouco não se solucionaria a violação da competência do Supremo Tribunal Federal para decidi-la nos mesmos moldes. Em suma, a competência para a resolução da questão de (in)constitucionalidade deve ser originária da Suprema Corte, e não derivada do recurso excepcional.

Em continuação, argumentam que, se a questão prejudicial for decidida no sentido da inconstitucionalidade da lei (da regra-matriz de incidência), será dotada de eficácia ex tunc e erga omnes, tal como se dá nas ações do controle principal e abstrato (porque, mesmo enquanto prejudicial, não perderia a natureza de decisão abstrata), importando em drásticas consequências para a sociedade quando se pensa que tal amplitude de efeitos decorrerá de uma demanda envolvendo duas partes (Tício e Caio).

Quanto ao pressuposto de procedimento haveria, também, de acordo com o entendimento dos que não aceitam a coisa julgada sobre a questão de (in)constitucionalidade, a formação de uma coisa julgada inconstitucional.

Isso porque, o art. 102, § 2º52, da Constituição teria definido que somente nas ações relativas ao controle principal e abstrato de constitucionalidade seria possível a formação da coisa julgada sobre a resolução acerca da (in)constitucionalidade, não podendo o Código de Processo Civil dispor de maneira diversa. Acrescentam que as decisões em ADI/ADC são de pronto conhecimento do jurisdicionado, ao passo que a coisa julgada sobre questão seria incerta. Apenas o juiz do segundo processo poderia atestar o preenchimento dos requisitos do art. 503, § 1º, I a III, e § 2º do Código de Processo Civil, não se sustentando tal insegurança quando o debate envolve matéria constitucional.

Também, estar-se-ia negando eficácia ao art. 52, X53, da Constituição, na medida em que a decisão de inconstitucionalidade proferida no controle incidental impede a aplicação da lei apenas quando o Senado Federal assim o determine e, na hipótese, os juízes e Tribunais estariam suspendendo sua execução, em manifesta afronta à competência da Casa Legislativa.

Note-se que ambos os pressupostos são redutíveis a duas ordens de ideias: qual a adequada exegese (i) do que se considera a competência do juízo em razão da matéria e da pessoa para resolver a questão prejudicial enquanto questão principal; e (ii) da distinção entre os modos de arguir e decidir a (in)constitucionalidade da lei nas vias incidental ou principal, de maneira concreta ou abstrata.

No que concerne ao primeiro aspecto, quando o dispositivo prescreve que o juízo deva ter competência para decidir a questão prejudicial como se principal fosse, tal significa apenas que não poderá ser incompetente de forma absoluta, nos termos estabelecidos pelo art. 62 do Código: “A competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função é inderrogável por convenção das partes”. Trata-se de regra estatuída no interesse da administração da justiça e, assim, insuscetível de alteração pela conveniência dos litigantes.

Assim, por exemplo, se em ação de ressarcimento proposta perante a Justiça Federal em face de B e da União Federal surge uma questão prejudicial que diz respeito apenas à relação entre A e B, o juiz obviamente poderá decidi-la, mas a decisão da questão não terá aptidão para gerar coisa julgada. De igual modo, em processo acerca da posse de coisa que envolva alguém que se afirma herdeiro, eventual questão prejudicial que se forme sobre a qualidade de filho não produzirá coisa julgada54. Em outras palavras, o art. 503, § 1º, III, diz respeito a um problema de competência, que nada tem a ver com controle de constitucionalidade.

Na medida em que todos os juízes e Tribunais detêm competência para aferição da (in)constitucionalidade incidentalmente, afasta-se a alegação de sua incompetência para decisão de tal questão prejudicial nas ações/medidas judiciais antiexacionais. No entanto, a objeção daqueles que entendem o contrário prossegue com relação a mais um ponto: a questão principal da (in)constitucionalidade somente pode ser decidida, de forma privativa, pelo Supremo Tribunal Federal.

Para compreender o segundo argumento, é preciso discorrer acerca dos pressupostos de procedimento e competência para arguição e aferição da questão constitucional no direito pátrio.

Um dos pressupostos de procedimento diz respeito aos modos de endereçamento da questão constitucional ao Poder Judiciário: incidental, configurando-se prejudicial à resolução do litígio entre as partes e, portanto, aparelhada à questão constitucional no bojo do processo em que o litígio carece de solução, e principal, em que o objeto do processo é a própria aferição da (in)constitucionalidade, não havendo conflito dela dependente a ser resolvido.

Ainda, quanto aos modos como a (in)constitucionalidade é analisada e julgada: diz-se controle concreto, quando tais procedimentos conectam-se à tutela jurisdicional resolutiva do litígio, não apresentando a questão constitucional autonomia. Diferentemente, é o controle abstrato da (in)constitucionalidade, ocorrido em ação judicial destinada a averigurar tão somente a validade da norma jurídica e, portanto, independentemente de um estado litigioso.

Vê-se, pois, que o controle incidental é sempre concreto e o principal engloba tanto o abstrato, em que a (in)constitucionalidade é apreciada autonomamente por meio de ações judiciais propostas perante o Supremo Tribunal Federal para esse fim (ADI/ADC), quanto o concreto, por exemplo, em sede de mandado de injunção55, em que a omissão constitucional se refere a uma situação específica do demandante por ferir-lhe direitos fundamentais, ou, ainda, quando os juízes e Tribunais do País resolvem a (in)constitucionalidade no bojo de uma ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária, como se verá no item 6.

Por fim, quanto à competência para apreciação da questão constitucional, reitere-se que, no Brasil, em que a análise da validade da norma jurídica do ponto de vista constitucional é atribuída a todos os juízes e Tribunais, existe apenas o controle difuso de constitucionalidade. E, quando tal competência é conferida exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, o que há, em realidade, é a arguição e apreciação do controle principal e abstrato, próprio das ações diretas de (in)constitucionalidade56.

O que foi explanado pode ser resumido da seguinte forma:

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Firmadas tais premissas, é preciso averiguar se os juízes e Tribunais detêm competência para decidir a questão da (in)constitucionalidade enquanto questão principal levando em consideração os modos de endereçamento e apreciação da (in)constitucionalidade. Por certo, são incompetentes para resolvê-la nos modos principal e abstrato, competindo apenas ao Supremo Tribunal Federal fazê-lo.

Note-se que a questão constitucional, enquanto prejudicial, é instaurada no bojo de um litígio, incidentemente, em que todos os juízes e Tribunais do País detêm competência para solucioná-la, mas nada impede que tais órgãos o façam, inclusive, enquanto questão principal. Trata-se, pois da combinação dos modos de arguição principal e de apreciação concreta da (in)constitucionalidade.

No âmbito do processo judicial tributário, poder-se-ia pensar que nas ações declaratórias de inexistência de relação jurídico-tributária a constitucionalidade é aferida no modelo principal e concreto, por ser em si mesma o objeto do processo com intuito de eliminar o estado de incerteza a respeito da potencial constituição do crédito tributário pelo Fisco, como se verificará no item 6.

Daí resulta que, ainda que não se admita que o § 1º, III, do art. 503 do Código conecta-se à competência absoluta (art. 62) do juízo para decidir a questão prejudicial e nada tem que ver com a competência do Supremo Tribunal Federal para resolver a constitucionalidade nos moldes principal e abstrato, mesmo assim todos os juízes e Tribunais podem apreciá-la de maneira principal e concreta, o que afasta os argumentos em sentido contrário aos aqui expostos.

Em decorrência, há de ser superada a alegação de que, como os efeitos ex tunc e erga omnes conferidos à decisão de inconstitucionalidade somente seriam próprios dos controles principal e abstrato exercidos de forma exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal, não poderiam se estender à coisa julgada sobre questão decidida pelos juízes e Tribunais. Novamente, essa ideia deriva da confusão entre os modos de arguição e análise da constitucionalidade principal e abstrato, de um lado, e incidental/concreto ou principal/concreto, de outro.

Que reste claro que a eficácia própria a um precedente obrigatório (por exemplo, emanado pela Corte Suprema) não possui o objetivo de tornar indiscutível uma questão concreta que diz respeito a alguém ou que pode ser delimitada como pertencente a determinadas pessoas. De modo inverso, a coisa julgada (sobre questão) parte do pressuposto de que há uma questão que interessa especificamente a alguns, partes no processo em que a questão foi decidida, ou a terceiros que, titulares de direito que depende da solução da mesma questão, podem invocá-la quando essa foi devidamente discutida pelo vencido. A resolução da questão constitucional, em favor de uma parte e contra a outra, permite que a parte vencedora, em ação distinta – em que se realiza outro pedido – invoque a coisa julgada sobre questão em desfavor da parte vencida. Assim, por exemplo, se é certo que a coisa julgada sobre o pedido não pode ser invocada pelo contribuinte para deixar de pagar tributo em exercício subsequente, o que efetivamente lhe garante a desnecessidade de voltar a discutir a questão de constitucionalidade da exigibilidade tributária é a coisa julgada sobre a questão prejudicial.

Em suma, a coisa julgada sobre questão objetiva impedir que se relitigue sobre questão resolvida e, diferentemente, a decisão exarada nos moldes principal e abstrato outorga unidade ao direito e tutela a sociedade.

Por consequência, inexistem os vícios procedimentais de afronta do art. 503, § 1º, I a III, e § 2º, do Código de Processo Civil aos arts. 102, § 2º, e 52, X, do Texto Constitucional, pois a coisa julgada sobre questão prejudicial, como visto, não guarda relação com as decisões exaradas em sede de ADI/ADC, tampouco se submete ao art. 52, X. Isso porque, a razão de tal preceito em sua origem era a de atribuir à decisão de inconstitucionalidade da lei, no controle incidental pelo Supremo Tribunal Federal, eficácia contra todos, época em que inexistiam precedentes obrigatórios57, ao passo que a decisão sobre questão interessa às partes e aos terceiros que discutem a mesma questão constitucional antes solucionada, de modo a proibir o vencido de relitigar e, pois, nada tem que ver com a força expansiva do precedente.

Quanto à alegação de que a coisa julgada sobre questão não poderia abranger a decisão de (in)constitucionalidade, uma vez que dependeria da certificação do preenchimento dos requisitos do art. 503, § 1º, I a III, e § 2º do Código de Processo Civil pelo juiz do segundo processo, gerando insegurança jurídica, tal não procede.

Nesse sentido, dois aspectos podem ser verificados do ponto de vista tributário. O primeiro, quando a questão constitucional foi resolvida, por exemplo, em ação anulatória de débito fiscal por meio da qual o contribuinte pretendeu a desconstituição ou a extinção da eficácia da obrigação tributária demarcada em específico período de tempo.

Na hipótese de a resolução daquela questão referir-se a uma relação jurídica de trato continuado e, se a decisão ocorrer no sentido da inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência, não será necessária a provocação do Poder Judiciário pelo contribuinte para pretender idêntica solução quanto aos períodos vindouros e, bem assim, o Estado-Administração estará proibido de praticar o ato jurídico administrativo do lançamento e/ou prosseguir com a cobrança; se se entender por constitucional, é vedado ao contribuinte colocar em xeque a exigibilidade do crédito tributário nos períodos subsequentes e, quanto ao Fisco, certifica-se sua legitimidade para a prática daqueles atos, nos exercícios futuros.

Se uma dessas partes pretender renovar o litígio, o juiz do segundo processo aferirá a presença dos requisitos daquele dispositivo, não havendo incerteza alguma com relação a tal ponto, pois o Poder Judiciário é competente para análise e decisão de conflito surgido em desrespeito à coisa julgada sobre questão formada em ação primitiva.

Outro viés do problema surge quando a coisa julgada sobre questão constitucional tributária pode ser arguida por contribuinte que não participou do processo, em seu benefício (art. 506 do Código). Como dito, referido tema demanda ulterior investigação em outra oportunidade, mas será objeto de breve consideração, apenas para outorgar solução àquela incerteza apontada pelos que entendem de forma contrária ao aqui exposto.

Pensemos na situação em que o contribuinte A, sediado em São Paulo, litiga com a União e a solução da questão dá-se no sentido da inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência relativa à Contribuição Social sobre o Lucro. O contribuinte B, estabelecido na Bahia, poderá alegar em seu favor a resolução daquela questão, com o objetivo de não recolher o mesmo tributo. Esse raciocínio é válido para todos os demais contribuintes sediados em qualquer jurisdição no Brasil e submetidos à mesma normatividade. A incerteza poderia ocorrer se pensássemos em uma pluralidade de decisões exaradas por diversos juízes dos processos subsequentes, ora atestando, ora negando os requisitos do art. 503, § 1º, I a III, e § 2º, do Código de Processo Civil. Por tal razão, como a coisa julgada sobre questão tributária é de interesse público, caberia à Administração produzir um ato jurídico confirmatório do entendimento sobre a questão constitucional e outorgar-lhe a devida publicidade.

Tal seria uma medida simples, porém eficaz, para resolver o problema da eventual incerteza acerca do cumprimento dos requisitos pelos demais juízes, bem como para conferir a todos os contribuintes o acesso à informação que lhes diz respeito, de acordo com a boa-fé objetiva a ser observada pela Administração. O que não se pode conceber é que, pela simples alegação de “incerteza” do cumprimento dos requisitos do dispositivo e pela ausência da devida publicidade do conteúdo da decisão sobre a questão constitucional, simplesmente o instituto seja abandonado quando se tratar de (in)constitucionalidade de lei tributária.

Reside aí a importância da questão constitucional enquanto questão prejudicial no direito tributário. No contexto atual, não mais se deseja o assoberbamento do Poder Judiciário, cuja consequência imediata é a de produzir decisões ineficientes, irracionais e inconsistentes entre si.

Assim, quando a questão da (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária for resolvida em qualquer uma das ações/medidas judiciais antiexacionais, mesmo que o seja no tocante ao crédito tributário exigido em determinado espaço-tempo, o Fisco e o contribuinte encontram-se proibidos de relitigar a respeito de idêntica questão com relação ao crédito tributário constituído/exigido em períodos diversos, nas relações jurídicas de trato continuado. Os efeitos drásticos para a sociedade seriam percebidos, caso não admitida a coisa julgada sobre questão constitucional, a perseverar a irracionalidade na aplicação do direito tributário.

6. A ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária e a competência dos juízes e Tribunais para julgar a questão constitucional enquanto questão principal

Como explanado, de regra, nas ações/medidas judiciais antiexacionais, a questão constitucional é endereçada e apreciada nos modos incidental e concreto, isto é, prejudicial à resolução do litígio entre Fisco e contribuintes, não se cacterizando como objeto principal do conflito. Basta verificar que na ação anulatória de débito fiscal, em que o contribuinte pretende a desconstituição (ou extirpação da eficácia) da obrigação tributária constituída em determinado espaço-tempo, com fundamento na inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência, a decisão acerca de tal questão é condicionante à resolução daquele específico conflito. Trata-se de controle incidental e concreto da questão constitucional.

Realizando um corte inicial no ciclo de positivação do direito tributário, o contribuinte pode se deparar com a regra-matriz de incidência válida no sistema jurídico, porém ainda não dotada de vigência, ou com o evento descrito no antecedente abstrato ainda não ocorrido no plano fenomênico.

Ou seja, a realidade ainda não foi formalizada em linguagem do fato jurídico tributário, não houve, portanto, a constituição da obrigação tributária. Por tal razão, o contribuinte que pretende combater a potencial exigibilidade do crédito tributário, isto é, que o Fisco não exercite seu direito potestativo de constituí-lo, ao fundamento da inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência, poderá fazê-lo mediante a propositura de ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária58.

Em tal situação, Rodrigo Dalla Pria59 leciona haver uma dúvida a ser dirimida a respeito da sujeição do contribuinte ao tributo, justamente porque ele (contribuinte) coloca em xeque a exigibilidade do potencial crédito tributário.

Trata-se da crise de incerteza provocada pelo contribuinte, gerada pela alegação da inconstitucionalidade daquela norma jurídica de incidência, dotada de presunção de validade a subsidiar a legalidade do ato jurídico administrativo do lançamento, atividade obrigatória e vinculada do Estado-Administração.

Nesse tipo peculiar de demanda, a questão constitucional pode ser arguida como objeto principal do processo, afinal, pretende-se obter a certeza de que o contribuinte não se sujeitará à regra-matriz de incidência (in)constitucional.

Como afirma Dalla Pria, a tutela jurisdicional proferida em ação declaratória negativa não produz norma jurídica em sentido estrito (no sentido de proibir, permitir ou obrigar) vinculando Fisco e contribuinte, mas soluciona o modo de ser da relação jurídica a ser instaurada (art. 19, I, do CPC60). A dúvida eliminada com a sentença diz respeito à interpretação outorgada pelo Poder Judiciário a respeito da (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência que, por conseguinte, retira a incerteza da submissão do contribuinte ao poder estatal no que concerne à exigibilidade do crédito tributário. Por tal razão, é possível argumentar que o endereçamento da questão constitucional se deu no modo principal.

Aquele autor cita as lições de Alchourrón e Bulygin61 para quem a sentença declaratória produz efeitos normativos secundários, consistentes na proibição de o Estado-fisco constituir o crédito tributário, consequência, pois, da decisão de (in)constitucionalidade exarada na demanda. Afasta-se a presunção de constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária.

Bem se vê que nas sentenças que declaram a inexistência de relação jurídico-tributária é possível admitir o exercício, por todos os juízes e Tribunais, do controle principal e concreto de constitucionalidade, o que nada tem que ver com a competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal para decidir a questão nos modos principal e abstrato (ADI/ADC).

Conclusões

Desde a edição da Constituição de 1988, proliferaram discussões tributárias (“teses”) perante os Tribunais do País, iniciando um ciclo de excessiva litigiosidade. Todavia, no momento atual, detecta-se o movimento de alteração da cultura jurídica, seja em razão da edição de atos normativos no sentido de promover a cooperação entre Fisco e contribuintes, seja em função do Código de Processo Civil de 2015, cujos vetores privilegiam a cooperação processual, a eficiência e a racionalidade da administração da justiça.

No que toca à coisa julgada sobre questão prejudicial, demonstrou-se que o art. 503, § 1º, I a III, e seu § 2º do Código romperam com o paradigma então vigente de vinculá-la ao pedido e às partes, tal como disposto pelo Código de 1973 e sustentado pela doutrina processual.

A coisa julgada sobre questão prejudicial decidida incidentemente no processo, de que depende a resolução do pedido, tem matriz no collateral estoppel norte-americano, desenvolvido com a preocupação da boa-fé e da proibição de comportamento contraditório, coerência do direito, eficiência dos atos emanados pelo Poder Judiciário e segurança jurídica (estabilidade, liberdade e igualdade).

Portanto, a decisão sobre a (in)constitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária suscitada nas ações/medidas judiciais antiexacionais caracteriza questão prejudicial passível de transitar em julgado. Isso porque, além de a interpretação do inciso III do § 1º do art. 503 do Código de Processo Civil conjugar-se ao art. 62, os juízes e Tribunais são competentes para decidi-la, inclusive como questão principal, tal como se verifica na ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária, de modo que o argumento no sentido de que se trataria de competência exclusiva da Suprema Corte no controle principal e abstrato, a fim de obstar a coisa julgada nesse contexto, não procede.

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TÔRRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica. Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2019.

1 A expressão ações/medidas judiciais “antiexacionais” foi utilizada no contexto tributário por Paulo Cesar Conrado, significando aquelas de iniciativa do contribuinte quando põe em xeque o dever de pagar o tributo (CONRADO, Paulo Cesar. Processo tributário. 3. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2012). Por medidas judiciais antiexacionais, referimo-nos à exceção de pré-executividade.

2 No âmbito acadêmico, registre-se o evento realizado pelo Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV/Direito/SP (linha de pesquisa questões atuais do contencioso tributário) intitulado “Os efeitos da coisa julgada em matéria tributária: desafios na fixação dos seus limites pelos tribunais superiores”, além de dissertações de mestrado, a exemplo da pesquisa sobre A coisa julgada em matéria tributária. Estudo acerca de sua eficácia no tempo e seu desdobramento no ambiente jurídico brasileiro, apresentada na FGV/Direito/SP, por Phelipe Moreira Souza Frota, em 2020, bem como publicações diversas, tais como o artigo Coisa julgada, rescisória, Súmula STF 343 e Parecer PGFN 492/2011. Impactos com o Código de Processo Civil de 2015, de autoria de Rodrigo G. N. Massud, veiculado em O novo CPC e seu impacto no direito tributário (coord. Paulo Cesar Conrado e Juliana Furtado). São Paulo: Fiscosoft, 2015, p. 137-175, e o artigo de Diego Diniz Ribeiro: Precedentes em matéria tributária e o novo CPC, publicado em Processo tributário analítico (coord. Paulo Cesar Conrado). São Paulo: Noeses, 2013. vol. III, p. 111-140. Ainda, ver o estudo de Paulo Mendes de Oliveira intitulado Coisa julgada e precedente. Limites temporais e as relações jurídicas de trato continuado. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2015.

3 Rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, DJ 28.08.1992.

4 Rel. Min. Moreira Alves, Plenário, DJ 06.11.1992.

5 Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ 31.08.2007.

6 Rel. Min. Edson Fachin.

7 Rel. Min. Roberto Barroso.

8 Registre-se que a PGFN editou, em 1994, o Parecer n. 1.277 e, em 2011, o Parecer n. 492, discorrendo sobre o tema.

10 “Art. 62. A competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função é inderrogável por convenção das partes.”

11 O art. 56 do ADCT dispôs que o Decreto-lei n. 1.940/1982 se manteria em vigor (com relação à exigência sobre o faturamento) até a edição de lei a que se referia a redação originária do art. 195, I, da Constituição. Os contribuintes colocaram em dúvida a exigência da Contribuição ao Finsocial para as empresas comerciais e mistas, após a edição da Constituição de 1988. No Recurso Extraordinário n. 150.764/PE (j. 16.12.1992), o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o art. 9º da Lei n. 7.689/1988 (e atos normativos que o alteraram), compreendendo que a Contribuição ao Finsocial incide, nos moldes do Decreto-lei n. 1.940/1982, à alíquota de 0,5% sobre o faturamento auferido pelas empresas comerciais e mistas, afastando as majorações de alíquota, até a instituição da Cofins, pela Lei Complementar n. 70/1991. Por sua vez, no Recurso Extraordinário n. 150.755/PE (j. 18.11.1992), a dúvida dizia respeito à exigência da Contribuição ao Finsocial para as empresas exclusivamente prestadoras de serviços. O Supremo Tribunal Federal considerou constitucional o art. 28 da Lei n. 7.738/1989 que a instituiu (e, como consequência, válidas as majorações de alíquota perpetradas pela legislação superveniente).

12 Os contribuintes se insurgiram em face da exigibilidade da Contribuição Social sobre o Lucro, alegando que a Lei n. 7.689/1988 continha máculas material (mesma base de incidência do imposto sobre a renda) e formal (necessidade de edição de lei complementar). Nos Recursos Extraordinários n. 138.284/CE (j. 01.07.1992) e n. 146.733/SP (j. 29.06.1992), a Suprema Corte compreendeu pela legitimidade daquela exigência, além de o mesmo teor decisório constar da ADI n. 15-2 (j. 14.06.2007).

13 Com relação à Contribuição ao PIS, os contribuintes alegaram que não poderia ser exigida tanto nos termos da Lei Complementar n. 7/1970 quanto em decorrência das alterações veiculadas pelos Decretos-leis n. 2.445/1988 e n. 2.449/1988. No Recurso Extraordinário n. 148.754/RJ (j. 24.06.1993), o Supremo Tribunal Federal afastou apenas a exigência nos moldes dos mencionados decretos-leis.

14 No que tange à Cofins, os contribuintes atacaram sua exigibilidade ao suscitar vícios material (i.e., a impossibilidade de eleição da mesma base de incidência da Contribuição ao PIS) e formal (exigência de lei complementar). Na ADC n. 1-1/DF (j. 01.12.1993), o Supremo Tribunal Federal considerou a Cofins constitucional.

15 Para comprovar tal assertiva, verifique-se a petição inicial da ADC n. 1-1/DF (Cofins), ajuizada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal: “A União Federal tem o justo receio de que o número de ações venha a crescer de maneira expressiva e atinja os desastrosos níveis ocorridos quando da discussão travada a respeito do FINSOCIAL.”

16 No Recurso Extraordinário n. 138.284/CE (CSL), o Supremo Tribunal Federal fixou as seguintes espécies tributárias: (a) impostos; (b) taxas; e (c) contribuições, classificando-as em: (c.1) de melhoria; (c.2) parafiscais, que são (c.2.1) as sociais, (c.2.1.1) as de seguridade social (arts. 195, I a III); (c.2.1.2) outras de seguridade social (art. 195, § 4º); (c.2.1.3) as sociais gerais; (c.3) as especiais, classificadas em: (c.3.1) de intervenção no domínio econômico e (c.3.2) corporativas; e (d) os empréstimos compulsórios. Tal classificação foi utilizada para criação de outras “teses tributárias”.

17 Rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, DJ 20.08.1993.

18 Recurso Extraordinário n. 390.840/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, DJ 15.08.2006.

19 Conforme voto condutor da Ministra Cármen Lúcia: “Quanto à definição de faturamento, este Supremo Tribunal Federal dedicou muitas sessões de julgamento a essa elucidação, em razão da complexidade do tema. Para não reiniciar debate sobre matéria antes examinada e concluída, peço vênia para transcrever trechos do voto do Ministro Cézar Peluso, proferido nos Recursos Extraordinários ns. 346.084, 358.273, 357.950 e 390.840, no qual traçado histórico da legislação e da jurisprudência sobre o tema: [...]” (Recurso Extraordinário n. 574.706/PR, Plenário, DJe 02.10.2017).

20 Trata-se do Recurso Extraordinário n. 390.840/MG antes mencionado.

21 Conforme proposta do Poder Executivo sobre o projeto de lei de diretrizes orçamentárias – LDO/2021, anexo V “Riscos Fiscais”, consta no item 4.1.1.3 que os Recursos Extraordinários n. 609.096 e n. 880.143 acerca da “Discussão a respeito da possibilidade de incidência de PIS/Cofins sobre as receitas de instituições financeiras que decorrem de seu objeto social e incluiriam, portanto, as receitas de natureza financeira, com fulcro na Lei 9.718/98”, apresentam estimativa de impacto orçamentário de R$19,4 bilhões (em um ano) e R$105,2 bilhões (em cinco anos) (Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/ldo/LDO2021/proposta/Anexos/Anexo_V.pdf. Acesso em: 25 maio 2021).

22 Ver estudo de Ricardo Oliveira Pessôa de Souza: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN. Revista da Procuradoria da Fazenda Nacional. Disponível em: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/revista_pgfn.pdf. Acesso em: 28 maio 2021.

23 Cite-se a edição, em 2016, da Portaria PGFN n. 396, a qual instituiu o Regime Diferenciado de Cobrança de Créditos Tributários (RDCC); em 2017, da Portaria PGFN n. 948, estabelecendo o Procedimento Administrativo de Reconhecimento de Responsabilidade (PARR) de terceiros, quando da dissolução irregular da pessoa jurídica; em 2018, da Lei n. 13.606, prescritora de novos procedimentos de cobrança do crédito tributário – tendentes à eficiência em sua recuperabilidade –, seja prevendo, por exemplo, a averbação da Certidão de Dívida Ativa nos órgãos de registros competentes, tornando os bens e direitos indisponíveis, seja autorizando o ajuizamento seletivo da execução fiscal, isto é, condicionando-o à verificação de patrimônio do devedor ou do responsável útil à satisfação total ou parcial dos créditos tributários, bem como outorgando fundamento de validade à Portaria PGFN n. 948/2017. Ainda, cite-se a Portaria PGFN n. 33/2018, determinando outras medidas destinadas à eficiência na cobrança do crédito tributário. Sobre o tema, ver artigo de Juliana Furtado Costa Araújo: A efetividade da cobrança do crédito tributário federal como fundamento legitimador da Portaria PGFN 33/2018. In: ARAÚJO, Juliana Furtado Costa; CONRADO, Paulo Cesar (coord.). Inovações na cobrança do crédito tributário. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2019, p. 11-24.

24 Os atos normativos mencionados na nota supra, ao promoverem maior racionalidade na cobrança do crédito tributário, também diminuíram a complexidade do contencioso judicial tributário.

25 “Art. 6.º Inscrito o débito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para: [...]; II – em até 30 (trinta) dias: [...]; b) apresentar Pedido de Revisão de Dívida Inscrita (PRDI).”

26 Este texto não tem por objetivo tratar da possibilidade de a coisa julgada beneficiar terceiros nas relações jurídicas entre Fisco e contribuintes, demandando uma pesquisa apartada.

27 “Il giudice, se per legge o per esplicita domanda di una delle parti è necessario decidere con efficacia di giudicato una questione pregiudiziale che appartiene per materia o valore alla competenza di un giudice superiore, rimette tutta la causa a quest’ultimo, assegnando alle parti un termine perentorio per la riassunzione della causa davanti a lui.” (Luiz Guilherme Marinoni, Coisa julgada sobre questão. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2019, p. 170, nota 8), ou seja, caberia ao juiz decidir a questão prejudicial com força de coisa julgada, se a lei assim o determinasse ou se a parte o requeresse.

28 Essa era a posição de José Carlos Barbosa Moreira, que se debruçou sobre o assunto quando do concurso para a docência-livre de Direito Judiciário Civil na Congregação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1967, apresentando a tese Questões prejudiciais e coisa julgada, filiando-se à teoria chiovendiana.

29 Essa parte do escrito de Chiovenda vale como confissão da lógica da doutrina que vincula questão prejudicial à ação declaratória incidental: “All’infuori dei casi in cui la stessa legge, con una norma espressa, richiede sopra una questione pregiudiziale un accertamento incidentale, questo risultato può ottenersi dalla volontà delle parti. Poichè se normalmente la cosa giudicata non si estende alle questione pregiudiziali, appunto per il riguardo dovuto alle volontà delle parti deve essere consentito alle parti di manifestare una diversa volontà.” (Giuseppe Chiovenda, Principii di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, [1906] 1965, p. 1.172)

30 Sergio Menchini, I limiti oggettivi del giudicato civile. Milano: Giuffrè, 1987, p. 9-10.

31 Tais são as lições de Gaston Morin: “La doctrine juridique de la souveraineté des individus, de leur indépendance les uns à l’égard des autres s’est très vite trouvée en désaccord avec les faits.” (La révolte des faits contre le code. Paris: Bernard Grasset, 1920).

32 Vittorio Denti, Questioni pregiudiziali (diritto processuale civile). Novissimo digesto italiano vol. XIV, p. 675 e ss.; Vittorio Denti, Questioni rilevabili d’ufficio e contraddittorio. Rivista di diritto processuale, 1968, p. 219 e ss.; Vittorio Denti, Sentenze non definitive su questioni preliminari di merito e cosa giudicata. Rivista di diritto processuale, 1969, p. 213 e ss.; Andrea Proto Pisani, Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1994, p. 328-329.

33 Sentenze non definitive su questioni preliminari di merito e cosa giudicata, Rivista di diritto processuale, 1969, p. 216 e ss.

34 Michele Taruffo, “Collateral estoppel” e giudicato sulle questioni. Rivista di diritto processuale n. II, 1972, p. 284 e ss.

35 Domenico Dalfino, Questioni di diritto e giudicato. Torino: Giappichelli, 2008, p. 65 e ss.; Vittorio Denti, Questioni rilevabili d’ufficio e contraddittorio. Rivista di diritto processuale, 1968, p. 221.

36 Dispõe a Seção 27: “When an issue of fact or law is actually litigated and determined by a valid and final judgment, and the determination is essential to the judgment, the determination is conclusive in a subsequent action between the parties, whether on the same or a different claim.”

37 “Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.” “Art. 6.º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”

38 DERZI, Misabel. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009, p. 361.

39 Com relação à boa-fé objetiva e à proibição de adotar postura contrária a que se postulou no direito tributário, ver: ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012; e TÔRRES, Heleno. Direito constitucional tributário e segurança jurídica. Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2019.

40 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. 1967. Tese (Concurso para a docência livre de Direito Judiciário Civil) – Congregação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1967, p. 94-95.

41 “Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.”

42 O Fisco, enquanto Estado, encontra-se obrigado a agir com boa-fé e eficiência, nos termos do art. 2º, parágrafo único, IV, da Lei n. 9.784/1999: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: [...] IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.”

43 “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.” “Art. 927. [...]. § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”

44 Afirma o autor: “O direito moderno é racional porque permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, sobretudo aqueles que se dão nos mercados.” (GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes?: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6. ed. refundida do Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 15)

45 Especialmente em matéria tributária, a igualdade entre os agentes econômicos exerce papel fundamental, como leciona Luís Eduardo Schoueri: “É, [...], uma garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou de disputa, em condições de igualdade, em um mercado com diversos agentes.” (Livre concorrência e tributação. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2007. vol. 11, p. 244-246)

46 “Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.”

47 O contribuinte pleiteia a paralisação da aplicação da regra-matriz de incidência, de sorte a não ser formalizada a obrigação tributária. Todavia, na prática, implementadas as condições de aplicação, a norma jurídica incidirá (lançamento ou “autolançamento”), restando ao Poder Judiciário determinar, em sede de tutela cautelar provisória/liminar, que o Fisco não cobre o tributo.

48 Nesse item (ii) colocamos em “equiparação” a ação anulatória de débito fiscal, o mandado de segurança repressivo, os embargos à execução fiscal e a exceção de pré-executividade apenas para afirmar que por meio de tais instrumentos o contribuinte põe em dúvida seu dever de entregar os valores ao Fisco, com fundamento na inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência tributária (esse é o núcleo comum que os permeia). Por certo, não ignoramos o fato de que os embargos à execução fiscal e a exceção de pré-executividade se alojam como meios de defesa a partir da ação exacional (execução fiscal) proposta pelo Fisco.

49 Recurso Extraordinário n. 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, Plenário, DJe 05.04.2017.

50 Alerte-se que tal irracionalidade era combatida por Rubens Gomes de Sousa, desde 1946, em artigo intitulado A coisa julgada no direito tributário. Revista de Direito Administrativo vol. 5, 1946, p. 48-76; bem como Coisa julgada (direito fiscal). Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro vol. 9. Rio de Janeiro, 1947, p. 290-303. No mesmo sentido, citem-se as decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal nos Embargos em Agravo de Petição n. 8.187 (Archivo Judiciário vol. LXIII, 1942, p. 228-235) e n. 11.227 (Archivo Judiciário vol. LXXIII, 1945, p. 172-182).

52 “Art. 102 [...]. § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.”

53 “Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: [...]; X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.”

54 Ver Luiz Guilherme Marinoni, Coisa julgada sobre questão. 2. ed., p. 275-277.

55 “Art. 5.º [...]: LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.” Ainda, a competência é exclusiva do Supremo Tribunal Federal na seguinte situação: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: [...]; q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal.”

56 No Brasil haveria sistema “misto” se, por exemplo, competisse ao Supremo Tribunal Federal apreciar com exclusividade determinada categoria de ato legislativo, excluindo-se os demais órgãos do Poder Judiciário, o que não ocorre. Tais são as lições de Elival da Silva Ramos, mencionada por Luiz Guilherme Marinoni na nota 179, do item 8.4.5, da segunda parte do Curso de direito constitucional. SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. 9. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020, p. 1.043.

57 Afirma Luiz Guilherme Marinoni: “Ora, se as decisões proferidas pelo STF, em controle incidental, têm eficácia vinculante, é completamente desnecessário reservar ao Senado Federal o poder para atribuir efeitos gerais às decisões de inconstitucionalidade.” (Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020, p. 1.151).

58 Neste tópico, por opção pela simplicidade, apenas nos referiremos à ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária. No entanto, nada impede que exemplificássemos com o mandado de segurança preventivo, cuja finalidade é a de obter, tal como naquela, a tutela declaratória negativa no sentido da eliminação da crise de incerteza e, de forma secundária, na proibição da constituição do crédito tributário pelo Fisco.

59 PRIA, Rodrigo Dalla. Direito processual tributário. São Paulo: Noeses, 2020, p. 248.

60 “Art. 19. O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica.”

61 Os autores distinguem as sentenças declarativas das normativas. As primeiras seriam aquelas que apreciam os problemas de subsunção (por exemplo, no campo tributário, corresponderiam às que declaram que determinada operação se enquadra no conceito de serviço, para fins de incidência do ISS), ao passo que nas normativas a discussão versa sobre o “status normativo de uma conduta do demandado”, o que corresponderia à tutela declaratória negativa aqui referida. Todavia, pensamos que tal tutela corresponde às declarativas (e não normativas) por força do art. 19, I, do CPC, pois a ação declaratória objetiva a afirmação do modo de ser da relação jurídica, o que inclui a interpretação da constitucionalidade da norma jurídica que a ensejou (ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la metodología de las ciencias jurídicas y sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2002, p. 205-208).