Capacidade Contributiva e Dever Fundamental*1
Ability to pay and Fundamental Duty
André Folloni
Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Direito da PUCPR. Doutor em Direito pela UFPR. E-mail: folloni.andre@pucpr.br.
Resumo
Este artigo questiona a tese segundo a qual há, no Brasil, um “dever fundamental” de pagar tributos em razão da capacidade contributiva. Para tanto, inicialmente, examina o significado da capacidade contributiva enquanto princípio da Constituição, concluindo que estabelece um critério de igualdade, a ser seguido pelo Estado ao exercer o poder de tributar, que implica tributação mais gravosa aos contribuintes de maior capacidade econômica. Trata-se de um direcionamento ao poder de tributar, que exclui outros; é uma restrição ao poder de tributar, não uma ampliação. Em seguida, examina as relações entre a capacidade contributiva e a legalidade, concluindo que o dever de avaliar em que medida as manifestações de capacidade contributiva serão tributadas foi entregue pela Constituição ao Poder Legislativo. O pagamento de tributos é obrigação a ser criada e dimensionada pela lei, e não decorre diretamente da existência fática de capacidade econômica. Depois, examina a tese do “dever fundamental” de pagar tributos, rejeitando os argumentos que afirmam a existência de um dever jurídico geral de pagar tributos que acometeria todos os cidadãos na medida de sua capacidade contributiva, e que seria tão fundamental quanto fundamentais são os direitos a serem assegurados pelo emprego dos recursos arrecadados com a tributação. Por fim, demonstra o desnível hierárquico entre os deveres de pagar tributos e o direito de não pagar, a invalidade de ponderações entre direitos fundamentais e o suposto dever fundamental de pagar tributos, e a incorreção de se partir de tendências de solução prévia favoráveis à Fazenda Pública em caso de dúvida acerca da existência da obrigação de pagar tributos, por dificuldades seja de interpretação do texto, seja de enquadramento dos fatos.
Palavras-chave: capacidade contributiva, dever fundamental, tributação, direitos fundamentais, desenvolvimento.
Abstract
This paper discusses the thesis according to which there is, in Brazil, a “fundamental duty” to pay taxes due to the ability to pay. It first examines the meaning of ability to pay as a principle of the Constitution, concluding that it establishes a criterion of equality to be followed by the State when exercising the power to tax, which implies more severe taxation to taxpayers of greater economic capacity. It is a direction to the power of taxation that excludes others; it is a restriction on the power of taxation, not an extension. The paper then examines the relationship between ability to pay and legality, concluding that the duty to assess the extent to which manifestations of economic capacity will be taxed has been handed over by the Constitution to the Legislature. The payment of taxes is an obligation to be created and dimensioned by legal rules, and does not result directly from the factual existence of economic capacity. Then, the paper examines the thesis of the “fundamental duty” to pay taxes, rejecting the arguments according to which there is a general legal duty to pay taxes that would affect all citizens to the extent of their ability to pay, and which would be as fundamental as the fundamental rights to be ensured through the use of resources raised through taxation. Finally, it demonstrates the hierarchical difference between the duty to pay taxes and the right not to pay, the invalidity of balancing fundamental rights with the supposed fundamental duty to pay taxes, and the incorrectness of starting from pro-State tendencies of prior settlement in case of doubt about the existence of the obligation to pay taxes, due to difficulties either in the interpretation of the text or in framing the facts.
Keywords: ability to pay, fundamental duty, taxation, fundamental rights, development.
Introdução
Embora esteja assentada a ideia de que a previsão legal do fato como tributável é essencial para a tributação, indaga-se, na doutrina e na jurisprudência, qual seria a solução adequada para os casos nos quais a lei tributária admite mais de uma interpretação, ou os fatos admitem mais de um enquadramento legal, e algumas dessas interpretações ou aplicações são mais favoráveis ao contribuinte e outras menos. Haveria alguma tendência prévia a ser adotada pelo intérprete, que privilegiasse o contribuinte ou a Fazenda Pública, em casos como esses?
Essas perguntas têm sido respondidas, por setores doutrinários respeitáveis, em favor da Fazenda Pública, com uma argumentação que pode ser assim sintetizada: (a) tributos servem para sustentar os gastos estatais, por sua vez necessários para que o Estado proteja e promova direitos fundamentais; (b) existe um dever de solidariedade entre todos os cidadãos para que se ajudem na busca pela proteção e promoção desses direitos; (c) os cidadãos têm um dever geral de contribuir com a formação do Erário, para instrumentalizar a proteção e promoção de direitos, na medida das suas capacidades econômicas; (d) esse dever se traduz como um “dever fundamental de pagar tributos”, cuja fundamentalidade é reflexo da fundamentalidade dos direitos que o Estado visa promover ou proteger por meio da aplicação dos valores arrecadados com os tributos; (e) em caso de dúvida, ou de colisão entre esse dever fundamental e os direitos fundamentais, deve-se buscar a alternativa interpretativa que implique o pagamento da maior quantidade possível de tributos, pois assim se cumprirá de forma eficaz aquele dever fundamental, do qual só se escusariam aqueles que não têm compromisso cidadão e solidário com os direitos fundamentais, com o outro e com a sociedade em que vivem.
Este artigo tem por objetivo examinar o argumento acima. Tomará por procedentes as premissas (a) e (b). Discutirá (c) o dever geral de pagar tributos conforme a capacidade contributiva, e a partir disso rechaçará (d) o dever fundamental de pagar tributos e (e) a regra prévia de maximização da arrecadação em caso de dúvida.
Para tanto, o artigo, inicialmente, examina o significado da capacidade contributiva enquanto princípio da Constituição brasileira, concluindo que estabelece um critério de igualdade e, portanto, parcialmente, de justiça, que implica tributação mais gravosa aos contribuintes de maior capacidade econômica, a ser seguido pelo Estado ao exercer o poder de tributar. Trata-se, portanto, de um direcionamento ao poder de tributar, que exclui outros, restringindo-o, não o ampliando. Em seguida, examina as relações entre a capacidade contributiva e a legalidade, concluindo que o dever de avaliar em que medida as manifestações de capacidade contributiva serão tributadas foi entregue pela Constituição ao Poder Legislativo, de modo que o pagamento de tributos é obrigação a ser criada e dimensionada pela lei, não pela existência fática de capacidade econômica. Depois, examina a tese do “dever fundamental” de pagar tributos, rejeitando os argumentos que afirmam a existência de um dever jurídico geral de pagar tributos que acometeria todos os cidadãos na medida de sua capacidade contributiva, e que seria tão fundamental quanto fundamentais são os direitos a serem assegurados pelo emprego dos recursos arrecadados pela tributação. Por fim, demonstrará o desnível hierárquico entre os deveres de pagar tributos e o direito de não pagar, do qual decorre a invalidade de ponderações entre direitos fundamentais e o suposto dever fundamental de pagar tributos e a incorreção de se partir, em caso de dúvida, de tendências de solução prévia favoráveis à Fazenda Pública.
1. A capacidade contributiva e restrição ao poder de tributar
Este item procura definir o que significa capacidade contributiva enquanto princípio da Constituição brasileira. Essa tarefa não é simples. Há mais de cinquenta anos, Alfredo Augusto Becker, em passagem bastante citada, mas frequentemente incompreendida, advertiu que a inserção do princípio da capacidade contributiva no texto constitucional implicaria a “constitucionalização do equívoco”2. No entender do autor, a expressão “capacidade contributiva” é “equívoca”, no sentido de “ambígua”, porque não é “unívoca”, não é “inequívoca”. É uma expressão que pode ser compreendida de várias formas. Becker nunca disse que constitucionalizar a capacidade contributiva era um equívoco, no sentido de um erro. Diferentemente, sustentou que, com a constitucionalização, as dificuldades de intepretação da capacidade contributiva são trazidas para dentro do ambiente constitucional. Nesse sentido, a equivocidade é constitucionalizada: é a constitucionalização do equívoco, isto é, do dúbio. Uma vez constitucionalizado o princípio da capacidade contributiva, aparecem as dificuldades interpretativas próprias da inserção e da integração da norma com o sistema jurídico. O significado dependerá do texto exarado pelo poder competente e do restante do sistema legal no qual se insere. Com isso, poderá variar de sistema para sistema.
Inicialmente, examinemos o texto. A redação constitucional é a seguinte: “Sempre que possível, os impostos [...] serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte” (CF, art. 145, § 1º). O texto impõe que, dentre as espécies previstas no art. 145, caput, os impostos deverão ser graduados conforme a capacidade econômica dos contribuintes. Determinar uma graduação significa determinar um tratamento desigual: a existência de graduação nos impostos implica a existência daqueles que pagarão mais e daqueles que pagarão menos – portanto, uma desigualdade. O critério para essa graduação é a capacidade econômica: contribuintes com maior capacidade econômica pagarão impostos mais gravosos, e contribuintes com menor capacidade econômica pagarão impostos menos gravosos.
Se o texto cria uma desigualdade, é preciso examinar como ele se relaciona com as normas do sistema constitucional que prescrevem a igualdade de tratamento. A mesma Constituição que determina a graduação dos impostos e, portanto, uma desigualdade de incidência, prescreve, em seu art. 150, II, que “... é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente...”. Como conciliar uma norma que determina tratamento desigual com uma norma que proíbe tratamento desigual? A adequada conjugação desses preceitos permite ao intérprete compreender o significado de “situação equivalente”, na Constituição, que será a medida da desigualdade: estão em situação equivalente, em princípio, os contribuintes com a mesma capacidade econômica. Esses não podem receber tratamento desigual. Contudo, não estão em situação equivalente os contribuintes com capacidade econômica diversa. Esses estão em situação desigual e devem, na medida dessa desigualdade, receber tratamento desigual. Nesse caso, a desigualdade de capacidade econômica determina a desigualdade na intensidade da tributação, e essa desigualdade de tributação, no que diz respeito aos impostos, será feita, sempre que possível, por meio da graduação: impostos mais gravosos para os contribuintes em situação diferenciada, isto é, com maior capacidade econômica, e impostos iguais para os contribuintes em situação equivalente, isto é, com capacidade econômica equivalente.
Quem vier a criar os impostos, portanto, deverá estabelecer graduação conforme a capacidade econômica dos contribuintes, porque esse é o critério de igualdade adotado pelo Poder Constituinte. Como se nota, o princípio da capacidade contributiva atua como um critério, dentre outros, a ser observado pelo poder tributário, determinando graduação. Dizer que é um critério a ser observado equivale a dizer que é um critério que não pode ser desconsiderado. Ou, em outras palavras, que deve obrigatoriamente ser seguido, excluindo outras possibilidades. A capacidade contributiva é um critério que se impõe ao poder tributário, restringindo suas alternativas. Não fosse esse princípio, o Poder Público poderia instituir impostos proporcionais (flat tax) ou, até mesmo, regressivos, como a cobrança de quantidade fixa idêntica em valor monetário para todos os contribuintes (head tax), se assim entendesse, por exemplo, mais justo ou mais eficiente. Na falta do princípio, o Poder Público teria mais liberdade para avaliar e decidir. Existente o princípio, porém, tem menos liberdade: os impostos não podem ser outra coisa senão progressivos, sempre que isso for possível. A capacidade contributiva, enquanto dever de graduação conforme a capacidade econômica, nos termos do art. 145, § 1º, da Constituição, é uma restrição ao poder de tributar. Ou, se preferirmos, é uma limitação ao poder de tributar: limita as possibilidades do poder tributante ao impor um único critério entre vários teoricamente possíveis.
Como se nota, então, a capacidade contributiva não amplia as possibilidades de tributação. Pelo contrário: é uma norma que restringe as possiblidades do Poder Público, ao impor um critério de igualdade e, por consequência, excluir todos os outros. Não é uma norma de tutela do interesse arrecadatório: é a escolha de um padrão de igualdade tributária que se impõe ainda que o interesse arrecadatório pudesse ser outro. O dever de tributar conforme a capacidade contributiva, como qualquer outro dever, limita a atuação daquele a quem se dirige: na ausência desse dever, o poder tributário teria mais liberdade de deliberação; sendo obrigado, no entanto, a tributar conforme a capacidade contributiva, sua atuação está restringida, limitada, direcionada. Essa conclusão não é nova. Por todos, recordemos Aliomar Baleeiro, para quem a capacidade contributiva é uma “diretriz de que não se pode afastar o legislador ordinário”3. A capacidade contributiva, como princípio constitucional, limita a atuação do Poder Público, ao mesmo tempo que lhe impõe uma exigência, ensina Miguel Ángel Sánchez Huete4. Autores contemporâneos de tendências bastantes diversas, como Humberto Ávila e Marco Aurélio Greco, definem a capacidade contributiva como um “dever”5.
Sintetizando o ponto: ao positivar a capacidade contributiva no art. 145, § 1º, a Constituição não faz nada além de impor uma determinação de graduação dirigida ao poder tributário. Naturalmente, determinar graduação é determinar diferenciação: deverá haver diferença na intensidade da tributação conforme haja diferença na capacidade econômica dos contribuintes. A Constituição impõe a capacidade econômica como o critério de diferenciação entre contribuintes, a ser utilizado em regra (“sempre que possível”), excluindo outros critérios, que ficam reservados para situações excepcionais (extrafiscais, por exemplo). Ao determinar esse critério de diferenciação, a Constituição atribui ao princípio da capacidade contributiva o conteúdo deôntico de um critério de igualdade – e, portanto, parcialmente, de justiça – a ser observado pelo Poder Público no exercício da competência tributária. A existência do princípio constitucional da capacidade contributiva não traz nenhuma autorização de tributação além daquelas que já existiriam na sua ausência. Ao contrário: em vez de ampliar, limita as possibilidades de tributação à observância desse critério. A conclusão, cuja relevância é crucial, é a seguinte: o princípio constitucional da capacidade contributiva não é um instrumento ampliativo das possibilidades de tributação, mas limitador. Não amplia as possibilidades do poder tributário: restringe-as. Se um poder tributário quisesse tributar mais intensamente os contribuintes com maior capacidade econômica, poderia fazê-lo mesmo em um sistema no qual esse critério não fosse constitucionalmente impositivo, assim como poderia fazer o contrário. A liberdade estatal é maior onde não houver esse princípio. Por outro lado, se o poder tributário quiser tributar igualmente os contribuintes de capacidade econômica diversa, ou se pretender tributar mais intensamente os contribuintes de menor capacidade econômica, encontrará, no princípio constitucional da capacidade contributiva, um obstáculo. A capacidade contributiva é um obstáculo ao poder tributário.
2. Capacidade contributiva e legalidade tributária
Dizer que a capacidade contributiva é um critério que se impõe ao poder tributário não é dizer tudo. É preciso refinar o significado, nessa formulação, de “poder tributário”, assim entendido o poder de impor aos contribuintes a obrigação de pagar tributos.
Conforme a Constituição brasileira, qualquer obrigação de pagar tributos deve ser instituída por lei. Por força da legalidade tributária, prevista no art. 150, I, da Constituição como garantia do contribuinte, é proibido ao Estado exigir tributo sem lei que o estabeleça. A legalidade geral, por sua vez, prevista no art. 5º, II, insere, entre os direitos fundamentais, a garantia segundo a qual ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Se ninguém é obrigado a fazer nada senão em virtude de lei (CF, art. 5º, II), então ninguém é obrigado a pagar tributos senão em virtude de lei. Se é vedado exigir tributos sem lei que o estabeleça (CF, art. 150, I), então ninguém pode ser obrigado a pagar tributos na ausência de lei6. Por força dessas normas, o Poder Legislativo é o órgão competente para decidir quem deve pagar tributos, em razão de que deve pagar, quando deve pagar, e quanto deve pagar. Cabe ao Poder Legislativo interpretar a Constituição, compreender as suas possibilidades de tributação e editar a lei determinando o pagamento dos tributos que entender devam ser cobrados.
Tomemos a seguinte definição doutrinária: “Capacidade contributiva é o princípio segundo o qual cada cidadão deve contribuir para as despesas públicas na exata proporção de sua capacidade econômica.”7 Uma vez que o dever de contribuir com as despesas públicas deve decorrer de lei, como qualquer dever jurídico no Brasil (CF, art. 5º, II), e deve ainda ser instituído por lei, como ocorre com os deveres de pagar tributos no Brasil (CF, art. 150, I), o princípio da capacidade contributiva tem como destinatário inicial o Poder Legislativo: é ele que tem o dever de graduar os impostos conforme a capacidade econômica dos contribuintes. Em um segundo momento, o princípio será interpretado pelos órgãos competentes para o controle de constitucionalidade, que deverão avaliar se o Poder Legislativo cumpriu aquele preceito.
Mas a graduação dos tributos não é a única tarefa do Poder Legislativo. Ele precisará conjugar esse dever com suas outras funções, encontrando, a cada momento, a melhor configuração possível para o sistema tributário. O Poder Legislativo deve dimensionar as necessidades de arrecadação, as possibilidades de tributação, e toda a conjuntura socioeconômica, ao tomar decisões relativas ao desenho do sistema tributário. Nessa função, inclui-se avaliar que fatos, dentre os constitucionalmente autorizados, deverão desencadear obrigações tributárias, e em que medida. O Poder Legislativo pode decidir que um determinado tributo deve ser cobrado na maior quantidade possível, até o limite da capacidade contributiva; pode, também, decidir que determinado tributo deve ser cobrado parcimoniosamente, por vários motivos (como incentivar a atividade econômica naquele setor), tributando, se assim decidir, aquém – ou muito aquém – daquilo que os contribuintes teriam capacidade econômica para pagar; e pode, ainda, decidir que determinado tributo não será cobrado, mesmo que os contribuintes tenham capacidade econômica para pagar. Esse tipo de decisão é própria das atividades do Poder Legislativo.
Tendo, naturalmente, poder decisório e atuando conforme a formação política da vontade pela via da representatividade popular, o Poder Legislativo não está nem autorizado nem obrigado a tributar todas as manifestações de capacidade econômica identificáveis na realidade econômica. Não está autorizado porque, na ausência de competência ou na presença de imunidade, a tributação é constitucionalmente proibida, ainda que haja capacidade contributiva. A lei pode tributar apenas aquelas manifestações de capacidade econômica previstas nas regras constitucionais de competência e não protegidas por imunidades. Além de não estar autorizado, o Poder Legislativo também não está obrigado a tributar todas as manifestações de capacidade econômica previstas nas regras de competência da Constituição: deverá, a cada momento, avaliar se é o caso de impor determinada tributação, no exercício de sua competência decisória formada por maioria democrática. Por isso, a doutrina costuma dizer que a competência tributária é facultativa8.
Tributar ou não uma materialidade prevista em regra de competência, ou em que medida tributar, são decisões que competem exclusivamente ao Poder Legislativo, no exercício de sua função política9. O Poder Legislativo pode optar simultaneamente por tributar a renda e por não tributar as grandes fortunas, por exemplo, e pode alterar essa orientação posteriormente. Tudo dependerá da avaliação e das decisões que forem adotadas a cada momento. Considerar a capacidade contributiva e dela derivar regras que indiquem como devem ser instituídos e cobrados os tributos é matéria que está no âmbito da “liberdade de conformação do legislador ordinário”10. Se a lei não tributa algumas manifestações de capacidade contributiva, a única forma admissível para que elas passem a ser tributadas é pela ação do Poder Legislativo. Trata-se do que a doutrina denomina “reserva de lei” ou “reserva constitucional de lei”11. Essa reserva representa, diz Andrei Pitten Velloso, a “efetiva sujeição do Fisco a normas jurídicas preestabelecidas”12. O direito, decorrente diretamente da Constituição, de não ser obrigado a pagar tributos na falta de lei é um direito fundamental e uma garantia expressamente previsto, ao menos, em dois preceitos, a legalidade genérica (CF, art. 5º, II) e a legalidade tributária (CF, art. 150, I).
Por força dessas razões, não procede, por exemplo, o argumento segundo o qual uma manifestação de capacidade econômica qualquer tem que ser enquadrada como venda, para fins de ICMS, ou como serviço, para fins de ISS, porque, se não for assim, ela não será atingida pela tributação, o que violaria o princípio da capacidade contributiva. É preciso que esse ponto fique muito claro: o fato de uma manifestação de capacidade econômica não ser tributada não ofende, em si, o princípio constitucional da capacidade contributiva. Esse princípio informa, na Constituição, a atribuição de poder decisório ao Poder Legislativo para instituir os tributos e, naturalmente, para deixar de tributar determinada manifestação de capacidade econômica, se assim entender ser o caso. É certo que o Poder Legislativo não pode tributar onde não houver capacidade contributiva; mas o fato de haver essa capacidade não implica, por si só, dever de pagar tributos. Capacidade contributiva é condição necessária, diz Luís Eduardo Schoueri, mas não suficiente para a tributação13. A competência residual abre ao Legislativo a possibilidade de tributar naquilo que as regras de competência ordinária não previram; cabe a esse poder avaliar e decidir. Da mesma forma, não é admissível que determinada atividade econômica, cuja tributação não foi determinada por lei, seja tributada pela Administração Tributária ou pelo Poder Judiciário porque, afinal de contas, trata-se de manifestação de capacidade contributiva. Esse argumento não é aceitável porque desconsidera a legalidade tributária e suprime a competência constitucionalmente reservada ao Poder Legislativo. Ponderações que invoquem a capacidade contributiva como ampliação dos poderes tributários para além das previsões legais são sempre incabíveis. A legalidade tributária é uma regra sem exceção14.
Descabe, também, distorcer interpretativamente as previsões constitucionais ou legais ao cobrar tributos sob o pretexto de que, se determinado fato é manifestação de capacidade contributiva, então deveria ser tributado sempre, incondicionalmente, ou ao máximo. O pretexto é falso: tributar ou não determinada manifestação de capacidade econômica é decisão a ser tomada pelo Poder Legislativo; decidindo tributar, não está obrigado a fazê-lo na máxima intensidade possível. A intensidade da tributação, isto é, a graduação dos tributos conforme a capacidade econômica dos contribuintes, depende de decisões que cabem ao Poder Legislativo. Por isso, o princípio da capacidade contributiva não pode servir como subterfúgio argumentativo a sustentar o intento de tributar o que o Legislativo não tributou, transformando uma restrição em uma autorização ilimitada. O lucro das pessoas jurídicas é uma manifestação de capacidade contributiva que pode ser tributada, por exemplo, a 34%. Mas também poderia ser tributada a 33%, ou a 35%, ou a 32%, ou a 36%. A renda da pessoa física pode ser tributada entre 7,5% e 27,5%, mas também poderia ser tributada entre 7% e 28%, ou entre 8% e 27%, ou entre 5% e 30%, e assim por diante. A alíquota máxima pode incidir sobre rendimentos acima de R$ 5.000,00, ou de R$ 10.000,00, ou outro valor. Decisões dessa espécie cabem ao Poder Legislativo, que deverá, ao decidir, considerar uma série de questões socioeconômicas e outras de ordens bastante diversas (culturais, políticas, ambientais etc.). Não existe determinação constitucional para que determinada manifestação de capacidade econômica seja tributada ao máximo, ou até o limite da proibição de tributação com efeito de confisco, ou, pelo menos, acima de um mínimo; sequer, para que seja tributada.
Contudo, o Poder Legislativo, se tem competência para escolher que manifestações de capacidade contributiva irá tributar dentre aquelas que a Constituição autoriza, e para decidir em que intensidade as manifestações de capacidade econômica objeto de tributação serão tributadas, deverá exercer essa liberdade tendo como princípio orientador a tributação dos contribuintes conforme suas capacidades econômicas. Salvo por impossibilidade, o Poder Legislativo não pode adotar tributação regressiva ou proporcional, e também não pode adotar tributação que discrimine os contribuintes com base em critérios diferentes da capacidade econômica. Sempre que possível, deverá adotar tributação progressiva, porque graduar os impostos conforme a capacidade econômica dos contribuintes não significa outra coisa senão tributar progressivamente. Para a Constituição, a progressividade deve ser aplicada por princípio.
Todas essas razões demonstram como é problemática a afirmação segundo a qual o dever de pagar tributos decorre da existência de capacidade econômica, ou do princípio da capacidade contributiva, ou da solidariedade social. Juridicamente, no Brasil, o dever de pagar tributos, isto é, a obrigação do contribuinte em recolher tributos ao Estado e o direito da Administração Tributária de cobrá-los, decorre de lei. A lei tributária, por sua vez, deverá ser elaborada considerando a capacidade contributiva. Na ausência de lei, capacidade contributiva e solidariedade social não são suficientes para impor qualquer forma de tributação – e, como ainda se verá neste artigo, também não funcionam como critério interpretativo de leis tributárias a autorizar a tributação do que, em interpretação diversa igualmente razoável, não seria tributado. É preciso rigor ao avaliar propostas teóricas segundo as quais a capacidade contributiva exerceria função de proteção aos interesses do Fisco porque, diante do ideal de solidariedade, ninguém poderia deixar de contribuir para as despesas públicas conforme sua capacidade contributiva. Em rigor, qualquer pessoa pode deixar de contribuir para as despesas públicas conforme a sua capacidade contributiva: basta que haja imunidade ou que, havendo competência, o Poder Legislativo decida por não tributar aquela pessoa, não editando a lei ou estabelecendo isenção. Ninguém pode se furtar a contribuir em conformidade com a lei. Não havendo lei, não há determinação jurídica a ninguém para que recolha tributos por motivos de solidariedade social ou por ter manifestado capacidade econômica. A ausência de determinação legal de pagar tributos não pode ser suprida pela Administração Tributária ou pelo Poder Judiciário, que estão, por força constitucional, enquanto órgãos de União, Estado, Distrito Federal e Municípios, proibidos de exigir tributo sem lei que o estabeleça. Os deveres de pagar tributos decorrem de leis, têm hierarquia infraconstitucional, e dependem de decisões políticas precárias do Poder Legislativo sujeitas a controle de constitucionalidade.
3. Um dever “fundamental” de pagar tributos?
Conforme o Preâmbulo da Constituição, o Estado brasileiro é criado, no momento constitucional, para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais. O poder político justifica-se porque a sociedade atribui ao Estado o dever de proteger e promover direitos fundamentais. O Estado não tem exclusividade na função de proteção e promoção de direitos fundamentais, é verdade; mas, diferente do que pode ocorrer com outras instituições e práticas sociais, apenas se justifica à medida que contribui com esses objetivos. Para tanto, o Estado precisa de recursos financeiros, que em grande medida advêm do esforço alheio (receitas derivadas, entre elas as tributárias). O Estado fiscal caracteriza-se por se sustentar financeiramente, de forma bastante intensa, na absorção de parcela da riqueza privada. Assim, os contribuintes devem pagar tributos, comprometendo em alguma intensidade a sua liberdade e da sua propriedade, para que o Estado proteja e promova direitos fundamentais, incluídos a liberdade e a propriedade.
Nesse sentido, o tributo é o preço da liberdade e se configura como um paradoxo: para ter protegida e promovida a sua liberdade e a sua propriedade, o contribuinte precisa pagar tributos, que por sua vez limitam sua liberdade e sua propriedade15. Não há direitos de liberdade sem Estado e não há Estado, liberdade econômica e livre iniciativa sem tributos; logo, não há direitos de liberdade sem tributos16. O tributo, ao mesmo tempo que pode ser uma agressão à propriedade, é necessário como sustentação econômica para a proteção da propriedade. Em certo sentido, não há riqueza privada anterior à tributação, pois toda riqueza privada, enquanto propriedade garantida por um complexo sistema jurídico de direitos, deveres e garantias, só existe onde houver direito e Estado, que só podem existir se houver tributação, que só pode existir se houver propriedade17. Revela-se, então, uma recursividade, uma complicação originária entre os tributos e os direitos: sem tributos não há garantia de direitos, e sem garantia de direitos não há tributos. A existência de tributos é essencial para a proteção e promoção de direitos sociais e individuais; em incidência exagerada ou mal calibrada, contudo, o tributo pode ameaçar, restringir e acabar por violar os direitos18.
Aqui se percebem as dificuldades que o pensamento simplificador traz para a doutrina. O pensamento simplificador é incapaz de lidar com paradoxos e recursividades. Consegue, apenas, trabalhar com oposições exclusivistas. Realidades complexas, entretanto, são frequentemente recursivas e paradoxais e desafiam o pensamento a absorver e trabalhar com paradoxos19. O pensamento redutor fica diante de uma oposição dualista que, em sua visão, demanda escolha: ou o tributo é uma agressão aos direitos fundamentais, que impede a sua realização (“tributo é roubo”), ou o tributo, enquanto condição de possibilidade dos direitos fundamentais, jamais os ameaça (“tributo é dever”). Como, em um pensamento redutor, o tributo não pode ser, simultaneamente, garantidor e ameaça a direitos, uma afirmação precisa ser tida por verdadeira e a outra por falsa. O pensamento redutor faz a escolha reafirmando o que já sabia, sem precisar enfrentar, de fato, o paradoxo: ele apenas o evita20. Sentindo a necessidade de optar, o pensamento redutor o fará, baseado em sua pré-compreensão e sua visão de mundo, com a qual sua opção concordará. Para tanto, frequentemente atrairá a discussão para o campo no qual se sente confortável e seguro, distorcendo ou negando sua natureza original. O tema, então, se adaptará ao pensamento redutor: uma discussão jurídica torna-se política, moral, econômica ou ideológica, sempre que o pensamento redutor precisar fazer essa distorção para trazer a discussão ao campo com o qual está familiarizado, eliminando a complexidade originária. Sob a aparência de interdisciplinaridade, o que se tem é confusão metodológica.
O tributo não é necessariamente a negação dos direitos fundamentais, nem é, obrigatoriamente, a sua afirmação. O tributo é um dos elementos necessários para a proteção e para a promoção dos direitos fundamentais; simultaneamente, é uma permanente ameaça e pode se tornar violador dos direitos fundamentais. Daí a necessidade de o tributo existir: um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais não pode existir sem tributos. E, ao mesmo tempo, a necessidade de o tributo ser permanentemente controlado e contido: um Estado destinado a assegurar o exercício dos direitos fundamentais não os pode violar por meio da tributação. O tributo não é viabilizador ou ameaçador de direitos, em disjunção exclusivista: é as duas coisas, ao mesmo tempo, e no mesmo espaço! O tributo é um paradoxo.
A coimplicação recursiva originária entre os tributos e os direitos pode levar à seguinte conclusão: se a proteção e a promoção de direitos fundamentais é atribuição do Estado e se o Estado só se viabiliza pela existência de tributos, então o pagamento dos tributos é tão importante quanto os direitos fundamentais. Ou, se quisermos: o pagamento de tributos é tão “fundamental” quanto são fundamentais os direitos cuja proteção e promoção demanda recursos públicos. O dever de pagar tributos estaria no mesmo patamar, teria a mesma fundamentalidade dos direitos fundamentais. Dever fundamental de pagar tributos e direitos fundamentais os mais variados seriam correlatos e se colocariam, a partir da Constituição, no mesmo nível de fundamentalidade.
Esse ponto deve ser tratado com cautela, porque há deveres em ordens normativas diferentes: deveres religiosos, morais, políticos e legais fundam-se em pressupostos diferentes e não se confundem enquanto categorias21. Isso ocorre mesmo nos casos em que um determinado dever pode ser enquadrado em todas essas categorias. O dever de não enganar, por exemplo, pode ser um dever estabelecido por uma ordem religiosa, pode ser um dever ético perante o outro indivíduo, pode ser um dever político perante a coletividade, e pode ser um dever legal em uma ordem jurídica determinada. Essa coincidência não significa, porém, que deveres religiosos, deveres éticos, deveres políticos e deveres jurídicos, enquanto categorias, são o mesmo. Nem que se possa, em um âmbito jurídico de discussão, como um processo judicial ou um procedimento administrativo, por exemplo, invocar deveres morais, políticos ou religiosos para deles extrair consequências jurídicas.
Não se nega haver um dever geral, de caráter ético ou político, de pagar tributos. Nem se discute se esse dever é mais importante – ou, se quisermos, mais “fundamental” – do que outros deveres políticos, isto é, próprios da cidadania. O dever de votar, o dever de manter a cidade limpa, o dever de respeitar as regras de trânsito, o dever de ajudar quem necessita, o dever de não agredir outros cidadãos, ou o dever de obedecer às leis, inclusive às tributárias, podem ser deveres importantes, até necessários para viabilizar a vida em sociedade. Assim, sob os pontos de vista ético e político, não parece despropositado refletir sobre a existência de um dever geral de pagar tributos, análogo a outros deveres próprios da convivência civilizada – posto limitado pela capacidade contributiva: é plausível, naturalmente, sustentar a inexistência do dever ético ou político de pagar tributos sem ter capacidade econômica para tanto; ou do dever de pagar mais do que outro contribuinte que tenha a mesma capacidade econômica. Esse dever de pagar tributos, pode-se dizer, é um dever perante o outro e perante a coletividade.
Contudo, o dever jurídico de pagar tributos, no Brasil, nasce a partir da lei. Não há qualquer dever jurídico geral de pagar tributos em razão da existência de capacidade contributiva que decorra diretamente da Constituição, como decorre, diretamente da Constituição, o direito de não pagar tributos sem previsão legal. O dever jurídico de pagar tributos, como visto, só pode decorrer da lei. É um dever legal, não constitucional. Deveres fundamentais, diz um dos mais reconhecidos estudiosos da teoria, devem estar previstos explícita ou implicitamente na Constituição22. Na Constituição brasileira, não está expresso um dever geral de pagar tributos em função da capacidade contributiva, e ele não pode ser considerado um dever implícito porque regras expressas da Constituição o excluem: a regra segundo a qual o dever de pagar tributos só pode ser estabelecido em lei, e as regras de competência, que definem o âmbito de tributação lícito a cada pessoa política. Industriais, por exemplo, não são obrigados a pagar IPI por força direta do art. 153, IV, ou do art. 145, § 1º, da Constituição. A lei, com base nesses preceitos, pode tributar, criando esse dever. Mas pode não criar. Pode criar para muitos industriais, excluindo alguns. Pode criar para os fabricantes de certos produtos, mas não para outros. Pode criar mais intensamente para alguns fabricantes do que para outros. E apenas a lei federal poderá fazê-lo, e ela não poderá atingir quem não é industrial. Não existe dever jurídico de pagar IPI, seja geral para todos cidadãos, ou para todos os industriais, seja específico para alguns, que decorra diretamente da Constituição. Qualquer dever de pagar esse tributo deverá decorrer, sempre e em qualquer hipótese, da lei, e nos termos e intensidade nela previstos. Nenhum dever de pagar qualquer tributo decorre diretamente da Constituição. Já os direitos fundamentais, sob o ponto de vista jurídico, decorrem diretamente da Constituição, e nela estão previstos explícita ou implicitamente. Então, sob o ponto de vista jurídico, os direitos fundamentais e o dever de pagar tributos não são correlatos nem reflexos: aqueles são constitucionais, este é legal.
A doutrina registra que o significado da categoria “dever fundamental” não parece bem estabelecido, e o enquadramento da obrigação de pagar tributos como um dever fundamental não costuma ser feito em termos muito claros ou precisos23. A falta de clareza ou de precisão permite a manipulação de significados conforme os interesses do intérprete. É incontroverso, contudo, o fato de que não existe dever de pagar tributos no mesmo nível constitucional em que existem direitos fundamentais, inclusive direitos fundamentais de natureza tributária, porque os deveres de pagar tributos decorrem sempre de lei e os direitos decorrem diretamente da Constituição e se impõem na ausência de lei ou contra a lei.
A figura do dever fundamental é equívoca, talvez até desastrada, entre outros motivos, pelo termo utilizado. “Dever fundamental” remonta imediatamente, quase como um reflexo condicionado, à noção de direitos fundamentais, mas as figuras não têm paralelo. Nabais explica, a propósito, que os preceitos constitucionais que consagram aquilo que ele chama de deveres fundamentais são dirigidos ao Poder Legislativo. O Poder Legislativo lhes dará conteúdo ou os concretizará conforme as opções políticas que vier a fazer24. Assim compreendidos, os chamados deveres “fundamentais” não têm qualquer fundamentalidade análoga àquela dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, diferentemente, não dependem do Poder Legislativo e podem a ele ser opostos. É próprio dos direitos fundamentais se imporem sobre a lei. Deveres tributários nunca se impõem sobre a lei. O “fundamental” daqueles deveres a que alude a tese do “dever fundamental de pagar impostos” não é, em nenhuma medida, o mesmo “fundamental” dos direitos sociais e individuais. A opção terminológica é desastrada.
Se os deveres chamados fundamentais são deveres estatuídos em lei diante de previsão constitucional, são deveres legais. O qualificativo “fundamentais” é enganoso porque dá a ideia de que esses deveres decorreriam diretamente da Constituição com eficácia idêntica, ou ao menos análoga, à dos direitos fundamentais, o que não ocorre. Seriam “fundamentais” porque, em termos de teoria política, seriam mais importantes do que, talvez, o dever de parar no sinal vermelho, conforme a avaliação do teórico. Essa é uma consideração cujo enfrentamento aqui é desnecessário. É possível dizer que se todos os cidadãos resolverem deixar de recolher tributos o Estado, em tese, poderá ficar inviabilizado, enquanto se todos os cidadãos resolverem deixar de parar no sinal vermelho haverá grave desordem nos centros urbanos e sérias consequências em vários contextos, inclusive de funcionamento da economia e de saúde pública, mas, em tese, o Estado poderá não ficar inviabilizado. Isso não torna o dever de pagar o imposto de renda eventualmente apurado até o dia 30 de abril mais “fundamental”, em termos jurídicos, do que o dever de parar no sinal vermelho. Ambos são deveres decorrentes de leis, por sua vez decorrentes de competências legislativas previstas na Constituição, cuja violação implicará a imposição de multa. Ambos devem ter a multa lavrada por um órgão competente contra o qual o cidadão poderá opor impugnação, que será ao final julgada pelo órgão administrativo ou pelo Poder Judiciário. Juridicamente, não há nada de especial nos deveres tributários salvo, a depender do que o Poder Legislativo vier a decidir, que a violação dos deveres tributários pode ser punida com penas de maior gravidade em relação a outras violações. O que, a propósito, nem sempre ocorre: a violação ao dever de não matar, por exemplo, é punida com maior gravidade do que a violação do dever de pagar tributos. Talvez alguém cogite se tratar, o “não matar”, de um dever “fundamentalíssimo”.
Ao usar expressões consagradas com significados inusitados, a própria teoria induz à má compreensão. Seria como alguém fazer uma teoria do descumprimento das normas de competência, com o pressuposto segundo o qual descumprir essas normas é algo tão grave que poderia ser chamado de crime, e publicar um livro chamado “O crime de tributar fora do âmbito de competência”, explicando, dentro do livro, que “crime”, nessa teoria, não significa o que os juristas estão acostumados a chamar de crime. Considerando o sentido semântico de “fundamental” assentado na doutrina e na jurisprudência constitucionais mundo afora, a expressão “deveres fundamentais”, quando voltada ao dever de pagar tributos, que depende de lei e não se impõe na ausência de lei e que está, então, sujeito às disputas políticas e às decisões do Poder Legislativo, induz ao equívoco. Todavia, a questão não é meramente terminológica. É uma questão de teoria constitucional. É equivocado dizer que, no Brasil, o dever de pagar impostos é um dever de cidadania que impõe que aqueles que manifestam capacidade contributiva transfiram dinheiro para o Estado em função dessa manifestação. Não existe esse dever. Mesmo alguém que manifeste capacidade contributiva não será obrigado a pagar tributos se a lei assim não dispuser.
Tampouco se pode sustentar que o suposto dever fundamental de pagar tributos é fundamental porque é uma “contrapartida” dos direitos fundamentais. Se a garantia de direitos fundamentais depende do Estado, e se o Estado depende dos tributos, então pagar tributos é um dever fundamental como contrapartida dos direitos fundamentais. Daí, pode-se dizer que, para fazer jus aos direitos fundamentais, um cidadão precisa pagar tributos conforme a sua capacidade contributiva. Mas não existe essa contrapartida. Alguém que, por algum motivo, não possa pagar suas obrigações tributárias e se torne devedor de tributos não perde, só por isso, os seus direitos fundamentais, podendo então, por exemplo, ser submetido à tortura ou ao tratamento degradante, ou estar obrigado a abrir mão de proteção policial. A afirmação segundo a qual o suposto dever fundamental de pagar tributos seria a contrapartida dos direitos fundamentais é perigosa, porque é enganosa e, a depender do seu sentido, é claramente falsa. O descumprimento dos deveres de pagar tributos não anula o sistema de proteção de direitos fundamentais. Aqueles deveres não são contrapartida desses direitos.
Da mesma forma, descaberia desconsiderar um direito individual sob a justificativa de que, se determinado contribuinte, eventualmente, deixar de pagar um tributo cuja previsão legal é incerta, isso poderia, no futuro, colocar em risco o sistema de proteção e promoção estatal de direitos fundamentais. Isso seria, naturalmente, um problema muito sério. Ninguém deseja que o sistema de proteção e promoção estatal de direitos fundamentais seja extinto. Mas esse perigo não autoriza a desconsideração de direitos individuais, como o direito de não pagar tributos sem lei que o estabeleça. O argumento que sustentasse que o direito individual pode ser superado porque, caso contrário, estaria em risco o sistema de garantia de direitos, seria inválido porque desconsideraria uma distinção decisiva. Uma violação de direito fundamental que certamente decorrerá de uma decisão, e um eventual perigo de ineficácia de direitos fundamentais futuros caso aquela decisão não fosse tomada, são realidades bastante diferentes. Se os direitos fundamentais são levados a sério, não devem ser facilmente superados, concretamente e no presente, em razão do perigo abstrato de serem mitigados no futuro. A justificativa de que, caso contrário, outros direitos poderiam ser inviabilizados no futuro não é um argumento decisivo para a violação real de direitos no presente25.
Em síntese: deveres de pagar tributos têm natureza legal. Não decorrem diretamente da Constituição, mas de lei. Por mais importantes que sejam, não são “fundamentais” como são fundamentais os direitos individuais e sociais. Não se impõem sobre a lei nem na ausência de lei. Os deveres cívicos, de natureza ética e política, não podem gerar consequências jurídicas, no direito tributário, na ausência de previsão legal, e só o podem na medida dessas previsões legais. Daí que compreender esses deveres como “fundamentais” é, juridicamente, sem sentido; pragmaticamente, é uma abertura para o equívoco e para a arbitrariedade.
4. Desnível hierárquico entre direito e deveres e a interpretação da lei tributária
O dever estatal de respeitar a legalidade, formulado como proibição de exigência de tributos sem lei que o estabeleça (CF, art. 150, I), implica um direito reflexo ao cidadão: o direito de não ser tributado senão por lei e nos termos previstos em lei. Por isso, a legalidade é definida, na Constituição, como limitação ao poder de tributar e garantia do contribuinte. O dever estatal de graduar os tributos conforme a capacidade econômica dos contribuintes, previsto no art. 145, § 1º, da Constituição, também implica direitos reflexos aos cidadãos: o direito de não ser tributado para além da sua capacidade contributiva, o direito de não ser tributado em seu mínimo existencial, o direito a não ser submetido a tributação com efeito de confisco, o direito a ser tributado na mesma intensidade com que são tributados outros contribuintes com igual capacidade econômica, o direito de não ser tributado em maior intensidade em relação aos contribuintes com maior capacidade contributiva etc. Todos direitos individuais, de estatura constitucional, que se impõem sobre as leis.
Entre o dever legal de pagar tributos (estabelecido, por exemplo, pela Lei n. 4.502/1964) e o direito individual de não pagar tributos na ausência de lei (estabelecido pelo art. 150, I, da Constituição), existe um desnível hierárquico: o último é um direito constitucional, enquanto o primeiro é um dever legal. Não estão no mesmo plano e não são equivalentes. Isso significa que os direitos individuais e os deveres de pagar tributos não podem ser submetidos a ponderação. O direito individual de não pagar tributos sem previsão legal decorre diretamente da Constituição e pode ser arguido por qualquer contribuinte perante os tribunais administrativos e judiciais para que não seja submetido a obrigação tributária não prevista em lei. De outro lado, não há dever de pagar tributos que decorra diretamente da Constituição e que possa ser arguido pelo Estado perante os tribunais administrativos e judiciais para que seja imposta obrigação tributária não prevista em lei. Como ainda será tratado neste artigo, aquele direito e esses deveres não são ponderáveis entre si porque não estão no mesmo nível hierárquico.
A capacidade contributiva é uma norma que se dirige ao Poder Legislativo limitando a sua liberdade na instituição de tributos e, ao mesmo tempo, conferindo direitos de natureza constitucional aos cidadãos em geral e aos contribuintes em particular. É uma restrição ao poder tributário e não é fundamento direto para a cobrança de tributos, porque só a lei pode determinar essa cobrança. Como os deveres de pagar tributos decorrem de lei, e não da Constituição, não são fundamentais no mesmo sentido em que são fundamentais os direitos individuais e sociais. É um dever legal que pode ser havido como de especial importância, ou que pode ser especialmente desprezado, a depender dos valores em consideração em determinada concepção política ou ideológica. Mas, juridicamente, está em desnível diante dos direitos individuais, inclusive do direito de não pagar tributo sem lei que o estabeleça. Os direitos individuais decorrem diretamente da Constituição e se impõem mesmo na ausência de lei. O dever de pagar tributos decorre diretamente da lei e não se impõe na sua ausência. Como visto, chamar esse dever de “fundamental” implica automaticamente o equívoco porque os juristas estão acostumados, há muito tempo, com a expressão “direitos fundamentais”, e a figura teórica chamada de dever fundamental não tem, em sua própria teoria, a mesma fundamentalidade.
Se é assim, a que se presta se referir ao dever de pagar tributos enquanto um “dever fundamental”? Pode servir, de algum modo, ao desejo de adornar esse dever com uma importância especial que pudesse, em situações de disputa argumentativa, exercer força retórica a favor do Fisco. Afinal, se o dever de pagar tributos é “fundamental”, muito importante, altamente relevante, até mesmo crucial; se é muito mais sério do que deveres meramente triviais como o dever de obedecer às leis de trânsito, de cumprir os contratos ou de não matar as pessoas pelas ruas; se é tão fundamental quanto são fundamentais os direitos garantidos pela Constituição; então haveria algo de muito especial nesse dever que justificaria fosse objeto de coerção mais intensa do que os demais deveres não fundamentais. Em caso de dúvida a respeito da existência desse dever, por exemplo, dever-se-ia decidir de tal modo que o dever fosse prestigiado. Na dúvida, cumpra-se o dever que não se tem certeza se existe. Se o dever é fundamental, descumpri-lo pode ser havido como uma violação especialmente abominável, de modo que, na dúvida acerca da existência do dever, ou de sua extensão, o correto seria supor que ele existe, em máxima extensão, e coagir ao seu cumprimento. Seria uma falha, moral e jurídica, se o fiscal tributário deixasse de exigir o tributo na máxima quantidade possível dentro do espaço de dúvida razoável, ou se o juiz tributário deixasse de confirmar essa autuação. Seria um erro, inclusive, se o contribuinte, em caso de alternativas, não se dispusesse, desde logo, a pagar a maior quantidade possível. Dentre todos os possíveis enquadramentos legais, o correto seria tributar ao máximo.
Essa argumentação, porém, não procede. Dentre os direitos constitucionalmente garantidos aos contribuintes está, fora de questão, o direito de não pagar tributos sem lei que o estabeleça. Dentre os deveres mais fundamentais está a proteção dos direitos constitucionais oponíveis ao Estado, também eles, em muitos casos, direitos morais legitimadores e limitadores do exercício do poder estatal. Direitos individuais de liberdade, como aqueles decorrentes da legalidade, impõem-se, inclusive, contra objetivos políticos relacionados à promoção do bem-comum. Essa, a propósito, é a definição de direitos de Ronald Dworkin: um direito existe quando nem mesmo um argumento relativo à promoção do bem-comum é suficiente para justificar a sua violação26. Invocar um argumento relacionado ao bem-comum ou ao bem-estar geral, como aquele segundo o qual tributos viabilizam a consecução estatal do bem-comum, não é suficiente para desconsiderar direitos individuais de natureza constitucional. É importante lembrar, ainda com Dworkin, que as Constituições são criadas precisamente a partir da ideia de direitos que preexistem, se opõem e condicionam o Estado27. Uma teoria dos direitos está subjacente à Constituição brasileira e objetivos de política fiscal não podem prevalecer contra direitos individuais de natureza constitucional, como o direito de não estar submetido ao pagamento de tributos não previstos em lei. Seria, em termos dworkinianos, despropositadamente opor argumentos de política (policy) a argumentos de princípio (principles), opor o bem comum aos direitos individuais, pretendendo que aqueles prevalecessem na disputa28.
No Estado Democrático de Direito, não se deve admitir a violação de direitos individuais pela justificativa da garantia do bem comum, como a necessidade de arrecadação. Essa necessidade, por mais importante que seja para o bem comum, inclusive proteção e promoção de direitos, não autoriza, por si só, a violação de direitos individuais. Como o objetivo constitucional do Estado é exatamente, assegurar o bem-comum e o exercício dos direitos individuais e sociais, esse tipo de justificativa sempre poderá ser cogitada em qualquer caso no qual o exercício do poder estatal esteja em discussão. O poder sempre terá essa justificativa. Se ela for suficiente para a violação dos direitos individuais, esses direitos, na prática, sempre cederão e deixarão de existir. Em nome da proteção e promoção de direitos, nenhum direito haverá. Mesmo que uma justificativa como essa pareça acertada, e ainda que eventualmente seja, ainda assim a conduta estatal precisará respeitar direitos individuais.
Se estivermos diante de duas alternativas, cobrar ou não cobrar tributos, diante de lei ou enquadramento fático duvidosos, teremos o seguinte: se o incerto dever de pagar tributos naquele caso porventura existir, ele é legal, e objetiva o bem comum; se aquele mesmo incerto dever de pagar tributos porventura não existir, então certamente existe o direto fundamental, de natureza constitucional, de não pagar. Se o intérprete errar, e decidir pelo não pagamento quando a duvidosa obrigação existe, estará violando um dever legal; se errar no outro sentido, e decidir pelo pagamento quando a duvidosa obrigação não existe, estará violando um direito constitucional. Parece claro que, na dúvida, não se deve partir do prestígio a um dever legal em detrimento de um direito fundamental de estatura constitucional.
Se o direito de não pagar tributos sem lei que o estabeleça tem hierarquia constitucional (CF, art. 150, I), enquanto os deveres de pagar tributos têm estatura infraconstitucional, na dúvida, em princípio, deve ser protegido o direito constitucional. Na pior das hipóteses, não se deve, como princípio, partir-se da necessidade de prestígio a um dever legal sob o risco de violação de direito fundamental. O desnível entre o direito constitucional de não pagar na ausência de lei e o dever de pagar criado pela lei impõe que não se exerça coerção diante de lei duvidosa, pois é muito mais grave acabar por violar um direito constitucional do que deixar de aplicar uma obrigação legal, ainda que em nome do bem comum. Diante de eventual dúvida se determinada decisão violará direito constitucional ou se deixará de efetivar uma obrigação legal, o receio de violar direitos é mais sério. Se um juiz ou um fiscal está em dúvida se, ao agir, violará o direito constitucional daquele cidadão que está diante do Estado submetido ao seu poder, é melhor, em princípio, não agir daquela forma. O receio de violar direitos constitucionais deve se sobrepor ao receio de acabar permitindo que alguém descumpra um dever legal, ainda que em nome do bem comum. Se, em caso de dúvida, estamos diante de uma decisão que poderá livrar alguém do cumprimento do seu dever legal, mas a decisão contrária poderá violar direito fundamental, em princípio deve-se prestigiar o direito fundamental duvidoso, não o dever legal duvidoso.
O argumento do “dever fundamental” não serve como critério de interpretação e aplicação da legislação tributária para se decidir em favor do Fisco. Não é um instrumento de maximização da tributação, não se presta a ampliar a incidência pelo caminho hermenêutico, e, como ensinam estudiosos do tema, não sustenta um argumento in dubio pro fisco29. Mas, além disso, também não pode ser invocado um inexistente dever fundamental de pagar tributos para “ponderá-lo” com os direitos fundamentais de liberdade e seus derivados. Por exemplo, ponderar o direito de proteção do patrimônio privado com o dever de pagar tributos para sustentar a legitimidade de regras antielisivas, ou ponderar o direito à intimidade com o dever de pagar tributos para sustentar a legitimidade de regras de transparência ou de acesso do Fisco aos dados econômicos da população.
Esse é um caminho argumentativo ruim por vários motivos, dentre eles as dificuldades estruturais próprias de qualquer argumento pela ponderação e a gravidade de se pretender ponderar direitos com deveres. No tema específico, entretanto, é importante firmar três posições. A primeira, descabe pretender ponderar o que indisputadamente existe – direitos fundamentais – com o que não existe. Como não existe nenhum dever fundamental geral de pagar tributos em função da capacidade contributiva, ele não pode ser ponderado com nada. Em segundo, descabe pretender ponderar normas de estatura hierárquica diversa. Quando existe, o dever de pagar tributos tem natureza legal, enquanto o direito de não pagar na falta de lei tem natureza constitucional. Não tem cabimento ponderar norma constitucional com norma legal. Em terceiro, descabe pretender ponderar direitos individuais com direitos da sociedade ou da maioria. Não há oposição entre direito individual e o direito geral de todos os cidadãos, ou da maioria, ou “da sociedade”, que autorizasse a resolução da oposição pela via da ponderação. Não existe oposição ponderável entre um direito individual e um dever perante todos os cidadãos, ou perante a maioria, ou perante a sociedade. Uma oposição na qual seria possível avaliar pesos e fazer alguma ponderação seria apenas aquela entre direitos individuais. Como ensina Dworkin, devemos reconhecer como competidores aptos a eventual ponderação apenas os direitos individuais: pretender colocar na balança um direito individual e um direito da sociedade contra o indivíduo seria, por princípio, aniquilar o direito, já que o direito individual existe exatamente enquanto proteção contra a coletividade e os seus eventuais direitos enquanto coletividade30. Se um direito fundamental pode ser ponderado com eventuais direitos da sociedade, ou da maioria, ele imediatamente deixa de existir enquanto tal. Não é mais um direito fundamental.
O melhor caminho argumentativo para enfrentar essas questões está na compreensão dos direitos envolvidos e de sua extensão, em si mesmos e diante de sua inserção no sistema jurídico, sem que sejam invocados argumentos de ponderação ou relativos a deveres fundamentais. A pergunta a ser feita, por exemplo, é a seguinte: os direitos de propriedade e de liberdade, que sem dúvida existem, envolvem o direito de promover distorções interpretativas, ou de buscar alternativas negociais, apenas para pagar menos tributos? Essas perguntas, que são diferentes, devem ser respondidas, cada uma delas, positiva ou negativamente, sem que seja preciso, para essa resposta, invocar categorias inexistentes no direito constitucional brasileiro, como um suposto dever fundamental de pagar tributos em função da capacidade contributiva, ou pelo recurso à ponderação entre o imponderável: direitos contra deveres ou direitos individuais contra interesses coletivos. O direito à intimidade, induvidosamente existente, envolve o direito a esconder a movimentação econômica dos órgãos de fiscalização tributária para se esquivar de cumprir obrigações legais de natureza tributária? Eis outra pergunta que deve ser respondida pela avaliação da extensão e do alcance do direito de intimidade e de sua inserção no ordenamento. Não se deve evitar a dificuldade dessa pesquisa recorrendo a categorias de força meramente retórica sem correspondente empírico na Constituição brasileira que dão ao problema uma solução tão rápida quanto infundada.
Perguntas como essas podem ter respostas positivas, negativas, ou estar sujeitas a temperamentos intermediários, a partir da teorização e compreensão dos direitos envolvidos, sem que seja preciso, ou mesmo aceitável, que eles sejam ponderados com figuras jurídicas inexistentes; ou com figuras que possam, inclusive, ser criadas ou invocadas ad hoc para sustentar posições já previamente admitidas a respeito dessas disputas. Para dizer que o direito de liberdade não envolve o direito de sair pelas ruas agredindo as pessoas, não deve ser invocado o dever fundamental de jamais encostar nos outros como um imperativo jurídico da convivência cidadã. Se esse dever existisse, ele daria uma reposta, mas a mesma conclusão – o direito de liberdade não envolve o direito de agredir os outros – pode e deve ser buscada com base em premissas verdadeiras, não na invocação de uma premissa falsa que se refira a um dever inexistente. A necessidade de argumentação sofisticada não deve ser um empecilho a justificar a adoção retórica de slogans de conteúdo incerto apelando ao seu potencial impacto persuasivo. O dever fundamental de pagar tributos em razão da capacidade contributiva, porque não existe, não deve ter espaço na argumentação jurídico-tributária, que se torna, com sua invocação, congenitamente falaciosa.
Conclusão
O tema tratado neste artigo tem importância crucial porque a jurisprudência tem invocado a força retórica do suposto dever fundamental de pagar tributos – forte porque apela à emoção da oposição entre bons e maus cidadãos – para decidir questões tributárias, inclusive no Supremo Tribunal Federal, em temas os mais variados, desde questões relativas a direitos de intimidade, como proteção do sigilo, até questões de interpretação da legislação tributária para reconhecer ou afastar a existência de obrigações tributárias, como no caso do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS, passando pela avaliação da existência de imunidade (RE n. 601.314/SP; ADI n. 2.390; RE n. 240.785/MG; RE n. 636.941/RS etc.). A retórica do dever fundamental também se tem feito presente em decisões do Superior Tribunal de Justiça e de tribunais judiciais e administrativos.
Todas essas questões, entretanto, deveriam ser resolvidas sem invocar um dever inexistente, e sua invocação demonstra o estado de confusão intelectual que a tese do dever fundamental, lamentavelmente, trouxe ao debate brasileiro. É importante devolver o debate constitucional tributário brasileiro às categorias efetivamente existentes no direito constitucional tributário brasileiro, já suficientemente complexas e controversas. O dever fundamental de pagar tributos em razão da capacidade contributiva, que não existe, não deveria frequentar a argumentação voltada às questões tributárias, nem na doutrina, nem na jurisprudência brasileiras. O argumento que envolve esse dever, por se basear em premissa equívoca, é um convite à confusão; por se basear em premissa falsa, é um convite à falácia.
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1* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico (CNPq) – Chamada Universal, e da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná – PBA.
2 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 441.
3 Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 294.
4 El carácter fundamental del deber de contribuir: el derecho y la ética de las relaciones tributarias. Direito, Estado e Sociedade n. 50, jan./jun. 2017, p. 179-207, p. 193.
5 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 436; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 338.
6 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 240; CARVALHO, Paulo de Barros. Planejamento tributário e a doutrina da prevalência da substância sobre a forma na definição dos efeitos tributários de um negócio jurídico. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Planejamento tributário. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 587.
7 ZILVETI, Fernando Aurelio. Princípios de direito tributário e a capacidade contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 134.
8 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 311.
9 VIEIRA, José Roberto. Fundamentos republicano-democráticos da legalidade tributária: óbvios ululantes e não ululantes. In: FOLMANN, Melissa (coord.). Tributação e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2006, p. 192; GONÇALVES, José Artur Lima. Planejamento tributário: certezas e incertezas. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2006. v. 10, p. 271; LEÃO, Martha. A (falta de) norma geral antiabuso no direito tributário brasileiro: entre o dever fundamental de pagar tributos e o direito de economizá-los. Revista Direito Tributário Atual v. 40. São Paulo: IBDT, 2018, p. 566.
10 GODOI, Marciano Seabra de. Tributo e solidariedade social. In: GRECO, Marco Aurélio; e GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 155.
11 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 302; ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 177.
12 VELLOSO, Andrei Pitten. Constituição tributária interpretada. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 220.
13 SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento tributário e garantias dos contribuintes: entre a norma antielisão portuguesa e seus paralelos brasileiros. In: ALMEIDA, Daniel Freire et al (org.). Garantias dos contribuintes no sistema tributário: homenagem a Diogo Leite de Campos. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 421.
14 VIEIRA, José Roberto. Legalidade tributária e medida provisória: mel e veneno. ln: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 172.
15 TORRES, Ricardo Lobo. A ideia de liberdade no estado patrimonial e no estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 14.
16 HOLMES, Stephen; e SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: Norton & Company, 2011, p. 54.
17 MURPHY, Liam; e NAGEL, Thomas. The myth of ownership: taxes and justice. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 79.
18 TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação: imunidade e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 3.
19 MORIN, Edgar. Complex thinking for a complex world: about reductionism, disjunction and systemism. Systema v. 2, n. 1, 2014, p. 14-22, p. 18.
20 FOLLONI, André. Ciência do direito tributário no Brasil: crítica e perspectivas a partir de José Souto Maior Borges. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 369.
21 KELSEN, Hans. General theory of law and state. Cambridge: Harvard University Press, 1945, p. 20; OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Formalismo e substantivismo tributário. Dever moral e obrigação jurídica. E a segurança jurídica? In: PRETO, Raquel Elita Alves. Tributação brasileira em evolução: estudos em homenagem ao Professor Alcides Jorge Costa. São Paulo: IASP, 2015, p. 516.
22 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998, p. 73.
23 BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e os deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 109.
24 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998, p. 148.
25 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously: with a new appendix, a response to critics. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 194.
26 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously: with a new appendix, a response to critics. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 169.
27 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously: with a new appendix, a response to critics. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 147.
28 DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 32.
29 ROCHA, Sergio André. O dever fundamental de pagar impostos: direito fundamental a uma tributação justa. In: GODOI, Marciano Seabra de; e ROCHA, Sergio André (org.). Dever fundamental de pagar impostos: o que realmente significa e como vem influenciando nossa jurisprudência? Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 40.
30 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously: with a new appendix, a response to critics. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 194.