Os Efeitos da Avaliação a Valor Justo de Ativos e Passivos na Apuração do ITCMD Devido no Estado de São Paulo sobre a Transmissão de Participações Societárias

The Effects of the Fair Value Evaluation of Assets and Liabilities in the Calculation of the Gift and Inheritance Tax (ITCMD) Due to São Paulo on Transmission of Companies’ Shares

Elidie Palma Bifano

Bacharel pela Faculdade de Direito da USP. Mestra e Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora no Curso de Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo – FGV e nos Cursos de Especialização da Faculdade de Direito da PUC/SP, do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT e da Escola de Direito do CEU – IICS. Advogada em São Paulo. E-mail: epb@marizsiqueira.com.br

Paulo Coviello Filho

Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Advogado em São Paulo. E-mail: paulo.coviello@marizadvogados.com.br.

Resumo

Este trabalho visa abordar controvérsia relativa aos efeitos nocivos que a avaliação de bens a valor justo, por entidades, pode gerar na apuração do ITCMD em caso de transmissão de ações ou quotas de sociedades, tendo em vista que o referido método de avaliação é feito com base em estimativas e presunções, portanto, caracterizado pela subjetividade e incerteza, não podendo impactar a apuração da base de cálculo de tributos, principalmente por ferir o princípio da capacidade contributiva, basilar do direito tributário brasileiro. A legislação do imposto sobre a renda possui disposições legais que objetivam neutralizar os efeitos da aplicação do método de avaliação a valor justo na apuração do referido tributo, providência que também deve ser implementada pela legislação do Estado de São Paulo que regulamenta o ITCMD.

Palavras-chave: ITCMD, transferência de propriedade, valor patrimonial, valor justo, capacidade contributiva.

Abstract

This paper address the controversy regarding to the harmful effects that the fair value evaluation of assets and liabilities by entities can generate in the calculation of gift and inheritance tax (ITCMD), in the case of transmission of companies’ shares, considering that this method is based on estimates and presumptions, therefore, characterized by its subjectivity and uncertainty, and must not have an impact on the calculation basis of taxes, mainly because it is contrary to the contributory capacity principle. It will be seen that the Brazilian legislation of the income tax determines the neutralization of the effects of applying the fair value, a provision that must also be implemented by the legislation of São Paulo that regulates gift and inheritance tax (ITCMD).

Keywords: Gift and Inheritance tax, property transfer, equity value, fair value, contributory capacity.

1. Introdução

O presente trabalho tem como escopo o estudo da figura da avaliação a valor justo de ativos e passivos, bem como seus eventuais efeitos no que tange à apuração do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) incidente sobre a transmissão de participações societárias. A importância do presente estudo decorre da escassez de trabalhos que tenham avaliado os efeitos que avaliações a valor justo de ativos e passivos, realizadas por entidades sujeitas às regras contábeis, possam ter na apuração da base de cálculo do ITCMD, tendo em vista que os estudos sobre o tema, em sua quase totalidade, estão direcionados aos efeitos desse método de avaliação na apuração das bases de cálculo do imposto sobre a renda da pessoa jurídica (IRPJ) e da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL).

Apenas para contextualizar, a Lei n. 11.638, de 2007, buscou adequar as normas contábeis brasileiras ao padrão internacional (International Financial Reporting Standards – IFRS). Dessa forma, o ordenamento passou a prever a avaliação de determinados ativos e passivos pelo seu valor justo, como é o caso da alínea “a” do inciso I do art. 183 da Lei n. 6.404, de 1976, com as alterações das Leis n. 11.638, de 2007, e n. 11.941, de 20091. A Lei n. 12.973, de 2014, adaptou a legislação tributária às novas práticas contábeis optando, como regra geral, pela neutralidade fiscal das mensurações de ativos e passivos a valor justo na apuração do IRPJ e da CSLL. Entretanto, apesar de a legislação federal ter buscado neutralizar os efeitos da avaliação a valor justo de ativos e passivos na apuração dos referidos tributos, não se verificou movimento similar, ao que se sabe, pelo Estado de São Paulo.

A despeito disso, a base de cálculo do ITCMD poderá ser consideravelmente impactada no caso de transmissão de participações societárias, seja por doação seja por causa mortis, em que a pessoa jurídica a que se referem as participações societárias objeto de transmissão possua elementos avaliados a valor justo em seu patrimônio, podendo haver relevante majoração ou diminuição do valor do tributo incidente na transmissão justamente em razão da referida avaliação.

O presente trabalho se iniciará com a análise da relação entre contabilidade e direito tributário. Em seguida, será analisado o instituto da avaliação de ativos e passivos a valor justo e seu tratamento tributário nas legislações do IRPJ e da CSLL. Finalmente, será abordada a problemática do presente trabalho, qual seja, os efeitos que a referida metodologia de avaliação pode causar na apuração do ITCMD incidente sobre transmissão de participações societárias, devido no Estado de São Paulo.

2. Contabilidade e Direito Tributário no Brasil

Inicialmente, é importante registrar que a contabilidade surgiu como ferramenta para mensuração da riqueza dos indivíduos. De acordo com o Pronunciamento 00 (R1), do Comitê de Pronunciamentos Contábeis2, que trata da Estrutura Conceitual Básica para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro da Contabilidade, emitido em 15 de novembro de 2011, os fatos objeto de registro pela Contabilidade são aqueles atinentes às atividades sociais de uma entidade que está submetida às regras de escrituração e elaboração de demonstrações financeiras, na forma da Lei n. 6.404, de 1976. Dessa forma, é de se inferir que a escrituração contábil e as demonstrações financeiras, elaboradas a partir desses registros, têm por objetivo trazer informações úteis aos interessados na entidade.

Com o passar do tempo, o Fisco passou a ser um dos principais usuários das informações contábeis, para viabilizar a tributação, especialmente da renda. De fato, no caso do IRPJ sempre se partiu do lucro contábil3 para a determinação do tributo a pagar e, por essa razão, ao longo do tempo, a contabilidade no Brasil foi bastante influenciada pela legislação tributária. Nesse cenário, a própria Comissão de Valores Mobiliários, CVM, há tempos já se manifestava no sentido de repelir interferências de normas estranhas à contabilidade, inclusive as fiscais, na apuração de resultados contábeis, como se observa, por exemplo, do Ofício Circular CVM/SNC/SEP n. 01/20054, item 1.9:

“A Demonstração do Resultado do Exercício e as Medições Econômicas Baseadas e não Baseadas nas Normas Contábeis

A utilização de medições econômicas não baseadas nas normas contábeis como, por exemplo, a do lucro antes dos juros, imposto de renda, depreciação e amortização – Lajida (Ebitda – earnings before interest, taxes, depreciation and amortization), ou em comentários do relatório da administração e em outras peças informativas divulgadas pelas companhias abertas, leva à necessidade de orientação sobre as condições necessárias para o entendimento destas medições pelos usuários da informação contábil. A relevância da divulgação de medições não baseadas em normas contábeis é evidente, haja vista que pretende influenciar as decisões econômicas dos usuários acrescentando elementos não previstos na estrutura dos relatórios usuais das demonstrações contábeis baseadas em princípios de contabilidade. Para ampliar a compreensão desse assunto, foi feita uma revisão dos conceitos gerais associados a esses tipos de medições para melhor compreensão pelos responsáveis da divulgação ao mercado de capitais.” (Destacamos)

A Exposição de Motivos da Lei n. 11.638, de 2007, é prova contundente desses abusos que eram praticados, distorcendo as demonstrações contábeis.

A Lei n. 6.404, de 1976, contempla determinados critérios e métodos de observância obrigatória para o registro e mensuração de itens patrimoniais de uma sociedade. O art. 177, § 2º, da referida lei, em sua redação original, já buscava afastar tais interferências na contabilidade da companhia, a qual deveria observar, “em registros auxiliares, sem modificação da escrituração mercantil e das demonstrações reguladas nesta Lei”, as determinações da legislação tributária que prescrevessem “métodos ou critérios contábeis diferentes”.

Sob o pretexto de adaptar a legislação do IRPJ às inovações da Lei n. 6.404, de 1976, foi editado o Decreto-lei n. 1.598, de 1977, o qual, em seu art. 8º, inciso I, estabelece que a pessoa jurídica deverá manter, além dos demais registros requeridos pela legislação comercial e tributária, livro de apuração do lucro real – LALUR, com o intuito de consignar os ajustes positivos e negativos na apuração do IRPJ. Tais ajustes decorrem dos diferentes procedimentos adotados pela contabilidade e pela legislação tributária.

Toda essa normatização decorria do fato de que, a despeito de Contabilidade e Direito Tributário serem disciplinas que se complementam, portanto independentes em seus objetivos, critérios e métodos, sempre foram substanciais as interferências desse ramo do direito naquela ciência. Entretanto, com a edição das Leis n. 11.638, de 2007, e n. 11.941, de 2009, foram introduzidos novos critérios, métodos e padrões contábeis, com o intuito de adequar as normas contábeis brasileiras aos padrões internacionais (IFRS), expurgando práticas próprias do Direito Tributário.

Importante destacar que as normas contábeis internacionais (IFRS) têm como principal objetivo conferir ao usuário da informação contábil maior fidedignidade acerca da situação patrimonial das entidades cujas atividades são objeto da Contabilidade, do ponto de vista prospectivo, ou seja, com ênfase no seu futuro. Essa é a grande inovação trazida pelos IFRS para a Contabilidade.

Como a partir da edição da Lei n. 11.638, de 2007, a Contabilidade ganhou independência do Direito Tributário, para tornar efetivo esse distanciamento e dar-lhe aplicabilidade, o ordenamento passou a prever a “neutralidade tributária” das novas práticas contábeis, inclusive em observância ao pretendido na Exposição de Motivos da Lei n. 11.638, de 2007, assim introduzindo a Lei n. 11.941, de 2009, que inaugurou o Regime Tributário de Transição (RTT). Esse regime de transição foi extinto com o advento da Lei n. 12.973, de 2014. A ementa desse diploma legal esclarece ter sido ele editado com o objetivo de alterar a legislação tributária e adaptá-la a novas práticas contábeis, dispondo, ainda, o seu art. 1º, que o IRPJ, a CSL, a contribuição ao PIS e a COFINS serão determinados segundo as normas da legislação então vigente (até 13 de maio de 2014), com as alterações introduzidas pela própria Lei n. 12.973.

Vale ressaltar que a Lei n. 12.973, de 2014, também buscou, a partir dos ajustes lá previstos, conferir efeito neutro às novas normas contábeis, via subcontas, conquanto esse efeito não se tenha concretizado por inteiro.

Diante desse contexto, pode-se afirmar que, atualmente, a Contabilidade e o Direito Tributário são independentes, mas seguem se inter-relacionando. A despeito disso, para fins de tributação sempre devem prevalecer os princípios e normas previstos na legislação de regência, não sendo admissível que normas contábeis impliquem incidências tributárias indevidas, contrariando a segurança jurídica, a capacidade contributiva e outros princípios e regras que regem esse ramo do direito.

3. A avaliação a valor justo

Para iniciar a presente análise, importa destacar que o processo contábil está dividido em três diferentes etapas: (i) reconhecimento; (ii) mensuração; e (iii) evidenciação. O reconhecimento, primeira etapa, é o momento de avaliação das transações praticadas pela pessoa jurídica, com a respectiva definição da sua natureza. A mensuração é a avaliação da correta quantificação da transação. Por fim, a evidenciação é a demonstração da transação para os usuários externos das demonstrações financeiras5.

A avaliação a valor justo é uma técnica de mensuração dos ativos e passivos, que objetiva determinar o valor pelo qual determinado item do patrimônio da entidade será reconhecido. O Pronunciamento Conceitual Básico (R1) do Comitê de Pronunciamentos Contábeis define a mensuração como “o processo que consiste em determinar os montantes monetários por meio dos quais os elementos das demonstrações contábeis devem ser reconhecidos e apresentados no balanço patrimonial e na demonstração do resultado. Esse processo envolve a seleção da base específica de mensuração”.

No Brasil, antes das alterações promovidas pelas Leis n. 11.638, de 2007, e n. 11.941, de 2009, a mensuração dos elementos do patrimônio, via de regra, se fazia pelo (i) método do custo histórico, segundo o qual os elementos são registrados pelo valor original histórico, e pelo (ii) valor de realização. De acordo com o Pronunciamento n. 00, o custo histórico segue sendo a base de mensuração mais comumente adotada pelas entidades na elaboração de suas demonstrações contábeis, entretanto, outros modelos e conceitos podem ser considerados mais apropriados para atingir o objetivo de proporcionar informações que sejam úteis para tomada de decisões econômicas6. Outro método suscetível de adoção, de acordo com o CPC, seria, além do custo histórico original, o custo histórico ajustado ou valor justo que contempla, sem dúvida, o valor de realização.

Apesar de proporcionarem objetividade e segurança às demonstrações financeiras, os métodos do custo histórico e da realização impõem grandes limitações aos usuários das demonstrações financeiras, tendo em vista que tais métodos não retratam as efetivas mudanças no patrimônio das entidades. De fato, por serem estáticos, o custo histórico ancorado no momento da aquisição e valor de realização voltado a momento futuro, esses métodos não demonstram as variações de valor dos itens patrimoniais da entidade, prejudicando sobremaneira o usuário externo das informações.

Esse cenário de incerteza foi extirpado com a edição das novas normas contábeis que passaram a prever a adoção da avaliação a valor justo como método de mensuração de boa parte dos itens patrimoniais.

O valor justo é, em resumo, o preço que seria obtido na venda de um ativo ou que seria pago na liquidação de um passivo em condições de mercado normais, sem quaisquer condições de favorecimento. Deve-se ressaltar que valor justo não é sinônimo de valor de mercado, pois o mercado nem sempre atribui o valor correto a determinado ativo ou passivo, além do que o mercado pode estar afetado por condições especiais que podem nunca mais se repetir. Assim, a avaliação a valor justo visa estimar uma transação não forçada entre participantes do mercado, em situações normais, ao passo que no mercado é possível que condições excepcionais propiciem favorecimento de determinada parte no negócio. Ademais, para certos itens não há mercado observável, de modo que a utilização da expressão valor de mercado também não seria apropriada.

O § 3º do art. 182 e o § 1º do art. 183, ambos da Lei n. 6.404, de 1976, são os responsáveis por orientar a utilização da avaliação a valor justo pelas sociedades anônimas, valendo a transcrição desses dispositivos:

“§ 3º Serão classificadas como ajustes de avaliação patrimonial, enquanto não computadas no resultado do exercício em obediência ao regime de competência, as contrapartidas de aumentos ou diminuições de valor atribuídos a elementos do ativo e do passivo, em decorrência da sua avaliação a valor justo, nos casos previstos nesta Lei ou, em normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários, com base na competência conferida pelo § 3º do art. 177 desta Lei.

[...]

Art. 183. No balanço, os elementos do ativo serão avaliados segundo os seguintes critérios:

[...]

§ 1º Para efeitos do disposto neste artigo, considera-se valor justo:

a) das matérias-primas e dos bens em almoxarifado, o preço pelo qual possam ser repostos, mediante compra no mercado;

b) dos bens ou direitos destinados à venda, o preço líquido de realização mediante venda no mercado, deduzidos os impostos e demais despesas necessárias para a venda, e a margem de lucro;

c) dos investimentos, o valor líquido pelo qual possam ser alienados a terceiros.

d) dos instrumentos financeiros, o valor que pode se obter em um mercado ativo, decorrente de transação não compulsória realizada entre partes independentes; e, na ausência de um mercado ativo para um determinado instrumento financeiro:

1) o valor que se pode obter em um mercado ativo com a negociação de outro instrumento financeiro de natureza, prazo e risco similares;

2) o valor presente líquido dos fluxos de caixa futuros para instrumentos financeiros de natureza, prazo e risco similares; ou

3) o valor obtido por meio de modelos matemático-estatísticos de precificação de instrumentos financeiros.”

O § 3º do art. 182 determina que as contrapartidas dos aumentos ou diminuições de valor atribuídos a itens patrimoniais (ativo ou passivo), em decorrência de avaliação a valor justo, enquanto não computadas no resultado7, devem ser registradas no patrimônio líquido, na conta de ajustes de avaliação patrimonial. O § 1º do art. 183, por sua vez, possui diretrizes sobre a própria realização da avaliação a valor justo pelas entidades.

Há uma série de Pronunciamentos Contábeis que tratam do valor justo, sendo que, para a finalidade do presente trabalho, será objeto de análise o Pronunciamento Técnico CPC 46, já mencionado acima, que trata exclusivamente desse tema. Conforme estabelece o Pronunciamento Técnico CPC 46 “valor justo é o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada no mercado principal (ou mais vantajoso) na data de mensuração nas condições atuais de mercado (ou seja, um preço de saída), independentemente de esse preço ser diretamente observável ou estimado utilizando-se outra técnica de avaliação”.

O item 11 do Pronunciamento determina que a mensuração do valor justo do ativo considere a condição e localização do ativo, bem como restrições, se houver, para a sua venda ou uso. O item 15 do Pronunciamento dispõe que, para mensuração do valor justo, a entidade deve presumir que o ativo ou o passivo estão sendo trocados em transação não forçada entre participantes do mercado para a venda do ativo ou a transferência do passivo. Para tanto, conforme item 16, a entidade deve presumir que a transação para venda do ativo ou transferência do passivo se dá no mercado principal do ativo ou do passivo ou, na ausência de mercado principal, no mais vantajoso.

De acordo com o item 20 do Pronunciamento CPC 46, a entidade não precisa ser capaz de vender o ativo específico ou transferir o passivo específico na data de mensuração para que possa mensurar o valor justo com base no preço desse mercado, devendo, contudo, ser capaz de acessar o mercado. Essa disposição se deve ao fato de a mensuração do valor justo ser uma estimativa. Afora isso, o item 21 determina que a mensuração do valor justo deve presumir a realização de uma transação.

Com a finalidade de aumentar a consistência e a comparabilidade das mensurações a valor justo, o Pronunciamento estabelece a hierarquia de valor justo, a qual é dividida em três níveis (Nível 1, Nível 2 e Nível 3). Segundo o referido Pronunciamento, em seu item 72, a hierarquia de valor justo tem como prioridade os preços cotados em mercados ativos para ativos ou passivos idênticos, o que visa dar maior confiabilidade à avaliação (Nível 1). Na sequência, no Nível 2 podem ser usadas informações que são observáveis para o ativo ou passivo, seja direta ou indiretamente, exceto preços cotados incluídos no Nível 1. Por fim, o Nível 3 se vale de informações, método que é influenciado significativamente pelo subjetivismo.

Feitas essas considerações, pode-se notar que a avaliação de ativos e passivos a valor justo é um critério de mensuração pautado em estimativas e presunções, caracterizado pela subjetividade e pela incerteza. Esses dois aspectos combinados podem gerar efeitos indesejáveis, seja do ponto de vista societário e financeiro, seja do ponto de vista tributário.

4. ITCMD incidente na transmissão de participações societárias no Estado de São Paulo

Nos termos do art. 155, inciso I, da Constituição Federal, compete aos Estados instituírem impostos sobre “transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos”. O presente trabalho focará a análise da questão sob o prisma, exclusivamente, da legislação do Estado de São Paulo.

O Código Tributário Nacional – CTN não trata especificamente do ITCMD, sendo que apenas o parágrafo único do art. 35 faz menção à transmissão causa mortis de bens imóveis e direitos a eles relativos. Leandro Paulsen8 ensina que “Transmissão é transferência jurídica, implicando a sucessão na titularidade do bem ou direito. Será causa mortis quando ocorra por força do falecimento real ou presumido do titular. [...] A doação também implica transferência de titularidade de bem ou direito, mas decorrente ato jurídico inter vivos a título gratuito.”

Do CTN, entretanto, é possível extrair que a base de cálculo do tributo incidente sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos (ITBI) é o valor venal do bem (art. 38). O mesmo, diga-se, ocorre para o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU), conforme art. 33 do mesmo CTN. Assim, não há dispositivo nesse diploma legal relativo à base de cálculo no caso de bens móveis.

Nesse contexto, considerando que participações societárias são bens móveis, a principal referência para o trato da matéria está nas disposições contidas, em nosso caso, na legislação do Estado de São Paulo, Lei Estadual n. 10.705, de 2000, e Decreto n. 46.655, de 2002. O art. 2º da referida Lei dispõe que o imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito por sucessão legítima ou testamentária ou por doação. No que tange à base de cálculo, o art. 9º dessa Lei Estadual estabelece que ela é o valor venal do bem ou direito transmitido, sendo que o § 1º estabelece que “considera-se valor venal o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do ato ou contrato de doação”.

No caso de bens móveis, aqui incluídas as participações societárias, deve-se observar o disposto no art. 14 da referida lei, o qual vai transcrito abaixo:

“Artigo 14. No caso de bem móvel ou direito não abrangido pelo disposto nos artigos 9º, 10 e 13, a base de cálculo e o valor corrente de mercado do bem, título, crédito ou direito, na data da transmissão ou do ato translativo.

§ 1º A falta do valor de que trata este artigo, admitir-se-á o que for declarado pelo interessado, ressalvada a revisão do lançamento pela autoridade competente, nos termos do artigo 11.

§ 2º O valor das ações representativas do capital de sociedades é determinado segundo a sua cotação média alcançada na Bolsa de Valores, na data da transmissão, ou na imediatamente anterior, quando não houver pregão ou quando a mesma não tiver sido negociada naquele dia, regredindo-se, se for o caso, até o máximo de 180 (cento e oitenta) dias.

§ 3º Nos casos em que a ação, quota, participação ou qualquer título representativo do capital social não for objeto de negociação ou não tiver sido negociado nos últimos 180 (cento e oitenta) dias, admitir-se-á o respectivo valor patrimonial.” (Destaques nossos)

Ou seja, em caso de inexistência de negociação do título patrimonial em bolsa de valores, situação em que o valor de mercado é determinado a partir da cotação média da ação, a lei admite, expressamente, o uso do valor patrimonial das participações societárias. Ora, é importante registrar que inexiste na legislação definição expressa sobre o que deve ser considerado “valor patrimonial”. Desse modo, inexistindo definição expressa em lei, o termo empregado deve ser interpretado em seu sentido comum, nos termos estabelecidos pela alínea “a” do inciso I do art. 11 da Lei Complementar n. 95, de 19989.

Nesse cenário, parece-nos que a melhor definição para tal expressão seja o valor correspondente ao valor do patrimônio líquido da sociedade no momento da ocorrência do fato gerador, pois a expressão valor patrimonial parece remeter ao conceito jurídico e contábil de patrimônio líquido, conforme definição do art. 182 da Lei n. 6.404, de 1976.

Embora não vinculadas ao tema sob análise, o ITCMD, há outras situações no sistema jurídico brasileiro que exigem a aplicação ao valor patrimonial de participações societárias. Assim, no CBE – Manual da declaração10, o Banco Central do Brasil define valor patrimonial exatamente dessa forma:

“Valor patrimonial: se a empresa investida não tiver ações cotadas em bolsa, informar aqui, na moeda original, selecionada no campo ‘Moeda do investimento’, o valor total do patrimônio líquido da investida ponderado pelo percentual detido pelo declarante residente. Ou seja, a parcela do patrimônio líquido calculada proporcionalmente à participação detida.”

Apesar de não possuir competência para definir o conceito da referida expressão, essa manifestação do Banco Central do Brasil pode ser útil como orientação e diretriz no caso presente, para definição do alcance e conteúdo de determinada expressão não conceituada pela legislação específica, do ITCMD, tendo em vista que a definição em questão está de acordo com o sentido comum da expressão, portanto, de acordo com as disposições da Lei Complementar n. 95, de 1998, acima comentadas.

Importa destacar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui entendimento pacífico nesse sentido:

“Apelação cível – mandado de segurança. Preliminares de inadequação da via eleita/impossibilidade jurídica do pedido afastadas. Não se trata de impetração de mandado de segurança contra lei em tese, mas procedimento administrativo baseado em ato normativo infralegal (decreto) que teria extrapolado sua função regulamentar – Base de cálculo do imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD). Quotas de sociedade limitada valor patrimonial. Legislação que não especifica se deve ser utilizado o valor patrimonial contábil ou o valor patrimonial real da quota; ausência de previsão legal que determine que o valor patrimonial da quota a ser utilizado como base de cálculo do ITCMD seja o valor patrimonial real, de forma que deve ser aceito o valor patrimonial contábil utilizado pelos impetrantes. Ausência de vedação legal à utilização do valor patrimonial contábil da quota no cálculo do ITCMD. Sentença mantida. Reexame necessário e recurso voluntário da Fazenda Estadual improvidos.”

(TJSP, Apelação Cível n. 1005874-91.2016.8.26.0032, Rel. Maria Laura Tavares, 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, j. 18.12.2017, data de publicação: 02.02.2018)11

Superada a questão relativa à definição do valor patrimonial, sendo pacífico que esse valor deve ser apurado a partir da representatividade da participação societária objeto da transferência perante o patrimônio líquido da pessoa jurídica, passa-se a analisar situação em que o patrimônio líquido da sociedade, cujas participações societárias são objeto de transferência, está influenciado pelo resultado de avaliação a valor justo de ativos e passivos da sociedade.

Conforme exposto, o § 3º do art. 182 da Lei n. 6.404, de 1976, estabelece que as contrapartidas dos aumentos ou diminuições de valor atribuídos a itens patrimoniais (ativo ou passivo), em decorrência de avaliação a valor justo, enquanto não computadas no resultado, devem ser registradas no patrimônio líquido, na conta de ajustes de avaliação patrimonial. Destaque-se que nem a própria contabilidade autoriza o cômputo do fruto dessa avaliação em resultado, portanto como suscetível de partição entre os sócios, enquanto não realizado.

Em outras palavras, a questão que se coloca no presente momento é a seguinte: a avaliação a valor justo de itens do ativo e do passivo da sociedade deve refletir na apuração da base de cálculo do ITCMD no caso de transmissão de participação societária? A resposta para tal pergunta é negativa, eis que admitir que a avaliação a valor justo de ativos e passivos de determinada sociedade implica majoração ou diminuição da base de cálculo do ITCMD atentando contra o princípio da capacidade contributiva, um dos fundamentos da ordem tributária vigente no Brasil.

Ora, como já se disse, a avaliação a valor justo nada mais é que uma estimativa efetuada pela pessoa jurídica, em negócio futuro, do valor de determinado ativo. Como toda e qualquer estimativa, destarte, essa avaliação está sujeita à incerteza e subjetividade. Realmente, conforme restou devidamente demonstrado no item anterior, as estimativas feitas para avaliação a valor justo possuem grau inerente de subjetividade.

Não por outra razão é que a legislação do IRPJ buscou dar efeito neutro à avaliação a valor justo, conforme se verifica, por exemplo, dos arts. 13 a 19 da Lei n. 12.973, de 2014, segundo os quais os ganhos e perdas decorrentes da avaliação a valor justo somente devem integrar a apuração do lucro real na medida em que o ativo correspondente for realizado, inclusive mediante depreciação, amortização ou exaustão, ou quando o passivo for liquidado ou baixado.

Esses dispositivos são coerentes com toda a sistemática de apuração do IRPJ, que tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica da renda, nos termos do art. 43 do CTN, que a melhor doutrina entende como a concretização do princípio da realização da renda12.

É importante destacar que a realização da renda está intimamente ligada à ideia de capacidade contributiva, princípio regente do direito tributário brasileiro, ainda com sustentação na já referida doutrina13. E é justamente nesse contexto que se insere o tratamento conferido pela Lei n. 12.973, de 2014, para as avaliações a valor justo. Assim, não se pode admitir a tributação de ganho reconhecido por mera avaliação de ativo, como é o caso da avaliação a valor justo, assim como também não se admite que perdas estimadas, provisórias, afetem a apuração desse tributo. Portanto, o tratamento conferido pela Lei n. 12.973, de 2014, à avaliação a valor justo está em total consonância com os princípios que fundamentam o imposto sobre a renda.

Conquanto ITCMD e imposto sobre a renda tenham materialidades diversas, não parece razoável que a legislação do IRPJ, tributo que possui como materialidade a renda disponível, tenha rejeitado, expressamente, a possibilidade de tributar ganhos potenciais e estimados, por não representarem efetivos acréscimos patrimoniais, que o ITCMD, tributo que incide sobre a transmissão de bens e direitos incorporados ao patrimônio das pessoas, possa sobre ele incidir. Isto porque, em raciocínio extremado, se determinado valor não é renda para fins de IRPJ, tampouco poderia ser considerado como riqueza integrante do valor do bem para definição da base de cálculo da exação sobre a transmissão do bem, sob pena de, da mesma forma, ferir o princípio da capacidade contributiva.

Realmente, admitir que o ITCMD incida sobre patrimônio líquido inflado ou diminuído pelo efeito da avaliação a valor justo de ativos e passivos fere frontalmente o princípio da capacidade contributiva, pois incide sobre valor estimado da participação societária objeto da transmissão, cuja realização está diferida para momento futuro, que não aquele em que o ITCMD incide. Tampouco socorre o argumento de que o balanço patrimonial elaborado com base nas novas normas contábeis representa de forma mais fidedigna o valor de mercado das participações societárias. Sua visão prospectiva do patrimônio da pessoa jurídica, baseada na expectativa de geração de fluxos de caixa futuros, cuja realização não se pode aferir, contraria todos os fundamentos do direito tributário nacional.

Com isso, o balanço patrimonial apurado de acordo com as novas regras contábeis mostra-se imprestável para a apuração da base de cálculo do ITCMD, tendo em vista que os valores inseridos na demonstração financeira, além de refletirem o subjetivismo responsável do contador, não representam o valor real da empresa no momento da ocorrência do fato gerador desse tributo, mas sim um valor futuro. A base de cálculo de qualquer tributo deve refletir a capacidade contributiva do sujeito passivo no momento da ocorrência do fato gerador, independentemente de eventuais expectativas futuras. Assim, avaliações de ativos e passivos a valor justo, mera estimativa antecipada de ganho ou perda que pode vir ou não a se concretizar futuramente, não podem interferir na apuração da base de cálculo do ITCMD, sob pena de se ferir o princípio da capacidade contributiva.

O ITCMD, como visto acima, além de incidir sobre a transmissão de bem ou direito, tem como base de cálculo o valor venal desse bem ou direito. Dessa forma, não se pode admitir a incidência do ITCMD sobre valor patrimonial impactado por avaliação a valor justo de ativo ou passivo, sob pena de o ITCMD incidir sobre valor potencial, que pode ou não vir a concretizar-se.

Nesse cenário, é importante traçar um paralelo com a legislação do imposto sobre a renda que, tomando o mesmo fato, prevê como hipótese de incidência a transferência de direito de propriedade no caso de herança, legado ou doação em adiantamento da legítima, efetivada a valor de mercado, sendo base de cálculo dessa exação a diferença entre o valor de mercado e o valor constante na declaração do doador ou do de cujus. O tema é tratado no art. 23 da Lei n. 9.532, de 1997:

“Art. 23. Na transferência de direito de propriedade por sucessão, nos casos de herança, legado ou por doação em adiantamento da legítima, os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.

§ 1º Se a transferência for efetuada a valor de mercado, a diferença a maior entre esse e o valor pelo qual constavam da declaração de bens do de cujus ou do doador sujeitar-se-á à incidência de imposto de renda à alíquota de quinze por cento.”

Assim, nas hipóteses acima listadas, a diferença entre valor de mercado e o valor registrado em declaração, nos termos do mencionado dispositivo, será objeto de incidência do imposto sobre a renda. O detalhe que faz a diferença é sutil, pois quando se transfere bem por valor de mercado, se dá por realizada a renda, pelo valor transacionado, de tal sorte que o beneficiado recebe o item pelo valor praticado na operação, devidamente majorado. Trata-se de acréscimo patrimonial decorrente do aumento do valor do bem originalmente registrado pelo doador ou de cujus em comparação com o valor que será registrado pelo herdeiro, legatário ou donatário.

Diferentemente, no caso do ITCMD o tributo deve ser calculado sobre o valor venal do bem, sendo inadmissível que a base de cálculo seja afetada por mera expectativa ou estimativa de valor de mercado de determinado bem o qual tampouco se realiza com a transmissão do bem, visto que é mera metodologia.

De fato, a materialidade do ITCMD é a transferência do direito, não podendo se admitir base de cálculo que considere estimativa ou expectativa de valor do referido direito, a qual ainda não foi concretizada, e tampouco se sabe se o será. Argumento que se adiciona é que o valor venal não se confunde com o valor de venda, valor de mercado presente, que é base de cálculo de outros tributos, como por exemplo o ITBI, na venda de bens imóveis. Enquanto não incorporado ao item patrimonial que se transfere, o ajuste a valor justo não se constitui em materialidade para fins de ITCMD.

Em outras palavras, além de ferir o princípio da capacidade contributiva, admitir que a base de cálculo do ITCMD sofra interferência da avaliação a valor justo de ativos e passivos pela pessoa jurídica contraria a própria materialidade do referido tributo, o que evidencia o descabimento da referida incidência.

5. Jurisprudência

Em pesquisa de jurisprudência realizada, não foram identificadas decisões que tenham analisado, especificamente, a controvérsia objeto do presente trabalho. Entretanto, foi identificada decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível n. 1019573-57.2014.8.26.0053, que tem relação com o tema sob discussão. Confira-se a ementa da decisão:

“Apelação. Ação anulatória de débito fiscal. ITCMD. Base de cálculo. Quotas de sociedade limitada. Valor patrimonial. Lei Estadual nº 10.705/00, com alterações da Lei nº 10.992/2001, que não determina o valor patrimonial da quota a ser utilizado como base de cálculo do imposto. Inexistência de proibição legal à utilização do valor patrimonial contábil utilizado pela autora. Precedentes. Sentença de improcedência reformada. Recurso provido.” (TJSP, Apelação Cível n. 1019573-57.2014.8.26.0053, Rel. Heloísa Martins Mimessi, 5ª Câmara de Direito Público, Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 2ª Vara de Fazenda Pública, j. 12.12.2016, data de registro: 14.12.2016)

Segundo consta do relatório da decisão, o processo em questão era decorrente de ação anulatória de débito fiscal ajuizada por contribuinte em face da Fazenda do Estado de São Paulo, objetivando a desconstituição de auto de infração lavrado em razão de o contribuinte, supostamente, ter deixado de pagar o ITCMD, pelo fato de ter sido atribuído valor inferior ao de mercado à doação de participações societárias, eis que a fiscalização utilizou o valor de mercado dos bens imóveis de propriedade da pessoa jurídica cujas participações societárias foram objeto da doação.

Em sua defesa o contribuinte alegou, em síntese, que a base de cálculo do ITCMD é o valor patrimonial das próprias quotas, não havendo exigência legal de avaliação pericial de bens entregues pelos sócios para realização de capital subscrito nas sociedades limitadas, daí a afronta ao princípio da legalidade.

A 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo assim se manifestou:

“Nessa medida, inexiste previsão legal que obrigue a sociedade limitada a utilizar o valor de mercado de seus ativos na elaboração de seu balanço patrimonial, ao contrário do decidido pelo Juízo de Primeiro Grau, sendo de rigor que se acolha a utilização do valor patrimonial contábil utilizado pela autora.

Em caso análogo, já decidiu esta 5ª Câmara de Direito Público, por voto de lavra da E. Des. Maria Laura Tavares, j. 10.08.2015:

[...] O valor patrimonial é o resultado da divisão do patrimônio líquido da sociedade pelo número de quotas em que se fraciona o capital social desta. O patrimônio líquido da sociedade, entretanto, varia em função dos critérios adotados na elaboração do balanço patrimonial.

No balanço patrimonial, a avaliação dos bens imobilizados do ativo pode ocorrer pelo ‘custo de aquisição’, caso em que se chegará a um valor patrimonial contábil da quota, ou pelo ‘valor de mercado’, com em que o valor patrimonial da quota será real.

A Lei Estadual nº 10.705/00, com alterações da Lei nº 10.992/2001, não esclarece se o valor a ser utilizado como base de cálculo do ITCMD é o valor patrimonial contábil ou o valor patrimonial real das quotas. Por se tratar de sociedade limitada, não há previsão legal que obrigue a Curralinho Agropecuária Participações Ltda. a utilizar o valor de mercado de seus ativos na elaboração de seu balanço patrimonial.

Ademais, a praxe contábil brasileira, ao contrário dos padrões internacionais, tende a utilizar os valores contábeis de entrada (custo) na elaboração do balanço patrimonial das sociedades. Em que pesem as críticas a essa prática, é certo que, para o caso da impetrante Curralinho, ainda não há regra que imponha a observância dos padrões internacionais de contabilidade. [...] Anote-se, ainda, que mesmo se o valor patrimonial das quotas a ser utilizado no caso fosse o valor real, seria necessária a elaboração de um balanço de determinação, e não a simples utilização do valor de mercado dos imóveis, como fez a autoridade fiscal. [...]”

Como se percebe, no caso em tela a decisão rechaçou a pretensão do Fisco de arbitrar o valor das participações societárias a partir da reavaliação dos imóveis de propriedade da pessoa jurídica cujas participações societárias foram objeto de doação. A despeito disso, merece ser analisada com cautela a afirmação da decisão no sentido de que a partir da avaliação dos bens a valor de mercado seria possível identificar o valor patrimonial real das participações societárias.

Outra decisão que merece comentário é aquela proferida no julgamento da Apelação Cível n. 1024410-52.2017.8.26.0506, oportunidade em que o Tribunal de Justiça de São Paulo manifestou entendimento no sentido de que, no caso de doação de ações, a base de cálculo poderia ser verificada a partir de valor determinado na venda das ações realizadas pelo donatário logo após o recebimento das ações. Apesar de ser discutível a admissibilidade de utilização de um valor apurado após o fato gerador, o que parece contrariar o art. 144 do CTN, no caso o valor de mercado foi apurado a partir de dado efetivamente existente, não havendo que se falar em estimativa efetuada a partir de avaliação a valor justo, a qual pode nunca se concretizar. Em outras palavras, é admissível a adoção do valor de mercado da ação ou quota quando se trata de título com alta liquidez, caso das ações negociadas em bolsa ou que foram negociadas nos últimos 180 dias.

Em linha com o raciocínio defendido no presente trabalho, merece destaque decisão que rechaçou a tentativa da Fazenda Estadual de arbitrar o valor de mercado de quotas ou ações representativas do capital social de pessoa jurídica a partir do valor de mercado dos bens que compõem o patrimônio da pessoa jurídica. Confira-se:

“Apelação e Reexame Necessário – Mandado de Segurança– ITCMD – Doação de quotas de capital social – Base de cálculo do tributo – Cálculo que deve recair sobre o valor patrimonial das ações e não o ativo que integra o patrimônio da empresa – Exegese do art. 14, parágrafo 3º, da Lei 10.705/2000 – Complementação do recolhimento do referido tributo – Inadmissibilidade – Observância ao princípio da legalidade – Presença do direito líquido e certo – Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça – Sentença de concessão da ordem mantida – Recursos oficial e voluntário improvidos.” (TJSP, Apelação Cível n. 1005873-09.2016.8.26.0032, Rel. Marcelo L. Theodósio, 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, j. 19.06.2018, data de publicação: 05.07.2018)14

A decisão acima destaca de forma correta que a base de cálculo do ITCMD, no caso de transferência de quota ou ação, é o valor patrimonial do título representativo do capital social, não podendo ser ajustado pelo valor de mercado de ativo que integra o patrimônio da pessoa jurídica. Esse raciocínio é inteiramente aplicável à questão do valor justo, que nada mais é que uma avaliação do bem que integra o patrimônio da pessoa jurídica a valor de mercado.

É bem verdade que seria possível alegar que estando registrado no patrimônio líquido da empresa, em conta de ajuste de avaliação patrimonial, a avaliação a valor justo dos itens do patrimônio da empresa deve ser considerada na determinação do valor patrimonial da quota ou ação, para fins de apuração da base de cálculo do ITCMD. No entanto, conforme visto nos tópicos acima, a avaliação a valor justo não passa de uma estimativa, de modo que não pode interferir na apuração da base de cálculo do tributo, seja ela positiva ou negativa.

6. Conclusões

O presente trabalho objetivou examinar os efeitos da avaliação a valor justo de itens patrimoniais das pessoas jurídicas, na apuração da base de cálculo do ITCMD incidente na transmissão de participações societárias em caso de doação ou causa mortis, no Estado de São Paulo.

Verificou-se que a avaliação a valor justo é um método contábil de mensuração de itens patrimoniais que visa aproximar o valor de um certo item, registrado contabilmente, ao seu valor provável de realização. No entanto, a referida avaliação não passa de uma estimativa, que pode ou não vir a se realizar no futuro podendo, inclusive, não se concretizar ou até mesmo, em havendo concretização, ser totalmente equivocada.

Assim é que não se pode admitir que avaliações a valor justo de ativos e passivos da pessoa jurídica afetem a base de cálculo do ITCMD, no caso de transmissão de participações societárias, devendo, consequentemente, haver o expurgo desses valores a partir de elaboração de balanço patrimonial contemplando ajustes voltados exclusivamente à apuração do tributo devido. Nesse contexto, ainda que a pessoa jurídica esteja obrigada a avaliar seus itens patrimoniais pelo valor justo, é necessário que se elabore um balanço patrimonial para cálculo do ITCMD incidente na transmissão o qual afaste o valor justo.

Nesse caso, é essencial que as autoridades fiscais estaduais implementem ações no sentido de neutralizar os efeitos dessa metodologia, como foi feito para os tributos federais, sob pena de exigirem que o ITCMD seja calculado em desconformidade com os princípios constitucionais a ele aplicáveis. É importante, acima de tudo, que essas medidas sejam rapidamente adotadas, sob pena de graves prejuízos serem gerados para os contribuintes.

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1 Essa disposição legal trata da avaliação, para fins de registro contábil, de instrumentos financeiros, direitos e títulos de crédito.

2 Órgão encarregado por lei de estudar e emitir manifestações sobre práticas e políticas contábeis no Brasil.

3 Veja-se, por exemplo, Decreto-lei n. 5.844, de 1943, art. 32.

4 Anualmente a CVM publica tais orientações com o fito de uniformizar práticas no mercado.

5 Veja-se www.cpc.org,br, Pronunciamento Conceitual Básico (R1) Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro.

6 Veja-se www.cpc.org.br.

7 O cômputo em resultado exige que o valor justo se realize em transações, no mercado, envolvendo os itens objeto de avaliação.

8 PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário: completo. 6. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 45.

9 “Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

I – para a obtenção de clareza:

a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando; [...].”

10 <https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/legado?url=https:%2F%2Fwww4.bcb.gov.br%2Frex%2FCBE%2FAjuda%2Fajuda.asp#portfolioparticipacao>. Acesso em: 1º mar. 2019, às 18h51min.

11 Nesse sentido veja-se: TJSP, Apelação Cível n. 1001267-48.2016.8.26.0060; TJSP, Apelação/Remessa Necessária n. 1015410-33.2014.8.26.0506.

12 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 373 a 375.

POLIZELLI, Victor Borges. O princípio da realização da renda. Reconhecimento de receitas e despesas para fins do IRPJ. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 31.

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13 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 373 a 375.

POLIZELLI, Victor Borges. O princípio da realização da renda. Reconhecimento de receitas e despesas para fins do IRPJ. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 31.

14 Veja-se no mesmo sentido: TJSP, Apelação/Remessa Necessária n. 1015410-33.2014.8.26.0506, de 8 de março de 2017; TJSP, Apelação Cível n. 1004565-06.2014.8.26.0032, de 28 de julho de 2015.