Interpretação, Vigência e Eficácia das Normas Jurídicas – a Função dos Regulamentos – o Caso do Art. 129 da Lei n. 11.196

Ricardo Mariz de Oliveira

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT.

Resumo

Este artigo destina-se a esclarecer dúvidas tratadas em Mesas de Debates do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, e que motivaram seu autor a uma pesquisa e uma interpretação mais intensas. O tema central é o art. 129 da Lei n. 11.196, relativo ao imposto de renda, mas suscita diversas indagações relacionadas à interpretação aplicada das normas jurídicas, tendo transbordado para a vigência e a eficácia dessas normas e a função dos regulamentos tributários baixados por decretos.

Palavras-chave: interpretação, remissão, vigência, eficácia, regulamento tributário.

Abstract

This article aims to clarify doubts which were discussed at IBDT’s Mesas de Debates and suggested this author to do a more detailed research and interpretation of the law. The main object is article 129 of Law 11.196 about the income tax, but it arises several issues regarding the actual interpretation of the law, its enforcement and the function of tax regulations issued by decrees (not laws).

Keywords: interpretation, reference, enforcement, tax regulation.

Vigência e eficácia das normas jurídicas correspondem a tema que, apesar da sua alta importância, suscita debates interessantes que ultrapassam a intepretação e a aplicação dos princípios constitucionais relativos à irretroatividade e à anterioridade das leis que criem ou aumentem tributos.

No cotidiano, enfrentamos outras indagações e situações muitas vezes mais complexas, como esta que aqui será exposta, e que foi objeto de discussões nas Mesas de Debates do IBDT realizadas nos dias 6 e 13 de junho de 2019: trata-se do art. 129 da Lei n. 11.196, de 21 de novembro de 2005.

Ao mesmo tempo em que a abordagem do tema central for feita, será preciso aplicar a correta interpretação das normas jurídicas, não para tratar de interpretação em tese, mas no sentido de interpretar aplicando os melhores métodos de exegese jurídica, sem que estes tenham que ser expostos, porque se pressupõe que sejam amplamente conhecidos. Ao mesmo tempo, também será possível e necessário aplicar preceitos referentes à vigência e eficácia das normas legais, ao lado da consideração das normas pertinentes ao papel desempenhado pelos regulamentos tributários.

Tudo isto está envolvido na (e é necessário para a) exata compreensão da norma do art. 129 da Lei n. 11.196, como teremos oportunidade de ver.

Essa norma legal veio estabelecer, para fins fiscais e previdenciários no âmbito federal, o regime aplicável a determinados serviços prestados por pessoas jurídicas, visando pacificar inúmeros litígios que então existiam (e ainda existem), nos quais a fiscalização federal não reconhece a condição de pessoa jurídica e pretende tratar como pessoa física.

O artigo que a exprime foi introduzido no direito positivo durante a tramitação da Medida Provisória n. 255, de 1º de julho de 2005, e recebeu a seguinte redação1:

“Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.”

O art. 129 continha um parágrafo único, que foi vetado e tinha a seguinte redação:

“Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica quando configurada relação de emprego entre o prestador de serviço e a pessoa jurídica contratante, em virtude de sentença judicial definitiva decorrente de reclamação trabalhista.”

Contudo, esse parágrafo foi vetado sob a seguinte justificativa: “O parágrafo único do dispositivo em comento ressalva da regra estabelecida no caput a hipótese de ficar configurada relação de emprego entre o prestador de serviço e a pessoa jurídica contratante, em virtude de sentença judicial definitiva decorrente de reclamação trabalhista. Entretanto, as legislações tributária e previdenciária, para incidirem sobre o fato gerador cominado em lei, independem da existência de relação trabalhista entre o tomador do serviço e o prestador do serviço. Ademais, a condicionante da ocorrência do fato gerador à existência de sentença judicial trabalhista definitiva não atende ao princípio da razoabilidade.”

Destarte, independentemente do mérito da justificativa de veto, a norma contida no caput do artigo passou a vigorar sem quaisquer restrições nele não contidas.

E, de acordo com essa norma, ficam sujeitas ao regime de tributação de pessoas jurídicas as situações em que:

– haja prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em cuja regra a intelectualidade dos serviços é gênero, e as naturezas científica, artística ou cultural são espécies nomeadas exemplificativamente, e não como relação exaustiva;

– tais serviços podem ser prestados em caráter personalíssimo ou não, significando que não afasta a incidência da norma se a contratação ou a prestação for feita especificamente por uma determinada pessoa (que é a situação mais comum no contencioso existente);

– tais serviços também podem ser contratados ou prestados com ou sem designação de obrigações atribuídas a sócios ou empregados da sociedade, o que, por um lado, é um prolongamento da disposição relacionada a possíveis serviços personalíssimos, e, por outro lado, significa que a norma se aplica quando a prestadora de serviços for uma pessoa jurídica, dado que ela se refere à “sociedade prestadora”, e ainda acrescenta que se aplica “quando por esta realizada”, ou seja, prestação realizada pela sociedade prestadora.

Sendo esta a hipótese de incidência da norma (seu antecedente), sua disposição normativa (consequente), divide-se em duas regras:

– tais serviços sujeitam-se tão somente às leis aplicáveis às pessoas jurídicas, não cabendo o tratamento tributário federal que a legislação atribui às pessoas físicas;

– isto não impede a aplicação do art. 50 do Código Civil, que define o abuso na utilização da personalidade jurídica, e, nas circunstâncias que estabelece, mediante a desconsideração da respectiva personalidade, determina que responsabilidade pelo abuso seja estendida aos seus autores.

Deve ser destacado que essa disposição do art. 129, referindo-se ao art. 50, somente vem confirmar que a sua norma pressupõe a existência de uma pessoa jurídica (no caso, uma sociedade), porque sem esta não existe personalidade jurídica a ser desconsiderada.

Note-se, então, sem adentrar em detalhes ou em casos concretos, que o art. 129 não veicula uma norma de equiparação de pessoas físicas a pessoas jurídicas, como existem hipóteses na lei ordinária do imposto de renda, as quais veremos no devido tempo.

Ao contrário, a norma do art. 129 presta-se a garantir, para efeitos fiscais e previdenciários, a condição de pessoas jurídicas a entidades que já têm esta natureza porque são sociedades. Em outras palavras, como toda sociedade regular é pessoa jurídica2, o art. 129 não cria uma ficção de que a pessoa física seja considerada pessoa jurídica.

Deste modo, a regra do art. 129 apenas assegura que essas sociedades não sejam descaracterizadas pelo fato de que os serviços intelectuais sejam prestados em caráter personalíssimo ou sejam atribuídos especificamente a sócios ou empregados da sociedade.

Quer isto dizer que uma sociedade em que a figura captadora de clientela ou geradora da receita seja uma determinada pessoa, por esta razão não elimina a condição de pessoa jurídica, e a mesma consequência deve ser aplicada ante qualquer outra circunstância não colocada na regra legal como excludente da sua aplicação. Assim, por exemplo, há profissões cujas normas regulatórias, diferentemente do que acontece com a advocacia, admitem sócios não habilitados ao exercício profissional, e isto não afasta a aplicação do art. 129.

Mas há um detalhe a ser observado, consistente em que o artigo alude à “sociedade”, e não à “empresa”, o que requer atenção a duas particularidades.

A primeira é que sociedade é uma espécie de pessoa jurídica cuja característica distintiva de outras espécies é ser a reunião de pessoas com a finalidade de explorar determinada atividade econômica e de partilha dos resultados. Para perfeita compreensão tenha-se em mente o que dispõe a este respeito o Código Civil, isto é:

“Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados.”

A segunda particularidade é que a noção de empresa está associada à de empresário e de sociedade empresária, e também a determinado tipo de empreendimento que exploram, como se vê primeiramente no art. 966 desse Código, a saber:

“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.”

Isto é, a atividade do empresário, além de ser econômica e relativa à produção de bens e serviços, é aquela que ele organiza profissionalmente mediante a reunião e o emprego ordenado dos meios de produção que forem necessários ao empreendimento.

Por esta mesma razão, caso alguém explore individualmente uma atividade intelectual, se esta for o objetivo dos negócios praticados e não envolver a ordenação de meios de produção, essa pessoa não será empresária, mas mera prestadora de serviço.

E a sociedade empresária está definida no art. 982 nos seguintes termos:

“Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.

Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.”

Em síntese, a sociedade é empresária quando a atividade econômica a que se dedique for organizada para produção de bens ou serviços, entendendo-se como organizada aquela que emprega ordenadamente meios de produção necessários, notadamente capital, trabalho e tecnologia, porque esta é a atividade própria do empresário3.

Já não é empresária, mas sociedade simples, a sociedade em que se exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, mesmo com o concurso de auxiliares ou colaboradores.

Todavia, esta excludente da condição de sociedade empresária não se aplica se o exercício da profissão própria do empresário for apenas “elemento de empresa”, quer dizer, se for um dos fatores de produção empregado ao lado de outro ou outros, e não o fim (objeto) da sociedade4. Por exemplo, alguém pode exercer a atividade de empresário numa indústria de calçados, caso em que a sociedade cujo objeto seja essa indústria é empresária porque preenche as características da definição legal e o empresário não passa de um dos fatores de produção, isto é, constitui-se em mero elemento da empresa.

Neste sentido, há plena concordância entre o art. 129 da Lei n. 11.196 e as disposições do Código Civil, ou melhor, há normas diferentes e com objetivos próprios, mas elas não colidem entre si.

A este quadro legislativo, existente quando o art. 129 foi promulgado, veio juntar-se mais o art. 980-A, que em 2011 foi introduzido no Código Civil pela Lei n. 12.441, e que assim dispõe:

“Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País.

§ 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão ‘EIRELI’ após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada.

[...]

§ 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional.

§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.”5

Trata-se de uma situação especial em que a lei civil reconhece o “status” de empresa individual de uma entidade econômica que não é sociedade, porque é efetivamente empresa individual, mas para a qual permite um efeito que é próprio de um tipo de sociedade, que é a responsabilidade do empresário apenas até o limite do capital atribuído ao empreendimento.

Para confirmação de que não se trata de sociedade, mas sim de um tipo de empresário individual, deve-se estar atento para que o art. 980-A foi localizado no Título I-A novo dentro do Livro II do Código Civil, sobre o direito de empresa (no Título I está o empresário), mas está fora do título relativo às sociedades, que é o Título II.

Destarte, não apenas pela localização topográfica do art. 980-A, como também pela própria norma que ele exprime, não se retira dele que tenha estabelecido um novo tipo de sociedade, pois, ao contrário, inclusive da norma do art. 981, trata de uma pessoa individual que não tem sócios, ao passo que a existência da reunião de pessoas é o principal requisito para ser caracterizada uma sociedade6.

Ou seja, encontramos no art. 980-A uma figura semelhante à que na codificação anterior era a chamada “firma individual”, agora admitida e intitulada como “empresa individual”, podendo a responsabilidade do empresário ser limitada ao capital conferido ao empreendimento.

Também não se pode atribuir a essa norma, especialmente ao seu § 6º, a consequência de equiparar a empresa individual às sociedades, tão somente porque ele prescreve que “aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas”.

Isto significa que à empresa individual se aplica o que couber das regras das sociedades limitadas, mas não todas, e muito menos que as EIRELIs sejam sociedades limitadas, pois isso representaria uma impossível contradição com o art. 981.

Portanto, não se consegue incluir a EIRELI na regra do art. 129, porque, a despeito de ser empresa, não é sociedade.

O debate que se suscita é se o advento do novo artigo no Código Civil, com uma nova categoria de empresário, tem o condão de acarretar a extensão do art. 129 às EIRELIs, havendo argumentos em favor de uma resposta afirmativa, os quais, entretanto, têm contra si, duas razões fortes.

A primeira razão contrária está na própria norma exprimida no art. 129, a qual, em análise atenta, alude à “prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada7.

Ou seja, a hipótese de incidência da norma do art. 129 é destinada às sociedades prestadoras de serviços, e não às empresas individuais, pois, como apontado anteriormente, é norma de asseguramento de que as sociedades constituídas nas condições que especifica (ou melhor, a despeito destas) serão tratadas como pessoas jurídicas para efeitos fiscais e previdenciários.

Por isso, se o art. 129 abrangesse as EIRELIs, também abrangeria as demais empresas individuais, que já estavam previstas no Código Civil, quer dizer, o art. 980-A não teria representado qualquer novidade em torno do art. 129.

Ademais, o tratamento tributário das empresas individuais como pessoas jurídicas já estava previsto em outra norma, e não depende do art. 129, tal como veremos adiante.

O que aparentemente suscita a interpretação de que o art. 980-A do Código Civil acarretaria a aplicação do art. 129 da Lei n. 11.196 é a possível confusão entre sociedade e empresa, ou mesmo entre pessoa jurídica e empresa.

Este tipo de confusão é comum, algumas vezes por falta de atenção, outras porque o próprio direito positivo alude à empresa como sinônima de pessoa jurídica8.

Mas os conceitos são nitidamente distintos, pois:

– pessoa jurídica é uma entidade à qual a lei atribui personalidade jurídica, que lhe é outorgada pelo respectivo registro competente (Código Civil, art. 985), e cuja personalidade a pessoa natural já adquire desde o seu nascimento;

– portanto, pessoa jurídica é uma contraposição à pessoa natural, sendo que ambas têm como denominador comum a detenção de personalidade jurídica, com a consequente capacidade para serem sujeitos de direitos e obrigações e deter patrimônios próprios (Código Civil, arts. 1º, 46, inciso VI, 978, 1.117, § 2º, 1.120, §§ 1º e 3º, 1.122, § 3º, 1.187 e o próprio art. 50);

– mas pessoa jurídica é gênero que tem várias espécies, das quais uma delas é a sociedade, que se caracteriza por ser a reunião de pessoas com fins lucrativos (exploração de objetivos econômicos) e divisão dos resultados obtidos, e que é distinta de outras espécies de reunião de pessoas unicamente pela inexistência, nestas outras, daqueles fins (Código Civil, art. 44, inciso II, em contraposição aos demais incisos, e art. 981);

– a sociedade é pessoa jurídica desde que inscreva seus atos constitutivos no registro próprio, mas também pode existir sem ser pessoa jurídica, situação em que é uma sociedade não personalizada que se costuma conhecer como “sociedade de fato” ou “sociedade irregular” (Código Civil, arts. 45 e 986);

– empresa corresponde ao empreendimento de alguma pessoa, seja ela pessoa natural ou jurídica, assim como de uma sociedade personalizada ou não, conceito este – de empresa – que exerce papel relevante no desenvolvimento deste artigo.

É oportuno recordar que o Código Comercial de 1850 já reconhecia e expressava esse significado do termo “empresa”, ao se referir no art. 295 às “companhias ou sociedades anônimas, designadas pelo objeto ou empresa a que se destinam, [...]”.

Quer dizer, segundo esse código, as sociedades anônimas tinham (se destinavam a) um objeto ou empresa, que era o empreendimento por elas explorado.

Depois, o Decreto-lei n. 2.627, de 1940, que passou a reger as sociedades anônimas, repetiu o conceito no art. 2º, ao dizer que pode ser objeto delas “qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública ou aos bons costumes”, e acrescentar no parágrafo único: “Qualquer que seja o objeto, a sociedade anônima ou companhia é mercantil e rege-se pelas leis e usos do comércio”.

Outra não foi a dicção do art. 2º da Lei n. 6.404, de 1976, atual lei das sociedades anônimas, “in verbis”:

“Art. 2º – Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes.

§ 1º Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio.

§ 2º O estatuto social definirá o objeto de modo preciso e completo.

§ 3º A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais.”

Essas leis deixavam e deixam acima de qualquer dúvida que “empresa” corresponde ao objeto da sociedade, o empreendimento a que ela se dedica, embora no vernáculo essa palavra tenha múltiplos sentidos.

Realmente, é possível encontrar mais de um significado nos dicionários, onde o verbete “empresa” alude a “aquilo que se empreende; empreendimento”, assim como a “organização econômica para a produção ou venda de mercadorias ou serviços, tendo em geral como objetivo o lucro”, ou ainda a “em teoria econômica, unidade de produção e vendas”. Mas também “empresa como organização jurídica; firma, sociedade”9.

Assim, em linguajar livre muitas vezes alude-se à “empresa” para se referir à “pessoa jurídica”, o que parece explicar-se porque na maior parte das vezes as empresas são pessoas jurídicas. Mas trata-se de procedimento que não deveria ser empregado em normas legais, nem palavreado adequado a juristas, não apenas pelo significado semântico mais próprio e específico de cada um dos termos acima diferenciados, como também porque as leis devem utilizar palavras que exprimam os significados que têm nos respectivos campos técnicos de aplicação, e também devem primar pela precisão (Lei Complementar n. 95, de 26 de fevereiro de 1998, art. 11).

Portanto, a despeito do sentido plurívoco da palavra “empresa”, e principalmente porque ele existe, as normas legais deveriam exprimir-se com mais exatidão, sabendo distinguir quando um determinado sentido deva ser usado, e quando outra palavra mais precisa exprima melhor o significado do texto. É esta a exatidão determinada pela lei sobre o fazimento das leis (Lei Complementar n. 95), e é a que se encontra nas retrotranscritas disposições dos diplomas legais sobre as sociedades por ações.

Como também o faz o art. 126 o CTN ao tratar da capacidade tributária passiva e arrolar no inciso III, entre suas hipóteses, a de que independe “de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional”. Com razão, não é a empresa que se constitui regularmente, mas a pessoa jurídica que vai empreender alguma atividade econômica ou profissional, a qual poderá ser objeto de uma sociedade empresária ou simples.

As leis tributárias ordinárias vão além do CTN, sem, contudo, violar a Constituição Federal e sua lei complementar, quando equiparam pessoas físicas a pessoas jurídicas, o que é perfeitamente possível porque a equiparação não significa a instituição de ficção legal da ocorrência do fato gerador, mas apenas o estabelecimento do regime tributário aplicável quando da ocorrência efetiva e factual de fatos geradores.

A este respeito, caímos na investigação do que a legislação ordinária estabelece, para o que, no intuito de facilitar a pesquisa, vamos recorrer ao Regulamento do Imposto de Renda de 2018 (RIR/2018).

Mas esta comodidade, de adotar o RIR/2018 e não ir à cata de cada lei que trate do assunto, justifica-se sob o pressuposto de que o regulamento é (deve ser) uma consolidação das normas legais em vigor na data em que é expedido, e deve cumprir a missão que a Constituição reserva aos decretos, bem como o limite que o CTN exprime para eles.

De fato, atento ao princípio da legalidade, que extravasa o terreno da tributação, o art. 84 da Carta Constitucional elenca os poderes do Presidente da República e, quanto à expedição de decretos, no seu inciso IV menciona o de “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.

Isto é, decreto não cria normas jurídicas, mas visa (deve servir para) dar fiel execução a elas.

Do mesmo modo, e também observando o princípio da legalidade, o art. 99 do CTN preceitua que o conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei”.

Isto é, decretos não estabelecem as normas sobre matérias reservadas à lei (relacionadas no art. 97), mas, a fim (com a função) de lhes dar fiel execução, devem se ater ao que elas disponham.

Por conseguinte, vamos recorrer ao RIR/2018, mas sem perder de vista que ele, ao menos na matéria sob exame, deve ser fiel às leis vigentes, as explicite e não as exceda, além de que, por ser (dever ser) uma consolidação das normas tributárias, deve(ria) abranger todas as que estavam em vigor na data em que foi expedido, porque, não sendo assim, deixa de cumprir adequadamente a sua função, que é sua razão primacial para existir10.

Pois nesta perspectiva de consolidação, a primeira constatação pertinente à matéria deste trabalho é de que o regulamento vigente, apesar de ter sido baixado pelo Decreto n. 9.580, em 22 de novembro de 201811, não contém, como deveria conter, qualquer dispositivo que reflita a norma do art. 129 da Lei n. 11.196, que estava vigorando desde 2005 e não foi revogada.

Não que o ato regulamentar tenha desconhecido a existência dessa lei, porque ele a menciona noventa e duas vezes, relativamente a outras disposições que não a do art. 129. Além disso, o RIR/2018 define os contribuintes pessoas jurídicas (arts. 159 a 161), tornando, portanto, imperdoável, além de ilegal, seu silêncio a respeito daquela norma legal que também define pessoa jurídica, e quanto a objeto submetido a tanta celeuma.

E a segunda constatação é a atenção que o RIR/2018 dá ao Código Civil ao tratar das equiparações de pessoas físicas a pessoas jurídicas, ou melhor, de empresas individuais a pessoas físicas12.

Esta última constatação é importante a despeito de que, como já relatado, a lei civil não tenha por objeto as obrigações tributárias, e o art. 129 da Lei n. 11.196 não trate de equiparação, pois, contrariamente, visa assegurar a condição de pessoa jurídica a determinadas sociedades.

De qualquer modo, a norma do Código Civil, referida no art. 162 do RIR/2018, aproxima-se do art. 129 porque em torno deste, como também vimos, alguma dúvida pode existir a respeito das empresas individuais de responsabilidade limitada que foram inseridas no Código Civil em 2011 pela Lei n. 12.441, ainda que a elas o RIR também não dedique uma disposição específica porque já há a regra geral de equiparação das empresas individuais, das quais as de responsabilidade limitada são espécie.

Mas, antes de passarmos às regras de equiparação que constam do art. 162 do RIR/1999, convém aditar algumas observações sobre normas legais que serão úteis para a compreensão das próprias diretrizes regulamentares.

Sabemos que antes do Código Civil de 2002 as firmas ou empresas individuais eram as que tinham por objeto atividades comerciais. “Firma” era, na lei, sinônimo de denominação social, aplicável quando esta se compunha pelo nome do comerciante e este “assinava a firma”, o que significa que a denominação social podia ou não ser firma. Neste sentido, recomenda-se a leitura dos seguintes dispositivos do Código Comercial, entre outros: arts. 5º, 55, 166, 296, 302, 306, 306.

Na codificação civil de 2002, que inclusive revogou a lei comercial de 1850 em diversas partes, inclusive na citada, a rigor o trato legal das sociedades e empresas individuais não foi alterado em suas linhas mestras, mas merece atenção mais detalhada.

Assim, temos o seguinte no Código Civil em vigor, incluindo as suas disposições já citadas.

Vimos que as sociedades se caracterizam quando duas ou mais pessoas se unirem para a exploração de atividade econômica e repartição dos respectivos resultados (art. 981).

Além das distinções entre as sociedades e outras pessoas jurídicas, advindas dos arts. 44 e 981, cada sociedade pode se constituir segundo um dos tipos previstos no Código, tal como a de responsabilidade limitada, o que não interfere na sua caracterização como sociedade, nem tem efeitos fiscais, ressalvadas as normas especiais (veja-se o parágrafo único do art. 982 e o art. 98313).

Vimos também que as sociedades são empresárias quando seu objeto for atividade própria de empresário, e que as demais são as sociedades simples (art. 982), sendo que estas eram antes conhecidas como “sociedades civis”.

Em consequência da definição de sociedade empresária, também tivemos que verificar que empresário é aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e serviços (art. 966).

Em virtude da exclusão do exercício das profissões intelectuais da categoria dos empresários, verificamos que, contudo, tal exercício não exclui da condição de sociedade empresarial aquela em que ele for elemento de empresa (parágrafo único do art. 966).

Aqui podemos mencionar que outros dispositivos confirmam a noção de sociedade empresária, tal como o art. 98414, referente à transformação de sociedade pertinente à atividade própria de empresário.

E ainda vimos que as sociedades adquirem personalidade jurídica através da inscrição dos seus atos constitutivos no registro próprio (art. 98515)

Pois o registro acarreta uma consequência interessante para o tema que estamos tratando, qual seja, a inscrição dos atos de constituição das sociedades deve ser feito no registro que for competente.

Realmente, ele se divide em Registro Público de Empresas Mercantis e Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o primeiro para os empresários e as sociedades empresárias, e o segundo para as sociedades simples (art. 1.15016), valendo chamar atenção para que o primeiro está a cargo das Juntas Comerciais (o mesmo art. 1.150).

Não se trata de dizer que alguém seja empresário pelo fato de estar inscrito no Registro Público de Empresas Mercantis, dado que não é o registro que confere a natureza jurídica de empresário ou sociedade empresária, e, sim, a sua organização com vistas à atividade com intuito econômico de produção ou circulação de bens ou serviços. Portanto, o raciocínio é inverso, pois é partindo-se do objeto e da organização da atividade que se sabe se a pessoa natural é empresária, e se a sociedade é empresária, sendo que a inscrição no referido registro somente é apropriada para as pessoas que preencham estas características. Por isso, uma pessoa não empresária não adquire a condição de empresária pela só razão de ter sido admitida indevidamente no citado registro público.

De qualquer modo, supondo-se que o conjunto de normas legais tenha sido devidamente cumprido, o registro adequado revela a natureza de empresário, sociedade empresária ou sociedade simples17.

Ademais, para confirmar a importância do registro correto, é igualmente relevante destacar que regra geral do art. 982, para a definição de sociedade empresária, alude à atividade própria de empresário e especifica ser o sujeito ao registro do art. 967, e este é o Registro Público de Empresas Mercantis18. Ademais, essa normatização vem confirmada nas regras especiais do art. 971 do § 3º do art. 974, e do já referido art. 98419.

De tudo o que foi dito, constatamos agora que o termo “empresa”, além do sentido plurívoco visto antes, também é empregado implicitamente para qualificar determinada sociedade em contraposição à sociedade simples, bem como o empresário em contraposição ao não empresário.

Contudo, ao assim se manifestar, o art. 982 do Código Civil não deixa de atentar para que a empresa é o objeto da sociedade empresária, seja pela explicitação dele no caput, seja pelo fato de o parágrafo único especificar que, independentemente do seu objeto, as sociedades por ações são sempre empresárias.

Em prosseguimento, é útil trazer à baila outro conceito que foi não mencionado antes, que é o de estabelecimento. Estabelecimento geralmente é entendido como um local onde se desenvolve a empresa (o empreendimento), podendo os empresários e as sociedades empresárias ter mais de um estabelecimento.

Todavia, além de local físico20, o estabelecimento confunde-se com o que no direito brasileiro se conhece como “fundo de comércio”, pois não se resume ao espaço ocupado, mas inclui todos os bens materiais e imateriais aí utilizados para a realização das atividades econômicas exploradas21.

É a esta conceituação que o Código de 2002 aderiu, dando a ela a natureza de norma jurídica, nos seguintes dispositivos:

“Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.

Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza.”

Portanto, o estabelecimento em sentido técnico somente existe onde existe empresa devido ao emprego de mais de um meio de produção, representado pela expressão “complexo de bens organizado”.

Mas nos interessa em particular observar que o art. 1.142 emprega a palavra “empresa” no sentido específico mais correto de empreendimento, e não de pessoa jurídica, ainda que em correlação apenas com o empresário individual ou a sociedade empresária.

Seja como for, após todas estas observações, o que se extrai do Código Civil de 2002 é que o empresário e a sociedade empresária dedicam-se à atividade econômica, que também é referida no respectivo registro público como “mercantil”, não somente porque há um registro distinto do registro para as atividades não mercantis, mas também porque, especialmente e em coerência com o respectivo registro, eles atuam mediante a organização dos meios de produção para a obtenção de produtos ou serviços, desde que estes não sejam de natureza intelectual, ou os de natureza intelectual sejam apenas elementos do empreendimento, vale dizer, meios para obtenção do fim.

Neste quadro legislativo, em 2012 foi incluída no Código Civil a empresa individual de responsabilidade limitada, a qual, à míngua de qualquer disposição em contrário no respectivo art. 980-A, está englobada em todas as considerações acima apresentadas sobre as empresas individuais. E, de fato, a inovação substancial dessa nova norma é a possibilidade de o empresário individual não responder pelas dívidas do empreendimento com todo o seu patrimônio, mas ele é tão empresário individual quanto os demais.

Podemos, portanto, passar às regras de equiparação de pessoas físicas a pessoas jurídicas, repetindo inicialmente que o RIR/2018 também não dispõe de qualquer artigo que trate especificamente das empresas individuais de responsabilidade limitada, o que não representa uma falha tão grave, como é a de omitir o art. 129 da Lei n. 11.196, porque as empresas individuais em geral estão tratadas no regulamento e, portanto, abarcam as de responsabilidade limitada.

Parece ser relevante, a esta altura, e em virtude do que foi anteriormente exposto, bem como para completa visualização do tema e dos seus desdobramentos, transcrever o art. 162 do regulamento atual:

“Art. 162. As empresas individuais são equiparadas às pessoas jurídicas (Decreto-lei nº 1.706, de 23 de outubro de 1979, art. 2º).

§ 1º São empresas individuais:

I – os empresários constituídos na forma estabelecida no art. 966 ao art. 969 da Lei nº 10.406, de 2002 – Código Civil;

II – as pessoas físicas que, em nome individual, explorem, habitual e profissionalmente, qualquer atividade econômica de natureza civil ou comercial, com o fim especulativo de lucro, por meio da venda a terceiros de bens ou serviços (Lei nº 4.506, de 1964, art. 41, § 1º, alínea ‘b’; e Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 27, § 1º); e

III – as pessoas físicas que promovam a incorporação de prédios em condomínio ou loteamento de terrenos, nos termos estabelecidos na Seção II deste Capítulo (Decreto-lei nº 1.381, de 23 de dezembro de 1974, art. 1º e art. 3º, caput, inciso III).

§ 2º O disposto no inciso II do § 1º não se aplica às pessoas físicas que, individualmente, exerçam as profissões ou explorem as atividades de:

I – médico, engenheiro, advogado, dentista, veterinário, professor, economista, contador, jornalista, pintor, escritor, escultor e de outras que lhes possam ser assemelhadas (Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 6º, caput, alínea ‘a’; Lei nº 4.480, de 14 de novembro de 1964, art. 3º; e Lei nº 10.406, de 2002 – Código Civil, art. 966, parágrafo único);

II – profissões, ocupações e prestação de serviços não comerciais (Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 6º, caput, alínea ‘b’);

III – agentes, representantes e outras pessoas sem vínculo empregatício que, ao tomar parte em atos de comércio, não os pratiquem, todavia, por conta própria (Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 6º, caput, alínea ‘c’);

IV – serventuários da Justiça, como tabeliães, notários, oficiais públicos, entre outros (Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 6º, caput, alínea ‘d’);

V – corretores, leiloeiros e despachantes, seus prepostos e seus adjuntos (Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 6º, caput, alínea ‘e’);

VI – exploração individual de contratos de empreitada unicamente de lavor, de qualquer natureza, quer se trate de trabalhos arquitetônicos, topográficos, terraplenagem, construções de alvenaria e outras congêneres, quer de serviços de utilidade pública, tanto de estudos como de construções (Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 6º, caput, alínea ‘f’); e

VII – exploração de obras artísticas, didáticas, científicas, urbanísticas, projetos técnicos de construção, instalações ou equipamentos, exceto quando não explorados diretamente pelo autor ou pelo criador do bem ou da obra (Decreto-lei nº 5.844, de 1943, art. 6º, caput, alínea ‘g’; e Lei nº 10.406, de 2002 – Código Civil, art. 966, parágrafo único).”

O caput do art. 162 evoca a lembrança da sua fonte normativa, que é o art. 2º do Decreto-lei n. 1.70622, o qual equipara as empresas individuais a pessoas jurídicas, sendo esta a regra geral sujeita a exceções estabelecidas em outras normas. E vamos verificar que as empresas individuais de responsabilidade limitada não estão elencadas nas exceções, estando, portanto, na regra geral de equiparação.

O § 1º define o que sejam empresas individuais, portanto, equiparadas a pessoas jurídicas para efeito do imposto de renda, e as exceções vêm refletidas no § 2º do artigo, que relaciona as situações excluídas da equiparação, permanecendo para estas o tratamento devido às pessoas físicas.

Vale começar lembrando que o velho Decreto-lei n. 5.844, de 1943, disciplinava no art. 27:

“Art. 27. As pessoas jurídicas de direito privado domiciliadas no Brasil, que tiverem lucros apurados de acordo com este decreto-lei, são contribuintes do imposto de renda, sejam quais forem os seus fins e nacionalidade.

§ 1º Ficam equiparadas às pessoas jurídicas, para efeito deste decreto-lei, as firmas individuais e os que praticarem, habitual e profissionalmente, em seu próprio nome, operações de natureza civil ou comercial com o fim especulativo de lucro.

§ 2º As disposições deste artigo aplicam-se a todas as firmas e sociedades, registradas ou não.”

Vê-se que já nos anos 40 do século passado, muito antes do CTN, era irrelevante o registro ou não das firmas e sociedades, e que as então denominadas “firmas individuais” eram equiparadas a pessoas jurídicas.

Prossigamos analisando como o § 1º do art. 162 do RIR/2018 define as empresas individuais, que, no caput, estão equiparadas a pessoas jurídicas.

A cabeça do § 1º e o seu inciso I referem-se a empresas individuais e empresários, notando-se que já adotam os termos atuais, deixando de empregar a expressão “firmas individuais”.

O inciso I do § 1º equipara o empresário individual à pessoa jurídica, o que somente se explica, já que não há norma legal específica, porque a pessoa que o Código Civil atual define como empresário corresponde em sua essência à empresa individual aludida no art. 2º do Decreto-lei n. 1.706.

Há uma evidente impropriedade na alusão aos empresários constituídos na forma estabelecida nos23 arts. 966 a 969 no Código Civil, sem referência ao art. 980-A, o que não é suficiente para exclusão das empresas individuais de responsabilidade limitada da norma legal de equiparação contida no art. 2º do Decreto-lei n. 1.706.

O inciso II do mesmo parágrafo abrange as pessoas físicas que, em nome individual, explorem, habitual e profissionalmente, qualquer atividade econômica de natureza civil ou comercial, com o fim especulativo de lucro, por meio da venda a terceiros de bens ou serviços.

Esse inciso tem base legal no § 1º do art. 27 do antigo Decreto-lei n. 5.844, mas também se reporta ao § 1º, letra “b”, do art. 41 da Lei n. 4.606, de 1964, que, para os efeitos dela (efeitos do imposto de renda) definiu como empresas individuais as firmas individuais e as pessoas naturais que explorem em nome individual qualquer atividade econômica mediante venda de bens ou serviços.

Parte desse dispositivo legal de 1964 foi revogada expressamente em 1969 pelo art. 11 do Decreto-lei n. 515, de 1969, o qual, além disso, deu nova disciplina a toda a matéria e não está no RIR/2018 porque também ele foi revogado expressamente pelo art. 15 do Decreto-lei n. 1.381, de 1974, que o substituiu por novas regras, das quais resta em vigor apenas a que consta do inciso III do § 1º do art. 162 do RIR/2018, tendo as demais desaparecido com o Decreto-lei n. 1.510, de 1976.

Assim, ainda quanto ao inciso II do § 1º, ele considera empresa individual qualquer exploração em nome individual de atividade econômica de natureza civil ou comercial, com o fim especulativo de lucro, por meio da venda a terceiros de bens ou serviços, o que é uma extensão do inciso I, mas o § 2º contém longa lista de exclusões da equiparação feita pelo inciso II.

Para as exclusões da equiparação, o § 2º do art. 162 do RIR dá como seus fundamentos legais o Decreto-lei n. 5.844, a Lei n. 4.480, de 1964, e o Código Civil, cumprindo-nos examiná-los, um a um.

Todas as hipóteses do § 2º têm em comum tratarem de pessoas físicas que exerçam individualmente profissões ou explorem atividades, sendo que a primeira, do inciso I do § 2º, alude a médicos, engenheiros, advogados, dentistas, veterinários, professores, economistas, contadores, jornalistas, pintores, escritores, escultores e outras profissões ou atividades que lhes possam ser assemelhadas.

O primeiro fundamento legal dado para o inciso I do § 2º é o art. 6º do Decreto-lei n. 5.944, o qual é fundamento apenas indireto porque o art. 6º tratava da inclusão desses rendimentos na cédula D da declaração de rendimentos das pessoas físicas (conforme o então vigente sistema de classificações e incidências cedulares do imposto de rendas das pessoas físicas), e no mesmo decreto-lei já havia hipótese de equiparação à pessoa jurídica (o art. 27, acima transcrito). Quer dizer, como havia hipótese de equiparação, a não equiparação decorria da expressa determinação de tributação na cédula D das pessoas físicas.

O segundo fundamento indicado é o art. 3º da Lei n. 4.480, que na verdade é uma extensão do anterior porque determinava a inclusão, na referida cédula D, dos rendimentos da propriedade literária, artística e científica, assim definidos os direitos de autores, compositores, escritores e outros que se lhe assemelhem.

Já o terceiro fundamento é o parágrafo único do art. 966 do Código Civil, o qual, por evidente, não trata de equiparações tributárias, mas, em conjunto com as demais disposições das leis tributárias, aponta para pessoas que se enquadram na hipótese descrita no inciso I do § 2º do art. 162 do RIR/2018. Melhor explicando, as pessoas naturais que não são consideradas empresárias pelo Código Civil também não são equiparadas a pessoas jurídicas pela lei tributária, porque somente o são as que forem empresárias.

Todavia, também não se pode omitir referência ao defeito de confecção do RIR/2018, consistente em colocar o art. 966 do Código Civil no inciso I do § 1º, para relacionar os empresários desse artigo como empresas individuais, e, no § 2º colocar como fundamento o parágrafo único do art. 966, mas para excepcionar o inciso II do § 1º, e não o inciso I. É evidente que este deveria ser exceção ao inciso I do § 1º.

O inciso II do § 2º trata do exercício individual de profissões, ocupações e prestação de serviços não comerciais, e dá como fundamento o mesmo dispositivo do Decreto-lei n. 5.844 (o art. 6º), pelo que a ele se aplica o comentário acima feito quanto ao inciso I, ou seja, tratar-se de fundamento indireto. Embora não mencionado como fundamento o parágrafo único do art. 966 do Código Civil, o inciso II também está em consonância com este.

Sem entrar em detalhes, o mesmo se aplica aos incisos III a VII, porque se referem a outras hipóteses que constavam do art. 6º do Decreto-lei n. 5.844.

Quanto ao inciso VII, o RIR/1999 também dá como seus fundamentos o art. 6º do Decreto-lei n. 5.844 e o parágrafo único do art. 966 do Código Civil, motivo pelo qual a ele se aplica o que foi comentado quanto ao inciso I em toda a sua extensão, ou seja, quanto ao fundamento indireto do art. 6º e ao erro de confecção relacionado à invocação do parágrafo único do art. 966.

Mas, pondo de lado esse erro, e também que o art. 966 do Código Civil não é norma de equiparação tributária, o inciso VII nos conduz a tentar entender porque apenas nos incisos I e VII do § 2º o regulamento invoca o amparo do parágrafo único daquele artigo, e não o faz com relação aos demais.

Relembrando, o referido dispositivo da lei civil, após o caput conceituar o empresário como aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, exclui do conceito quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

Por outro lado, como o art. 6º do Decreto-lei n. 5.844 tratava da classificação de determinados rendimentos na cédula D das declarações de rendimentos das pessoas físicas, é preciso lembrar que tal cédula incluía os serviços prestados em caráter autônomo, pois os que o fossem em caráter empregatício iam para a cédula C, havendo entre as duas cédulas alíquotas distintas do imposto cedular e também deduções diferentes. Outras cédulas incluíam as rendas do capital, inclusive de participações societárias.

Sendo assim, pode-se dizer genericamente que as atividades geradoras de rendimentos da cédula D estariam atualmente abrangidas pela norma do Código Civil que exclui pessoas físicas da condição de empresárias nas mesmas circunstâncias em que estariam incluídas na referida cédula fiscal.

Porém, o mesmo poderia ser dito relativamente aos incisos II a VI, porque, conforme a transcrição acima feita do art. 162, eles se referem a atividades que não excluem necessariamente a intelectualidade dos respectivos agentes (intelectualidade que é referida pelo parágrafo único do art. 966 do Código Civil).

Neste passo, a única explicação (satisfatória ou não) que se pode aventar para o dispositivo do Código Civil ter sido adotado no regulamento apenas para os incisos I e VII é a de que, para os autores deste, a lei civil aludiria à profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística de modo taxativo e exclusivo para estas três naturezas de atividades, ou seja, embora as naturezas científica, literária ou artística requeiram o uso do intelecto, a profissão intelectual poderia abranger atividades que não sejam científicas, literárias ou artísticas, e somente estas estariam alcançadas pela norma civil. Ainda em outras palavras, o parágrafo único referir-se-ia apenas a atividades intelectuais científicas, intelectuais literárias e intelectuais artísticas, mas não ao emprego do intelecto em outras atividades.

Assim, para os autores do RIR/2018, o inciso I do § 2º justificar-se-ia porque as profissões e atividades nele mencionadas indubitavelmente são de natureza intelectual científica, e as do inciso VII enquadrar-se-iam por se encaixarem numa das três referidas naturezas.

Por outro lado, perante esse modo de pensar, pode-se perguntar por que os autores do RIR/2018 também não incluíram, entre as hipóteses de não equiparação, aquela que consta do art. 6º do Decreto-lei n. 5.844, relativa a ganhos da exploração de patentes de invenção, processos ou fórmulas de fabricação, quando o possuidor auferir lucros sem explorar diretamente seus inventos.

A pergunta pode ser justificada porque esses ganhos também eram incluídos na cédula D, e se esta razão foi considerada suficiente para a exclusão das outras hipóteses relativas à essa cédula, entre as que não entram na equiparação a pessoas jurídicas, por que a mesma razão não justifica igual tratamento para patentes de invenção, processos ou fórmulas de fabricação quando gerem ganhos para o titular desses direitos que não os explore diretamente?

Não há explicação plausível se o questionamento girar em torno do art. 6º do Decreto-lei n. 5.844, mas haverá se for trazido à indagação o parágrafo único do art. 966 do Código Civil?

Nesta ótica, por exigência da coerência exegética, esse parágrafo teria que ser entendido como o foi pelos autores do RIR quanto aos incisos II a VI, ou seja, que a lei civil aludiria à profissão intelectual apenas quando de natureza científica, literária ou artística, de modo taxativo, e não a outras atividades intelectuais não consideradas científicas, literárias ou artísticas. Ora, mesmo nesta perspectiva, também não se consegue abranger os ganhos advindos de patentes de invenção, processos ou fórmulas de fabricação, cuja criação evidentemente tem natureza científica, e mais certamente ainda natureza intelectual.

Por fim, haveria explicação através do art. 966 do Código Civil?

A pergunta se explica porque o art. 6º do Decreto-lei n. 5.844 alude a ganhos da exploração de patentes de invenção, processos ou fórmulas de fabricação, quando o possuidor auferir lucros sem as explorar diretamente, podendo-se imaginar que, se ele não os explora diretamente, o faz em empreendimento empresarial.

Contudo, também isso não justifica a não inclusão da regra do referido art. 6º nas hipóteses de não equiparação, porque atinge as situações em que o inventor cede o seu invento para exploração por terceiros e recebe remuneração, regra esta que não está revogada, e nem sequer está em dissintonia com a lei civil.

Estas considerações em torno da hipótese específica dos inventos não influenciam diretamente na interpretação do art. 129 da Lei n. 11.196, que é o objeto deste trabalho, mas precisam ser feitas para completa análise do art. 162 do RIR/2018, a qual foi colocada em paralelo à compreensão daquele artigo.

Retornando ao art. 129, há algo mais a ser visto, a partir da sua alusão expressa à “prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada”.

Observe-se mais uma vez como a hipótese de incidência do art. 129 aproxima-se da hipótese do parágrafo único do art. 966, independentemente das suas diferentes consequências normativas: “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.

As atividades referidas por ambas as normas são as mesmas, o que se depreende pela adoção de iguais palavras, somente distinguindo-se pela menção à “cultural” no art. 129, que não existe no parágrafo único do art. 966, onde há menção à “literária”, não encontrada naquele.

Porém, uma obra literária é uma obra cultural, ao que se pode acrescentar que há muitas manifestações culturais além das literárias, e que obras literárias também podem ser científicas ou artísticas, e todas são intelectuais.

Em suma, as diferentes palavras das duas leis não conduzem, sob este aspecto, a que elas tratem de situações distintas. Assim, a obra literária sem dúvida está incluída na abrangência mais ampla de cultural, para os fins do art. 129. E não seria aceitável dizer que a obra cultural não estaria submetida ao parágrafo único do art. 966 apenas por não haver menção expressa a esta espécie de trabalho intelectual, que obra cultural também é científica ou artística.

Principalmente, para os fins deste trabalho, voltado que é para o art. 129 da Lei n. 11.196, nenhuma dúvida pode ser aposta à sua larga abrangência, pois a palavra “inclusive”, nele contida – “serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural” –, não deixa margem à tergiversações que pretendam dizer que a natureza científica, artística ou cultural constitua uma relação exaustiva da norma.

Também em vista disso, e perante o uso, pelo RIR/1999, do caput do art. 966 do Código Civil, para definir hipótese de equiparação à pessoa jurídica, e o uso do seu parágrafo único para excluir da equiparação as situações nele previstas, não sendo o artigo norma de equiparação ou não para fins tributários, mais relevante ainda teria sido a inclusão do art. 129 da Lei n. 11.196 no texto desse regulamento.

Realmente, o art. 129 é norma tributária e aborda situações em que o Fisco pretende tratar como pessoas físicas entidades constituídas juridicamente como sociedades, centralizando sua pretensão no fato de haver atividade pessoal de alguém.

Ora, se determinadas atividades pessoais podem conduzir o regime jurídico tributário a ser o das pessoas jurídicas, o regulamento não poderia ter silenciado sobre a respectiva norma legal que, malgrado não tratar de equiparação, trata da manutenção da condição jurídica de sociedade, isto é, de pessoa jurídica para fins tributários. E o regulamento não poderia ter omitido essa norma mormente porque ele define o que seja pessoa jurídica contribuinte do IRPJ.

Quando este assunto foi discutido na Mesa de Debates do IBDT, aventou-se a possibilidade de que parte do art. 162 do RIR/2018 poderia ter base em normas jurídicas não revogadas, mas que teriam perdido sua eficácia perante o ordenamento jurídico tal como ele estava positivado quando o regulamento foi expedido.

Todavia, este aspecto foi levantado sob o indevido enfoque da equiparação de pessoas físicas a jurídicas, e não sob a percepção de que o art. 129 não trata de equiparação.

Independentemente disso, abordemos a perda de eficácia, começando por dizer que não houve revogação das normas legais que dão lastro ao art. 162, porque não foram revogadas expressamente nem implicitamente, seja antes ou seja depois das normas sobre revogação e modificação legislativa, constantes dos art. 9º e 12 da Lei Complementar. Ao contrário, apesar dos tropeços acima mencionados, vimos que o art. 162 do RIR/2018 não repete as disposições do Decreto-lei n. n. 515 porque foram revogadas pelo de n. 1.381, e vimos que deste o regulamento somente mantém a equiparação descrita no inciso III do § 1º do art. 162, porque as demais também foram revogadas pelo Decreto-lei n. 1.510. Mesmo o erro do § 2º do art. 162, de não incluir os rendimentos derivados de inventos, não representa que a respectiva norma legal esteja revogada.

Por outro lado, se alguma dificuldade pudesse existir para se conferir a exatidão do que está dito no parágrafo anterior, em virtude do longo tempo decorrido desde a promulgação das normas aludidas, e ante a complexidade do nosso direito positivo, certamente ninguém tem dúvida de que o art. 129 da Lei n. 11.169 não foi revogado, pois, sendo posterior à Lei Complementar n. 95, sobre ele não recaiu revogação expressa nem modificação nos moldes prescritos por essa lei.

Destarte, também por este motivo o RIR/2018 não poderia ter omitido o art. 129 ao consolidar a legislação sobre o imposto de renda, mesmo que o tenha feito indevidamente apenas até 2016.

Nem socorre a essa omissão algum argumento relativo à perda de eficácia das normas.

Eficácia, como se sabe, é a qualidade ou propriedade do que é eficaz, e eficaz é o que obtém o resultado desejado. Portanto, a eficácia torna algo eficaz, eficiente.

No âmbito do direito, Tercio Sampaio Ferraz Júnior distingue validade, vigência, eficácia e vigor, assim definindo eficácia24:

“3. eficácia é uma qualidade da norma que se refere à possibilidade de produção concreta de efeitos, porque estão presentes as condições fáticas exigíveis para sua observância, espontânea ou imposta, ou para a satisfação dos objetivos visados (efetividade ou eficácia social) ou porque estão presentes as condições técnico-normativas exigíveis para sua aplicação (eficácia técnica);”

Humberto Ávila, que distingue norma existente, norma vigente, norma válida e norma eficaz, diz sobre esta que “uma norma é eficaz, se é capaz de produzir efeitos ou de ser aplicada”25.

Norberto Bobbio refere-se à justiça, validade e eficácia, identificando-as com problemas deontológico, ontológico e fenomenológico, respectivamente, e entendendo que a eficácia ou ineficácia de uma norma tem caráter histórico-sociológico ligado ao seu cumprimento por ser aceita pelos destinatários26.

Em direito tributário, a eficácia geralmente é discutida quanto ao início de aplicação de uma nova norma legal27, e em torno dos princípios da irretroatividade e da anterioridade, mas também pode manifestar-se para o término da aplicação de alguma norma sem que tenha sido revogada28.

Neste último caso, a lei não formalmente revogada deixa de produzir efeitos porque tornou-se ineficaz.

A perda de eficácia não é uma alternativa para se deixar de aplicar norma vigente, pois somente pode ocorrer em situações excepcionais, algumas mais fáceis de se perceber (como uma norma destinada a produzir determinada consequência que já realizada plenamente), e outras que dependem de aferição mais complexa.

Sobre a perda da eficácia, Miguel Reale aponta para que “há trabalho, por assim dizer, de desgaste ou de corrosão das normas jurídicas, por força do processo vital dos usos e costumes”, e explica o seu pensamento29:

“Toda sentença é antes a vivência normativa de um problema, uma experiência axiológica, na qual o juiz se serve da lei e do fato, mas coteja tais elementos com a multiplicidade de fatores, iluminados por elementos intrínsecos, como sejam o valor da norma e o valor dos interesses em conflito. Neste particular, o problema da eficácia pode verificar-se em quatro hipóteses: ou a lei encontra logo correspondência na vida social, harmonizando-se vigência e eficácia; ou a lei, embora vigente e por ser vigente, deve subordinar-se a um processo fático para produzir todos os seus efeitos, ou então, pode dar-se um fenômeno delicado: o das leis que durante um certo período, mais ou menos longo, têm eficácia e depois a perdem; e, finalmente, o caso mais delicado ainda da vigência puramente abstrata, que não prenuncia uma experiência possível, e, como tal, sem qualquer efetividade.”

Maria Helena Diniz, que cita Clóvis Beviláqua, afirma a ocorrência “da ‘desuetudo’, que produz a não aplicação da lei, em virtude de desuso, uma vez que a norma legal passa a ser letra morta”30.

A possibilidade de existência do fenômeno da perda de eficácia é inclusive reconhecida pela Lei Complementar n. 95, que, a propósito das leis de consolidação, admite que nelas seja incluída a “declaração de revogação de leis e dispositivos implicitamente revogados ou cuja eficácia ou validade encontre-se completamente prejudicada” (art. 14, § 3º, inciso I).

A perda de eficácia a que se refere neste trabalho corresponderia à parada na produção de efeitos de normas que, embora não formalmente revogadas por qualquer dos meios legalmente reconhecidos, não pudessem produzir os efeitos que preveem porque estes teriam se tornado impossíveis num quadro legislativo vigente em determinado momento. Tal como, em exemplo banal, uma norma relativa a determinado tipo de sociedade, norma esta que não é revogada, mas fica sem atuação (ineficaz) porque esse tipo societário é excluído do ordenamento.

No caso do art. 129 da Lei n. 11.196, é impossível sequer começar a cogitar de perda de eficácia, por duas razões, das quais a primeira é tratar-se de uma norma que ainda não envelheceu31 e está plenamente adequada à realidade social atual, tanto quanto estava no dia em que foi promulgada.

A segunda razão é que não cabe dizer que sua prescrição normativa tenha sido superada dentro (pelo conjunto) do ordenamento em virtude de novas normas surgidas após sua publicação em 21 de novembro de 2005, isto por duas razões, a primeira porque não se tem uma norma posterior para apontar neste sentido, e a segunda é que todas as normas legais que tratam da definição dos contribuintes pessoas jurídicas, e também das relativas às equiparações a pessoas jurídicas (inclusive o Código Civil se se quiser pensar nele), já estavam em vigor no dia 21 de novembro do ano de 2005.

Ou seja, o art. 129 veio em perfeita harmonia com as normas jurídicas que o precediam, inclusive com as que estão refletidas no RIR/2018, não havendo a mínima justificativa para a ausência desse artigo no regulamento, nem para se afirmar perda de eficácia do art. 129 ou de qualquer das disposições legais que dão fundamento ao art. 162 do regulamento, além daquela que ele omitiu.

Em síntese, o estudo acima desenvolvido demonstra, por um lado, que não ocorreu revogação ou qualquer fenômeno de perda de eficácia das normas legais de equiparação às pessoas jurídicas, e por outro lado, que as situações albergadas pelo art. 129 da Lei n. 11.196, que também está em vigor e é eficaz, aplicam-se independentemente das normas de equiparação, pois as situações descritas no art. 129 são relativas a entidades que já são pessoas jurídicas, a isto se somando a constatação de que as duas disciplinas vigoram paralela e simultaneamente.

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REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2002.

1 Vale esclarecer que a transcrição desse artigo será seguida por outras, o que contraria a orientação editorial da Revista Direito Tributário Atual, mas se justifica neste caso ante a multiplicidade de conceitos expressos nas leis e dos seus vários detalhes importantes, além do que eles se entrelaçam e se interpõem muito diretamente. Por isto, serão feitas transcrições quando julgadas úteis para a compreensão das questões e das ideias apresentadas.

2 Se a sociedade for irregular, para efeitos tributários está equalizada à regular, como será exposto.

4 Sobre este tema, veja-se a nota anterior.

5 A este artigo, a Medida Provisória n. 881, de 30 de abril de 2019, acrescentou o § 7º, com a seguinte redação: “Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.” A rigor, o disposto neste parágrafo já estava implícito no art. 980-A.

6 Isto embora o artigo se refira impropriamente a “capital social”.

7 No presente trabalho, todos os destaques nos textos transcritos foram apostos sem constar dos originais.

8 Encontramos essa forma imprópria de emprego da palavra “empresa” inclusive na Constituição Federal, na Lei n. 6.404 e até no Código Civil (por exemplo, no seu art. 931), a despeito da contradição que representa em relação a outras disposições, como veremos.

9 Novo Dicionário Aurélio – século XXI, Nova Fronteira, p. 742.

10 Contudo, não se pode deixar de mencionar, ainda que não interfira com o presente exame, que o referido regulamento se limitou à consolidação das leis publicadas apenas até 2016, fato inédito nos regulamentos anteriores, passível das mais justas críticas aos seus responsáveis. Isto sem falar no hábito estratificado de descumprimento da exigência do art. 212 do CTN, de que os Poderes Executivos consolidem as leis tributárias anualmente, até 31 de janeiro de cada ano.

11 E apesar de no art. 3º dizer expressamente que consolida a legislação referente ao imposto de renda publicada até 31 de dezembro de 2016.

12 O RIR/2018 também se vale expressamente do Código Civil ao tratar da sociedade conjugal e da união estável (art. 5º), da escrituração contábil (arts. 262 e 264), dos livros comerciais (arts. 272, 273 e 278), da utilização de precatório federal para amortizar dívida consolidada (art. 939) e do exame de livros por auditores-fiscais (art. 956).

13 “Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias. Parágrafo único. Ressalvam-se as disposições concernentes à sociedade em conta de participação e à cooperativa, bem como as constantes de leis especiais que, para o exercício de certas atividades, imponham a constituição da sociedade segundo determinado tipo.”

14 “Art. 984. A sociedade que tenha por objeto o exercício de atividade própria de empresário rural e seja constituída, ou transformada, de acordo com um dos tipos de sociedade empresária, pode, com as formalidades do art. 968, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da sua sede, caso em que, depois de inscrita, ficará equiparada, para todos os efeitos, à sociedade empresária. Parágrafo único. Embora já constituída a sociedade segundo um daqueles tipos, o pedido de inscrição se subordinará, no que for aplicável, às normas que regem a transformação.”

15 “Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).”

16 “Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.”

17 Para complemento e mais detalhada avaliação da distinção entre sociedade empresária e sociedade simples, bem como para caracterização do empresário, veja-se OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. O empresário, a sociedade empresária, a sociedade simples e a responsabilidade tributária perante o CTN e o Código Civil de 2002. Revista de Direito Tributário n. 90. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 35.

18 “Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade.”

19 “Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro. Art. 984 – § 3º O Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais deverá registrar contratos ou alterações contratuais de sociedade que envolva sócio incapaz, desde que atendidos, de forma conjunta, os seguintes pressupostos: [...].”

20 Que, de resto, também pode existir, e geralmente existe, para as pessoas físicas não empresárias e as sociedades simples.

22 “Art. 2º As empresas individuais, para os efeitos da legislação do imposto de renda, são equiparadas as pessoas jurídicas.”

23 Também há um erro de concordância, pois no texto consta “no”, quando deveria estar no plural, já que o inciso alude aos arts. 966 a 969. Fica-se com a impressão de que os redatores do regulamento iriam fazer referência apenas ao art. 966 e depois acharam melhor adicionar os seguintes, mas se esqueceram do art. 980-A.

27 Por exemplo, Recursos Extraordinários n. 146.733-9/SP e n. 138.284-8/CE.

28 Pode-se analisar o Agravo Regimental na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.120/CE.

29 REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 610 e 611.