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A Participação do Contribuinte na Regulamentação Tributária e o Caso FAP

Antonio Carlos de Almeida Amendola

LL.M. pela Cornell Law School. Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado em São Paulo.

Resumo

O presente artigo aborda a instituição legal e a implementação regulamentar do fator acidentário previdenciário, mecanismo de calibragem da alíquota da contribuição Giilrat, antigo SAT. Para tanto, discute a legalidade tributária e suas fronteiras diante da regulamentação fiscal, inclusive sob a luz da separação de poderes. Considerando a flexibilização da legalidade tributária verificada em decisões do Supremo Tribunal Federal e o risco que elas implicam, o artigo se dedica a pensar como o FAP poderia ser compatibilizado com o ordenamento jurídico pátrio, sem enfraquecimento do Estado de Direito.

Palavras-chave: FAP - Fator Acidentário Previdenciário, contribuição previdenciária, legalidade, regulamento, separação de poderes, legalidade processual, participação do contribuinte, processo, revisão judicial.

Abstract

This article comments on the legal institution and implementation in regulations of the social security accidental factor, a mechanism of rate adjustment of the Giilrat contribution, former SAT. For this purpose, it discusses the tax legality and its boundaries upon the tax regulations, including the separation of powers. Considering the flexibility of the tax legality verified in decisions of the Federal Supreme Court and their implied risk, this article is dedicated to thinking how FAP could be conformed with national legislation, without weakening the Rule of Law.

Keywords: FAP - Social Security Accidental Factor, social security contribution, legality, regulation, separation of powers, procedural legality, participation of the taxpayer, process, judicial review.

1. Introdução

A bem intencionada instituição do fator acidentário previdenciário, conhecido como “FAP”, acarretou vários questionamentos por parte dos contribuintes perante o Poder Judiciário, que, em sua maior parte, ainda aguardam apreciação final. Espera-se que a jurisprudência que ao final prevalecerá seja útil para estabelecer um ambiente de maior segurança jurídica.

Para isso, ao examinar a conformidade do FAP com o princípio da legalidade tributária, é fundamental que o Poder Judiciário assegure o devido controle e transparência da Administração Tributária no estabelecimento dos critérios desse fator. Para tanto, como se demonstra abaixo, ou o Poder Judiciário deverá reconhecer a inconstitucionalidade do FAP em decorrência da violação da legalidade, o que acreditamos improvável, ou esse Poder deverá obrigar a Administração Tributária a observar a legalidade processual na edição da regulamentação tributária e, por consequência, consagrar o direito do contribuinte de participar no processo de sua edição.

O presente artigo objetiva abordar o caso FAP dentro de uma realidade complexa, na qual o poder da lei de contenção da Administração Tributária não é o mesmo de outrora, e o papel da regulamentação tributária se torna mais importante do que anteriormente considerado. Nesse cenário, imperioso é reconhecer a necessidade de outros meios de contenção da Administração Tributária, tal qual o processo de edição da regulamentação tributária, com a participação do contribuinte.

2. O FAP

No contexto da política de prevenção de acidentes e de melhoria das condições de trabalho, o objetivo do FAP foi induzir o contribuinte, por meio do aumento ou redução da carga tributária da contribuição SAT, a buscar maior segurança do trabalho relativamente a outras empresas que conduzem a mesma atividade.1-2

O FAP foi instituído no artigo 10 da Lei n. 10.666, de 2003, nos seguintes termos:

“Art. 10. A alíquota de contribuição de um, dois ou três por cento, destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, poderá ser reduzida, em até cinqüenta por cento, ou aumentada, em até cem por cento, conforme dispuser o regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de freqüência, gravidade e custo, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social.”

A partir da leitura do dispositivo legal acima transcrito, infere-se que o FAP constitui um calibrador da alíquota da contribuição destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho (aqui referida como “contribuição SAT”, também conhecida como “contribuição Giilrat”).

A alíquota da contribuição SAT, que incide na folha de pagamento, pode ser de 1%, 2% ou 3% dependendo de o grau de risco da atividade preponderante do contribuinte ser, respectivamente, leve, médio ou grave. Para o fim de determinação da alíquota do SAT, não importa se duas empresas que conduzem a mesma atividade econômica, tendo o mesmo enquadramento, têm índices de acidentes muito diferentes: a alíquota será a mesma conforme o grau de risco da atividade.

Nos termos do artigo 10 acima transcrito, a aplicação do FAP pode implicar redução da alíquota da contribuição SAT em 50% ou sua majoração em 100%. A redução ou majoração da alíquota em questão pelo FAP depende, como estabelece a lei, da performance da empresa em relação à respectiva atividade econômica, verificada a partir dos resultados obtidos a partir dos índices de frequência, gravidade e custo de acidentes, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS). Assim, como concebido teoricamente, o FAP calibra a alíquota da contribuição SAT a partir do desempenho acidentário individual do contribuinte diante de outras empresas na mesma atividade econômica, com mesmo enquadramento. A empresa com pior performance dentro de tal conjunto contribuirá mais à Seguridade Social, e a com melhores índices contribuirá menos, o que implica o efeito indutor normativo comentado acima.

A lei, como se constata, não definiu a metodologia de apuração dos índices de frequência, gravidade e custo de acidentes, tendo atribuído ao CNPS a tarefa de estabelecer os critérios para o seu cálculo em regulamentação.

3. O FAP e o Princípio da Legalidade Tributária

Um questionamento levado pelos contribuintes ao Poder Judiciário é que o FAP violaria o princípio constitucional da legalidade tributária, segundo o qual o tributo, incluindo todos os seus critérios (material, espacial, temporal, pessoal e quantitativo), deve ser inteiramente estabelecido em lei.

Para comentar esse questionamento, cabe previamente tecer comentários acerca do princípio da legalidade tributária, inclusive sob a luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

3.1. O princípio da legalidade tributária

O artigo 150, I, da Constituição Federal atual estabelece o princípio da legalidade tributária, que é a exigência constitucional de que o poder de tributar seja exercido única e exclusivamente por meio de lei. É uma limitação ao poder de tributar, conforme a letra do texto constitucional. O artigo 97, III, do Código Tributário Nacional dispõe expressamente que somente a lei pode estabelecer a definição do fato gerador da obrigação tributária principal.

De acordo com tal princípio e sob a luz dos valores que busca proteger, para que um determinado evento seja tributado é necessário que tal evento se conforme à hipótese prevista em lei ordinária, que deve dispor acerca do antecedente (aspectos material, temporal e espacial) e do consequente (aspectos pessoal e quantitativo3) da regra-matriz de incidência tributária. Para tanto, a lei deve ser editada conforme o processo legislativo exigido e deve conter um conteúdo tal que permita ao intérprete extrair dela um critério de decisão, de tal sorte que ele possa afirmar previamente se um determinado evento a ocorrer ou a ser realizado será tributado ou não, e com qual intensidade (quantum). E a lei editada sempre deve respeitar os direitos fundamentais do contribuinte.

O desenvolvimento do Estado Democrático e Social de Direito e a complexidade atual da vida econômica tornam desafiadora a aplicação do princípio da legalidade tributária em alguns casos e, consequentemente, a identificação dos limites de interação entre a lei e o regulamento. A disputa envolvendo o FAP é um exemplo.

Nesse tipo de disputa não há, normalmente, dúvida de que a lei foi devidamente editada pelo Poder Legislativo competente (aspecto formal da legalidade), sendo que o debate orbita ao redor do conteúdo da norma legal, sendo central o aspecto material do princípio da legalidade.4

O aspecto material do princípio da legalidade tributária (reserva absoluta de lei) constitui a exigência de o conteúdo da lei dispor, de forma suficiente e clara, acerca da regra-matriz de incidência tributária. É esse aspecto que permite ao contribuinte saber previamente se os seus atos estarão sujeitos à tributação e com qual intensidade. É esse aspecto que assegura, assim, a liberdade/segurança jurídica de o contribuinte poder decidir se vai praticar o evento que, segundo a lei, será tributado.

Conceitualmente, portanto, o aspecto material do princípio da legalidade tributária, em sua acepção pura ou extrema, pressupõe que a lei ordinária que estabeleça a regra-matriz de incidência de um tributo seja autoaplicável, restando à regulamentação apenas o papel de detalhar ou esclarecer a regra, e ainda estabelecer as obrigações acessórias relativas às declarações ao Fisco e ao recolhimento do tributo.5 A regulamentação, desse modo, não teria o papel de fixar ou completar algum aspecto da regra-matriz de incidência tributária.

A prática, todavia, demonstra que nem sempre a lei tributária é autoaplicável, cabendo à regulamentação função mais relevante do que aquela indicada acima.

Um julgamento de destaque, envolvendo o aspecto material do princípio da legalidade tributária, é o caso SAT (RE n. 343.446-SC, 2003). Nesse litígio, o Supremo Tribunal Federal aceitou como constitucional a possibilidade de o Poder Executivo completar, via regulamento, a regra-matriz de incidência da referida contribuição SAT estabelecida em lei, no artigo 22, II, da Lei n. 8.212/1991.

O tribunal considerou como legítima a atribuição de poder ao Executivo para que esse interprete e complete, em regulamento, os conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave”, constantes da lei ordinária. Ou seja, a Corte reconheceu como válido o poder do Executivo de dar maior precisão aos referidos conceitos, o que ao final permite a identificação da alíquota aplicável de 1%, 2% ou 3%.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que tal transferência de poder não constituía uma delegação pura, mas sim uma atribuição de poder vinculada a padrões fixados em lei, de modo que o regulamento constituía um regulamento intra legem, que não implicava inovação da ordem jurídica,6 até porque a base de cálculo e as alíquotas da contribuição estavam estabelecidas em lei.

Mais especificamente, o Ministro Carlos Mário Velloso reconheceu no voto proferido no julgamento do caso SAT que tal regulamento não reflete uma delegação pura, como se depreende do seguinte trecho:

“nesses casos, a lei, fixando parâmetros e padrões, comete ao regulamento essa aferição. Não há falar, em casos assim, em delegação pura, que é ofensiva ao princípio da legalidade genérica (C.F., art. 5o, II) e da legalidade tributária (C.F., art. 150, I).”7

Em outras palavras, o Ministro Carlos Velloso entendeu que o regulamento intra legem é uma espécie de regulamento de execução, no qual o Poder Executivo pode não só esclarecer e desdobrar o conteúdo da lei, como também preenchê-lo com base em dados da realidade.

Dessa maneira, o efeito do julgamento do caso SAT foi reconhecer a legitimidade de atribuição ao Executivo do poder de avaliar o grau de risco efetivo de atividades econômicas, o que permitiu ao Executivo classificar, em regulamento, tais atividades segundo o seu grau de risco e, por consequência, o poder de fixar, dentre as alíquotas previstas em lei, a alíquota específica aplicável a uma determinada atividade. O Supremo decidiu que o regulamento decorrente do exercício dessa atividade executiva foi editado dentro dos limites da lei, o que representa a aceitação, nesse caso, do preenchimento de padrões fixados em lei pelo Chefe do Poder Executivo.

Há outros casos em que o Supremo Tribunal Federal admitiu papel relevante da regulamentação tributária, como a disputa envolvendo a incidência do ICMS sobre os semielaborados, e aquela que aceitou a substituição tributária desse mesmo tributo para frente.8

Disso tudo decorre que a previsibilidade da tributação que deveria ser proporcionada apenas pela lei pode passar a depender, em determinados casos, de um ato normativo do Chefe do Poder Executivo, que pode completar a lei. Nesses casos, a regulamentação passa a ter um papel mais importante, porque fica obrigada, da mesma forma que a lei, a proporcionar a segurança jurídica que não foi assegurada inteiramente em lei ordinária.

Registre-se, por fim, que a concentração de poder nas mãos do Poder Executivo decorrente dessa realidade, que constitui uma inegável flexibilização do aspecto material da legalidade, faz com que a atividade regulamentar necessite de um maior controle e transparência, sob risco de o Executivo não proporcionar a segurança jurídica e oprimir o contribuinte.

3.2. O FAP diante do princípio da legalidade tributária

Como mencionado acima, uma das principais questões levantadas pelos contribuintes perante o Poder Judiciário é que o FAP violaria o princípio constitucional da legalidade tributária.

A esse respeito, é fora de dúvida o fato de que o FAP está sujeito ao princípio da legalidade. Com efeito, sendo um calibrador da alíquota da contribuição SAT, podendo reduzir essa em 50% ou aumentá-la em 100%, o FAP compõe o aspecto quantitativo da referida contribuição social.

A possibilidade de redução em 50% ou aumento em 100% acima referida está estabelecida em lei, de modo que ela, por si só, não configura uma violação ao princípio da legalidade em seu aspecto formal.

A questão mais interessante reside na verificação da constitucionalidade da atribuição à regulamentação fiscal do poder de fixar a metodologia que determina se o contribuinte se beneficiará da redução de 50% da contribuição SAT ou ficará sujeito à alíquota majorada em 100%, tema atinente ao aspecto material da legalidade. Com efeito, a Lei n. 10.666/2003 não é autoaplicável, depende da regulamentação, valendo ressaltar, mais uma vez, que ela trata do aspecto quantitativo da contribuição SAT, eis que introduziu o FAP, genuíno calibrador de alíquota.

Como salientado acima, a redução ou majoração da alíquota em questão pelo FAP depende, como determina a lei, do desempenho individual do contribuinte com relação à incidência de acidentes (em termos de frequência, custo e gravidade), diante da performance de outras empresas na mesma atividade econômica, com mesmo enquadramento. A empresa com os piores resultados dentro de tal conjunto contribuirá mais à Seguridade Social, e a com melhores índices contribuirá menos.

Assim é que para aplicar em um caso específico a alíquota efetiva da contribuição SAT, com o ajuste do FAP, o contribuinte deve: (i) após realizar o enquadramento de sua atividade econômica preponderante9 diante da regulamentação fiscal, verificar o grau de risco dessa atividade - como leve, médio ou grave - e reconhecer a alíquota aplicável de 1%, 2% ou 3%; e (ii) na sequência, após identificar o seu desempenho acidentário dentro do conjunto de empresas que conduz a mesma atividade econômica, aplicar o multiplicador FAP - que varia de 50% a 100% - sobre a alíquota identificada em “i”.

As duas etapas do exercício acima pressupõem uma sofisticada engrenagem entre lei ordinária e regulamentação. A primeira etapa, na fixação da alíquota da contribuição SAT, já conta com a benção do Supremo Tribunal Federal, que aceitou a atribuição da competência regulamentar ao Poder Executivo para interpretar e completar os conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave”, constantes da lei ordinária. A segunda etapa, que envolve o FAP e que se encontra em disputa judicial, envolve: (a) o estabelecimento pelo Poder Executivo, em abstrato, de metodologia para identificar índices de frequência, gravidade e custo para medir os riscos ambientais do trabalho; e (b) a aplicação concreta e individual de tal metodologia, com a identificação do FAP do contribuinte, dentro do conjunto de empresas que conduzem a mesma atividade econômica. A segunda etapa ainda pode envolver um terceiro passo, quando o contribuinte não concordar com o resultado da aplicação pelo Poder Executivo da metodologia dos índices de frequência, gravidade e custo.

Portanto, é evidente que, para identificar a alíquota do SAT, com o ajuste do FAP, o contribuinte deve se debruçar não só sobre as leis ordinárias que regem essa matéria, mas também sobre a regulamentação fiscal aplicável e, finalmente, diante do ato concreto individual que identifica o FAP aplicável a ele.

Nesse passo, vale repetir, a questão que se colocou perante o Poder Judiciário é se a Lei n. 10.666/2003, ao fixar a competência regulamentar do CNPS para estabelecer a metodologia acima comentada, teria violado o princípio constitucional da legalidade tributária, em seu aspecto material.

A questão, evidentemente, não é tranquila, e há diferentes opiniões sobre o tema na doutrina.10

Na nossa visão, a Lei n. 10.666/2003 não violou, em abstrato, o princípio constitucional da legalidade tributária ao atribuir à regulamentação do CNPS competência para dispor acerca da metodologia de identificação dos índices de frequência, gravidade e custo de acidentes, a fim de medir os riscos ambientais do trabalho. Isto porque, como ocorreu no caso da contribuição SAT, também se configura, no nosso sentir, caso de regulamentação intra legem.

Sem dúvida, o CNPS não ficou livre para estabelecer qualquer metodologia na apuração dos índices acidentários das atividades econômicas. A metodologia a ser fixada em regulamentação pelo CNPS deve fazer sentido legal, sendo coerente e atenta à intenção do legislador de buscar o reconhecimento dos índices de frequência (i.e., quantidade de acidentes ocorridos em um determinado período), gravidade (i.e., seriedade dos acidentes, considerando seus efeitos, como, por exemplo, aqueles que causam a morte ou afastamento temporário), e custo (i.e., ônus econômico) de acidentes no ambiente de trabalho. Tais índices se tratam de genuínos padrões, parâmetros fixados em lei, que devem ser observados pelo Executivo na edição da regulamentação fiscal.

Cumpre ressaltar que esse importante papel do CNPS não significa que haja discricionariedade11 ou discricionariedade técnica12-13 diante da lei ordinária, envolvendo juízos de conveniência e oportunidade na escolha de indiferentes jurídicos, como há no Direito Administrativo. Há nessa atividade, isso sim, a aplicação de juízos de legalidade, passível de controle pelo Poder Judiciário.14

A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais que vem se formando é no sentido de que o FAP não desrespeita a legalidade tributária. A título exemplificativo, cabe transcrever trecho de voto do Desembargador Federal José Lunardelli, do Tribunal Regional Federal da Terceira Região: “(...) mas, por seu caráter genérico, a lei não deve descer a minúcias a ponto de elencar todas as atividades e seus respectivos graus de risco. Essa competência é do Decreto regulamentar, ao qual cabe explicitar a lei para garantir-lhe a execução.” (Agravo Legal em Apelação Cível n. 0002476-73.2010.4.03.6100, j. em 30.10.2012; foram interpostos recursos especial e extraordinário) Na Quarta Região, em Arguição de Inconstitucionalidade rejeitada por maioria, assim se manifestou o Desembargador Federal Victor Luiz dos Santos Laus: “Basicamente, Sra. Presidente, seriam essas as considerações que eu faria, porque todos nós aqui somos ciosos da defesa do contribuinte e da legalidade, da constitucionalidade, mas me parece que o art. 10 que se apresenta como inconstitucional resiste às críticas que se fazem a ele. Parece-me que ele definiu adequadamente a hipótese de que está tratando, e essa delegação feita ao poder regulamentar é uma delegação travada, é uma delegação confinada, exatamente pela adoção dos métodos dos percentis. Então, inviável no plano abstrato qualquer consideração, digamos assim, a priori, de que a norma seja incompleta.” (Arguição de Inconstitucionalidade n. 5007417-47.2012.404.0000/TRF, j. em 25.10.2012; foram interpostos recursos especial e extraordinário)

Em junho de 2012, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da questão, que será decidida no julgamento do recurso extraordinário n. 684.261, de relatoria do Ministro Luiz Fux (tema 554). O assunto também é objeto de discussão nas ADINs ns. 4.397 e 4.660, ambas de relatoria do Ministro Dias Toffoli.

A conclusão e o contexto acima apresentados demonstram, na nossa visão, mais um caso em que o princípio da legalidade tributária poderá ser flexibilizado, no mesmo sentido dos outros precedentes julgados pelo Supremo indicados acima.

4. O FAP e a Separação de Poderes

Não se pode tratar do princípio da legalidade tributária e dos limites entre a lei e a regulamentação fiscal no caso FAP sem também abordar a questão da separação dos poderes.

Com efeito, a pergunta que se coloca sob esse ângulo é se o Legislador, ao editar o artigo 10 da Lei n. 10.666/2003 e atribuir à regulamentação do CNPS competência para dispor acerca da metodologia de identificação dos índices de frequência, gravidade e custo de acidentes, teria violado o princípio da separação dos poderes/distribuição de funções.

No século XVIII, pouco antes da Revolução Francesa, Montesquieu15 concebeu a teoria da separação de poderes a partir da premissa de que o poder deve limitar o poder em virtude de que todo homem que detém o poder é levado a dele abusar. O homem vai até onde encontra limites.16

Afirma Montesquieu:

“quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente”.17

Tendo em vista a importância que a questão da tributação teve para a formação do Estado de Direito, Montesquieu também diz:

“se o poder executivo estatuir [legislar] sobre a arrecadação do dinheiro público de outra forma que não a de seu consentimento, não haverá mais liberdade, porque ele se tornará legislativo no ponto mais importante da legislação”.18

A partir de premissas dessa natureza, e diante do sistema inglês, Montesquieu19 defendia a não concentração de poder em um mesmo homem, exigindo que fossem organizados órgãos compostos por diferentes indivíduos para exercer os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.20 De acordo com essa ideia, o Poder Legislativo estava incumbido da criação das leis, normas gerais em abstrato; o Poder Executivo era responsável pela aplicação das leis; e o Poder Judiciário tinha a função de pacificar conflitos. Para que os Poderes não fossem exercidos de forma abusiva, Montesquieu pregava a instituição de um sistema de freios e contrapesos (checks and balances) permitindo que um Poder tivesse alguma interferência no outro Poder, criando uma situação de equilíbrio.21-22 Dentro desse sistema, cada Poder deveria agir dentro das competências a ele atribuídas, não podendo invadir a competência de outro, nem delegar suas funções.23

A Constituição ficaria incumbida de estabelecer as competências de cada Poder. Ela fixaria as raias dentro das quais cada Poder deveria cumprir o seu papel, como modo de buscar a proteção contra a arbitrariedade dos governantes.

Tendo em vista que no Estado de Direito o poder é uno e indivisível e emana do povo, o mais apropriado é falar em separação de “funções”,24 e não em separação de poderes, como originalmente concebido.

Ademais, e como já advertia Hans Kelsen25 no século XX, o mais adequado é falar em “distribuição” de funções e não na separação delas, já que a completa separação não existe e o foco do princípio da tripartição de poderes é evitar a concentração de poder em um só órgão. Kelsen também afirmava que o Poder Legislativo tem, na realidade, uma prioridade, uma posição favorecida na edição de normas gerais, o que não exclui a possibilidade de o Poder Executivo editar normas de mesma estatura.

No início do século XX, Jellinek afirmava ser ingênuo acreditar na coincidência de toda a atividade normativa no Poder Legislativo, o que não solucionava diversos problemas teóricos e práticos da Teoria do Estado.26 Antes, James Madison,27 ao defender a separação de poderes como forma de combate do uso tirânico do poder, reconhecia que tal separação não existia de forma plena nas constituições dos vários estados norte-americanos, mas deveria ser buscada.

Desse modo, muito embora a teoria de Montesquieu pregasse a independência dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, estudiosos da Teoria do Estado já afirmavam que a separação de poderes não existia de forma plena, sendo um ideal.

À medida que o Estado de Direito vai desenvolvendo, diante dos compromissos sociais assumidos perante o povo e em virtude da crescente complexidade das atividades econômicas, vai ficando cada vez mais evidente e intensa a participação normativa do Poder Executivo.28 Esse cenário é tão marcante que deixa de refletir o bom senso afirmar que a organização atual do Estado reflete a doutrina clássica da separação de poderes de Montesquieu.29-30

O Poder Legislativo passa a traçar as linhas gerais de como uma matéria deve ser tratada, e o Poder Executivo regula tal matéria de forma cada vez mais detalhada sob a luz dos seus aspectos técnicos e práticos, que vão se tornando cada vez mais importantes. A atividade do Poder Legislativo vai se limitando, assim, às grandes escolhas políticas, atribuindo-se ao Executivo o direito de regular os demais aspectos da matéria relevante, sobretudo os técnicos.

É exatamente nesse cenário que a lei tributária propriamente dita vai paulatinamente perdendo a sua força com a atribuição de uma importância maior ao regulamento.

O caso FAP é um exemplo dessa realidade. Para verificar a validade do artigo 10 da Lei n. 10.666/2003 diante do princípio da separação de poderes/distribuição de funções, cabe questionar se o Executivo estaria livre para eleger qualquer metodologia para fins de apuração de acidentes a serem considerados na determinação do FAP.

Como mencionado acima, o CNPS não tem um cheque em branco para estabelecer qualquer metodologia na apuração dos índices acidentários das atividades econômicas; ele não foi habilitado pela lei para tanto. O Legislador, ao editar a Lei n. 10.666/2003, teve o cuidado de estabelecer que metodologia a ser fixada em regulamentação pelo CNPS deve ser determinada a fim de identificar “índices de frequência, gravidade e custo” de acidentes. A lei ordinária fixou, portanto, o padrão a ser observado e respeitado pelo CNPS; há vinculação a uma finalidade determinada na lei.

Por sua vez, o CNPS, ao conceber a metodologia em questão na regulamentação, deve se certificar que a mesma apura efetivamente índices de frequência, gravidade e custo de acidentes da atividade do contribuinte, trabalhando com elementos que tenham pertinência lógica com tais conceitos. Nesse particular, entendemos que os conceitos de “frequência”, “gravidade” e “custo” têm densidade suficiente para o intérprete extrair um critério de decisão e verificar se o CNPS extrapolou ou não a competência regulamentar que lhe foi conferida. Como salientado acima, pode-se entender: (a) frequência como a quantidade de acidentes ocorridos em um determinado período; (b) gravidade como a severidade dos acidentes (considerando seus efeitos, como, por exemplo, aqueles que causam a morte ou afastamento temporário); e (c) custo como o ônus econômico de acidentes no ambiente de trabalho.

Adicionalmente, nem seria adequado, na nossa percepção, o Legislativo assumir a tarefa de estabelecer a metodologia de “índices de frequência, gravidade e custo” de acidentes. Isto porque, pelo menos a princípio, o CNPS têm mais elementos concretos, informações gerais e experiência para tratar do tema.

Logo, na nossa ótica, o artigo 10 da Lei n. 10.666/2003 não viola o princípio da separação de poderes/distribuição de funções.

Nesse sentido, também há manifestações do Poder Judiciário. A título exemplificativo, cumpre citar as palavras do Desembargador Federal André Nekatschalow: “Não se poderia conceber ao legislador competência de regular, na própria lei, os critérios de cálculo matemático utilizados para esse efeito.” (Agravo Legal em Apelação Cível n. 0017499-25.2011.4.03.6100/SP, j. em 1º.04.2013; foram opostos embargos de declaração)

Parece-nos que o julgamento do STF no caso SAT (RE n. 343.446-SC, 2003) corrobora a conclusão de não violação do princípio da distribuição de funções no litígio judicial envolvendo o FAP. Naquele caso, o tribunal considerou como legítima a atribuição de poder para o Executivo interpretar e completar, em regulamento, os conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave”, constantes da lei ordinária. É evidente que, para se verificar o risco de uma atividade econômica, o Executivo necessita previamente definir uma metodologia. Muito embora isso não esteja explícito na lei, é o que se pode naturalmente inferir da norma, já que a atividade de coleta de dados concretos para identificar o risco de uma atividade não pode ser realizada sem se definir, de antemão, o método que será utilizado para tanto. No caso FAP, a lei explicitamente conferiu competência regulamentar ao Executivo para fixar a metodologia para apurar “índices de frequência, gravidade e custo” de acidentes, para se comparar individualmente o desempenho de um contribuinte diante de outros que desenvolvem a mesma atividade econômica. Não há, por consequência, diferença marcante para se afastar a aplicação do precedente do SAT julgado pelo STF ao caso FAP, no que se refere à violação do princípio de separação de poderes.

4.1. Reequilíbrio de poderes/funções

A consequente e maior importância da regulamentação tributária, diante da flexibilização do princípio da legalidade tributária, que também se verifica no caso FAP, acarreta uma maior concentração de poder nas mãos do Executivo, o que não constitui por si só uma violação ao princípio da distribuição de funções/separação de poderes.

Nesse particular, é de suprema importância ter em mente que o fato de a regulamentação tributária ter um papel mais relevante no ordenamento jurídico não significa que essa passe a ter o mesmo status jurídico de lei, ou passe a estar integrada na lei. A lei e o regulamento continuam sendo instrumentos normativos independentes, de hierarquia distinta.31

No caso de a Administração Tributária editar regulamentação fiscal em descompasso com a Constituição Federal ou com a lei, o contribuinte continua tendo acesso ao Poder Judiciário, que deverá conhecer e julgar o seu pleito.

A questão dos limites da revisão judicial diante do poder regulamentar do Fisco em um contexto de flexibilização do princípio da legalidade tributária passa então a ser o maior desafio dos operadores do Direito.

Quando se discutem juízos de legalidade, o controle judicial da atividade regulamentar é pleno.

Não obstante, quando a regulamentação tributária intra legem envolve juízos de legalidade e a coleta de dados em concreto, como ocorre nos casos SAT e FAP, a possibilidade de controle judicial da regulamentação continua a existir, mas o foco desse controle vai deixando de ser a regulamentação fiscal em si mesma, e vai sendo substituído pelo modo como a referida regulamentação foi editada. Ou seja, o processo de edição da regulamentação vai se tornando mais importante, devendo também ser objeto de revisão judicial.

A ampliação da possibilidade de revisão judicial constitui uma medida de reequilíbrio de funções/poderes que o contexto exige. À medida que o poder regulamentar vai aumentando, com a flexibilização da lei, deve-se permitir ao Judiciário realizar uma revisão mais profunda na atividade regulamentar, munindo-o com instrumentos para tanto.

Um exemplo ajuda a compreender: após o Executivo fixar na regulamentação tributária que uma determinada atividade tem o grau de risco grave para fins da fixação da alíquota do SAT, o contribuinte provavelmente não teria o seu pleito individual acolhido judicialmente para reconhecer que a mesma atividade, só que por ele conduzida e diante dos seus investimentos feitos em segurança, tem o grau de risco médio, tendo em vista que isso implicaria a distorção da norma fixada na lei e completada por regulamento. O Poder Judiciário provavelmente entenderia que, para estabelecer em uma ação judicial individual uma alíquota inferior àquela aplicável segundo a classificação de risco da atividade na regulamentação, ele atuaria como legislador/regulamentador positivo,32 com a instituição de uma situação de desigualdade diante de outras empresas que conduzem a mesma atividade (e que também podem ter feito investimentos relevantes em segurança).

Por outro lado, o contribuinte poderia discutir no Judiciário o modo como a atividade econômica foi enquadrada como de risco grave, argumentando, por exemplo, que os investimentos por ele realizados não foram levados em consideração, que o Executivo atuou de forma arbitrária ao enquadrar a atividade como de risco grave, que o Executivo não analisou o universo efetivo de empresas naquela atividade, que os critérios técnicos usados no referido enquadramento estavam equivocados, que o resultado da regulamentação acarreta violação de direitos fundamentais, que a regulamentação em vigor está obsoleta etc.

Contudo, a possibilidade de discutir as questões acima no Poder Judiciário é dificultada na atualidade em virtude da ausência de um processo formalizado para edição da regulamentação fiscal que trata da classificação do grau de risco das atividades econômicas, bem como para a produção da metodologia do FAP, mas é exatamente aqui onde se encontra a importância do reconhecimento da necessidade de reequilíbrio de funções/poderes mencionado acima, com a ampliação da revisão judicial.

É claro que podem existir casos de ilegalidade evidente em que a atividade de coleta de dados concretos conduzida pela Administração Tributária distorce tanto a realidade que permite ao juiz afastar de plano a regulamentação editada, apesar de ser seu papel completar a lei.

Muito embora ainda não existam muitos casos sobre a discussão dos limites da revisão judicial nessas hipóteses, cumpre mencionar o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.000.302/RS, decidido no dia 12 de maio de 2009 (DJU de 27.5.2009), que trata de um processo envolvendo a contribuição SAT e dos limites do controle judicial.

O recorrente interpôs recurso especial diante do acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região que decidiu que a alíquota do SAT é graduada pela lei segundo o grau de risco da atividade em geral, e não diante do risco efetivo existente em cada uma das empresas. Diante do recurso especial interposto, o Ministro Castro Meira proferiu voto no sentido de que o Poder Judiciário não poderia rever o enquadramento da atividade do recorrente como de risco grave pelo Executivo, o que impediu a revisão judicial da forma como o poder normativo do Fisco foi exercido.

O Ministro Mauro Campbell Marques, ao proferir voto-vista, reconheceu que, muito embora o Executivo tenha o poder de classificar o grau de risco das atividades econômicas, tal atividade classificatória deve ser efetivamente realizada pela Administração Tributária, sob pena de a regulamentação se tornar arbitrária. Para esse julgador, o limite da intervenção do Poder Judiciário no caso seria determinar a realização de inspeções pelo Executivo para que se reclassificasse, se o caso, o nível de risco da atividade do recorrente, tendo em vista que o Executivo não realizava tal avaliação há anos. Para ele, o Poder Judiciário não poderia reenquadrar especificamente a atividade do contribuinte em juízo, pois tal medida violaria o princípio da distribuição de funções/separação de poderes.

O raciocínio acima, do Ministro Campbell, comprova que a flexibilização do princípio da legalidade tributária não significa que a Administração Tributária está livre para preencher em regulamentação os conceitos indeterminados utilizados em lei na forma e no momento que lhe convier. O controle judicial do modo e do tempo do exercício do poder normativo pelo Fisco deve ser exercido para evitar a utilização inadequada do poder regulamentar pelo Executivo, como forma de observação do princípio da distribuição de funções/separação de poderes.

Cabe lembrar também que o artigo 49, V, da Constituição Federal atribui competência ao Congresso Nacional para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem os limites do poder regulamentar ou a delegação legislativa. Ou seja, o Congresso Nacional também deve realizar um controle de legalidade da regulamentação. Apesar de não se ter notícia da utilização do referido dispositivo pelo Congresso Nacional na área tributária,33 esse mecanismo disponível ao Poder Legislativo constitui, ao lado da revisão judicial, outro importante meio de controle do exercício do poder normativo pela Administração Tributária e de proteção da segurança jurídica.

Com a flexibilização da legalidade tributária, o Congresso Nacional deve passar a fiscalizar de forma próxima e cautelosa como o Poder Executivo exerce o poder regulamentar tributário para, se o caso, sustar a regulamentação produzida. A participação efetiva dos congressistas na edição de lei ou na conversão de medida provisória em lei continua sendo uma atividade fundamental, mas o Congresso Nacional deve perceber que, com os limites inerentes à lei tributária, o seu papel somente será inteiramente cumprido se for verificado que a lei foi devidamente regulamentada pela Administração Tributária, sob risco de a intenção dos representantes do povo, materializada em lei, ser posteriormente distorcida na regulamentação. É necessário que esse mecanismo seja efetivamente utilizado com a expedição dos competentes decretos legislativos.

Observe-se que o artigo 49, V, da Carta Magna trata de “atos normativos” em geral do Poder Executivo, o que, na nossa visão, abarca a regulamentação tributária em geral, não se limitando aos regulamentos em sentido estrito.

Mesmo com a possibilidade de sustação dos atos normativos do Executivo pelo Congresso Nacional e de revisão pelo Poder Judiciário, a flexibilização do princípio da legalidade tributária reclama uma maior proteção do contribuinte, já que, em algumas ocasiões, pode não ser claro se a Administração Tributária operou conforme à Constituição Federal e à lei ao exercer o poder regulamentar.34 Essa maior proteção do contribuinte pode ser alcançada por meio de um reequilíbrio de funções/poderes, com a instituição de novos mecanismos jurídicos de proteção, aptos a permitir o controle pleno da regulamentação tanto pelo Congresso Nacional quanto pelo Poder Judiciário, como o processo estudado no presente trabalho.

Comprovando a necessidade de um processo regulamentar, cabe registrar a observação feita pelo Juiz do Trabalho Francisco Milton Araújo Júnior no sentido de que o exercício do poder regulamentar, na alteração do Anexo V do Regulamento da Previdência Social implementado pelo Decreto n. 6.957/2009, foi abusivo, eis que, a fim de neutralizar qualquer benefício que poderia ser concedido em virtude da aplicação do FAP, o grau de risco de muitas atividades econômicas foi reclassificado de leve ou médio para grave, majorando, por consequência, a alíquota do SAT para 3%.35

5. Participação do Contribuinte na Regulamentação Tributária e o FAP

5.1. A flexibilização da legalidade tributária e a necessidade do processo regulamentar

Diante de uma complexa realidade em que a lei deixa de ter a mesma força de contenção da Administração Tributária de outrora, o operador do Direito Tributário se encontra preocupado à medida que percebe que o tradicional e idolatrado instrumento de proteção da liberdade e da segurança jurídica perde, na atualidade, o seu vigor original. A preocupação decorre do sentimento de que o princípio da legalidade tributária não consegue mais determinar, em alguns casos, como a Administração Tributária se comportará diante de uma dada situação concreta, sendo que às vezes a própria lei dá margem indevida de atuação normativa ao Fisco.

Essa crise se agrava em razão da utilização de medidas provisórias pelo Executivo e dos casos de produção de regulamentação tributária opressora (ou omissão da regulamentação fiscal). Cria-se uma circularidade normativa em volta do Executivo, na qual o risco de opressão do contribuinte passa a ser muito alto.36

Muito embora o contribuinte possa reagir contra uma regulamentação fiscal opressora no Poder Judiciário, nada pode ele fazer para evitar a sua edição e o litígio. Os controles da regulamentação fiscal realizados pelo Legislativo e pelo Judiciário comentados acima são repreensivos, mas não preventivos.

Diante de tal realidade, o operador do Direito tende a se agarrar ao princípio da legalidade tributária e acaba olvidando que a lei propriamente dita, em razão da linguagem, pode conter em si mesma uma limitação técnica, não constituindo mais um mecanismo de segurança totalmente eficaz. Em algumas situações, a própria lei faz um reenvio à regulamentação tributária, deixando para a última um papel que deveria ter sido efetivamente cumprido pela lei.

Logo, sem deixar de celebrar a posição daqueles que continuam a pregar a utilização exclusiva de conceitos determinados na lei tributária sem reenvios à regulamentação, o que, sem dúvida alguma, constitui um mecanismo de garantia mais forte, deve-se reconhecer a necessidade de discussão dos meios de prevenção de controvérsias com o Fisco.37 Importantes estudos já foram produzidos sobre os mecanismos alternativos de solução de controvérsias no campo tributário,38 mas também devem ser pensados e considerados meios de prevenção dessas controvérsias.

Para tanto, é fundamental lembrar que o princípio da legalidade tributária não se encontra isolado no sistema jurídico, constituindo uma espécie de legalidade dentro do Estado de Direito, que também abarca a legalidade genérica (artigo 5º, II, da Constituição Federal), a legalidade administrativa (artigo 37 da Carta Magna) e outros princípios que protegem os direitos fundamentais do contribuinte. A crise que desencadeou a flexibilização do princípio da legalidade tributária está relacionada apenas com as limitações inerentes à lei.39 Essa crise não constitui uma libertação do Fisco para que este possa agir como bem entender, de forma obscura e sem motivar seus atos; o Estado de Direito continua a existir com o mesmo vigor e o arbítrio continua sendo inadmissível.

Nessas circunstâncias, deve-se adotar uma nova atitude diante da realidade, com a percepção da relevância atual da regulamentação tributária e com o reconhecimento da necessidade de identificação de um novo mecanismo de proteção do contribuinte e de prevenção de controvérsias, apto a assegurar um ambiente de certeza jurídica e, assim, o Estado de Direito.

5.2. O princípio da legalidade processual - da regulamentação tributária ao processo regulamentar com a participação do contribuinte

No cenário acima descrito, deve-se reconhecer a existência de uma legalidade ainda pouco estudada no campo tributário brasileiro, qual seja: a chamada legalidade processual.40 No âmbito tributário, a legalidade processual é uma espécie ou uma faceta da legalidade tributária, que exige que qualquer ato administrativo ou regulamentação tributária, seja precedido de um processo. O processo assegura a transparência do modus operandi da Administração Tributária, de tal modo a garantir que esta atue dentro das balizas da lei e do ordenamento jurídico, com a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte.

Embora não tratem do processo administrativo de edição de normas pela Administração Pública (mas sim do processo na solução de casos concretos), as palavras de Odete Medauar são aplicáveis à legalidade processual relativa à produção de regulamentação fiscal:

“no vínculo legalidade-processo administrativo, este representa uma das garantias do princípio da legalidade, porque significa atuação parametrada da autoridade administrativa, em contraposição à atuação livre, mais suscetível ao arbítrio. Mesmo que exista parcela de discricionariedade em alguma fase do processo administrativo, o conhecimento dos mecanismos decisionais e dos fatos da situação, inerentes à processualidade, possibilitam direcioná-las às verdadeiras finalidades da atuação.”41

Nesse passo, tendo em vista a insuficiência da lei para proporcionar a segurança jurídica em determinados casos, a “liberdade” que a Administração Tributária tradicionalmente tem na edição unilateral da regulamentação fiscal e a maior importância atribuída a esta última recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, pode-se afirmar que a legalidade processual deve ser reconhecida no Brasil para estruturar e dar transparência às etapas percorridas entre a edição da lei tributária e a publicação da regulamentação fiscal, de tal forma a assegurar um ambiente seguro juridicamente e a possibilitar a prevenção de litígios. Desse modo, as decisões tomadas pela Administração Tributária no preenchimento de conceitos indeterminados da lei e na coleta de dados da realidade passam a se tornar, por meio do processo, transparentes e passíveis de controle. O mesmo se aplica às decisões do Fisco na edição de regulamentação com fundamento em reenvios determinados por lei.

A preocupação com a relação hierárquica entre lei e regulamento deve ser ampliada para incluir também a atenção sobre a maneira como o poder regulamentar é exercido, sob a luz da lei e do ordenamento jurídico. Continua-se a examinar a regulamentação tributária propriamente dita (resultado) diante da lei e do ordenamento jurídico, mas a legalidade processual permite que se verifique também como o poder regulamentar foi exercido (meio). A mera publicação da regulamentação fiscal não é mais suficiente.

Ora, à medida que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a prática vão demonstrando como a regulamentação fiscal vai ficando mais forte, com uma maior concentração de poder no Executivo, nada mais natural que a atribuição regulamentar passe a se sujeitar à disciplina processual, como uma medida de legalidade que busca a proteção da segurança jurídica e da liberdade.42-43-44 Em outras palavras, o processo de edição da regulamentação fiscal com participação do contribuinte constitui um contrapeso processual obrigatório à maior importância atribuída ao poder regulamentar pela lei ordinária, que vem sendo aceito pelo Poder Judiciário. O processo regulamentar possibilita a prevenção ao litígio e protege o contribuinte, que também deve ter legitimidade para dar início ao referido processo no caso de omissão da Administração Tributária. Esse é o contexto no qual deve ser reconhecida a legalidade processual como uma faceta ou garantia da legalidade tributária.

Dessa maneira, o conteúdo da legalidade processual no que toca aos atos normativos é a exigência de a edição da regulamentação tributária ser precedida de um processo. A instituição de um processo permite a conferência, a partir dos atos que o compõem, de que o poder regulamentar foi ou não bem exercido. A legalidade processual também exige que se reconheça a legitimidade do contribuinte provocar o exercício do poder regulamentar com base na lei, como forma de protegê-lo da omissão intencional do Fisco. A legalidade processual busca, portanto, o bom desempenho da atribuição regulamentar pela Administração Tributária, com vistas à efetividade do princípio da legalidade tributária e, por consequência, da segurança jurídica e da liberdade. Trata-se de medida de preservação do Estado de Direito brasileiro.

Não se pode olvidar que a ideia de que o ato administrativo concreto deve ser precedido de um processo específico decorre de uma sucessão de eventos ao longo do tempo, não tendo sido sempre uma questão pacífica. Nesse campo, o Direito Tributário, o Direito Administrativo disciplinar e a legislação sobre as licitações foram pioneiros, dada a necessidade de proteção do particular diante da Administração Pública.

Atualmente, é tranquilo que qualquer ato administrativo ou tributário individual e concreto deve ser precedido de um procedimento ou processo,45 sendo evidência desse entendimento comum o Decreto n. 70.235/1972, a Lei n. 9.784/1999 e a Lei n. 10.177/1998 do Estado de São Paulo. Ninguém ousaria afirmar hoje que não haveria a necessidade de um procedimento ou processo administrativo para demissão de um servidor público, para a lavratura de um auto de infração ou para discussão desse na esfera administrativa.46-47 Inclusive, na seara do FAP, a própria Administração Tributária acabou por admitir que, quando o contribuinte questiona o FAP a ele individualmente atribuído, é instaurado um processo administrativo com efeito suspensivo.48

Da mesma forma, espera-se que, com a evolução da doutrina, da jurisprudência e da legislação sobre o tema, seja reconhecido com tranquilidade no futuro que a regulamentação tributária deve ser precedida de um processo, consagrando-se ainda o direito do contribuinte de participar nesse processo, nos termos aqui discutidos.

Outros princípios justificam a instituição de um processo para edição da regulamentação tributária em casos como o FAP (ou mesmo para reduzir litígios), quais sejam: (i) devido processo legal; (ii) motivação; (iii) isonomia; (iv) democrático; (v) boa-fé; (vi) transparência tributária; e (vii) eficiência.49

5.3. A regulamentação do FAP e a necessidade da participação do contribuinte como medida de reequilíbrio de funções e prevenção de controvérsias

Para regulamentar o FAP, o Executivo federal editou os Decretos ns. 6.042/2007 e 6.957/2009, ambos alterando o Regulamento da Previdência Social (Decreto n. 3.048/1999). O CNPS editou a Resolução n. 1.308/2009, posteriormente modificada pela Resolução n. 1.316/2010. Em tais atos normativos foi determinada a metodologia do FAP, com o detalhamento dos índices de frequência, gravidade e custo de acidentes.

Acerca desse ponto específico, deve-se salientar que contribuintes também questionam perante o Poder Judiciário a metodologia do FAP instituída em abstrato pelo CNPS. Em geral, os contribuintes argumentam que a metodologia adotada também leva em conta benefícios decorrentes de acidentes não relacionados com o ambiente de trabalho (como os ocorridos no trajeto ou percurso para o trabalho), não havendo uma relação de pertinência-lógica entre esses elementos e os objetivos do FAP. Contribuintes também salientam que não devem ser considerados os benefícios pagos no período em que o INSS estiver em greve, quando o pagamento já deveria ter sido interrompido, os quais são cancelados na sequência de as atividades de referida entidade terem voltado à normalidade. Além disso, os contribuintes afirmam que, como a determinação do FAP depende não somente das suas informações acidentárias, como também das informações de outras empresas que desenvolvem a mesma atividade econômica, a divulgação de seu FAP individual, sem ter acesso às informações das outras empresas etc., impediria a verificação da correção da apuração do FAP, violando o princípio da transparência, da motivação, entre outros.

Como exemplos de processos em que essas discussões são travadas, pode-se mencionar os Processos n. 0021055-35.2011.4.03.6100 (processo ainda em curso perante a 26ª Vara da Justiça Federal em São Paulo) e n. 0005316-56.2010.4.03.6100 (ação ordinária em andamento junto à 25ª Vara da Justiça Federal em São Paulo, tendo sido a sentença proferida anulada exatamente para realização de dilação probatória).

Essas disputas judiciais, evidentemente, corroboram a conclusão pela necessidade de processo para edição da regulamentação fiscal, eis que a discussão prévia dos critérios acima referidos em um processo poderia evitar controvérsias e, no caso dessas ocorrerem, permitiria a revisão judicial plena. Apenas diante das normas regulamentares, sem a existência de um processo organizado para sua edição, corre-se o sério risco de o Poder Judiciário entender que não poderia intervir no exercício desse poder regulamentar (ou que essa intervenção seria limitada), como ocorreu no julgamento do Recurso Especial n. 1.000.302/RS, tratado anteriormente, o que criaria alto risco de opressão fiscal.

Tendo em vista o acima exposto, a provável conclusão do Poder Judiciário de que a Administração Tributária tem competência regulamentar para tratar do FAP, considerando ainda a legalidade processual acima abordada, fácil é concluir que tanto a elaboração da regulamentação do artigo 10 da Lei n. 10.666/2003 pelo Presidente quanto a fixação abstrata da metodologia de apuração dos índices de frequência, gravidade e custo de acidentes pelo CNPS deveria ter sido submetida a um prévio processo formal para discussão do tema em abstrato, com a participação do contribuinte, que teria como ato final a edição da norma infralegal (i.e., decreto e resolução, respectivamente).

Em referido processo, seriam discutidos a metodologia em questão, a identificação dos critérios de apuração dos índices de acidentes, a lógica desses sob a luz das finalidades da lei, a forma de sua aplicação diante da realidade experimentada pelos contribuintes etc. O reconhecimento do cabimento de um processo e a sua formalização, em autos físicos ou digitais, permitiria a documentação dos debates entre Fisco e contribuinte, bem como dos motivos para a edição da regulamentação, permitindo adequada revisão judicial. A discussão interna do assunto, ainda que com recebimento de comentários da sociedade, sem a formalização dos debates que permita a revisão judicial, não equivale ao processo de edição da regulamentação em questão com a participação do contribuinte. O processo, cumpre ressaltar, controla, condiciona a vontade da Administração Tributária. Por outro ângulo, o processo sustenta a posição adotada pelo agente administrativo, pois documenta a motivação de sua decisão na elaboração da norma, a lisura de suas atitudes e a conformidade de sua vontade à lei. No processo, o agente demonstra sua independência.

A ausência de um processo formal representa alto risco de opressão do contribuinte, em detrimento da segurança jurídica, pois, como abordado acima, cria-se uma perigosa circularidade normativa em volta do Poder Executivo, dando-lhe muito poder. Vale lembrar que foi o próprio Poder Executivo que originalmente instituiu o FAP na Medida Provisória n. 83/2002, posteriormente convertida na Lei n. 10.666/2003, regulamentando-o posteriormente em decretos e em resoluções do CNPS. Ademais, é o próprio Poder Executivo que classificou o risco das atividades econômicas para fins do SAT, atividade essa que, como comentado acima, parece ter sido exercida de forma abusiva, como noticia o mencionado magistrado do trabalho.

6. Conclusão

Do acima exposto, conclui-se que, no nosso sentir, o Poder Judiciário acabará por decidir que a instituição do FAP está em conformidade com o princípio da legalidade tributária, bem como que a atribuição de poder ao Executivo e ao CNPS para regulamentá-lo, inclusive com o estabelecimento do método de fixação dos índices de frequência, gravidade e custo de acidentes, não viola o princípio da separação de poderes/distribuição de funções.

Esse resultado, caso se materialize, confirmará, mais uma vez, a flexibilização do princípio da legalidade tributária, com maior risco de opressão fiscal, o que exige, como contrapeso, a instituição de um processo para edição da regulamentação fiscal, com o reconhecimento do direito do contribuinte de participar nele. Apenas com esse reequilíbrio será assegurada a segurança jurídica, com a possibilidade de plena revisão judicial e adequada proteção do contribuinte.

1 É o que se infere da exposição de motivos da Medida Provisória n. 83/2002, posteriormente convertida na Lei n. 10.666/2003: “31. No art. 10, faz-se proposta de flexibilização de alíquotas de contribuição em razão dos desempenhos das empresas na prevenção dos acidentes de trabalho. A preocupação com a saúde e segurança dos trabalhadores constitui-se em um dos temas de mais elevado poder aglutinador. Mesmo reconhecendo que a necessidade de proteger o trabalhador que trabalha em ambiente ou serviço perigoso, insalubre ou penoso é da empresa que assume o risco da atividade econômica e deve responsabilizar-se pelas conseqüências das enfermidades contraídas e acidentes do trabalho sofridos pelos empregados, na prática que (sic) as suporta é o Governo, por meio do Ministério da Saúde em relação às despesas médicas e hospitalares e do INSS em relação às incapacidades laborativas, temporárias ou permanentes e às mortes. 32. A proposta visa introduzir mecanismos que estimulem os empresários a investirem em prevenção e melhoria das condições do ambiente de trabalho, mediante a redução, em até 50%, ou acréscimo, em até 100%, da alíquota de contribuição destinada ao financiamento das aposentadorias especiais ou dos benefícios concedidos em razão de acidentes ou de doenças ocupacionais, conforme a sua posição da empresa na classificação geral apurada em conformidade com os índices de freqüência, gravidade e custo das ocorrências de acidentes, medidas segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social - CNPS. A participação do CNPS na validação desta metodologia é de fundamental importância devido ao caráter quadripartite (governo, aposentados, trabalhadores e empregadores) da sua composição.”

2 Sobre normas indutoras no Direito Tributário, vide: SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

3 Com exceção dos tributos cujas alíquotas podem ser alteradas diretamente pelo Poder Executivo via decreto, conforme previsto na Constituição Federal.

4 Sobre o princípio da legalidade, seus aspectos material e formal e respectivas discussões, vide o nosso: AMENDOLA, Antonio Carlos de Almeida. Participação do contribuinte na regulamentação tributária. Porto Alegre: Magister, 2011.

5 Pode-se afirmar que há uma controvérsia doutrinária acerca do conteúdo preciso do aspecto material do princípio da legalidade. Parte da doutrina defende o dever de utilização exclusiva de conceitos determinados na lei ordinária que fixa a regra-matriz de incidência tributária. Outros autores entendem que conceitos indeterminados são aceitáveis e que a sua utilização é até mesmo uma questão inerente à linguagem. Ricardo Lobo Torres entende que a Administração Tributária fica também obrigada a proporcionar segurança jurídica, defendendo que a linguagem utilizada em lei - com conceitos indeterminados - não é capaz de refletir com perfeição o pensamento (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume II. Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005). Marco Aurélio Greco sustenta, além da questão relativa às limitações da linguagem, que apenas a utilização dos conceitos indeterminados permitiria à norma tributária alcançar plenamente os seus objetivos, sob a luz da capacidade contributiva e de valores sociais e culturais (GRECO, Marco Aurélio. Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária. São Paulo: Dialética, 1998). Ligada a essa discussão, está a questão dos reenvios da lei para a regulamentação tributária.

6 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. “Do poder regulamentar”. Revista de Direito Público v. 65. São Paulo: RT, 1983, p. 46. Nesse artigo, o autor faz a distinção entre regulamentos de execução, o falso regulamento de execução, o regulamento praeter legem e o regulamento autorizado (intra legem).

7 Fls. 1.404 e 1.405 dos autos do processo.

8 AMENDOLA, Antonio Carlos de Almeida. Participação do contribuinte na regulamentação tributária. Op. cit.

9 Para esse fim, leva-se em conta o código de Classificação das Atividades Econômicas (CNAE), instituído pelo IBGE.

10 Recente artigo do Juiz Federal Substituto na 4ª Região Oscar Valente Cardoso mostra essa divergência. Vide: CARDOSO, Oscar Valente. “FAP: Fator Acidentário de Prevenção ou Repressão?” Revista Dialética de Direito Tributário n. 184. São Paulo: Dialética, 2011, p. 99.

11 “Opostamente, haveria atuação discricionária quando, em decorrência do modo pelo qual o Direito regulou a atuação administrativa, resulta para o administrador um campo de liberdade em cujo interior cabe interferência de uma apreciação subjetiva sua quanto à maneira de proceder nos casos concretos, assistindo-lhe, então sobre eles prover na conformidade de uma intelecção, cujo acerto seja irredutível à objetividade e ou segundo critérios de conveniência e oportunidade administrativa. (...) Então, quando realmente existe discricionariedade, não há apenas um problema de não se poder provar algo; há o problema de não se poder saber qual é a solução ótima. São coisas totalmente distintas não poder saber o que algo é (ou não é) e não poder prová-lo. Aliás, esta segunda situação pressupõe a primeira.” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 9 e 42)

12 A discricionariedade técnica é uma espécie de discricionariedade que envolve a aplicação de técnicas tão complexas que justificariam a decisão da Administração, que não seria passível de controle judicial a não ser que houvesse erro manifesto.

13 GRAU, Eros Roberto. “Conceitos indeterminados”. Justiça tributária (Publicação do 1º Congresso Internacional de Direito Tributário - Ibet). São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 124.

14 Celso Antônio Bandeira de Mello entende que a discricionariedade decorre da existência dos conceitos indeterminados, fluidos (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. Op. cit., p. 48). De outro lado, Eros Roberto Grau defende que a discricionariedade decorre de atribuição expressa em norma jurídica válida (e.g., dar porte de arma), sendo a interpretação de conceitos indeterminados uma atividade que envolve apenas juízos de legalidade, não podendo se falar em discricionariedade nesse caso. Para Grau, a indeterminação existe apenas na norma, não acarretando uma situação de indeterminação quando de sua aplicação, momento no qual se pode averiguar a aplicação adequada do conceito (GRAU, Eros. O Direito posto e o Direito pressuposto. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 203 e 222).

15 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 166. A obra original é de 1747.

16 Antes dele, o tema de controle do poder já havia sido abordado por Jean-Jacques Rousseau sob o ângulo de que a sociedade apenas se obriga por meio de leis elaboradas por ela mesma (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do Direito Político. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2004). Do mesmo modo, John Locke considerava como supremo o Poder Legislativo e também previa os Poderes Executivo e Federativo (LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; segundo tratado sobre o governo; ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp. 86 e seguintes). Muito antes, Aristóteles já havia tratado em linhas gerais dos Poderes Deliberativo (assembleia), Executivo e Judiciário (ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 127 e seguintes).

17 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Op. cit., p. 168.

18 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Op. cit., p. 176.

19 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Op. cit., pp. 168 e seguintes.

20 A ideia subjacente a essa distribuição de poderes era equilibrar os poderes entre o Rei, a nobreza e o povo, a fim de que pudesse ser realizado um governo moderado.

21 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Op. cit., pp. 174 e seguintes.

22 Na Constituição Federal brasileira, por exemplo, os seguintes mecanismos são exemplos de freios e contrapesos: o poder de veto do Presidente da República na edição de leis; a atribuição do Senado de aprovar previamente a escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal; a competência do Senado de julgar o Presidente nos crimes de responsabilidade etc.

23 “É preciso, todavia, não olvidar que o apego ao princípio da indelegabilidade tinha um fundamento político bem mais forte do que sua justificação jurídica. Era ele concebido como uma garantia necessária para resguardar a ‘separação de poderes’ contra usurpações e fraquezas. Na verdade, a insistência nesse princípio, que veio até nossos dias, era motivada, sobretudo, pela preocupação de defender o Legislativo contra a voracidade do Executivo. Primeiro, para proteger a representação nacional contra os monarcas, impedindo-os de, por coação ou corrupção, reconstituir o absolutismo por meio de delegações. Depois, para proteger ainda o Parlamento, mas contra o Executivo de origem popular, não menos ambicioso e devorador.” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 116)

24 JELLINEK, Georg. Teoria general del Estado. Tradução de Fernando de los Ríos Urruti. Granada: Editorial Comares, 2000, p. 599.

25 KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 266 e 274.

26 JELLINEK, Georg. Teoria general del Estado. Op. cit., p. 601.

27 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; e JAY, John. O federalista. Tradução de Heitor Almeida Herrera. Brasília: Universidade de Brasília, 1984, pp. 393 e seguintes.

28 “Na verdade, o advento e o crescimento do Estado-gestor tornou muito mais complexa a legislação como fonte de direito. Se no início ela pôde se restringir à produção de leis, hoje abarca um rol enorme de atos, como resoluções, regimentos, instruções normativas, circulares, ordens de serviço etc. que, em tese (liberal) deveriam estar subordinadas às leis enquanto expressão da vontade do povo, mas que, na prática, implodem a chamada estrutura hierárquica das fontes.” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 1991, p. 212)

29 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional contemporâneo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 96.

30 José Afonso da Silva indica que, diante da realidade atual, se prefere falar em colaboração de poderes, em vez de divisão de poderes (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 109).

31 Canotilho afirma com precisão que “é um princípio de grande relevância no caso de reenvios normativos da lei para a administração no sentido de esta executar ou complementar os seus preceitos. Sempre que a lei autoriza ou habilita a administração a complementar ou executar os seus preceitos, isso não significa a elevação dos regulamentos ao estalão legislativo, pois tal é expressamente proibido pelo princípio da tipicidade das leis (cfr. Art. 115.o/5). Daí que: (a) a norma regulamentar executora ou complementar continue a ser uma norma separada e qualitativamente diferente da norma legal, pois a norma legal reenviante não incorpora o conteúdo regulamentar nem lhe pode atribuir força legal; (b) ambas as normas mantenham a natureza e hierarquia respectivas, não se verificando qualquer fenómeno de integração.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993, pp. 915-916)

32 Sobre a impossibilidade de o Poder Judiciário atuar como legislador positivo, vide, como exemplo, o seguinte acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Federal: Ag. Reg. no Recurso Extraordinário n. 318.873-9 (Segunda Turma, j. em 12.11.2002, DJU de 19.12.2002).

33 O Senador Álvaro Dias apresentou o Projeto de Decreto Legislativo n. 10/2008, o qual pretendia sustar os Decretos ns. 6.339 e 6.345, ambos de 2008, que aumentaram as alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF), diante da extinção da contribuição provisória sobre movimentação financeira (CPMF). A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal entendeu que os decretos foram editados dentro da competência regulamentar do Presidente da República e que não seria função do decreto legislativo o controle constitucional dos decretos sob exame. Sem entrar no mérito da questão e da decisão da referida Comissão, certo é que a iniciativa do Senado é louvável, devendo o exercício do poder regulamentar pelo Executivo ser fiscalizado de forma constante pelos componentes do Congresso Nacional.

34 DUARTE, David. A norma de legalidade procedimental administrativa. A teoria da norma e a criação de normas de decisão na discricionariedade instrutória. Coimbra: Almedina, 2006, p. 800.

35 “Analisando o ordenamento previdenciário vigente e desde já reconhecendo que a sua constante mutação também pode proporcionar mudança no raciocínio que se estabelece, verifica-se que, ao contrário do que apregoa o Ministério da Previdência Social, a implementação do NTEP e do FAP busca prioritariamente o aumento da arrecadação do órgão previdenciário, haja vista que, na prática, dificilmente haverá a concessão de bonificação aos empregadores que proporcionem melhorias ambientais em seus postos de trabalho e apresentem menores índices de acidentalidade. (...) Com a alteração provocada no Anexo V do Regulamento da Previdência Social pelo Decreto n. 6.957/2009, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2010, houve reclassificação do grau de risco das empresas, de modo que das 1.301 atividades econômicas, 866 tiveram sua alíquota majorada, o que demonstra que 67% (sessenta e sete por cento) das atividades econômicas desenvolvidas no País, antes mesmo da incidência do FAP, passam a ter majorado o SAT, sendo que deste total 27% (vinte e sete por cento) terá o SAT elevado em 200% (duzentos por cento), 29% (vinte e nove por cento) terá elevação do SAT em 100% (cem por cento) e 44% (quarenta e quatro por cento) terá elevação do SAT em 50% (cinquenta por cento). (...) Verifica-se que a Previdência Social, entre o momento em que o FAP foi formalmente instituído, em 9 de maio de 2003, pelo art. 10 da Lei n. 10.666/2003, até sua entrada em vigor, em 1º de janeiro de 2010, com a Portaria Interministerial n. 329, de 10 de dezembro de 2009, manteve longo período de debate com a sociedade, de modo que caberia ao órgão previdenciário deixar claro seus objetivos prioritariamente arrecadatórios, porém preferiu fundamentar os seus argumentos na concessão de bonificações com a redução do SAT às empresas que reduzissem os riscos ambientais e, nos últimos meses de 2009, alterou o grau de risco das atividades econômicas que se encontram no Regulamento da Previdência Social, de modo a elevar a base de cálculo do FAP e, por conseguinte, frustrar a expectativa de redução da carga tributária relativa ao SAT de milhares de empregadores no País.” (ARAÚJO JÚNIOR. Francisco Milton. “Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP) e Fator Acidentário de Prevenção (FAP) - objetivo apenas prevencionista, apenas arrecadatório, ou prevencionista e arrecadatório?” Repertório de Jurisprudência IOB n. 07/2010. Volume II. 1ª quinzena de abril de 2010, pp. 229/228)

36 Por essa razão, Tércio Sampaio Ferraz Jr. afirma que: “(...) sempre que o Executivo, com relação a determinados conteúdos e sob certas condições, estiver autorizado pela Constituição a emanar normas com força de lei (decreto-lei, medida provisória), excluída estará a sua competência regulamentar inominada. Por exemplo, admitida a competência para editar normas com força de lei sobre certas matérias, o Executivo não pode regulamentá-las por delegação inominada, só cabendo aí o regulamento de execução nos limites do dispositivo legal (regulamentação para fiel execução, privativa do Presidente da República).” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência”. In: ARAGÃO, Alexandre Santos (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 279)

37 Sergio André Rocha também se posiciona nesse sentido (“A deslegalização no Direito Tributário brasileiro contemporâneo: segurança jurídica, legalidade, conceitos indeterminados, tipicidade e liberdade de conformação da Administração Pública”. In: RIBEIRO, Ricardo Lodi; e ROCHA, Sergio André (coords.). Legalidade e tipicidade no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 258-259).

38 A respeito dos meios alternativos de soluções de controvérsias, citam-se, como exemplos, os seguintes importantes estudos: (i) TÔRRES, Heleno Taveira. “Transação, arbitragem e conciliação judicial como medidas alternativas para resolução de conflitos entre Administração e contribuintes - simplificação e eficiência administrativa”. Revista Fórum de Direito Tributário n. 2. Belo Horizonte: Fórum, março-abril de 2003, pp. 91-126; (ii) SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; e GUIMARÃES, Vasco Branco (orgs.). Transação e arbitragem no âmbito tributário: homenagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum, 2008; e (iii) SILVA, Sergio André R. G. da. “Meios alternativos de solução de conflitos no Direito Tributário brasileiro”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 122. São Paulo: Dialética, 2005, p. 90.

39 Nesse sentido, Odete Medauar afirma que a crise da legalidade administrativa está relacionada apenas com a lei, não afetando a legalidade enquanto instrumento de garantia e de organização da Administração Pública. Para Medauar, a compreensão da legalidade não deve levar em conta apenas a lei formal, mas todos os preceitos de um Estado Democrático de Direito (MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: RT, 2003, pp. 146-149).

40 No Direito Administrativo português, David Duarte, que aprofundou o estudo da legalidade procedimental, afirma que essa é uma espécie da legalidade administrativa, nos seguintes termos: “A norma de legalidade procedimental administrativa é, assim, para além de uma norma comum a todo o exercício procedimental da função administrativa, venha o procedimental a terminar em norma ou decisão de direito privado ou norma ou decisão de direito público, uma norma de legalidade específica do procedimento ou, melhor dito, uma norma relativa à legalidade específica para o procedimento, configurando mais uma norma de legalidade especial: no caso, como se verá, uma norma especial constitutiva, dado que contém um efeito diferente do que consta da norma geral de legalidade, dentro da relação de consumpção entre previsões.” (A norma de legalidade procedimental administrativa. A teoria da norma e a criação de normas de decisão na discricionariedade instrutória. Op. cit., p. 413) Esse efeito diferente afirmado por David Duarte é a relação de compatibilidade da legalidade procedimental, em contraste com a relação de conformidade exigida pela legalidade administrativa.

41 MEDAUAR, Odete. A processualidade no Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2008, pp. 91-92.

42 A visão de que a legalidade administrativa (conformação com a lei) vai sendo substituída pela legalidade processual é defendida por Francesco Manganaro, na Itália: “Poiché la norma non definisce più il contenuto sostanziale dell’attività amministrativa, l’esigenza di legalità è soddisfatta non tanto sforzandosi di determinare a priori la regola di contemperamento degli interessi, ma ponendo precise regole legislative sul modo di esercizio dell’azione amministrativa e consentendo, così, che anche il giudice possa verificare, con un giudizio a posteriori, la condotta dell’amministrazione. (...) Se la legalità non può essere più intesa come attuazione di interessi generali predeterminati dalla legge nel rispetto delle situazioni giuridiche dei privati, essa diventa regola dei modi procedurali di attuazione del potere.” (MANGANARO, Francesco. Principio di buona fede e attività delle Amministrazioni Publiche. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 1995, p. 133). Tradução livre: “Tendo em vista que a norma não define mais o conteúdo substancial da atividade administrativa, a exigência de legalidade é satisfeita não tanto se esforçando a determinar previamente a regra de ponderação de interesses, mas colocando precisas regras legislativas sobre o modo de exercício da ação administrativa e permitindo, assim, que também o juiz possa verificar, com um juízo a posterior, a conduta do administrador. (...) Se a legalidade não pode mais ser entendida como atuação dos interesses gerais predeterminados pela lei no respeito das situações jurídicas dos privados, essa se torna regra dos modos processuais de atuação do poder.”

43 Em Portugal, Mario Aroso Almeida também reconhece a importância do processo em um ambiente em que a lei não é mais suficiente para determinar como a Administração Pública deve se comportar: “A verdade, porém, é que a crescente tendência para a redução do conteúdo regulador das normas que disciplinam a substância da actuação administrativa, com a consequente ampliação dos espaços de conformação que o legislador deixa a cargo da Administração, para a escolha da melhor solução, levou a que se viesse a reconhecer a importância do procedimento, não só como instrumento de racionalização da actividade decisória da Administração, mas também como instrumento de legitimação da Administração enquanto aparelho que, sendo eminentemente burocrático, vai sendo cada vez mais chamado, na ausência da pré-definição legislativa dos resultados, a determinar o conteúdo da regulação dos interesses em conflito e, assim, a tomar decisões crescentemente politizadas.” (ALMEIDA, Mário Aroso. Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 127-128)

44 No Brasil, Onofre Alves Batista Júnior conclui pela adoção da legalidade processual, mas parece ir além ao indicar que o Legislativo deveria apenas traçar as linhas mestras de orientação no Direito Tributário, com a possibilidade de ponderação de interesses na esfera administrativa, argumentos esses que não compartilhamos para adoção da legalidade processual: “Ao Parlamento devem ser reservadas, inexoravelmente, as linhas mestras de orientação, o fio condutor da atuação administrativa, os pontos essenciais, as reais decisões políticas. (...) diante da impossibilidade de disciplinar todas as questões, deve o legislador se recolher tendencialmente às matérias essenciais, aos princípios norteadores; (...) Por certo, um modelo tributário mais adequado, equilibrado e justo, como contrapartida a essa necessária flexibilização, deveria reclamar uma mais intensa ‘procedimentalização’ do processo decisório tributário na seara administrativa, que possibilitasse uma maior racionalização, legitimidade e mais ampla ponderação dos interesses em conflito.” (BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. “A ‘governamentalização’ do poder de decisão tributário”. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.). Direito Tributário - homenagem a Alcides Jorge Costa. Volume I. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 426)

45 “Processo” e “procedimento” não se confundem à luz da Constituição Federal de 1988. Isto porque ao processo, seja judicial ou administrativo, é assegurado uma série de garantias inerentes ao contraditório e à ampla defesa, devendo-se observar o devido processo legal. A participação do contribuinte na produção da regulamentação tributária faz com que essa atividade seja um “processo regulamentar”, e não um procedimento regulamentar. Cândido Rangel Dinamarco defende que o processo legislativo constitui efetivamente um processo, arrematando que “o direito processual estatal é a disciplina do exercício do poder estatal pelas formas do processo legalmente instituídas e mediante a participação do interessado, ou interessados” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 70 e seguintes). Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover e Antonio Carlos de Araújo Cintra afirmam que o processo é um conceito que vai além do Direito Processual alcançando todas as atividades estatais, inclusive o processo legislativo e, desse modo, o processo regulamentar ora estudado (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 276). O processo condiciona a formação da vontade a ele submetida. Não é obrigatória a presença de litígio para que exista processo. Exatamente por essa razão Odete Medauar afirma que processo é colaboração do interessado, com a presença do contraditório, mas independente do litígio (MEDAUAR, Odete. A processualidade no Direito Administrativo. Op. cit., pp. 41 e 43). José Cretella Júnior entende também como desnecessária a lide para a caracterização do processo administrativo, sendo necessária a presença de apenas duas partes: o interessado e a Administração Pública. Cretella Júnior adotava um conceito amplíssimo de processo administrativo, mas não chegou a prever a possibilidade de processo na edição de regulamentos em 1966 (CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo. Volume VI - Processo Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1966, pp. 20, 63 e seguintes, e 129 e seguintes). Por outro lado, deve-se mencionar que há quem pense em outro sentido: Nelson Nery Júnior defende que só há processo onde há litígio (NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 9ª ed. São Paulo: RT, 2009. p. 217).

46 Odete Medauar indica a tendência de na atualidade se “deslocar a atenção, no estudo do ato administrativo, ao seu conteúdo, ao modo de sua formação, ao procedimento das escolhas nele sintetizadas” (MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. Op. cit., p. 205).

47 Carlos Ari Sundfeld relata como a ideia de processo administrativo em casos individuais foi sendo absorvida paulatinamente na doutrina de Direito Administrativo pátrio (SUNDFELD, Carlos Ari. “Processo e procedimento administrativo no Brasil”. In: SUNDFELD, Carlos Ari; e MUÑOZ, Guillermo Andrés (coords.). As leis de processo administrativo - Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 20 e seguintes).

48 Conforme artigo 202-B do Decreto n. 3.048/1999, conforme alteração introduzida pelo Decreto n. 7.126/2010. Antes dessa alteração regulamentar, contribuintes recorreram ao Poder Judiciário para que fosse atribuído efeito suspensivo às contestações apresentadas sobre a apuração do FAP.

49 AMENDOLA. Antonio Carlos de Almeida. Participação do contribuinte na regulamentação tributária. Op. cit.