Ação Rescisória em Matéria Tributária e os Efeitos da Rescisão Transitada em Julgado: Momento e Limites do Exercício do Direito Potestativo de lançar - Análise Crítica do Parecer PGFN n. 2.740/2008

Henrique Coutinho de Souza

Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Aluno Especial de Mestrado em Direito Econômico, Financeiro e Tributário na Universidade de São Paulo (USP). Advogado em São Paulo.

Gustavo Taddeo Kurokawa Rodrigues

Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Advogado em São Paulo.

Resumo

O presente artigo analisa os impactos decorrentes da rescisão da decisão transitada em julgado que declarava a inexistência de relação jurídico-tributária, e os efeitos no que tange à cobrança dos tributos que deixaram de ser recolhidos por força da decisão rescindida, à luz da posição fazendária e da jurisprudência pátria.

Palavras-chave: ação rescisória em matéria tributária, lançamento como um Direito potestativo, decadência, Princípio da Segurança Jurídica.

Abstract

This paper analyzes the impacts derived from the rescission of a final judicial decision (res judicata) which pronounces the non-existence of legal and tax relationship between the tax authorities and the taxpayer, and also its effects on the taxes that were not paid by virtue of the rescinded decision, in the light of the position expressed by the Tax Administration and the Brazilian case law.

Keywords: rescissory action involving tax matters, tax assessment as a potestive right, statute of limitation, Principle of Legal Certainty.

1. Introdução

Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004 e as recentes reformas na estrutura do Código de Processo Civil brasileiro - com a introdução das súmulas vinculantes e as sistemáticas do recurso repetitivo e da repercussão geral - houve uma nítida aproximação do controle de constitucionalidade brasileiro ao sistema de precedentes judiciais típicos de países que adotam common law, informados pelo princípio do stare decisis, com base no qual, objetivando dar maior segurança jurídica para quem se socorre do Poder Judiciário, os juízes e tribunais do País passam paulatinamente a dispor de um menor espectro de liberdade em relação às decisões proferidas pelos Tribunais Superiores.

É nesse contexto que ganharam força as discussões em torno da chamada flexibilização da coisa julgada, como se observa, por exemplo, com a introdução dos artigos 741, parágrafo único, e 475-L, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, instituídos pela Lei n. 11.232/2005, que excepcionaram o atributo da imutabilidade da coisa julgada - relativizando-a - na hipótese de a res judicata colidir com a interpretação conferida pelo STF acerca da matéria, ainda que em controle difuso de constitucionalidade.

De outro lado, com relação especificamente à coisa julgada em matéria tributária, as autoridades fazendárias, por meio da edição do Parecer PGFN n. 492/2011, passaram a sustentar o fenômeno processual da cessação de eficácia da decisão transitada em julgado, visando conciliar as recentes alterações introduzidas na sistemática processual brasileira com o interesse fazendário de eliminar as distorções causadas pela impossibilidade de cobrança de um tributo em face do contribuinte que logrou obter decisão definitivamente favorável, de forma dissonante com a posição firmada pelos Tribunais Superiores acerca da matéria.

Como se vê, a outrora inabalável coisa julgada, consagrada no artigo 5º, XXXVI, do texto constitucional, cede espaço para discussões em torno de estruturas que possibilitem um maior controle das decisões transitadas em julgado que destoem do entendimento firmado pelos Tribunais Superiores sobre a matéria. Trata-se da chamada “crise da coisa julgada”1-2.

Foi sob este arcabouço histórico e jurídico que surgiram inúmeros trabalhos acadêmicos e científicos versando sobre os institutos da flexibilização e da cessação da coisa julgada em matéria tributária.

Não se nega a importância das discussões em volta destes temas, mas o fato é que estes assuntos acabaram deixando de lado na doutrina brasileira reflexões sobre um instrumento para a rescisão da res judicata já devidamente positivado em nosso ordenamento jurídico pátrio, qual seja, a ação rescisória.

Realmente, o próprio Parecer PGFN n. 492/2011 acima citado é mandatório quanto à necessidade de ajuizamento, pelo Procurador da Fazenda Nacional, de ação rescisória quando ainda dentro do prazo decadencial de dois anos de que dispõe para tanto, pois o êxito na ação rescisória possibilitaria ao Fisco a cobrança do tributo que deixou de ser pago no passado, inclusive durante o período em que a decisão tributária transitada em julgado, que posteriormente veio a ser rescindida, ainda produzia efeitos.

E é sob este viés que as autoridades fazendárias externaram posicionamento, por meio do Parecer PGFN n. 2.740/2008, no sentido de que, uma vez rescindida a decisão transitada em julgado que afastava o recolhimento de um determinado tributo, o Fisco retomará seu direito potestativo de lançar os créditos tributários antes inexigíveis, em razão da eficácia ex tunc com que se opera esta rescisão.

Assim sendo, o presente artigo se propõe a tratar das seguintes questões: pode o Fisco, durante a tramitação da ação rescisória, constituir/cobrar o crédito tributário “protegido” pela coisa julgada atacada? Finda a ação rescisória favorável ao Fisco, o lançamento possibilitará a exigência de tributos relativos a períodos em que a decisão rescindida ainda encontrava-se hígida? Em caso positivo, quais os períodos pretéritos poderão ser abarcados no lançamento?

A relevância destas questões e a ausência de dispositivos legais3 e precedentes judiciais que abordem de forma exauriente a matéria, além da escassa produção doutrinária sobre o assunto, motivam o presente artigo, com o objetivo de fomentar as discussões relativas aos efeitos da rescisão da coisa julgada em matéria tributária via ação rescisória.

2. Considerações acerca do Momento da Rescisão da Decisão Transitada em Julgado - a Impossibilidade de o Fisco constituir/cobrar o Crédito Tributário enquanto tramitar a Ação Rescisória

Uma vez ajuizada ação rescisória em face de decisão transitada em julgado, exsurgem relevantes controvérsias jurídicas de ordem processual quanto à manutenção no tempo da autoridade da coisa julgada a ser rescindida, as quais possuem ainda maiores desdobramentos quando analisadas sob o plano das relações tributárias.

Com o intuito de exemplificar a importância destas discussões para a seara tributária, imagina-se o seguinte cenário hipotético: um contribuinte obtém, em meados de 2000, uma decisão transitada em julgado declarando a inexistência de sua relação jurídico-tributária com o Fisco sobre um determinado tributo. Esta coisa julgada, por destoar do entendimento dos Tribunais Superiores4, é objeto de ação rescisória pelo Fisco, em 2001. Em 2002, o Tribunal competente julga procedente a ação rescisória, rescindindo a res judicata, para declarar exigível o tributo antes inexigível. Após a interposição de inúmeros recursos pelo contribuinte, a ação rescisória transita em julgado em 2010, de forma totalmente favorável ao Fisco.

Diante da situação acima aventada, pergunta-se: (i) a ação rescisória tem o condão de suspender a execução da decisão rescindenda, isto é, poderia o Fisco efetuar a constituição/cobrança do crédito tributário após a propositura desta ação?; (ii) a partir da decisão colegiada que julga procedente a ação rescisória, a decisão rescindenda perderá a sua eficácia ou este fato apenas ocorrerá após o trânsito em julgado daquela ação?; e (iii) qual é o fato/ato jurídico que realmente fixa o momento da rescisão da decisão rescindenda e, consequentemente, possibilita ao Fisco voltar a cobrar o tributo?

As questões ora postas ganham contornos ainda mais relevantes ao nos deparamos com a opinião fazendária a respeito do assunto, formalizada através do Parecer PGFN n. 2.740/2008. Realmente, uma das facetas abordadas acerca dos efeitos da rescisória no parecer fazendário aludido, apesar de não ter sido devidamente fundamentada, é no sentido de que o acórdão que julga procedente esta ação autorizaria imediatamente o Fisco a proceder ao lançamento dos valores do tributo antes inexigíveis, tanto relativos a períodos anteriores à propositura da rescisória, quanto de períodos posteriores.

Ou seja, para a PGFN, a mera publicação do acórdão proferido pelo Tribunal de segundo grau seria suficiente para sustar todos os efeitos da sentença rescindenda, sendo restabelecida a partir daí a relação jurídico-tributária anteriormente declarada inexistente pela res judicata, podendo o Fisco lançar os tributos oriundos deste restabelecimento da obrigação tributária, independentemente do fato de a ação rescisória ainda não ter sido encerrada definitivamente, e, por consequência, não ter efetivamente desconstituída a decisão rescindenda.

Em outras palavras, pelas conclusões expostas no Parecer da PGFN, o acórdão que julgar procedente a ação rescisória suspenderá automaticamente os efeitos e a eficácia da decisão rescindenda, independentemente dos recursos que forem lançados em face daquela decisão colegiada e do trânsito em julgado da demanda rescisória.

Como decorrência disto, para a PGFN, a decisão judicial transitada em julgado favorável ao contribuinte, antes de ser rescindida, isto é, antes do proferimento do acórdão favorável na rescisória, impede o Fisco de promover o lançamento, eis que fulmina a existência da relação jurídico-tributária, de modo que inexiste o direito potestativo de lançar, sem o qual não se pode ter início o prazo decadencial.

Assim, considerando que a decadência é a perda de um direito em razão da inércia do seu titular, para que ela ocorra, sustenta a Fazenda, necessária se faz a existência desse direito, de modo que não há que se falar em decadência do direito de lançar, quando tal direito não podia ser exercido.

Em que pese o fato de discordarmos quanto ao momento do nascimento deste direito na hipótese em discussão, parece-nos assistir razão à Fazenda, quando afirma que o lançamento é um direito potestativo. De fato, há tempos prevalece o entendimento de que o dever de lançamento reveste-se de natureza potestativa, consoante se depreende do acórdão proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, publicado em 17 de dezembro de 1982, nos autos do RE n. 94.462, da lavra do eminente Ministro Moreira Alves, conforme se infere do seguinte trecho do seu voto: “Essa posição, aliás, é a única sustentável em face da natureza da decadência e da prescrição, natureza essa que não é alterada pelo CTN. Com efeito, na realidade, a relação obrigacional tributária nasce, como não poderia deixar de ser pela sua própria natureza, com a ocorrência do fato gerador. E, a partir desse momento, surge, também para o Fisco, o direito potestativo de efetuar o lançamento, e direito potestativo a ser exercido dentro de prazo determinado que, por ser prazo de exercício de direito potestativo, é prazo de decadência.” O caráter potestativo do direito de lançar também foi encampado em diversos precedentes posteriores dos Tribunais Superiores pátrios.

É possível se extrair este entendimento do próprio artigo 173, I, do CTN, o qual atesta que o direito potestativo do Fisco de lançar extingue-se após cinco anos contados “do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado”.

Conclui-se, assim, que enquanto perdurar os efeitos de uma sentença declarando a inexistência da relação jurídico-tributária de um contribuinte com o Fisco sobre um determinado tributo, a entidade fazendária restará impossibilitada de efetuar o lançamento, não havendo qualquer fluência no prazo decadencial a que alude o artigo 173, I, do CTN.

Fixada esta premissa, cumpre perquirir qual é o marco temporal que fixa a efetiva rescisão da coisa julgada favorável ao contribuinte, restabelecendo o liame obrigacional tributário, bem como dando início ao prazo decadencial para o Fisco lançar o crédito tributário antes inexigível.

Este ponto é de suma importância, já que de acordo com o entendimento fazendário, a mera prolação do acórdão de procedência na ação rescisória marcaria a efetiva rescisão da coisa julgada favorável ao contribuinte, nascendo a partir daí o direito de o Fisco constituir os créditos tributários antes inexigíveis.

Exemplificando, a partir das premissas adotadas no Parecer PGFN n. 2.740/2008, pode-se afirmar que, se o acórdão de procedência de uma ação rescisória foi proferido em 2000, mas o seu trânsito em julgado apenas ocorreu em 2010, a partir de 2000, isto é, dez anos antes desta decisão se tornar definitiva, o Fisco já teria direito de efetuar o lançamento dos tributos sub judice, tanto relativos a períodos anteriores à propositura da rescisória, quanto dos períodos posteriores e futuros.

Contudo, discordamos diametralmente com o entendimento esposado no Parecer PGFN n. 2.740/2008. Isso porque, entendemos que a coisa julgada possui regra de proteção expressa no artigo 489 do CPC, segundo a qual a única forma de se suspender a eficácia da decisão rescindenda antes do trânsito em julgado favorável da rescisória é via concessão de medida cautelar ou decisão antecipatória de tutela no bojo desta, mas somente em situações excepcionalíssimas5.

Realmente, desde o Código de Processo Civil de 1939 até hoje, sempre se entendeu que os efeitos e a eficácia da res judicata permanecerão incólumes até o trânsito em julgado favorável da ação rescisória. Este é o entendimento pacífico da doutrina6 e da jurisprudência7, afinal, como costumava pontuar Pontes de Miranda, “a eficácia da sentença rescindível é completa, como se não fosse rescindível”8.

Ou seja, se se entendesse que o mero ajuizamento da ação rescisória fosse capaz de suspender a eficácia da decisão rescindenda, esta espécie de ação se transformaria num verdadeiro recurso, desnaturando a natureza daquela demanda, bem como ofendendo todos os princípios e garantias que o direito à coisa julgada visa tutelar.

Deste modo, mesmo que tenha sido objeto de ação rescisória, a sentença transitada em julgado jamais perderá sua natureza e seus efeitos de coisa julgada, enquanto não for definitivamente desconstituída, isto é, enquanto não houver o trânsito em julgado favorável daquela ação. Em outras palavras, o mero ajuizamento da ação rescisória não terá o condão de irradiar a relação jurídico-tributária entre o Fisco e o contribuinte.

E nem se alegue que a modificação introduzida pela Lei n. 11.280/2006 no artigo 489 do CPC alterou este entendimento, ao acrescentar a palavra “ajuizamento”, antes inexistente na redação original deste dispositivo, interpretando-a no sentido de que apenas tal palavra foi capaz de modificar tudo o que se entendia sobre o assunto. Nessa equivocada linha hermenêutica, é apenas a distribuição da ação rescisória perante o Tribunal que não suspende a execução da res judicata, tendo qualquer outro ato decorrente da rescisória (como a antecipação de tutela ou o acórdão que a julga procedente, por exemplo) o condão de suspender os efeitos e eficácia da coisa julgada.

Ocorre que não foi essa a intenção do legislador ao alterar o comando legal em comento, consoante se pode inferir do pelo item 8 da Exposição de Motivos n. 184 do Ministério da Justiça, de 19 de novembro de 20049, relativa ao Projeto de Lei que originou a Lei n. 11.280/2006.

Como se denota do excerto dessa Exposição de Motivos, a única razão para a modificação do artigo 489 do CPC foi a necessidade de se apaziguar as controvérsias jurídicas em torno da possibilidade de se pleitear a suspensão da decisão rescindenda por medida cautelar ou pedido antecipatório de tutela, não havendo qualquer margem para interpretação no sentido de que a alteração do dispositivo em tela limitou a eficácia da res judicata ao momento do mero julgamento da ação rescisória.

Isso porque, qualquer limitação aos efeitos e eficácia da decisão rescindenda antes de sua efetiva desconstituição, isto é, antes do trânsito em julgado favorável da ação rescisória, significará ofensa ao inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal, já que haverá necessariamente a supressão à coisa julgada via lei ordinária.

Ademais, ao se investigar a natureza jurídica da sentença sujeita a recurso, fica ainda mais nítida a fragilidade da premissa tomada pelo Parecer da PGFN n. 2.740/2008, já que, para os mais renomados processualistas, a sentença sujeita a recurso configura tão somente uma possibilidade de sentença10 ou um mero ato sujeito a condição resolutiva11.

Nota-se que, seja qual for a classificação adotada para a natureza jurídica da sentença sujeita a recurso, em todas sobressaem a provisoriedade e a certa precariedade deste ato jurídico, sendo completamente ilógico se sustentar que um ato precário/provisório poderá prevalecer e suprimir uma estável e definitiva res judicata que assegura ao contribuinte a desoneração de parte de sua carga tributária.

Dessa forma, entendemos que a decisão rescindenda apenas terá seus efeitos suspensos com o trânsito em julgado favorável da ação rescisória, nascendo a partir daí o direito potestativo de o Fisco lançar o crédito tributário que deixou de ser recolhido.

Assim sendo, qualquer lançamento efetuado entre o interregno da prolação do acórdão favorável da rescisóriae o seu trânsito em julgado será nulo, nos termos dos artigos 139 e 142 do CTN, por desrespeito à coisa julgada formada no bojo processo original objeto da ação rescisória, que declarou a inexistência da relação jurídico-tributária entre o contribuinte e o Fisco no que tange a um determinado tributo.

Aliás, apesar de a hipótese ser defendida pela jurisprudência administrativa fiscal federal12, cabe mencionar que nem o denominado lançamento para prevenção de decadência seria possível antes do trânsito em julgado favorável da ação rescisória, pois, conforme preceitua o artigo 63 da Lei n. 9.430/199613, o lançamento preventivo apenas será autorizado quando houver a suspensão da exigibilidade do crédito tributário na forma preconizada pelos incisos IV ou V do artigo 151 do CTN.

Assim sendo, não existindo relação jurídica tributária entre contribuinte e o Fisco, tampouco obrigação tributária, não haverá qualquer sentido ou fundamento legal para se constituir o crédito tributário, até porque não estará fluindo prazo de decadência, já que inexistente qualquer pretensão ou possibilidade jurídica por parte do Fisco nesse sentido14.

Diante de todo o exposto, no que concerne ao momento da rescisão da decisão transitada em julgado, é possível se sustentar, com base na doutrina e na jurisprudência majoritárias, que somente com o trânsito em julgado da ação rescisória é que se opera a rescisão da decisão que declarava a inexistência de relação jurídico-tributária entre o Fisco e o contribuinte, de modo que os lançamentos realizados depois do trânsito em julgado do processo originário, mas antes do trânsito em julgado da ação rescisória, encontram-se eivados de nulidade, porquanto até essa data inexistia relação jurídico-tributária passível de ser declarada por meio do ato de lançamento, para fins de constituição dos créditos tributários.

3. A Posição Fazendária: o Parecer PGFN n. 2.740/2008 e a Eficácia ex Tunc da Rescisão da Decisão Transitada em Julgado

Firmadas as premissas quanto ao momento em que se opera a rescisão da decisão transitada em julgado, decorrente da procedência da pretensão formulada em uma ação rescisória, impõe-se analisar os efeitos que decorrem de tal rescisão, à luz da posição fazendária e da jurisprudência pátria.

Analisar os efeitos que decorrem da rescisão da decisão transitada em julgado implica, invariavelmente, analisar também os impactos sobre os efeitos que emergiram da decisão rescindida. Isso porque, se por um lado não se nega que a decisão proferida em uma ação rescisória substitui o provimento jurisdicional emitido no processo originário, por outro lado não se pode perder de vista que inúmeros efeitos foram irradiados a partir da decisão transitada em julgado no processo originário, que posteriormente veio a ser rescindida.

A doutrina tradicional buscou, ao longo do tempo, uma solução definitiva quanto à natureza do provimento que rescinde uma decisão transitada em julgado, ora inclinando-se para a natureza declaratória, ora para a natureza constitutiva. No entanto, parece-nos assistir razão a José Carlos Barbosa Moreira15 que, ao discorrer sobre os efeitos da decisão proferida em ação rescisória, bem aponta as dificuldades de se firmar qualquer posicionamento definitivo sobre a matéria. De fato, sustenta o jurista ser necessária uma análise casuística, à luz das nuances do caso concreto e dos interesses envolvidos, não se mostrando prudente qualquer conclusão radical que se proponha a uma solução apriorística da questão.

Tais conclusões são imprescindíveis para as ações rescisórias que versam sobre matéria tributária, eis que, em se entendendo pela natureza declaratória do provimento jurisdicional emanado da ação rescisória, com eficácia ex tunc, será possível às autoridades fazendárias cobrar os valores que deixaram de ser pagos no passado, à época em que a decisão proferida no processo originário ainda encontrava-se hígida.

Diferentemente, em se entendendo que o juízo rescisório somente se projeta para o futuro, em razão da eficácia ex nunc desse provimento, somente será possível ao Fisco a cobrança dos tributos devidos a partir da rescisão da decisão do processo originário, com o trânsito em julgado da decisão de procedência na ação rescisória proferida em favor do ente tributante.

Assim, a despeito da celeuma doutrinária quanto à natureza da decisão que rescinde um decisum acobertado pelo manto da coisa julgada, importa-nos analisar as manifestações jurisprudenciais a respeito da ação rescisória em matéria tributária, bem como os efeitos no que concerne à relação jurídico-tributária entre o ente tributante e o contribuinte que teve rescindida uma decisão que afastava o recolhimento de determinada exação.

Nesse cenário, há que se destacar que a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, nos autos das Ações Rescisórias ns. 3.551/SC e 3.788/PE, firmou entendimento no sentido de que, em se tratando de matéria tributária, a rescisão da decisão transitada em julgado se opera com efeito ex tunc, possibilitando, assim, a cobrança inclusive dos valores que deixaram de ser pagos durante o período em que o contribuinte se encontrava amparado por decisão transitada em julgado, posteriormente rescindida. Nos autos da AR n. 3.551/SC, sustentou o Ministro Benedito Gonçalves:

“via de regra, a rescisão da sentença de mérito, embora ostente decisão de natureza desconstitutiva, tem efeitos ex tunc, ou seja, retroage para atingir todas as situações decorrentes da relação jurídica discutida no processo original. Excepcionalmente, dada a efetividade da sentença transitada em julgado, que repercute no mundo jurídico desde logo, tenho que devem ser ressalvadas determinadas situações havidas sob a coisa julgada até então existente, sobretudo quando envolvem terceiros de boa-fé, o que não ocorre nos autos, porquanto aqui se discute, apenas, a exigibilidade de tributo, matéria restrita à relação jurídico-tributária travada entre fisco e contribuinte.” (Destaques nossos)

Assim, sem prejuízo das críticas passíveis de serem formuladas à ratio decidendi da decisão, prevalece atualmente na Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que a superveniência da rescisão da decisão transitada em julgado possibilita ao Fisco a cobrança de valores pretéritos, que deixaram de ser recolhidos durante o período em que o contribuinte se encontrava escorado pela decisão acobertada pelo manto da coisa julgada.

Ocorre que, ainda que se entenda pela possibilidade de cobrança retroativa dos tributos que deixaram de ser recolhidos por força da decisão rescindida, não se pode perder de vista que o crédito tributário somente se materializa pelo lançamento.

Nesse contexto, em linha com o entendimento perfilhado pelo STJ quanto à eficácia ex tunc da rescisão da decisão transitada em julgado em matéria tributária, também a Procuradoria da Fazenda Nacional já se manifestou quanto ao tema por meio do Parecer PGFN n. 2.740/2008, sustentando que:

- durante o curso de ação judicial em que se pretende obter declaração de inexistência de relação jurídica tributária, flui, normalmente, o prazo decadencial para o Fisco constituir os créditos tributários relativos aos cinco anos anteriores ao seu ajuizamento;

- o advento do trânsito em julgado de decisão declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária acarreta: (a) a extinção dos créditos tributários já constituídos ao longo do curso da ação; (b) suspensão do prazo decadencial para o exercício do direito de lançar - desde que não decaídos pelo decurso do tempo - que nasceu ao longo do curso da ação; e (c) impossibilidade de, a partir do trânsito em julgado, o Fisco constituir créditos tributários relacionados à relação jurídica tributária discutida na ação finalizada em favor do contribuinte;

- havendo desconstituição da decisão transitada em julgado por ação rescisória julgada procedente, o Fisco recobra o direito de lançar os créditos tributários relativos aos fatos geradores ocorridos no curso da ação originária, desde que esse direito não tenha sido fulminado pela decadência;

- a rescisão da decisão faz com que os créditos tributários já constituídos no curso da ação, e que tinham sido extintos em razão do advento da decisão final nela proferida, sejam automática e plenamente restabelecidos.

- portanto, com a procedência da ação rescisória, o Fisco passa a ter o direito de constituir os créditos tributários correspondentes ao período compreendido inclusive nos cinco anos anteriores à data do trânsito em julgado da decisão rescindida até a data da prolação da decisão de procedência da ação rescisória, e dali em diante.

Para fins didáticos, é possível conjecturar uma hipótese em que um contribuinte logrou obter decisão judicial transitada em julgado em 2000, afastando o recolhimento de determinado tributo. O ente tributante então ajuíza ação rescisória, que foi julgada procedente de forma definitiva em 2010, rescindindo a decisão anterior. À luz do Parecer PGFN n. 2.740/2008, a partir da rescisão da decisão, poderá o Fisco promover o lançamento não apenas dos tributos não recolhidos entre 2000 a 2010, como ainda de todos os tributos eventualmente não recolhidos no curso da ação original, desde que não fulminados pelo prazo quinquenal da decadência. Note-se que, na hipótese concebida, a rescisão da decisão transitada em julgado possibilitaria ao Fisco a cobrança de tributos não recolhidos nos últimos 15 anos, o que, a depender da carga tributária envolvida, poderá colocar o contribuinte em situação de insolvência.

Como já dito no tópico precedente, no entendimento fazendário a decisão judicial transitada em julgado favorável ao contribuinte, antes de ser rescindida, impede o Fisco de promover o lançamento, eis que fulmina a existência relação jurídico-tributária, de modo que inexiste o direito potestativo de lançar, sem o qual não se pode ter início o prazo decadencial.

Assim, considerando que a decadência é a perda de um direito em razão da inércia do seu titular, para que ela ocorra, sustenta a Procuradoria da Fazenda Nacional, seria necessária a possibilidade de exercício desse direito, de forma que não há que se falar em decadência do direito de lançar, quando tal direito não podia ser exercido. No tocante especificamente à questão, consentimos com o ente fazendário.

Também se revelam igualmente superadas as discussões em torno da natureza do lançamento, eis que, superada a teoria procedimentalista que propunha a natureza constitutiva desse ato, prevalece atualmente, a despeito da posição dúbia16 do CTN, o entendimento quanto à natureza declaratória do lançamento, porquanto declara a existência de uma obrigação tributária e, fazendo-o, constitui um crédito.

Desse modo, temos que, com o trânsito em julgado da ação original, que declarou a inexistência de relação jurídico-tributária entre o Fisco e o contribuinte, não mais era possível aos agentes fazendários realizar o lançamento para cobrança desse tributo, uma vez que, por força da coisa julgada, a prática do fato gerador não tem o condão de fazer nascer o liame obrigacional, inexistindo, portanto, obrigação tributária a ser declarada, ou crédito a ser constituído.

Assim, nos termos do aludido Parecer, somente com a rescisão da decisão transitada em julgado é que o direito potestativo de declarar a existência da relação jurídico-tributária passou a ser novamente exercível pelos agentes fiscais, pois afastada a barreira que impedia o exercício desse direito. No entanto, tal exercício está condicionado ao prazo do CTN, isto é, cinco anos, a contar do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.

Ao contrário do quando suscitado no parecer fazendário, não se trata, propriamente, de suspensão do prazo da decadência enquanto perdurou a coisa julgada posteriormente rescindida. De fato, o que ocorre é que o direito de lançar não nasce enquanto o Fisco não puder declarar a existência daquela obrigação tributária. E sendo o direito de lançar um direito potestativo, a sua perda pela inércia pressupõe a possibilidade de exercício desse direito. No tocante aos lançamentos eventualmente realizados antes de a decisão transitar em julgado no processo originário, a superveniência do trânsito em julgado implica a extinção do crédito tributário, nos termos do artigo 156, X, do CTN.

Face a tais considerações, no entendimento fazendário, somente com a rescisão da decisão transitada em julgado é que nasce o direito para o Fisco de lançar os valores que deixaram de ser pagos por força da decisão transitada em julgado. Os prazos decadenciais que estavam em curso até o trânsito em julgado do processo original deixam de fluir no momento em que o Fisco deixa de dispor do direito de lançar, e são retomados, pelo tempo remanescente, após a eliminação do obstáculo que impedia o exercício desse direito, isto é, com a rescisão da decisão transitada em julgado.

Ressalte-se que a jurisprudência não se manifestou especificamente em relação ao Parecer PGFN n. 2.740/2008, mas, tal qual exposto, a Primeira Seção do STJ consolidou entendimento por meio do qual, em matéria tributária, a rescisão da decisão transitada em julgado se opera com efeitos ex tunc, embora não tenha se manifestado quanto ao momento em que surge o direito ao Fisco de lançar, tampouco o período que pode ser compreendido no lançamento.

Ainda mais controversas são as conclusões do Parecer PGFN n. 2.740/2008 quanto à reabertura automática e plena dos créditos tributários já constituídos no curso da ação. De fato, os créditos tributários constituídos antes do trânsito em julgado da ação original serão extintos, com o advento do trânsito, por força do artigo 156, X, do CTN.

Ocorre que a Primeira Turma do STJ concluiu que o provimento da ação rescisória teria o condão de fazer renascer os créditos tributários anteriormente extintos, consoante se depreende de acórdão proferido nos autos do REsp n. 333.258/DF, de relatoria do Ministro Garcia Vieira. No entendimento da Corte, a substituição do provimento jurisdicional do processo originário, com eficácia ex tunc, implicaria o desfazimento de todos os efeitos que emergiram da decisão rescindida, para extirpar do ordenamento jurídico as causas que levaram à extinção do crédito tributário, fazendo-os renascer. Tal posicionamento foi posteriormente reafirmado pela Segunda Turma dessa Corte, nos autos do EDcl REsp n. 524.335, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha.

No entanto, não obstante a posição do STJ quanto ao tema, atualmente encontra-se em trâmite no STF recurso que poderá vir a enfrentar a questão em foco, sob o viés constitucional, nos autos do AgReg no RE n. 594.477/DF. Embora o aludido recurso não tenha sido afetado sob o regime de repercussão geral, da leitura do voto-vista do aposentado Ministro Eros Grau, depreende-se diretrizes que poderão vir a nortear as futuras convicções da Suprema Corte quanto à matéria, como a seguir transcrito:

“Mas a ação rescisória não tem o condão de fazer renascer crédito tributário extinto. O preceito veiculado pelo artigo 156, X, do CTN o impede. Não se pode restaurar o que não existe, a obrigação tributária pela lei declarada inexistente. Note-se bem que o credor, a União, não era titular do direito a lançar o tributo, em relação à ora agravante, até o momento da procedência da ação rescisória. E o objeto da execução fiscal de que se cuida respeita a valores exigidos anteriormente à propositura da ação rescisória.” (Destaques nossos)

Como se nota, a questão encontra-se em aberto na jurisprudência dos Tribunais Superiores, não havendo um posicionamento definitivo quanto à possibilidade de renascimento do crédito tributário lançado em dissonância com uma decisão transitada em julgado, que posteriormente vem a ser rescindida.

Tampouco se verifica na jurisprudência pátria julgados versando especificamente sobre o momento em que surge ao Fisco o direito de lançar, ou mesmo o período que pode ser abrangido por esse lançamento, em hipóteses que envolva a rescisão de decisão transitada em julgado.

De fato, o que se observa na jurisprudência do STJ é uma tendência de se entender pela impossibilidade de se atribuir aos prazos prescricionais e decadenciais, previstos no CTN, causas interruptivas ou suspensivas, para protraí-los no tempo, de modo a deslocá-los para além do termo a quo assinalado no Código Tributário Nacional. É o que se infere de acórdão da Primeira Seção do STJ proferido nos autos da Ação Rescisória n. 2.159/SP, de relatoria do Ministro Castro Meira, em que se aduziu que “o art. 174, parágrafo único, do CTN, prevê regras interruptivas somente aplicáveis à prescrição e não à decadência tributária. (...) O acórdão rescindendo, por ter admitido a interrupção do prazo decadencial com o ajuizamento da ação declaratória, viola, de maneira frontal, não apenas o disposto no art. 173, parágrafo único, do CTN, mas também a regra do art. 174, parágrafo único, que prevê causa interruptiva somente aplicável à prescrição tributária.”

Igualmente, outros julgados dessa Corte sinalizam para a posição de que nem mesmo a declaração da inconstitucionalidade em ADIn influi nos prazos anotados no CTN, como aponta acórdão proferido nos autos do AgRg no REsp n. 506.127/PR, de relatoria do Ministro Luiz Fux, em que se invocou as lições de Eurico Diniz17 para concluir que “o acórdão em ADIn não faz surgir novo direito de ação ainda não desconstituído pela ação do tempo no direito”.

Além disso, o Superior Tribunal de Justiça reiteradamente vem se manifestando no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade não desloca o termo a quo do prazo para repetição do indébito dela decorrente, que permanece sendo contado do pagamento indevido/fato gerador, como se infere de acórdão proferido pela Primeira Seção dessa Corte, nos autos do EREsp n. 462.446/MA. Assim, diante de uma decisão de efeito também ex tunc, não entendeu o STJ ter havido deslocamento do termo inicial - disciplinado no CTN - de contagem do prazo para o momento de sua prolação.

Como visto, embora haja uma série de precedentes do Superior Tribunal de Justiça que tangenciam, ora de forma mais direta, ora de forma indireta, o problema relativo ao período que poderá ser objeto de lançamento/cobrança em face do contribuinte que tem uma decisão rescindida com eficácia ex tunc, inexiste um posicionamento jurisprudencial consolidado quanto à questão. O que se observa é uma inclinação dessa Corte no sentido de não ser possível deslocar no tempo o termo a quo fixado pelo CTN como o momento do nascimento do direito potestativo, de modo a não se poder atribuir aos prazos prescricionais e decadenciais causas interruptivas ou suspensivas não previstas nesse mesmo diploma legal.

4. O Princípio da Segurança Jurídica e a Necessidade de Atribuição de Eficácia Prospectiva à Rescisão da Decisão Transitada em Julgado

Como exposto, tanto o posicionamento consolidado no âmbito do STJ, quanto a manifestação fazendária exarada no Parecer PGFN n. 2.740/2008, sinalizam para o entendimento de que a rescisão da decisão transitada em julgado em matéria tributária se opera com eficácia ex tunc, para substituir o provimento jurisdicional da ação original. Ocorre que, como vimos, a mesma Corte manifestou entendimento quanto à possibilidade de atribuição de efeito ex nunc, em caráter excepcional, a essa rescisão.

Ademais, não se pode perder de vista que, considerando a omissão do Código Tributário Nacional, no seu papel de lei complementar disciplinadora de normas gerais em matéria tributária, qualquer linha hermenêutica que venha a ser engendrada pressupõe obrigatoriamente o confronto com os valores insculpidos no texto constitucional.

Mais do que isso, versando a situação em estudo sobre os efeitos de uma decisão que foi extirpada do ordenamento jurídico, bem como os impactos no que concerne à perda do direito de lançar pelo decurso do tempo e ainda a confiabilidade depositada pelo contribuinte na decisão emanada do Poder Judiciário, com força de coisa julgada, não se pode desprezar os princípios da segurança jurídica e da boa-fé como vetores hermenêuticos a nortear o trabalho do exegeta.

São esses princípios, de envergadura constitucional, que nortearam diversos julgados18 no âmbito dos Tribunais Regionais Federais, atribuindo eficácia ex nunc à rescisão da decisão transitada em julgado em matéria tributária, em posição diametralmente oposta àquela consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Ademais, vale ressaltar que, não obstante o posicionamento do STJ quanto ao tema, atualmente encontra-se em trâmite no STF recurso que poderá vir a enfrentar a questão em foco, sob o viés constitucional, nos autos do já mencionado AgReg no RE n. 594.477/DF, pendente de julgamento.

Como se verifica, mesmo com o posicionamento cristalino do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de atribuir eficácia ex tunc à rescisão da decisão transitada em julgado em matéria tributária, a questão encontra-se longe de estar sedimentada no âmbito dos tribunais pátrios.

O próprio STJ, para fins previdenciários, reconhece19 os efeitos prospectivos da decisão que rescinde um julgado que assegurava um benefício previdenciário ao segurado. Aqui, no entanto, o fundamento da Corte para elidir o caráter retroativo da decisão recai na boa-fé do segurado e na natureza alimentar das verbas recebidas por ocasião da decisão posteriormente rescindida.

Embora tais precedentes não possam ser invocados para sustentar a eficácia ex nunc da rescisão de um julgado versando matéria tributária, haja vista a ausência do caráter alimentar, o emaranhado de decisões convergindo para a eficácia prospectiva apenas reforça a possibilidade de se suscitar os princípios da segurança jurídica e da boa-fé para o jurisdicionado que se encontrava amparado por uma decisão passada em julgado.

Acerca da segurança jurídica, cabe registrar que esse princípio não se encontra expresso na Constituição Federal, embora seja insofismável que sua preservação esteja albergada no texto constitucional. De qualquer modo, o regime constitucional em vigor aceita a existência de garantias implícitas20 que decorram das que estão expressas, ou que deem origem a estas, de tal modo que a segurança jurídica, mesmo não referida nominalmente, constitui-se em princípio fundamental do Estado de Direito, refletindo-se, por exemplo, na garantia de irretroatividade das leis.

Em matéria tributária, como manifestação expressa do princípio da segurança jurídica, a Constituição Federal preserva a irretroatividade de leis, a anualidade e a anterioridade. Trata-se, portanto, de proteção à previsibilidade, à confiança e à estabilidade no tempo. Acerca da garantia do contribuinte contra a irretroatividade de leis em matéria tributária, o artigo 150, III, a, da CF, soma-se à garantia insculpida no artigo 5º, XXXVI, para assegurar a preservação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. No plano infraconstitucional, amplas são as manifestações do princípio da segurança jurídica, como podemos observar nos artigos 100, parágrafo único, 105 e 146, do CTN.

Dessa forma, inexiste dúvida de que o princípio da segurança jurídica e da proteção à confiança do contribuinte de boa-fé estão resguardados no texto constitucional e na legislação infraconstitucional, seja de forma explícita ou de forma implícita, pelo que se torna imperiosa a análise do alcance da proteção às tutelas jurisdicionais obtidas pelo contribuinte que logrou obter uma decisão com força de coisa julgada, que posteriormente vem a ser rescindida.

Nesse contexto, Humberto Ávila21 se reporta à segurança jurídica como um estado de cognoscibilidade, de confiança e de calculabilidade. Partindo de sua distinção entre princípios e regras, o jurista é categórico ao afirmar que o constituinte regrou a impossibilidade de se tangenciar a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, hipóteses em que estão afastados os efeitos retroativos para fins de cobrança de tributo.

Na mesma toada, ao correlacionar os princípios da segurança jurídica e da irretroatividade das leis, com a proteção contra as decisões emanadas do Poder Judiciário, Misabel Derzi22 reporta-se à existência de um poder judicial de tributar, no qual o princípio da irretroatividade para instituir ou aumentar tributos, em face da proteção da confiança legítima e da boa-fé objetiva, seria limitação inequívoca. O mesmo entendimento é defendido pelo jurista alemão Klaus Tipke23, para o qual a base de confiança do contribuinte na orientação dos tribunais daria ensejo à chamada proibição da jurisprudência retroativa agravante.

E nem poderia ser diferente. A garantia constitucional da coisa julgada representa a concretização da segurança jurídica no Estado Constitucional de Direito, protegendo o contribuinte de arbítrios estatais, por meio de uma decisão judicial proferida em um processo do qual fez parte o próprio ente fazendário, que pode lançar mão de todos os argumentos em direito admitidos para fazer valer a sua pretensão, em atendimento aos princípios constitucionais do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição contra lesão ou ameaça de lesão a direitos.

Assim, um contribuinte que observa uma norma individual e concreta, decorrente da carga decisória ínsita à sentença judicial passada em julgado, não pode ficar suscetível à cobrança de tributos relativos aos períodos dos fatos geradores nos quais a decisão ainda produzia efeitos, com força de coisa julgada, mesmo após a sua rescisão, em consonância com o princípio a segurança jurídica e da proteção à confiança que foi depositada no decisum acobertado pelo manto da coisa julgada.

Nesse contexto, se nem mesmo a alteração na legislação, que norteia toda a atuação dos agentes fazendários, é capaz de atingir, com efeitos retroativos, a coisa julgada com base na qual estava amparado o contribuinte, nos termos da dicção dos artigos 5º, XXXVI, e 150, III, a, da CF, com maiores fundamentos é possível se sustentar que a rescisão do julgado também estaria impossibilitada de irradiar efeitos pretéritos, em atendimento a essas garantias constitucionais.

Nessa linha argumentativa, Heleno Taveira Tôrres24, ao refletir sobre a coisa julgada e a proteção ao princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, sustenta que o estado de confiança gerado pela decisão transitada em julgado é suficiente para motivar a eficácia prospectiva da rescisão desse decisum, haja vista a expectativa de confiança legítima de que se encontra imbuído o contribuinte.

Em síntese, são fartos os argumentos a serem invocados para a atribuição de eficácia prospectiva à rescisão da decisão transitada em julgado, haja vista a confiança depositada pelo contribuinte na coisa julgada que lhe assegurava a desoneração de parte de sua carga tributária.

Vale ressaltar que o próprio STF, que será instado a se manifestar quanto à questão, prestigiando a segurança jurídica, atribuiu em diversas oportunidades eficácia futura a decisões que, a todo rigor, implicariam o desfazimento de relações jurídicas pretéritas. Nesse cenário, cabe destacar que, à luz do chamado “consequencialismo judicial”, diversos mecanismos foram criados para acomodar o julgamento de questões que, em princípio, implicariam a retroatividade da carga decisória, mas que, por ponderação dos efeitos/consequências que emergiriam desse comando judicial, passou-se a modular ou restringir os efeitos da declaração judicial.

Nesse diapasão, convém destacar que o artigo 27 da Lei n. 9.868/199925, facultou ao Supremo Tribunal Federal - inicialmente, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mas também posteriormente utilizado no controle difuso - o poder de atribuir eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade, por motivo de segurança jurídica ou excepcional interesse social, sendo ínsita à aplicação desse dispositivo o sopesamento dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Ocorre que, mesmo antes do advento desse comando legal, o Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, flexibilizou a teoria da nulidade da norma inconstitucional, sob o pretexto de que conduta diversa traria maiores ofensas constitucionais do que a mitigação da teoria da nulidade em si. Nesse cenário, merecem registro diversas manifestações das Cortes Superiores, ainda que não versando sobre matéria tributária, mas que prestigiaram a segurança jurídica e atribuíram efeitos prospectivos a decisões que declaram a nulidade de norma ou ato jurídico.

É o que se observa, a título ilustrativo, em decisão26 do STF que manteve servidor público em seu cargo, a despeito da inconstitucionalidade da lei com base na qual se deu a sua investidura. Ou ainda em decisão27 da Corte Suprema que manteve servidor que ingressou em sociedade de economia mista sem a realização de concurso, quando ainda pairava dúvida sobre a necessidade de realização de concurso para tais cargos. Ou decisão28 que manteve os atos praticados por Câmara Municipal instituída por leis inconstitucionais, em razão da ausência de proporcionalidade da população local. Também o STF já reputou29 inconstitucionais os prazos prescricionais e decadenciais instituídos pela Lei n. 8.212/1991, embora tenha atribuído eficácia prospectiva à decisão, para reconhecer como legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nessa lei e não impugnados antes da data de conclusão do julgamento.

A par dessas decisões, inúmeros são os julgados em que o longo decurso do prazo até um provimento jurisdicional final desempenhou um papel decisivo na declaração da preservação do ato impugnado, em nome do princípio da segurança jurídica. Trata-se, pois, da “teoria do fato consumado”, em que a situação jurídica foi consolidada pela “força normativa dos fatos”.

Assim, o longo decurso do tempo e o amparo em uma decisão judicial, a despeito de se tratar de uma situação jurídica que posteriormente se revela incompatível com o ordenamento pátrio, atribui eficácia de direito adquirido a essa situação. Nessas ocasiões, até mesmo um provimento obtido em caráter precário (i.e., liminar etc.), posteriormente reputado ilegal/inconstitucional, impossibilitou que fossem atingidas situações pretéritas, já consolidadas no tempo.

Nessa linha, podemos destacar diversos julgados do STF e do STJ em que a existência de uma prévia decisão judicial e o longo decurso do prazo para sua reforma tiveram o condão de estabilizar a relação jurídica consolidada por força da decisão precária, posteriormente revertida. É o que se observa em decisões30 versando sobre o ingresso em concurso público ou universidade com base em provimentos jurisdicionais que posteriormente são reformados. Ou ainda decisão31 em que se reconheceu a fraude de pensão por morte, mas não se anulou o ato administrativo que a concedeu em razão do longo prazo desde a sua concessão.

Ressalte-se que a “teoria do fato consumado” encontra-se afetada sob o regime de repercussão geral no âmbito do STF, nos autos do RE n. 608.482, quando então a Corte deverá se manifestar, à luz do princípio da segurança jurídica, ainda que versando sobre o ingresso em cargo público com base em decisão precária posteriormente revertida, quanto aos efeitos que foram irradiados a partir de uma decisão de caráter provisório, em face de uma situação jurídica que foi estabilizada pelo longo decurso do tempo. Também o Superior Tribunal de Justiça aplica de forma iterativa32 a “teoria do fato consumado”, em diversas circunstâncias, nenhuma delas versando sobre matéria tributária.

Como se vê, embora nenhum dos julgados se reporte a matérias tributárias, é possível inferir desse emaranhado de decisões dos Tribunais Superiores, aplicadas em diferentes campos do direito positivado, que o princípio da segurança jurídica deve ser prestigiado, com o consequente afastamento do efeito retroativo das decisões judiciais, quando envolver vulnerabilidadede instituições do Estado, ou para não prejudicar o jurisdicionado em caso de grave lesão, ou para preservar outros valores constitucionais, ou porque o longo decurso do prazo tornaria extremamente gravosa a reversão do provimento anteriormente obtido.

Como balizamento para a análise do princípio da segurança jurídica, Misabel Derzi33 aponta para a constante interação entre os princípios da irretroatividade, da proteção da confiança e da boa-fé objetiva, ora sobrepondo-se, ora excluindo-se, mas todos como facetas do princípio da segurança jurídica.

Assim é que, adaptando tais nuances à situação em estudo, atuam em favor da aplicação do princípio da segurança jurídica, para atribuição de efeito ex nunc à rescisão da decisão transitada em julgado em matéria tributária, os seguintes fundamentos:

- o contribuinte agiu de boa-fé, porquanto ingressou em juízo e fez valer o seu lídimo direito constitucional a uma prestação jurisdicional, logrando obter uma decisão afastando o recolhimento de tributo, que posteriormente foi acobertada pelo manto da coisa julgada;

- contra a decisão que veio a transitar em julgado, o ente fazendário poderia ter ingressado com os recursos cabíveis, mas não o fez. Assim, eventual dissonância entre a decisão transitada em julgado com o ordenamento pátrio, que motivou a procedência da ação rescisória, decorreu (i) do entendimento do Poder Judiciário, como terceiro imparcial da relação jurídica processual; e (ii) da inércia do Poder Executivo em recorrer da decisão, não se podendo cogitar prejuízos àquele que de boa-fé observou o comando decisório;

- até a efetiva rescisão do julgado, quando foram exauridos os recursos na ação rescisória, o contribuinte curvou-se ao entendimento exarado na decisão transitada em julgado, que se revestiu de norma individual e concreta para afastar o recolhimento do tributo, merecendo amparo, pelo princípio da proteção da confiança, a convicção do contribuinte depositada na higidez na decisão emanada do Poder Judiciário, com força de coisa julgada;

- se nem mesmo a alteração legislativa, à luz dos mandamentos constitucionais, poderia retroagir de modo a atingir os fatos geradores relativos ao período em que o contribuinte detinha uma decisão transitada em julgado, desonerando-o do recolhimento do tributo, com maiores fundamentos é possível se sustentar que nova decisão judicial também não teria condão de se projetar para o passado;

- caso transcorra um longo período entre o trânsito em julgado da decisão do processo originário e a sua rescisão, esse decurso do prazo decorrerá tão somente da morosidade e ineficiência do Poder Judiciário em adequar o processo originário à orientação jurisprudencial aplicável ao caso concreto, não podendo o ônus decorrente dessa demora ser imputado ao contribuinte. Assim, é possível sustentar que o longo decurso do prazo estabilizou as relações jurídicas entre Fisco e contribuinte, à luz da “teoria do fato consumando”, levando o contribuinte a estruturar suas atividades em consonância com a decisão transitada em julgado, até a efetiva rescisão;

- a rescisão da decisão transitada em julgado, com efeito ex tunc, poderá revelar-se excessivamente danosa em razão do longo prazo envolvido, podendo colocar o contribuinte em situação de insolvência, haja vista a alta carga tributária a que será submetida por ocasião da restauração, durante todo o período, da relação jurídico-tributária entre o Fisco e o contribuinte.

Dessa forma, a despeito da ausência de doutrina e de jurisprudência específicas sobre a matéria, entendemos haver argumentos robustos para se invocar a eficácia prospectiva da rescisão da decisão transitada em julgado em favor do contribuinte, o que impossibilitaria a cobrança de tributos relativos aos fatos geradores anteriores à rescisão. Isso porque, na hipótese em estudo, militam em favor da aplicação do princípio da segurança jurídica: o princípio da proteção à confiança, o princípio da boa-fé do contribuinte, o decurso de prazo decorrido até a rescisão, ínsito à morosidade do Poder Judiciário brasileiro e as consequências nefastas decorrentes da rescisão.

Sem prejuízo dos argumentos quanto à segurança jurídica, que sustentam a eficácia prospectiva da rescisão da decisão transitada em julgado em matéria tributária, não se pode desconsiderar a possibilidade de aplicação do artigo 14634 do CTN para impedir o lançamento para cobrança dos valores que deixaram de ser recolhidos por força da decisão proferida no processo originário.

Não obstante a celeuma doutrinária35 quanto à restrição da aplicação desse dispositivo tão somente para situações em que já houve lançamento, para impossibilitar o aumento da carga tributária relativa ao mesmo fato gerador, parece-nos que o aludido comando legal merece ser interpretado com a finalidade da norma, isto é, a preservação do princípio da segurança jurídica e da confiança do contribuinte, de modo a impossibilitar que qualquer tributo venha a ser cobrado de forma retroativa à mudança de critério jurídico.

Quanto à abrangência das questões passíveis de serem abarcadas na expressão critério jurídico, Luís Eduardo Schoueri36 elucida a amplitude do conceito, porquanto poucas são as questões, em matéria de lançamento, que não impliquem a sua modificação.

E de fato, na situação em estudo, o que se observa é que temos, inicialmente, um fato jurídico tributário, para o qual, por força de decisão judicial transitada em julgado, entendeu-se pela inexistência de relação jurídico-tributária. Ocorre, todavia, que com o trânsito em julgado da rescisória, para o mesmo fato jurídico tributário, o próprio Poder Judiciário reviu a qualificação jurídica desse fato, reputando-o hábil a irradiar o liame obrigacional entre Fisco e contribuinte. Essa alteração no critério jurídico, portanto, em consonância com o artigo 146 do CTN, não poderá atingir, por meio do ato de lançamento, períodos pretéritos anteriores à modificação dessa valoração jurídica.

Assim, no tocante ao lançamento dos tributos devidos em momento anterior à rescisão da decisão transitada em julgado, as autoridades fazendárias estavam jungidas, para a valoração jurídica daquele fato jurídico tributário, à interpretação que decorreu do comando decisório transitado em julgado, reputando inexistente a relação jurídico-tributária. Somente com o trânsito em julgado da ação rescisória, os agentes fiscais, em decorrência dessa nova decisão judicial, estavam aptos a modificar os critérios jurídicos para a valoração desse mesmo fato. Todavia, tal modificação de critério jurídico, em consonância com os princípios da segurança jurídica e proteção da confiança, somente se aplica para os fatos geradores posteriores à rescisão da decisão transitada em julgado.

Trata-se, portanto, de um mesmo fato para o qual será atribuída uma nova valoração jurídica, relativa ao mesmo evento fenomênico. O importante é ressaltar que o mencionado dispositivo legal impossibilita que a Administração Pública, ou mesmo o Poder Judiciário37, reveja os critérios jurídicos, com eficácia retroativa, para a qualificação de um mesmo fato gerador.

Em síntese, sem prejuízo dos valores de envergadura constitucional que impossibilitam a cobrança dos tributos pretéritos na situação em estudo, também o Código Tributário Nacional oferece elementos que possibilitam sustentar a eficácia prospectiva da rescisão da decisão transitada em julgado.

5. Conclusões

Em síntese, com espeque nos argumentos alinhavados ao longo do presente estudo, é possível concluir-se que:

- no que concerne ao momento da rescisão da decisão transitada em julgado, é possível se sustentar, com base na doutrina e na jurisprudência majoritárias, que somente com o trânsito em julgado da ação rescisória é que se opera a rescisão da decisão que declarava a inexistência de relação jurídico-tributária entre o Fisco e o contribuinte, de modo que os lançamentos realizados depois do trânsito em julgado do processo originário, mas antes do trânsito em julgado da ação rescisória, encontram-se eivados de nulidade, porquanto até essa data inexistia relação jurídico-tributária passível de ser declarada por meio do ato de lançamento, para fins de constituição dos créditos tributários;

- ademais, com base nos posicionamentos fazendário (Parecer PGFN n. 2.740/2008) e jurisprudencial (Primeira Seção do STJ), a procedência de uma ação rescisória em matéria tributária possibilita ao Fisco a cobrança dos valores que deixaram de ser recolhidos no passado, em razão da eficácia ex tunc com que se opera a rescisão da decisão transitada em julgado, de modo que a partir da rescisão os agentes fazendários retomariam o direito potestativo de lançar os tributos que deixaram de ser recolhidos inclusive no curso da ação originária, desde que não fulminados pela decadência;

- também prevalece no âmbito do STJ que a rescisão da decisão transitada em julgado teria o condão de fazer renascer os créditos tributários constituídos por meio de lançamentos realizados quando ainda hígida a decisão que posteriormente veio a ser rescindida; e

- sem prejuízo de tais considerações, é possível ainda se suscitar a eficácia ex nunc da rescisão da decisão transitada em julgado, de modo que o Fisco somente poderia proceder à cobrança dos valores relativos a fatos geradores ocorridos a partir da rescisão da decisão transitada em julgado. Tal posicionamento encontra-se plasmado no princípio da segurança jurídica, que já foi utilizado pelo STF em diversas ocasiões para atribuir eficácia prospectiva a decisões que, em princípio, teriam eficácia retroativa, inexistindo posicionamento dessa Corte no que tange à rescisão de decisão transitada em julgado em matéria tributária.

1 Acerca da questão, bem ponderou Celso F. Campilongo: “Por fim, a ‘coisa julgada’ que tinha por objetivo, no Estado liberal, estabilizar a decisão, agora, no direito do Estado Social, construído para facilitar a atuação de um Estado dedicado a intervir e transformar a sociedade, torna-se um instrumento de discutível utilidade para algumas situações limites.” (CAMPILONGO, Celso F. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 29)

2 Quanto à intitulada crise da coisa julgada em matéria tributária, Walter Piva Rodrigues dedica a Terceira Parte de sua obra Coisa julgada tributária ao tema (Cf. RODRIGUES, Walter Piva. Coisa julgada tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 109-120).

3 Isso porque, embora o legislador do CTN tenha disciplinado os efeitos decorrentes da decisão transitada em julgado no que concerne à extinção do crédito tributário (artigo 156, X), restou omissa a hipótese dos efeitos decorrentes da rescisão dessa decisão, o que torna difícil a harmonização dos rígidos cânones processuais com as particularidades jurídicas do instituto do lançamento.

4 Cabe destacar que o STJ, flexibilizando os rigores da Súmula n. 343 do STF, entende cabível o ajuizamento de ação rescisória com fundamento no artigo 485, V, do CPC, na hipótese de a decisão transitada em julgado contrariar uma interpretação conferida por essa Corte à lei federal (cf. EDiv no REsp n. 928.302 e EDiv no REsp n. 960.523). O mesmo posicionamento é perfilhado pelo STF, que, afastando-se do mesmo enunciado sumular, admite o ajuizamento de ação rescisória quando a decisão transitada em julgado divergir da interpretação constitucional conferida pelo STF acerca da matéria discutida, em prol da supremacia da Constituição e da preeminência das decisões exaradas pelo STF (cf. RE AgRg n. 328.812/AM. e RE n. 328.812).

5 Confira-se, a esse respeito, os seguintes precedentes do Superior Tribunal de Justiça versando sobre o assunto: REsp n. 1.395.809/PB, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 5.9.2013, DJe de 17.9.2013 e AgRg no AREsp n. 227.772/RS, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, julgado em 11.12.2012, DJe de 4.2.2013.

6 Cf. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo VI, 3ª ed. Artigos 476-495. Rio de Janeiro: Forense, 1998, pp. 306/307; MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 107 e 187; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual Civil, volume 5, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 392/393; e DIDIER JR., Fredie; e CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil, volume 3, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 429.

7 Nessa toada, confira-se os seguintes precedentes: STJ, RMS n. 5.134/GO, Rel. Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 14.3.1995, DJ de 10.4.1995, p. 9.271; STJ, AgRg na MC n. 390/BA, Rel. Ministro Ari Pargendler, Segunda Turma, julgado em 18.12.1995, DJ de 18.3.1996, p. 7.553; e TRF da Primeira Região, AMS n. 15.282/BA 2002.33.00.015282-6, Rel. Desembargador Federal Leomar Barros Amorim de Sousa, Oitava Turma, julgado em 16.11.2004, DJ de 25.2.2005, p. 170.

8 Cf. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado da ação rescisória. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 171.

9 “8. A nova redação apresentada ao art. 489 do CPC apenas incorpora ao ordenamento positivo o entendimento dominante na jurisprudência quanto à possibilidade de concessão de medidas de urgência concomitantes com o ajuizamento de demanda rescisória, pelo que não nos parece haver óbice a sua aprovação.”

10 Cf. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil, volume 3, 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 66/68.

11 Assim entende CALAMANDREI, Piero. Apud SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil, volume 3, 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 66/68.

12 Cf. Ac. n. 03-09.210, Terceira Câmara do Segundo Conselho de Contribuintes. Proc. 13855.000239/2001-60, julgado em 14.10.2003; e DRJ/PR. Ac. n. 1.246, Processo 10980.000932/2002-90, julgado em 29.5.2002, mencionado no Acórdão 02-14.772, proferido neste mesmo processo administrativo pela Segunda Câmara do Segundo Conselho de Contribuintes, julgado em 14.5.2003.

14 Com relação a este assunto, ousamos discordar da opinião de MARINS, James; e FOLLONI, André. “Estabilidade das atividades econômicas e os efeitos da ação rescisória contra decisão favorável ao contribuinte”. Revista tributária e de finanças públicas volume 99, ano 19. São Paulo: RT, julho/agosto de 2011, que entendem ser um dever do Fisco realizar o lançamento para prevenir a decadência nestas hipóteses, já que não existe no ordenamento jurídico pátrio causas suspensivas/interruptivas da decadência. Contudo, conforme já exposto ao longo do presente artigo, a nosso ver, enquanto perdurarem os efeitos da coisa julgada favorável ao contribuinte, o Fisco não terá nenhuma pretensão ou legitimidade de exercer seu direito potestativo de lançamento. Após a efetiva rescisão da res judicata favorável ao contribuinte, nascerá o direito, em si, de o Fisco efetuar o lançamento, dando início ao prazo decadencial a que alude o artigo 173, I, do CTN. Deste modo, não há o que se falar nesta hipótese em causa suspensiva/interruptiva da decadência, mas, sim, do nascimento do direito ao exercício do lançamento, em si.

15 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V: arts. 476 a 565. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

16 Nesse sentido, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 553-554.

17 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 271/277.

18 Nesse sentido: TRF da Quinta Região, AGTR n. 65.983/CE, 0049529-36.2005.4.05.0000, DJ de 19.12.2007; TRF da Quinta Região, AR n. 209/CE, 93.05.33409-1, DJ de 6.7.2006; TRF da Quinta Região, AC n. 440530/CE, 0000173-85.2006.4.05.8100, DJ de 30.3.2010; TRF da Quinta Região, AR n. 4893/PB, 0000483152004405000001, DJ de 29.7.2009; TRF da Terceira Região, AC n. 30075/SP, 2006.03.99.030075-4, DJ de 17.12.2007.

19 Cf. STJ, Terceira Seção, AR n. 3.926/RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Belizze, DJ de 18.9.2013; STJ, AR n. 4.193/RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Belizze, DJ de 18.9.2013; STJ, AgRg no AREsp n. 231.313/RN, Rel. Ministro Ari Pargendler, DJ de 22.5.2013.

20 É o que se infere, a título ilustrativo, do preâmbulo e do caput do artigo 5º da CF, que expressamente resguardam outras garantias não expressas no texto constitucional, ou mesmo do caput do artigo 150, no qual se aduz “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte”.

21 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário, 2ª ed. revisada. São Paulo: Malheiros, 2012, pp. 355; 358; 361.

22 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 469.

23 TIPKE, Klaus; e LANG, Joachim. Direito Tributário, volume 1. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008, pp. 258-259.

24 TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: RT, 2011, pp. 462-463.

25 Importante registrar que a exposição de motivos da Lei n. 9.868/1999 elucida o objetivo almejado com a norma, pressupondo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da norma inconstitucional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, de outro. Assim, o princípio da nulidade somente será afastado in concreto se, a juízo do próprio STF, se puder afirmar que a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional.

26 Cf. STF, Primeira Turma, RE n. 78.209, Rel. Ministro Aliomar Baleeiro, DJ de 9.10.1974 e STF, Segunda Turma, RE n. 78.594, Rel. Ministro Bilac Pinto, DJ de 30.10.1974.

27 Cf. STF, Pleno, MS n. 22.357, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJ de 5.11.2004.

28 Cf. STF, Pleno, RE n. 197.917, Rel. Ministro Maurício Corrêa, DJ de 7.5.2004 e STF, Pleno, RE n. 266.994, Rel. Ministro Maurício Corrêa, DJ de 21.5.2004.

29 Cf. STF, Pleno, RE n. 560.266, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJ de 5.12.2008.

30 Cf. STF, Terceira Turma, RMS n. 13807, Rel. Ministra Kelly Prado, DJ de 1º.6.1966 e STF, Primeira Turma, RMS n. 17.144, Rel. Ministro Lafayette de Andrada, DJ de 10.10.1966.

31 Cf. STF, Pleno, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJ de 17.9.2004.

32 Cf. STJ, Segunda Turma, REsp n. 1.310.811, Rel. Ministro Humberto Martins, DJ de 14.2.2013; STJ, Primeira Turma, REsp n. 1.223.220, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJ de 21.9.2011; STJ, Segunda Turma, REsp n. 1.346.893/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell, DJ de 12.11.2012; STJ, Segunda Turma, AgRgREsp n. 1.049.131/MT, Rel. Ministro Humberto Martins, DJ de 25.6.2009.

33 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, pp. 603-604.

34 “Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.” (Destaques nossos)

35 Nesse sentido, como Luís Eduardo Schoueri bem elucida, Misabel Derzi e Ricardo Lobo Torres sustentam a possibilidade de um novo lançamento, relativo a fatos geradores pretéritos, com a mudança de critérios jurídicos. Em posição antagônica, Luís Eduardo Schoueri, Luciano Amaro, Hugo de Brito e Gabriel Lacerda Troianelli sustentam a aplicação do artigo 146 do CTN inclusive para impossibilitar que novos lançamentos sejam realizados, no que concerne a um mesmo fato jurídico tributário (cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário, 2ª ed. Op. cit., p. 565).

36 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário, 2ª ed. Op. cit., p. 566.

37 Quanto à aplicação do dispositivo na seara judicial, José Souto Maior Borges ressalta a abrangência do dispositivo, que se estende para os atos sentenciais em geral, desembocando em eminentes questões constitucionais (cf. BORGES, José Souto Maior. “O princípio da segurança na Constituição Federal e Emenda Constitucional 45/2004. Implicações fiscais”. In: PIRES, Adilson Rodrigues; e TÔRRES, Heleno Taveira (orgs.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 268).