Os Primeiros Anos da República Velha, Tributação e a Contribuição de Rui Barbosa
Jeferson Teodorovicz
Doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogado e Professor de Direito Tributário.
Resumo
O Direito Tributário brasileiro possui grande débito para com Rui Barbosa, figura proeminente no cenário nacional entre o final do século XIX e o início do século XX, e que legou importantes contribuições ao Direito Tributário positivo. Por esse motivo, o presente estudo pretende relembrar os aspectos históricos do Direito Tributário no período os primeiros anos de consolidação da República Velha, e, especificamente, explorar um pouco da contribuição de Rui Barbosa para o desenvolvimento do Direito Tributário brasileiro.
Palavras-chave: Direito Tributário, República Velha, Rui Barbosa.
Abstract
The Brazilian Tax Law has large debt to Rui Barbosa, a prominent figure on the national scene from the late nineteenth century and early twentieth century, and bequeathed important contributions to the positive tax law. Therefore, this study intends to recall the historical aspects of tax
law during the early years of consolidation of the Old Republic, and specifically, to explore a bit of Rui Barbosa contribution to the development of the Brazilian tax law.
Keywords: Tax Law, Old Republic, Rui Barbosa.
1. Introdução
No presente estudo pretende-se oferecer brevíssimo ensaio sobre aspectos tributários que circundavam o peculiar contexto histórico dos primeiros anos da República Velha, concentrando atenções no papel de Rui Barbosa, eminente figura política do Brasil, e sua grande contribuição aos rumos do Direito Tributário brasileiro. Naturalmente, a contribuição do célebre político não escapou do contexto histórico peculiar vivenciado nos anos finais do século XIX e nos primeiros anos do século XX.
É necessário compreender, ainda que superficialmente, que a contribuição de Rui Barbosa se fez como resposta ao contexto histórico daquele momento, que necessitou urgentemente de importantes modificações tributárias em face da nova configuração política que se consolidaria a partir da Constituição de 1891.
Este trabalho analisa primeiramente aspectos econômicos, legislativos e sociais relativos à transição entre o Regime Monárquico, caracteristicamente unitário, para o Regime Republicano que se estruturaria através do federalismo, graças à influência de Rui Barbosa.
Estabelecidas algumas premissas, passa-se então à breve análise do legado, especificamente tributário, concedido por Rui Barbosa, e sua influência na estruturação do pacto federativo tributário no Brasil, que o tornou diretamente responsável pela estrutura constitucional tributária nos primeiros anos da República Velha. É o que se pretende expor a seguir.
2. A Transição do Regime Monárquico para o Regime Republicano: a Formação do Pacto Tributário Federativo na República Velha
A realidade socioeconômica brasileira durante todo o período colonial e monárquico foi marcada pela estrutura essencialmente agrária, voltada ao extrativismo mineral e vegetal.
Esses elementos caracterizavam o Brasil como um país essencialmente exportador de riquezas naturais, mas importador de produtos manufaturados. E deve-se dizer que mesmo no final do século XIX essa situação se mantinha estagnada. O Brasil encontrava-se em evidente situação de atraso econômico e industrial frente aos demais parceiros comerciais.
E os agentes econômicos brasileiros lentamente perceberam sua própria situação de desvantagem estratégica frente aos demais países. Para alcançar maior interesse do capital e investimentos estrangeiros, seria necessário realizar grandes modificações na estrutura política, econômica e jurídica no Brasil, estas ainda adaptadas para um país exportador de riquezas, mas importador de produtos submetidos à industrialização. Em outras palavras, até o século XIX, a economia brasileira encontrava-se em uma situação de gritante atraso econômico estrutural, marcado por uma secular tradição escravagista que, em meados do século XIX, vislumbrou a transição para o trabalho assalariado, mas ainda essencialmente agrícola e extrativista1.
Mas também foi nessa época que eclodiu o capitalismo internacional europeu, e o liberalismo clássico alcançou na Europa o ápice de sua influência, expandindo sua influência para outros continentes, e contagiando inclusive a realidade brasileira. Mas para o que interessa ao presente trabalho, importa analisar brevemente a realidade socioeconômica prevalecente nas décadas finais do século XIX2.
A postura monárquica liberal havia sido prodigiosa no sentido de viabilizar a abertura dos portos, e, consequentemente, a cultura de exportação de matérias primas (cacau, borracha, açúcar, café etc.). O crescimento econômico viabilizado pela balança comercial equilibrada entre importações e exportações durante a segunda metade do século XIX alcançou resultados progressivos no último ano monárquico, sendo este considerado o mais profícuo (com taxa de 4,81% de crescimento, a maior desde 1840).
Na realidade, entre 1859 e 1889 (ano da Revolução), a taxa de crescimento do país atingiu a média de 3,88%. A agricultura brasileira detinha papel de grande importância, representando 80% das atividades exercidas, contra 13% da prestação de serviços e 7% do setor industrial. Impostos aplicáveis às mercadorias importadas foram criados para a proteção do mercado dos produtos brasileiros, adquirindo clara conotação reguladora3.
Embora as primeiras indústrias já fossem registradas em solo brasileiro naquele período, ainda existiam severas dificuldades para instalação e manutenção dessas (até porque a maioria dos equipamentos era importada). Papel de destaque para a mudança desse perfil industrial incipiente foi desempenhado pela Tarifa Alves Branco, que tencionava elevar a arrecadação e incentivar o crescimento da indústria nacional.
Obteve êxito nessas duas empreitadas, viabilizando o surgimento rápido de capital, que foi logo investido na infraestrutura estatal e em áreas estratégicas (serviços urbanos, comércio, bancos, indústrias, especialmente a têxtil etc.). O impulso industrial têxtil teve papel de destaque na monarquia, recebendo investimentos consideráveis, quando, após a revolução republicana, entrou em franca decadência.
Aliás, vale registrar os apontamentos de Alcides Jorge Costa sobre o papel das tarifas aduaneiras no período. A aplicação dos impostos aduaneiros, especialmente do ponto de vista econômico, contribuiu solidamente ao sistema tributário brasileiro, já que, logo depois da independência e do processo de reconhecimento do Brasil, a Inglaterra foi amplamente favorecida com um tratado que concedia regime tributário absolutamente favorável aos seus produtos (em detrimento de outros países). Na prática o Brasil tinha deixado de ser colônia portuguesa para se tornar autêntica colônia inglesa.
Mas logo o Brasil percebeu problemas trazidos com o novo monopólio inglês, não tardando a desenvolver acordos com outros países como Bélgica e França, para estender o tratamento benéfico para outras nações e fortalecer sua política de comércio exterior4.
Contudo, conforme salienta Costa,
“Só que esses tratados, por sua vez, impediram o Brasil de manejar a tarifa aduaneira. Vamos ver depois, na história da República, a importância dos impostos de importação e de exportação na história da tributação do Brasil, que tinham grande relevância na arrecadação, pois quanto mais primitiva a economia mais importante é o volume arrecadado por impostos aduaneiros, mas na medida em que a economia se desenvolve, esses tributos vão perdendo espaço e passam a ter efeitos meramente regulatórios.”
Interessante notar que, conforme avalia o autor, esses tratados celebrados entre o Brasil e outros países resultaram em dificuldades para a aplicação da tarifa aduaneira. Por esse motivo, apenas quando os acordos aduaneiros foram encerrados é que o Brasil pôde fixar tarifas verdadeiramente condizentes com o interesse nacional5.
A primeira foi a Tarifa Alves Branco, que foi sucedida por várias outras, alcançando dupla função naquele período: (a) fornecer receita muito maior e mais adequada às necessidades do país; e (b) apresentar feições regulatórias6.
A Constituição de 1891, herdando boa parte da estrutura tributária já consolidada no final do Império, e grande parte da receita proveniente da União, concedia grande importância aos impostos sobre o comércio exterior, e essa tendência manteve-se nos primeiros anos da República. Tanto é que até o início da Primeira Guerra Mundial, o imposto sobre importação foi responsável por 50% da arrecadação total da União, ao passo que o imposto sobre o consumo correspondia a 10% do total de arrecadação. Nota-se, portanto, a grande importância desse imposto até aquela época7.
Com o final da Primeira Guerra mundial, a receita total do imposto de importação declinou atingindo aproximadamente 35% da receita total da União, entre a década de 1920 e o início da década de 1930. Por outro lado, no que tange aos Estados, o imposto de exportação estadual correspondia a 40% da renda tributária total, mencionando-se também o imposto de transmissão de propriedade e o de indústrias e profissões, que era a principal fonte de receita municipal, ao lado do imposto predial. Naquela época, ainda não havia sido criado o Imposto de Renda, que só seria instituído em 1922, e efetivamente aplicado com o Decreto nº 17.390, de 26 de julho de 19268.
Embora tenha se manifestado desenvolvimento do setor industrial no século XIX, o país ainda será conhecido pelas monoculturas (café, borracha e soja, por exemplo) e pela economia de exportação de matérias-primas e importação de manufaturados9.
Outra importante anotação sobre o período deve ser feita, no que se refere ao déficit público no Brasil. Segundo lembra Alcides Jorge Costa, o déficit público no Brasil não era novidade, e já se mantinha desde os tempos de colônia, pois para Viveiros de Castro, lembrado por Alcides, esse déficit é ingênito, quase um fenômeno fisiológico, característico do Brasil. E, no período imperial, até Dom Pedro II teve de reduzir as próprias despesas. As crises políticas do período também não ajudaram. A Guerra do Paraguai provocou grandes dificuldades ao Império (o que serviu de panfleto para os republicanos identificarem o déficit na estrutura imperial). Contudo, curiosamente, Alcides Jorge Costa recorda que o déficit foi elevado com a República10.
É nesse contexto econômico-financeiro que sobreveio a Revolução Republicana, com o governo provisório, estabelecido entre 1889 e 1891, e cujas medidas impulsionaram ainda mais a crise política e financeira, verificando-se a urgente necessidade de uma significativa mudança estrutural em todo o sistema econômico brasileiro para que se viabilizasse a formação de capital e atraísse novos investimentos à República recém-formada. Essa mudança dependia do processo de industrialização, que teve início no Brasil nos últimos anos do século XIX, por sua vez impulsionado por fatores econômicos, políticos, e sociais daquela realidade, consolidando crescimento da economia brasileira essencialmente extrativista, marcada pelos bons resultados da exportação de cana-de-açúcar e, pela lenta, mas progressiva, consolidação da lavoura cafeeira, que nos anos seguintes se manteria como principal produto de exportação brasileiro11.
O processo de industrialização da economia brasileira teve seus primeiros esboços identificados no período de 1885 em diante, e, naturalmente, alguns elementos sociopolíticos (e culturais) também facilitaram essa transformação, como o surgimento da mão de obra assalariada (como decorrência natural do fim da escravatura, que foi abolida naquela época), a imigração em massa (especialmente europeia) e a intensificação das estruturas industriais pré-capitalistas12-13.
Entretanto, embora algumas primeiras indústrias começassem a erguer-se contra a tradição agrícola brasileira, e afluísse maior consciência brasileira no sentido de emancipar-se das rédeas do extrativismo para exportação, não será possível afirmar que houve efetivamente um processo de industrialização em larga escala no Brasil naquele contexto histórico.
De qualquer forma, coube a Rui Barbosa papel central na mudança político-estrutural do país. E assumiu tal tarefa com vigor. Não é por outro motivo que viajou para os Estados Unidos e, deslumbrado com o funcionamento da federação norte-americana, decidiu importar o modelo federativo para o então “novo” Estado brasileiro que estava se formando das cinzas da monarquia.
3. A Contribuição de Rui Barbosa para a Consolidação das Reformas Tributárias na República Velha
Sem receio de cometer qualquer injustiça, o verdadeiro protagonista das reformas tributárias promovidas na transição entre o Regime Monárquico e o Regime Republicano foi Rui Barbosa14, figura política proeminente na história do Brasil, nascido em 5 de novembro de 1849, bacharel em Direito formado em São Paulo, jornalista, poeta, diplomata, orador, filólogo, político, poliglota, e, dentre outras atividades, exerceu função insubstituível na mudança do regime monárquico para o regime republicano, colaborando decisivamente para a escolha da forma de Estado Federal que substituiu o antigo Estado Monárquico unitário e centralizador prevalecente no século XIX até 15 de novembro de 1889. Foi ele que se encantou com a experiência federalista norte-americana, e se dispôs a trazê-la para o contexto brasileiro, que inclusive foi posteriormente chamado “Estados Unidos do Brasil”.
A semelhança entre o nome dado à nova república brasileira e à norte-americana não era coincidência, portanto. E a experiência federalista daquele país americano, já nos anos finais do regime monárquico, foi proposta como solução para a realidade continental brasileira, pelo mesmo Rui, que, enquanto jornalista, publicou diversas matérias em defesa do federalismo, ainda na Monarquia15-16. Rui, que convivera com ambos os regimes, defendia que a República e a Monarquia eram meios, cujo fim primordial seria a liberdade.
Com o final da Monarquia, instaurava-se o regime de transição, dedicado agora à realização das reformas necessárias (incluindo-se fiscais) para a instauração do regime republicano federativo. Rui Barbosa, que nunca havia sido um técnico em finanças, já havia apresentado apontamentos recorrentes a eventuais equívocos financeiros na Monarquia. Essas mesmas considerações acabaram impulsionando-o a ser posteriormente indicado para o cargo de Ministro das Finanças. Foi nessa época também, que, buscando encontrar soluções financeiras para a “nova nação”, passou a observar os exemplos federalistas de Jefferson e Hamilton, nos Estados Unidos da América, o que influenciou Rui em seu desejo de alteração de todo o mecanismo financeiro na realidade brasileira17.
Havia chegado o momento de assumir o papel de destaque nas Finanças do país. Consultando apenas o Marechal Deodoro (e omitindo suas propostas aos demais colegas de governo) publicou em 1890 os decretos que moldavam a concepção financeira do então Ministro da Fazenda, cujos principais elementos foram sintetizados pelas “Grandes Emissões” (na época 450 mil contos) de títulos que seriam garantidas por apólices do governo, além da alteração do regime de sociedades anônimas e novas disposições relativas ao crédito móvel. Tudo para facilitar a movimentação da moeda no país, e aquecer a economia industrial ainda incipiente.
Tal iniciativa visava, sobretudo, conter a crise econômica que se alastrou durante o governo do Marechal Deodoro (tal plano ficou conhecido como “encilhamento”). O plano não deu certo, e a emissão de papel-moeda sem lastro ocasionou uma terrível inflação, já que a escassez de renda na sociedade foi incapaz de deter fundos para o empréstimo. Tais mudanças no regime financeiro criaram um mal-estar generalizado no Ministério. Segundo Luiz Viana Filho, a verdade era que “(...) o país tremia diante daquelas emissões, e Rui não se livraria mais da pecha de ter sido o inventor daquele pandemônio de papel”18.
Mas passado o “olho do furacão”, e feitas algumas importantes modificações, as ideias de Rui permaneciam de pé, embora o próprio Rui tivesse recuado em importantes aspectos de sua política financeira.
De qualquer forma, havia chegado a hora de incumbir-se do Projeto de Constituição. Marechal Deodoro da Fonseca havia dado seu voto de confiança a Rui Barbosa para participar da Comissão que, presidida por Saldanha Marinho, foi incumbida de esboçar a futura Constituição republicana.
Embora oficialmente constassem como redatores da Constituição os nomes de Prudente de Moraes e Rui Barbosa, na realidade, segundo o seu biógrafo, fora Rui o “(...) relator, o redator e, afinal, o verdadeiro autor da futura Constituição (...)”, no que se inclui, naturalmente, o capítulo referente à discriminação de rendas na federação.
Em verdade, menos temerosa é a suposição de que Rui Barbosa, enquanto autor do Projeto vencedor, foi prevalecente aos debates da Assembleia Constituinte, que, após revisões e reformulações, aprovou o Projeto.
Analisando rapidamente o perfil de Rui enquanto jurista, embora detivesse grande experiência em diversos campos, no que dizia respeito à sua produção como jurista e parecerista, suas publicações foram mais limitadas, se comparadas com seus outros trabalhos de outras áreas, sobretudo jornalísticos, que detiveram ampla divulgação19. Tanto é que a maioria de suas publicações na área do Direito, até a data de 1899, foram consolidadas em um único livro, intitulado Trabalhos jurídicos, como parte da coletânea destinada a homenageá-lo, e intitulada “Obras Completas de Rui Barbosa”, de 194920.
Para o que interessa ao presente estudo, em matéria tributária, foi publicado um brevíssimo Parecer de Rui Barbosa a uma consulta sobre a tributação sobre dividendos de sociedades anônimas21, com fundamento na Lei nº 490, de 1897, no art. 1º, número 40. Essa consulta foi respondida por Rui Barbosa em 2 de janeiro de 1899, às vésperas do século XX. Contudo, nota-se que Rui não havia consultado qualquer obra relativa a direito fiscal ou financeiro, e mesmo de Finanças Públicas, mas apenas obras francesas relativas ao direito comercial das sociedades anônimas22.
Provavelmente a não referência à obras de natureza fiscal poderia ser explicada pelo teor objetivo e sucinto que os pareceres jurídicos produzidos por Rui possuíam, bem como a eventual e prévia consideração do autor pela desnecessidade de maior aprofundamento em digressões relativas à matéria, tendo em vista a consideração de obviedade na resposta produzida pelo parecer. Essa dedução decorre do fato de que Rui Barbosa, à época, já estava bastante atualizado em relação aos temas financeiros (e fiscais), e provou-o através da apresentação ao governo federal do Relatório do Ministro das Finanças, publicado em 1891, contendo suas impressões e propostas para a reorganização do regime tributário brasileiro no governo republicano federativo.
Esse Relatório, peça-chave para a estruturação do Direito Tributário brasileiro nos anos que se seguiram, será objeto de análise no próximo tópico.
4. O Relatório do Ministro da Fazenda e seus Aspectos Tributários
Em janeiro de 1891, Rui Barbosa publicou o Relatório durante o governo provisório para auxiliar e orientar a reforma do sistema financeiro e tributário na passagem da Monarquia para a República. Tencionava trazer elementos técnicos para proceder com uma reforma no sistema financeiro e tributário condizentes com a realidade brasileira.
Importante observar que, embora o Relatório servisse de orientação para a redação final da Constituição de 1891, o Projeto, de autoria de Rui Barbosa, mas assinado e discutido também por outros, já havia sido apresentado com antecedência.
Assim, o Relatório deveria servir como complemento para a discriminação de rendas prevista no projeto entre União e Estados.
Conforme asseverou o próprio autor no Relatório, mais precisamente no prefácio intitulado “Reconstituição tributária”, “(...) a nova organização política trouxe consequentemente a necessidade de reconstituir o nosso sistema tributário”. A necessidade de reformulação da estrutura financeira e tributária preocupava Rui Barbosa, justamente porque o orçamento geral da República sofreria inevitavelmente grande abalo, proveniente de duas causas políticas distintas, a saber: (a) a despesa financeira elevada substancialmente pelo aumento da estrutura da Administração Pública, que exigia a ampliação dos ministérios e a criação de outros novos; (b) a diminuição abrupta da receita geral do ente central, que seria diminuída sensivelmente após a execução da Constituição federal (que expressamente destinava uma maior parcela das receitas financeiras aos Estados)23.
Do lado financeiro, segundo Rui Barbosa, a expansão da riqueza pública era uma previsão governamental que se instauraria a partir do momento em que o “(...) país visse os seus elementos de fôrça e atividades livres das peias, que os coarctavam”. E assim, o excesso de despesa seria compensado com excesso de receita considerável arrecadado da nação brasileira24.
Nesse contexto, papel de grande importância deteve o Poder Legislativo, que deveria sabiamente buscar novas fontes de renda para a receita geral que preenchessem o vácuo deixado por aquelas fontes de receita que foram deixadas ao cargo dos Estados.
E foi justamente com essa esperança que Rui Barbosa relatou que o projeto de Constituição apresentado pelo Governo Provisório ao Congresso Constituinte mantinha reservado à competência exclusiva da União (art. 6º) os seguintes tributos: “1. Os impostos sobre a importação de procedência estrangeira; 2. Os direitos de entrada, saída e estada de navios; 3. As taxas de selo; 4. As contribuições postais e telegráficas.” Por outro lado, o Projeto destinou à competência privativa dos Estados os seguintes impostos: “1. Sôbre a exportação de mercadorias (até 1898); 2. Sôbre transmissão de propriedade”, o que, para o autor, já representariam um enorme sacrifício ao Tesouro, ultrapassando os limites “(...) da prudência na liberalidade para com os orçamentos dos Estados”25.
Assim, Rui Barbosa temia e rechaçava o aumento, em matéria de tributos, da competência dos Estados além daquelas já delimitadas. E, além disso, buscava encontrar propostas para inspirar a legislatura constituinte para legislar sobre matéria financeira e de acordo com um maior atendimento às necessidades e interesses do Tesouro Nacional.
A descentralização política e administrativa própria do federalismo trazia suas desvantagens. Essas que deveriam ser restringidas em sua máxima intensidade, e foi o que Rui Barbosa sugeriu. Chegou a defender expressamente que o Governo Federal, em sua capital, teria competência legislativa para legislar sobre matérias tributárias privativas dos Estados, ao passo que o Erário federal não cobraria impostos de matéria estadual nos Estados.
Dentre algumas outras medidas financeiras destinadas a equilibrar, segundo Rui Barbosa, a receita federal, entendia que duas seriam consideradas como bases “(...) sobre as quais deve assentar o edifício orçamentário e financeiro de uma nação bem constituída: a economia na despesa; a fiscalização da receita”. Para Rui, esses dois princípios basilares deveriam ser a orientação constante para a atuação dos poderes públicos, se esses quisessem chegar ao equilíbrio do orçamento, poupando assim o bolso do contribuinte de encargos financeiros evitáveis26.
Até aquele momento a carga tributária brasileira não era demasiadamente pesada, e isso porque a estrutura financeira estatal baseava-se no sistema de empréstimos públicos, medida que, sobretudo na transição do Império para a República, provou sua incapacidade como meio de garantir recursos estatais.
Para Rui, manter o sistema financeiro baseado nessa sistemática seria “(...) darmos prova de insensibilidade às lições da experiência, e resignarmo-nos ao pior dos males, promovendo o descrédito do país, e animando o governo às facilidades inseparáveis de um regímen, como êsse, em que se podem ousar as maiores audácias da despesa, sem que o contribuinte perceba imediatamente os compromissos em que incorre, as responsabilidades a que o arrastam”27.
Na visão de Rui Barbosa, investir na ampliação da estrutura tributária seria o melhor caminho para alcançar a sinceridade para com o povo, e era o exemplo alcançado pela União Americana (Estados Unidos da América). Foi com esse espírito que Rui Barbosa apresentou seu Relatório ao Poder Legislativo, buscando inspirá-lo para a realização de efetivas reformas fiscais. Tendo em vista os pressupostos anteriores, Rui Barbosa sugeriu a criação pelo Poder Legislativo, dos seguintes impostos, que viabilizariam as rendas necessárias para “(...) compensar as perdas iminentes da receita geral: 1. O imposto obre a renda; 2. O impôsto sobre terrenos incultos e não edificados na capital da República (conhecido como “Impôsto sôbre Baldios” ou imposto territorial)28; 3. O impôsto sobre o álcool29; 4. O impôsto sobre o fumo30; 5. A agravação do impôsto do selo”31.
Naturalmente, o Relatório produzido por Rui Barbosa não se limitava aos impostos sugeridos pelo Ministro, mas também se estendia por quase todos os campos das finanças públicas32 que julgava pertinentes para garantir a reforma financeira e tributária coesa e harmônica.
De qualquer forma, depois das explicações e justificativas apresentadas por Rui Barbosa, seguiu-se à apresentação de noções gerais sobre cada imposto, que continha uma criteriosa pesquisa sobre a experiência acadêmica e legislativa estrangeira sobre o imposto sugerido, e chegou a elaborar, como é o caso do “imposto sobre o fumo”, o respectivo anteprojeto de lei (ou esboço, como preferiu denominar).
Nota-se, através da leitura do Relatório, que a ampla e criteriosa pesquisa desempenhada por Rui Barbosa, considerando as lições dos principais autores estrangeiros da época, mergulhava profundamente nas contribuições da Ciência das Finanças e da Política Fiscal, áreas de pesquisa cujo fenômeno tributário era melhor estudado até aquele momento, não se identificando no trabalho remissões a publicações de conotação propriamente jurídica (ou pelo menos, com o título do trabalho remetendo-se à expressão “Direito Financeiro”, “Direito Fiscal”, legislação financeira etc.), o que é perfeitamente compreensível, afinal, o relatório era pura técnica financeira e política fiscal, da melhor qualidade, diga-se de passagem. Registre-se que é visível a utilização de obras de língua inglesa, francesa, italiana, portuguesa, espanhola e alemã, existindo uma prevalência quase absoluta de consultas às obras escritas nas duas primeiras línguas citadas (francesas e inglesas), bem como o relato de experiências legislativas naquelas realidades sobre a criação e aplicação de impostos análogos aos propostos no Relatório.
É o exemplo do Imposto de Renda, cuja ausência no país era criticada pelo autor, e foi o tributo que deteve as maiores atenções no Relatório33. Essa ausência poderia ser compreendida porque na época havia grande preconceito na adoção de tributos diretos, pois, Rui Barbosa, analisando Thiers, viu que aquele defendia que o imposto indireto “(...) seria o dos povos mais adiantados em civilização, ao passo que o impôsto direto o dos povos mais atrasados (...)”.
Mas para Rui, era o contrário, o imposto de renda teria sua importância alargada através de ideais democráticos, onde a importância de tributos diretos, entendidos como elementos civilizadores, seria “(...) exigência do princípio de justiça nas sociedades de mais amplo desenvolvimento moral”34.
Em síntese, a estrutura do relatório trazido sobre o imposto de renda dividiu-se da seguinte forma: (a) noções: que continha forte pesquisa descritiva acadêmica e legislativa estrangeira destinada a explicar o que de fato era o imposto de renda; (b) caráter do imposto: no qual Rui buscava dar ao imposto “seu verdadeiro e genuíno caráter de taxa sobre a renda”, que permitia ao imposto “coincidir” quer com as “taxas” sobre as propriedades imóveis, edificadas ou não, prédios, ou terrenos, quer com as que recaem sobre o exercício das indústrias, profissões, artes ou ofícios; (c) incidência do imposto: nesse tópico Rui tratava da extensão da materialidade tributável, entendendo que “(...) a concepção do imposto sôbre a renda não se compadece com a isenção de classes”. Assim, todas as classes, com exceção dos graus mínimos apenas “correspondentes aos mais estritos meios de subsistência, devem abranger-se no domínio dessa contribuição”, devendo recair sobre rendimentos provenientes da lavoura, sobre vencimentos de funcionários e sobre apólices da dívida pública, matérias cuja incidência causava dúvidas. Em síntese, defendia que o imposto de rendas deveria incidir sobre as seguintes rendas: “1. As provenientes de propriedades móveis: Prédios (como manifestação de renda do proprietário; como manifestação de renda do locatário); Terrenos (como manifestação de renda do proprietário do solo; como manifestação de renda da exploração do solo); 2. As que proveem do exercício de qualquer indústria, profissão, arte ou ofício; 3. As que decorrem de títulos ou fundos públicos, ações de companhias, etc.; 4. As que emanam do capital (dinheiro) a juro, sobre dívidas quirografárias, ou hipotecárias; 5. As que resultam de ‘empregos públicos’”; (d) proporção da taxa: onde são analisadas as “taxas” (alíquotas) aplicáveis ao imposto de renda, que seriam variáveis conforme a natureza da renda tributável; (e) mínimo tributável: que afastaria a cobrança do imposto direto ao mínimo necessário à existência das classes mais desfavorecidas, como exigência da equidade. A renda livre ou renda isenta do imposto, não poderia ultrapassar 800$000; (f) lançamento: para Rui, conhecidas as rendas, ocorreria naturalmente o meio de arrecadá-lo, em relação a cada uma das manifestações de renda. Considerando a experiência estrangeira, e as dificuldades estruturais da Administração Fazendária fiscalizadora, Rui opinou pela declaração do contribuinte “(...) como ponto de partida, com sucessiva verificação fiscal, admitindo-se o elemento municipal na composição das autoridades locais instituídas para o lançamento (...)”, pois o Fisco seria severamente prejudicado se o sistema fosse baseado unicamente na declaração do contribuinte, por mais que se cercasse de garantia; (g) isenções do imposto: tratava de outras isenções além daquelas oferecidas ao mínimo tributável, sugerindo a isenção das seguintes: 1. A dos agentes diplomáticos das nações estrangeiras; 2. Dos cônsules de carreira; 3. Os rendimentos das sociedades de socorros mútuos e beneficência; 4. Os juros das apólices da dívida pública possuídas por estrangeiros residentes fora do país35.
Assim, embora tenha elaborado rico e aprofundado estudo sobre aquelas materialidades tributárias, bem como sobre as vantagens e inconvenientes de sua adoção, no caso do imposto de renda, no entanto, não houve adesão inicial de suas propostas, tornando o Relatório mero instrumento (embora valioso) de consulta acadêmica.
De qualquer forma, a solidez dos fundamentos, aliada à ponderada argumentação de Rui Barbosa, baseada nas melhores experiências econômico-científicas, políticas e legislativas estrangeiras, fortemente embasada em elementos de Política Fiscal e de Finanças Públicas da época (reforce-se que o Relatório tencionava alavancar políticas fiscais e não possuía caráter “jurídico”, isto é, destinado ao estudo de determinado sistema jurídico já vigente), forneceu importantes instrumentos de pesquisa, que, no século XX, acabaria por gerar interesse acadêmico e legislativo. Por isso, embora não versada sobre “Direito Tributário” propriamente dito, reputa-se essa obra lavrada por Rui Barbosa, como uma das mais profícuas e férteis publicadas naquela época em matéria tributária.
5. A Consolidação da Discriminação de Competências Tributárias Prevista na Constituição de 1891
Um mês depois de ser apresentado o Relatório do Ministro da Fazenda, entrou em vigor a Constituição em fevereiro de 1891. A rapidez com que a Constituição foi elaborada e entrou em vigor justificou-se pela necessidade. Com o final do regime monárquico, a mudança política instaurada através do movimento republicano (1889) rapidamente fez surgir uma crescente necessidade de reestruturação do pacto político que permanecia intacto no século XIX. Até aquele momento o Estado brasileiro monárquico vivia um pacto político unitário, consistente na concentração dos poderes, com o acréscimo do Poder Moderador, que consagrava a influência do Imperador no funcionamento daqueles três primeiros. Em um país de dimensões continentais, cogitou-se a substituição do modelo político anterior para uma forma estatal que pudesse atender aos interesses do governo central sem desprestigiar os entes regionais (locais e municipais)36-37-38.
O regime político monárquico anterior tinha em seu âmago o aspecto unitário e centralizador de receitas, desprestigiando as localidades e municipalidades em prol das arrecadações centrais. Contudo, ainda que contando com essas peculiaridades, houve alguma evolução no regime de tributação da época, pois, a Monarquia conseguiu garantir, segundo Bernardo Ribeiro de Moraes, uma “1) distribuição e arrecadação conscientemente baseadas nas condições econômicas do País; 2) uma divisão razoável das contribuições públicas, entre a receita geral do Império e a receita particular das províncias”39. Dessa forma, com a Revolução Republicana, um novo pacto tributário foi instaurado, substituindo o anterior, pelo menos em tese. Mas, o texto constitucional que incorporava o modelo federativo não foi publicado sem grandes debates nos anos de 1890 e 189140.
Os entes federados, ainda que não dotados de independência, possuíam autonomia entre si, essa que pressupunha a autonomia financeira. Logo, enquanto decorrência da autonomia entre os entes, surgiu a necessidade da discriminação de rendas, no qual a repartição de competências tributárias emergiu como necessidade imperiosa. Essa repartição originou interessantes debates, cujo ápice configurou-se na elaboração de projetos de repartição das receitas tributárias submetidos para a Comissão dos 21 (Estados)41. Essa Comissão atuava diretamente na Assembleia Constituinte, e numerosos projetos foram apresentados para a repartição da competência tributária, que variavam desde a completa cumulação de fontes igualmente tributáveis entre o poder central e os entes regionais, até uma prevalência da União para reservar para si própria a maioria das rendas tributáveis expressamente previstas na Constituição, deixando para os entes regionais determinadas materialidades tributáveis subsidiárias, ou seja, que não estivessem expressamente previstas nas privativas42.
Conforme já ventilado, prevaleceu a proposta de pacto federativo que concedia maior liberdade aos Estados, autônomos em suas próprias atribuições. Naturalmente, outras propostas de Constituição foram apresentadas (dentre elas a de Júlio de Castilhos), mas o “Projeto”, redigido por Rui Barbosa, e sustentado também por Marechal Deodoro e Ubaldino do Amaral, acabou saindo-se vencedor43.
Na realidade, a grande discussão girava em torno dos impostos de exportação e importação que, na época, eram as fontes principais de receitas tributárias, e os Estados também queriam obter alguma parcela do imposto de exportação, ao passo que, de outro lado, havia corrente que tentava abolir o imposto de exportação estadual, que era tido como antieconômico.
No que tange aos impostos de exportação, a Constituição acabou reforçando a competência exclusiva da União para decretar impostos sobre a exportação de procedência estrangeira, ao passo que os Estados ficaram somente com o imposto sobre a exportação de mercadorias de sua própria produção, sendo lícito ainda o Estado tributar a importação. Os municípios, nesse contexto, só tinham a arrecadação que o Estado lhes desse44. Sem entrar nas peculiaridades dos debates vividos naquela época, e deixando de lado eventuais propostas analisadas e endossadas pela Comissão dos 21, para o que interessa ao presente estudo, vale ressaltar que em 1891, no dia 24 de fevereiro, a Constituição Republicana instaurou uma repartição rígida de competências tributárias, distribuindo-as entre a União e os Estados, por sua vez prevista nos arts. 7º, 9º e 1145. Os Municípios instituiriam impostos e taxas que lhes fossem reservados no âmbito da competência dos Estados.
Naturalmente, a contribuição do Relatório também alcançou repercussão, reforçando o convincente Projeto de Rui Barbosa, embora não recebendo adesão inicial em muitos de seus pontos. Mas o ponto principal, relativo à criação do imposto de renda, acabou excluído da redação final da Constituição. Na realidade, a discriminação de rendas reservada à União manteve-se semelhante à discriminação antecedente no regime monárquico.
Nesse sentido, constituíam tributos de competência da União (art. 7º): (a) impostos sobre importação de procedência estrangeira; (b) direitos de entrada, saída e estadia de navios, onde era livre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais, assim como às estrangeiras que já pagaram o imposto de importação; (c) taxas de selo (respeitada a competência dos Estados); (d) taxas de correios e telégrafos federais; outros tributos, desde que não contrariassem a discriminação original de rendas (espécie de competência residual). Interessante notar que no parágrafo 2º do mesmo artigo estabeleceu-se esboço do que depois ficaria conhecido pelo princípio da uniformidade geográfica: “Os impostos decretados pela União devem ser uniformes para todos os Estados.”
O artigo 8º também sinalizava a importância do comércio exterior para as receitas estatais, ao prescrever a proibição de o governo federal criar “(...) de qualquer modo, distinções e preferências em favor dos portos de uns contra os de outros Estados”.
Na verdade, a grande diferença trazida pela Constituição republicana manifestou-se na competência relegada aos Estados, que, afinal, simbolizou a grande preocupação de Rui Barbosa ao elaborar seu Relatório, claramente trazendo propostas de tributos destinados a preencher os “buracos” na receita do Tesouro federal.
Assim, aos Estados (art. 9º) foi concedida a competência para instituição dos seguintes tributos: (a) imposto sobre a exportação de mercadorias de sua produção; (b) impostos sobre imóveis rurais e urbanos; (c) imposto sobre transmissão de propriedade; imposto sobre indústria e profissões; (d) taxas de selos, quanto aos atos emanados de seus respectivos governos e negócios de sua economia; (e) contribuições (taxas) concernentes aos seus correios e telégrafos; (f) outros tributos, desde que não contrariassem a discriminação original de rendas tributárias (espécie de competência residual estadual)46. O mesmo artigo dispôs sobre imunidade específica aos Estados: “§ 2º É isenta de impostos, no Estado por onde se exportar, a produção dos outros Estados”. E, ainda, o parágrafo 3º somente autorizava a tributação por Estado sobre a importação de mercadorias estrangeiras “(...) quando destinadas ao consumo no seu território, revertendo, porém, o produto do imposto para o Tesouro federal”.
Observa-se que a competência dos Municípios não foi originalmente atribuída na Constituição de 1891. Aos Estados ficou reservada a competência para elaborar leis referentes às organizações dos municípios (e isso significava a organização administrativa e financeira municipal), em leis orgânicas, que discriminavam as receitas que seriam relegadas aos cofres dos Municípios. Percebe-se, portanto, que a participação municipal na Constituição de 1891 era praticamente obliterada47.
Foi marcante também o art. 10 da Constituição de 1891 prescrevendo a imunidade recíproca entre Estados e União, inspirada no direito norte-americano, embora a Constituição norte-americana não o mencione expressamente, mas oriunda de orientação jurisprudencial construída no caso “Maryland versus MacCulloch”, que teve Marshall como Relator, estabelecendo a impossibilidade de os Estados tributarem um banco federal, já que este seria um dos instrumentos de atuação do próprio governo federal48.
Curiosamente, apesar de haver certo esforço em garantir uma melhor distribuição de competências a partir do sistema federal, a relativa liberdade estabelecida entre as entidades políticas acabou deflagrando verdadeiro caos tributário com o acúmulo de competências tributárias concorrentes, o que foi provocado em grande parte pelo art. 12, que autorizava o acúmulo de competências entre a União e os Estados49.
O art. 11 também exerceu papel de relevo ao estabelecer dispositivo que reunia diversas limitações (ou vedações) à União e aos Estados: (a) “criar impostos de trânsito pelo território de um Estado, ou na passagem de um para outro, sobre produtos de outros Estados da República ou estrangeiros, e, bem assim, sobre os veículos de terra e água que os transportarem”; (b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; (c) “prescrever leis retroativas”.
Note-se que o presente artigo reunia esboço de dispositivos que, de um lado vinculavam-se aos direitos e garantias fundamentais, e de outro à proteção de algumas atividades contra a tributação da União e dos Estados. A proteção do culto religioso também consolidava importante simbolismo, demonstrando a existência pretérita do pacto político entre os revolucionários e representantes eclesiásticos, cuja proteção mais tarde seria aprofundada, inclusive no aspecto tributário.
Por esses motivos, a discriminação de competências tributárias estabelecidas na Constituição de 1891 foi severamente influenciada por Rui Barbosa, seja pelo Projeto, que continha sua assinatura, seja pelo Relatório, elaborado para afastar o temor da escassez de receita da União frente à nova competência tributária estadual.
6. Considerações Finais
Os últimos anos do século XIX, como observado, demonstraram que o Brasil vivia momento de intensas transformações políticas, sociais, econômicas e culturais.
Passando de um Estado estruturalmente unitário para uma forma estatal inspirada no exemplo estrangeiro, passa a constituir-se como uma federação. Mas tal transformação não foi automática e necessitou de grandes esforços políticos para viabilizar um programa financeiro que respondesse às novas necessidades do Estado. Ao mesmo tempo, a divisão entre os entes federativos trazia a necessidade de melhor repartição de rendas, agora não priorizando o poder central, mas concedendo importante feixe de atribuições aos Estados (e indiretamente aos Municípios). É nesse quadro que a contribuição de Rui Barbosa se eleva, no que tange aos aspectos tributários da reestruturação do sistema federativo.
Para alcançar a estruturação desejada do pacto tributário federativo instaurado a partir da República Velha era necessário promover novos acordos políticos, e Rui Barbosa foi de essencial importância para essa medida, demonstrando aos governistas a imprescindibilidade de um sistema tributário harmônico e organizado a partir das novas necessidades federativas, mas que ao mesmo tempo continuasse respondendo às crescentes demandas da União, enquanto órgão central da federação.
O legado deixado por Rui Barbosa não se limitou apenas a esses elementos, pois o Relatório produzido pelo então Ministro das Finanças influenciou determinantemente os posteriores aperfeiçoamentos legislativos tributários nas décadas seguintes, como é o caso da posterior criação do imposto de renda, em 1922, que já tinha no autor do Relatório seu mais prodigioso defensor no Brasil, na contramão de muitos estudiosos da época que defendiam a prioridade aos impostos indiretos.
Aliás, as ideias de Rui, na época, já poderiam ser identificadas aos ideais de isonomia e justiça na tributação, que, para Rui, seriam mais facilmente alcançáveis por uma adequada sistemática de tributação sobre a renda. Ao mesmo tempo, demonstrava sensibilidade para que a carga tributária não onerasse indevidamente os contribuintes, especialmente sobre gastos estatais não necessários, chegando a propor, inclusive, por expressa influência alemã, a faixa de isenção sobre rendas mínimas de forma a não onerar o contribuinte a ponto de inviabilizar sua sobrevivência, além de reforçar, por sua vez inspirado nas obras financistas mais atualizadas da época, importantes conceitos que seriam depois reforçados na elaboração das leis tributárias, a exemplo do lançamento, incidência, taxas (alíquotas), entre outros termos que depois ficariam consagrados no Direito Tributário.
Portanto, essas são, em síntese, algumas importantes contribuições deixadas por Rui Barbosa para o Direito Tributário brasileiro, que se desenvolveria no século XX absorvendo diretamente algumas das velhas propostas e soluções para a superação das dificuldades vivenciadas nos primeiros anos da República Velha. Dificuldades essas, como é possível observar na realidade tributária brasileira contemporânea, que ainda hoje atrapalham a adequada e harmônica organização do sistema tributário brasileiro mais isonômico, menos tendente a onerar o contribuinte desnecessariamente, e mais atento aos ideais de isonomia e justiça fiscal, mostrando que ainda hoje as preocupações de Rui Barbosa guardam importantes elementos de contemporaneidade. Esse é o legado de Rui Barbosa para o Direito Tributário no Brasil.
1 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Grandes nomes do pensamento brasileiro. São Paulo: Companhia Nacional, Publifolha, 2000, pp. 111 e ss.
2 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1945, pp. 159 e ss.
3 LYRA, Heitor. História de Dom Pedro II: fastígio. São Paulo: USP, 1977, p. 9.
4 COSTA, Alcides Jorge. “A história da tributação no Brasil”. In: Roberto Ferraz (org.). Princípios e limites da tributação. Vol. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 69.
5 Idem.
6 Sobre as diversas reestruturações na legislação tributária e na repartição das receitas naquele período, consulte-se: FERREIRA, Benedito. Legislação tributária (história da tributação no Brasil). Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1986, pp. 65-70.
7 Idem.
8 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 335.
9 SZMRECSÁNY, Tamás; e LAPA, José Roberto do Amaral. História econômica da independência e do Império. 2ª ed. São Paulo: USP, 2002, pp. 298-300.
10 Segundo pondera Costa, “(...) salvo períodos extremamente curtos, esse País não conseguiu livrar-se do problema financeiro de ter orçamentos permanentemente deficitários. Não se sabe se o defeito, àquela altura, estava do lado da arrecadação ou da despesa. Provavelmente estava dos dois lados: arrecadação mal conduzida e despesa mal dirigida. De modo que os déficits são uma constante na história financeira do Brasil.” (COSTA, Alcides Jorge. “A história da tributação no Brasil”. Op. cit., pp. 69-70)
11 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Grandes nomes do pensamento brasileiro. São Paulo: Companhia Nacional, Publifolha, 2000, pp. 111 e ss.
12 Idem.
13 LACERDA, Antonio Correia de. et al. Economia brasileira. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 20 e ss.
14 Para o aprofundamento sobre a história da vida de Rui Barbosa, recomenda-se a leitura da biografia oficial patrocinada pelo governo brasileiro em 1949, em comemoração ao centenário de Rui Barbosa: FILHO, Luiz Viana. A vida de Rui Barbosa. Edição do Centenário (Especial). São Paulo: Companhia Nacional, 1949.
15 FILHO, Luiz Viana. A vida de Rui Barbosa. Op. cit., pp. 186 e ss.
16 Interessante que, a federação havia sido proposta ainda no Regime Monárquico, mas posteriormente excluída. Segundo Rui Barbosa, o federalismo era necessidade inadiável para um país de dimensões continentais (ibidem, pp. 193-195).
17 Ibidem, pp. 210 e ss.
18 FILHO, Luiz Viana. A vida de Rui Barbosa. Op. cit., pp. 213-214.
19 No prefácio elaborado por José Câmara, registra-se a seguinte conclusão: “Das mais fecundas da vida intelectual do Conselheiro Rui Barbosa a quadra assinalada por esse período, oferece, não obstante, uma feição curiosa no tocante às dissertações jurídicas saídas de sua pena: enquanto, na parte referente ao jornalismo, gigantesca é a extensão dos assuntos debatidos, não sofrendo paralelo senão com a campanha do Diário de Notícias, em 1899, pequeno é o contingente de tudo quanto foi possível coligir no domínio da jurisprudência, relativo a esse período, desde que os escritos dessa ordem reduzem-se a um único tomo, o presente.” (CÂMARA, José. “Prefácio”. In: BARBOSA, Rui. Trabalhos jurídicos. Obras completas de Rui Barbosa. Tomo I. Vol. XXVI. 1899. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. Imprensa Nacional, 1949, p. IX)
20 BARBOSA, Rui. Trabalhos jurídicos. Obras completas de Rui Barbosa. Tomo I. Vol. XXVI. 1891. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. Imprensa Nacional, 1949.
21 O questionamento era o seguinte: “se as companhias ou sociedades anônimas com sede e foro jurídico nos Estados onde pagam o imposto de 2 1/2% sôbre os seus dividendos estão sujeitos ao impôsto Federal de 2 1/2%. Quando assim fôr, se o impôsto compreende as quotas distribuídas como bônus e lançadas em lucros suspensos e fundo de reserva?” Respondeu Rui, com base no art. 1, n. 40 e no art. 4 da Lei nº 490, de 1897, que “livres estão, portanto, do impôsto em questão todos os benefícios da sociedade anônima, que não constituírem dividendos rigorosamente falando, e não forem como tais destinados à distribuição entre os sócios” (Ibidem, p. 219).
22 As obras citadas no parecer foram: “VAVASSEUR: sociétés. V. I, n. 608 e 609, pp. 411-412” e “SIVILLE: Traité dês sociétés anonymes belges, 1898, V. II., n. 1.318, pp. 45-6”. Ibidem, pp. 213-223.
23 BARBOSA, Rui. “Relatório do Ministro da Fazenda”. Obras completas de Rui Barbosa. Tomo III. Vol. XVIII, 1891. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. Imprensa Nacional, 1949, pp. 01 e ss.
24 Idem.
25 BARBOSA, Rui. “Relatório do Ministro da Fazenda”. Op. cit., pp. 01-05.
26 Idem.
27 BARBOSA, Rui. “Relatório do Ministro da Fazenda”. Op. cit., pp. 5-11.
28 Para Rui Barbosa, a criação desse imposto, que já possuía antecedentes no Brasil, teria dois objetivos principais: (a) impedir, mediante encargos eficazes, a perpetuação dos baldios, mantidos pelos preconceitos da grande propriedade; evitando, ao mesmo tempo, a desagregação violenta desta por alienações precipitadas (ibidem, pp. 69-74).
29 Na visão do autor, essa contribuição era exemplo de tributo oriundo das nações mais livres, revestindo as formas mais severas, previstas nos orçamentos mais dignos, cujo modelo tributário encontra os primeiros lugares. A experiência estrangeira (especialmente francesa e inglesa) mostrava que os países que a adotam, aconselhando que o aumento excessivo da carga tributária sobre o consumo de “bebidas espirituosas” seria contraproducente, se levado a extremos, pois não “há no ramo do serviço tributário, onde o consumo da matéria tributada resista à pressão de tarifas mais elevadas”. Também tratou do lançamento do imposto, sugerindo propostas para melhorar a fiscalização e formas de lançamentos eficientes para tal imposto, geralmente por declaração dos comerciantes. Além de sugerir taxas (alíquotas) sobre o imposto, sem exageros, propôs o mecanismo de cálculo da renda tributável (ibidem, pp. 74-92).
30 Sobre o imposto sobre fumo, opinou: “se há matéria eminentemente tributável, artigo da indústria usual, que suporte o gravame das maiores severidades sem abalo no consumo, sem vexame às forças de trabalho que o produzem, nem dano aos interesses comerciais que o sustentam, é o fumo”. Por isso, “as nações mais civilizadas aceitam com simpatia esse imposto sobre essa espécie de produção sob as mais ásperas formas fiscais”. Com base nesses pressupostos, Rui chegou a incluir no seu Relatório um Anteprojeto de Lei sobre o imposto sobre o fumo, dividido nos aspectos gerais do imposto, a forma de arrecadação da taxa (alíquota) de consumo, das licenças, das infrações e multas e as disposições gerais (ibidem, pp. 92-122).
31 Não tratou do imposto do selo, pois já existia no sistema, e apenas propôs uma elevação das alíquotas desse tributo (idem).
32 Também vale lembrar que foram expostos no Relatório, opiniões e consultas de Rui Barbosa sobre determinados assuntos pontuais diretamente ligados à matéria fiscal, como os direitos de importação, pois o Decreto nº 839, de 11 de outubro de 1890 havia isentado “de todos os direitos de importação as mercadorias e objetos diretamente importados pela “Sociedade Cooperativa Militar do Brasil” por sua conta e para consumo dos seus associados na forma dos estatutos aprovados pelo gôverno”; Direitos de Importação em Ouro (Decreto nº 391 C, de 10 de maio); Direitos de exportação (sob o intuito de desenvolver a indústria extrativa e fabril de erva-mate, abrindo a esse importante produto os mercados do mundo, levantou-se a isenção dos direitos gerais de exportação, quando esses se destinassem aos portos da Europa ou dos Estados Unidos; sobre o imposto de transmissão de propriedade); imposto predial (solicitação da isenção da Irmandade de Santa Cruz dos Militares, isenção completa do imposto predial que pagava, pelos bens que possui, em atenção aos fins de sua instituição); imposto sobre indústrias e profissões (BARBOSA, Rui. “Relatório do Ministro da Fazenda”. Op. cit., pp. 152-342).
33 Ibidem, pp. 11-69.
34 Idem.
35 BARBOSA, Rui. “Relatório do Ministro da Fazenda”. Op. cit., pp. 11-69.
36 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Grandes nomes do pensamento brasileiro. São Paulo: Companhia Nacional, Publifolha, 2000, pp. 111 e ss.
37 Segundo Alcides Jorge Costa, Marechal Deodoro, logo em seguida à Proclamação da República, fez um decreto dizendo que o Brasil era uma República federativa, mas não houve discussão preliminar. Para Costa, deve-se levar tal fato em consideração na análise da história da tributação naquele período. Em outras palavras, o Brasil era um país unitário que, virou, por decreto, uma federação. Tal transformação súbita trouxe indiscutíveis dificuldades. E o Decreto nº 01, de 1889, estabeleceu: “Fica proclamada provisoriamente e decretada com a forma de Governo da Nação Brasileira a República Federativa. Art. 2 - As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil”, e levou as assinaturas de Marechal Deodoro, Rui Barbosa, Quintino Bocayuva, Benjamin Constant, Waldenkolk Correia, entre outros (COSTA, Alcides Jorge. “A história da tributação no Brasil”. Op. cit., pp. 70-71).
38 Ainda, relata Bernardo Ribeiro de Moraes que, no orçamento público apresentado à Assembleia Geral no dia 8 de maio de 1889, a receita pública geral do Império apresentava os seguintes tributos: direitos de importação, expediente dos gêneros livres de direitos de consumo, expediente de capatazias, armazenagem, imposto de faróis, imposto de doca, direitos de exportação de gêneros nacionais, direitos de exportação da pólvora e metais preciosos, imposto do selo, imposto de transmissão de propriedade, imposto de indústrias e profissões, imposto de transportes, imposto predial, imposto sobre subsídios e vencimentos e imposto de gado, além de “rubricas da receita extraordinária, emolumentos das repartições públicas, selos dos bilhetes de loterias, contribuições para o montepio da Marinha, etc.” (MORAES, Bernardo Ribeiro. Compêndio de legislação tributária. 1º Vol. 4ª ed. Capítulo V (Evolução Histórica do Direito Tributário). Rio de Janeiro: Forense: 1995, pp. 100-189; 126-127).
39 Ibidem, pp. 100-189; 126-127.
40 COSTA, Alcides Jorge. “A história da tributação no Brasil”. Op. cit., pp. 70-71.
41 DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Discriminação de competência impositiva. Sua evolução na Federação Brasileira. Tese de Concurso à Cadeira de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1972, pp. 47-68.
42 COSTA, Alcides Jorge. “A história da tributação no Brasil”. Op. cit., pp. 71-75.
43 Idem.
44 A Constituição de 1891 adotou o Projeto e não a Emenda de Júlio Castilhos, que terminou derrotado (idem).
45 TORRES, David. Revelando o sistema tributário brasileiro. São Paulo: Sinafresp, 2003, pp. 51-52.
46 MAXIMILIANO, Carlos. Commentarios à Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1918, pp. 208 e ss.
47 Sobre o assunto, conferir: TORRES, David. Revelando o sistema tributário brasileiro. Op. cit., pp. 52 e ss.
48 No Brasil, Alcides Jorge Costa relembra o problema relativo aos Municípios, no caso de Santos, quando a União operava o Porto através da Companhia das Docas (uma empresa particular) e o Município não podia cobrar imposto durante o contrato de concessão. Depois do fim da concessão, retornando ao domínio da União os municípios não poderiam cobrar tributos em face do art. 10. A situação era extremamente curiosa, pois o município investia em infraestrutura para beneficiar as Docas, mas não recebia “um centavo” em contrapartida (COSTA, Alcides Jorge. “A história da tributação no Brasil”. Op. cit., pp. 71-75).
49 Veja-se o teor do art. 12, na Constituição de 1891: “Além das fontes de receita discriminadas nos arts. 7º e 9º, é licito à União como aos Estados, cumulativamente ou não, criar outras quaisquer, não contravindo, o disposto nos arts. 7º, 9º e 11, nº 1.”