O Alcance Constitucional da não Cumulatividade do ICMS

Rômulo Cristiano Coutinho da Silva

Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo - USP. Especialista em Direito Tributário pelo Ibet. Associado ao Instituto Brasileiro de Direito Tributário - IBDT. Advogado em São Paulo.

Resumo

O presente artigo visa analisar o efetivo alcance constitucional da não cumulatividade do ICMS, levando-se em consideração os efeitos jurídicos e econômicos decorrentes da adoção dos regimes de compensação por meio do crédito físico e do crédito financeiro, tudo isso à luz da neutralidade tributária almejada pela Constituição Federal de 1988.

Palavras-chave: não cumulatividade, crédito, neutralidade tributária, compensação.

Abstract

The present article aims to analyze the real range of non-cumulative constitutional rule for tax on distribution of goods and services (ICMS), taking into consideration legal and economics effects resulting from the adoption of differents system of tax compensation (“tax on tax” or “basis on basis”), all of this in the light of the tax neutrality intended by Federal Constitution of 1998.

Keywords: non-cumulative, credit, tax neutrality, compensation.

1. Introdução

As ciências econômicas há muitos anos constataram os malefícios decorrentes da cumulatividade da tributação sobre o consumo. A adoção de um imposto multifásico e cumulativo, como já demonstrou a experiência brasileira com o antigo Imposto de Vendas e Consignações (IVC), gera efeitos indesejados na economia de um país1.

Tal forma de tributação demonstra-se economicamente desvantajosa, na medida em que, além de representar verdadeiro incentivo à verticalização dos agentes econômicos, desestimulando a produção nacional, acaba por trazer consequências danosas também para as exportações, já que, por impossibilitar que se conheça a carga tributária incidente sobre o produto exportado, abre a possibilidade de os produtos serem exportados com ônus tributário, o que, certamente, prejudica sua capacidade concorrencial2.

Assim, a partir da concepção de que a tributação do consumo de forma cumulativa gerava efeitos indesejáveis e prejudiciais à economia nacional, foi editada a Emenda Constitucional nº 18/1965, a fim de alterar a Constituição Federal de 1946, para substituir o antigo IVC, plurifásico e cumulativo, pelo Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICM), também plurifásico, mas não cumulativo, erigindo a não cumulatividade, desde então, à categoria das normas constitucionais.

Essa não cumulatividade manteve-se intacta em toda evolução constitucional posterior3. Atualmente, encontra-se prevista, no caso específico do imposto incidente sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS), na norma insculpida no artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, que dispõe que o ICMS “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.

O constituinte, contudo, nada dispôs acerca do regime de compensação do imposto, deixando tal tarefa a cargo da lei complementar, nos termos do artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, da Carta Magna.

Tornam-se pertinentes, desta forma, as seguintes indagações: qual o regime de crédito efetivamente previsto na Constituição Federal? Foi adotado constitucionalmente apenas o regime do crédito físico ou também do crédito financeiro? Pode a lei complementar, no dever de dispor sobre o método de compensação, restringir o direito de crédito? Qual o efetivo alcance da não cumulatividade fixada na Lei Maior?

Esses questionamentos geram, há tempos, intensos debates doutrinários e divergências jurisprudenciais. Apesar disso, o tema em questão, a despeito de revelar preocupação antiga da doutrina, continua instigando o debate e a adoção de posições diametralmente opostas por parte de estudiosos do tema.

Recentemente, aliás, foi reconhecida a repercussão geral do assunto a ser tratado no presente artigo no julgamento do Recurso Extraordinário nº 662.976/RS, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que, naquela oportunidade, sustentou a necessidade de definir-se o alcance do princípio da não cumulatividade na tributação do ICMS, “sobremaneira a fixação do critério de definição do crédito acumulado nas operações anteriores já tributadas, se material (ou físico) ou financeiro, para, a partir daí, estabelecer as balizas para a aplicação da regra de imunidade (...)”4.

Diante deste quadro, demonstra-se extremamente relevante a revisitação do tema, seja por estar em evidência no Supremo Tribunal Federal, na iminência de ser julgado, seja pelos importantes reflexos tributários decorrentes da opção de um ou de outro posicionamento.

Portanto, imbuído no intuito de enfrentar esse desafio, o presente estudo tem a pretensão de analisar a estrutura normativa da não cumulatividade tal como prevista atualmente na Constituição Federal, para, ao construir o conteúdo desta norma, responder às questões acima formuladas, tendo como escopo último identificar o efetivo alcance da não cumulatividade do ICMS na Constituição Federal.

2. Considerações Iniciais sobre a não Cumulatividade

É largamente difundida no Direito Tributário pátrio a diferenciação entre tributação direta e indireta. A explicação normalmente utilizada é a de que nos tributos indiretos o contribuinte “de direito”, legalmente obrigado ao pagamento do tributo, repassa ao contribuinte “de fato”, que não tem qualquer relação jurídica com o Fisco, o ônus fiscal. Assim, a partir de uma análise superficial, defende-se que os impostos sobre o consumo seriam indiretos em razão de sua natureza permitir a repercussão econômica do tributo, ao passo que os impostos incidentes sobre o patrimônio e a renda, por não terem esta característica, seriam considerados diretos.

Essa classificação, contudo, presta-se apenas para fins classificatórios e didáticos, uma vez que, cientificamente, a separação entre tributos diretos e indiretos com fundamento apenas na repercussão econômica é questionável5. Como se sabe, a base essencial de toda a incidência tributária é a renda, diferenciando-se apenas o momento de exteriorização da renda que será tributado: renda auferida, renda poupada ou renda despendida6.

Sob esta perspectiva, a não cumulatividade relaciona-se diretamente com a tributação sobre o consumo (tributação indireta da renda despendida), de modo a evitar, nas diversas etapas da cadeia econômica que antecedem o consumo, os efeitos nefastos de uma tributação em cascata.

Isso não quer dizer, no entanto, que a adoção de um tributo plurifásico, cumulativo, como ocorria com o IVC, não apresente possíveis vantagens. Por se tratar de uma forma mais simples de tributação, tendo em vista que o cálculo do montante a ser pago ao Estado decorre da mera aplicação da alíquota prevista em lei ao valor da operação ou prestação, não havendo adições ou deduções, a adoção dessa sistemática simplifica o tributo7.

Apesar disso, essas pequenas vantagens não se sobrepõem, de maneira alguma, aos danosos efeitos evidenciados na tributação cumulativa das etapas do círculo econômico. A primeira grande desvantagem que pode ser observada é a de que a tributação em cascata afeta substancialmente o custo de venda de produtos que resultam de um longo ciclo produtivo, representando o tributo, nesta situação, quiçá a principal parcela de tal custo.

Nesse passo, em se tratando de tributo que incide a cada etapa da cadeia econômica, evidentemente que quanto menor for o número de etapas que antecede o consumo de determinado bem, mais reduzida será a carga fiscal que irá impactar o custo de venda do produto, e, consequentemente, maior será a competitividade deste bem no mercado.

Por conta de tais circunstâncias, surge a segunda grande desvantagem da tributação cumulativa, que é a de incentivar a integralização vertical dos agentes econômicos, os quais, por meio da eliminação das etapas intermediárias de produção por diferentes unidades fabris ou comerciais, tendem a concentrar numa mesma pessoa os processos de produção e distribuição do produto.

Isso favorece a formação de oligopólios e impacta diretamente a livre concorrência8 e a neutralidade da tributação, que exige que o tributo não seja um fator de custo capaz de destruir um ambiente de igualdade de condições competitivas. Como se vê, a tributação cumulativa provoca um efeito indutor no sentido de concentração da economia9, em clara afronta à Ordem Econômica preconizada no artigo 170 da Constituição Federal de 1988.

Quanto ao efeito indutor da norma tributária, importante lembrar que o legislador deve se utilizar da tributação para corrigir as falhas de mercado, intervindo de forma negativa, ou para alcançar objetivos prestigiados pela Ordem Econômica, agindo positivamente, jamais no sentido de ser ele, legislador, o responsável por causar falhas que deveria reparar10.

Neste contexto, a não cumulatividade opera de forma a vedar que o legislador infraconstitucional eventualmente desestimule a livre concorrência ao retirar a igualdade de condições competitivas condecorada pela neutralidade da tributação, conferindo efetividade, por conseguinte, à Ordem Econômica prestigiada pela Carta Magna.

Ainda com relação às desvantagens da tributação cumulativa, é possível verificar que a adoção desta sistemática provoca também, adicionalmente aos aspectos negativos acima retratados, as seguintes consequências: desestimula a exportação, em razão da possibilidade de os produtos serem exportados com o ônus fiscal imbutido no preço; estimula a importação de bens, na medida em que os produtos importados são tributados na sua etapa final, ao passo que os produtos domésticos são tributados cumulativamente em todas as suas etapas; e implica uma administração mais custosa, já que a fiscalização além de ser ampla e multifásica, não vincula a participação dos contribuintes como ocorre no sistema de compensação, em que o débito de um contribuinte representa o crédito do outro11.

Dessa forma, diante da verificação das inúmeras consequências negativas da tributação cumulativa, o Brasil, inspirado na taxe sur la valeur ajouteé (TVA), criada na França em 1954 em substituição à taxe à la production, alçou a não cumulatividade ao altiplano das normas constitucionais por meio da Emenda Constitucional nº 18/1965, alterando a Constituição Federal de 1946 para substituir o antigo IVC, plurifásico e cumulativo, pelo ICM, plurifásico e não cumulativo12.

Essa decisão do constituinte expurgou os efeitos indesejáveis da cumulatividade ao afastar incidências repetidas do tributo sobre bases de cálculo cada vez mais elevadas nas etapas sucessivas do ciclo de econômico, eliminando, com isso, os malefícios econômicos da tributação em cascata. Inseria-se no sistema constitucional tributário, então, um tributo neutro, que onera o consumo (não a produção e o comércio) e oferece vantagens, inclusive, ao Fisco, pois não só permite a antecipação da arrecadação do imposto que seria devido apenas no momento do consumo, mas também coloca os agentes econômicos participantes das diversas etapas da cadeia de circulação e produção do produto como responsáveis pela arrecadação13.

Como se nota, a não cumulatividade pressupõe a não incidência de tributo sobre tributo, pois deve se considerar, a cada etapa, a tributação ocorrida anteriormente, de modo que o imposto incida apenas sobre o valor acrescido em cada etapa de circulação, fazendo com que a carga tributária seja suportada, idealmente, pelo consumidor quando da manifestação de capacidade contributiva no ato de consumo14.

A despeito da criação do ICM ter sido inspirada na TVA francesa, é importante destacar que a Emenda Constitucional nº 18/1965 não criou no Brasil um imposto sobre o valor agregado. Como bem observou Geraldo Ataliba:

“A Emenda 18/65 dizia, como diz hoje a Constituição, ‘imposto sobre operações’. O imposto não é sobre valor nenhum; muito menos valor agregado. O imposto é sobre ‘operação’.”15

Nos tributos não cumulativos o imposto cobrado é resultado ou do valor agregado em cada operação, ou da diferença entre o valor do tributo devido na operação posterior e o exigido na etapa anterior.

No primeiro caso, aplica-se o método conhecido como “base sobre base”, em que a base tributável é obtida deduzindo-se do montante das vendas o montante das aquisições efetuadas no período, aplicando-se a alíquota legalmente prevista sobre essa diferença. No segundo caso, a não cumulatividade é obtida por meio do método “imposto sobre imposto”, no qual se deve subtrair do valor do imposto devido na saída o montante do imposto exigido na etapa anterior.

No sistema “base sobre base” a tributação busca atingir, efetivamente, o valor acrescido, ao passo que no método “imposto sobre imposto” não há uma incidência sobre o valor agregado propriamente dito. Isso ocorre porque, neste último, eventual isenção ou alíquota menor incidente no curso do ciclo econômico não beneficia o consumidor, já que na etapa subsequente haverá uma incidência total, sem a possibilidade de dedução do tributo que seria devido na fase anterior, ocorrendo o chamado “efeito de recuperação”16.

No Brasil, adota-se ainda hoje no ICMS, sucessor do ICM, o método do “imposto sobre imposto”, e, por assim o ser, não há que se falar no ICMS como sendo um imposto incidente sobre o valor agregado, mas sim como um tributo plurifásico não cumulativo.

Segundo determina o artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, o ICMS “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.

Para a efetiva concretização da norma constitucional, faz-se necessário operacionalizar contabilmente o método de compensação. Assim, o constituinte estabeleceu, no artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “c”, da Carta Magna, a lei complementar como veículo normativo competente para disciplinar o regime de compensação do imposto.

Neste ponto, quanto aos limites da lei complementar para regulamentar o tema da compensação, surgem as grandes divergências doutrinárias acerca da não cumulatividade do ICMS. Discute-se calorosamente na doutrina se tal dispositivo teria o condão de permitir que a lei complementar prescreva o regime jurídico a ser aplicado a este imposto, se crédito físico ou financeiro, ou se lhe caberia apenas fixar prazos, forma ou método da compensação dos créditos de ICMS do contribuinte.

Destarte, fixada desde já a premissa de que a compensação consiste em verdadeira diretriz constitucional imperativa17, cumpre-nos perquirir acerca da flexibilidade conferida ao legislador complementar para colocar limites à compensação de créditos, explorando, neste aspecto, os conceitos de crédito físico e crédito financeiro, tendo como referência, sempre, a preservação da não cumulatividade inserida no altiplano constitucional.

3. Não Cumulatividade no ICMS: Crédito Físico e Crédito Financeiro

A amplitude do direito ao crédito de ICMS está diretamente ligada à natureza jurídica do referido crédito. A não cumulatividade pode adotar dois diferentes sistemas: do crédito físico ou do crédito financeiro.

No primeiro, são reconhecidos apenas os créditos decorrentes do imposto incidente sobre produtos empregados fisicamente na industrilização ou comercialização da mercadoria tributada na etapa subsequente. Admite-se, neste caso, também o creditamento de produtos que, ainda que não sejam efetivamente agregados na mercadoria tributada na próxima etapa, sofram desgastes no processo de produção, como é o caso das lixas consumidas pelo contato físico com o produto em elaboração18.

No segundo sistema, do crédito financeiro, fica permitida a tomada de crédito do imposto cobrado sobre as mercadorias que não se integram fiscamente na industrialização ou comercialização do produto final. Assim, geram crédito tanto bens destinados a uso e consumo, quanto investimentos em ativo fixo imobilizado do estabelecimento.

Conforme ensina Luís Eduardo Schoueri, “no lugar de uma aproximação física, que leva em conta, de um lado, o produto acabado e, de outro, os bens que o integram, a aproximação financeira considera, de um lado, uma receita de venda de um produto e, de outro, os custos que foram ali incorridos”19.

Os bens destinados ao ativo fixo imobilizado também representam, da mesma forma que os bens intermediários consumidos imediatamente no processo produtivo, bens instrumentais que compõem a produção. Diferenciam-se apenas quanto ao tempo de sua incorporação no custo de produção da mercadoria revendida, que se dá de acordo com a sua depreciação. Por isso, Alcides Jorge Costa salienta a possibilidade de haver o creditamento do valor total do tributo incidente sobre tais bens já quando da sua aquisição, ou na proporção de sua depreciação no período considerado20.

No que concerne ao tratamento a ser dispensado aos bens do ativo imobilizado, a depender do caminho a ser trilhado pelo legislador complementar - se é que compete a ele escolher o sistema de crédito que será adotado -, poderá ser conferida maior ou menor amplitude à não cumulatividade.

Caso seja negada a possibilidade de aproveitamento do crédito do imposto que incide sobre bens do ativo fixo adquiridos para serem empregados no processo produtivo, haverá a incidência do denominado imposto sobre o valor acrescido do tipo produto. É assim denominado porque a sua base de incidência global é o resultado da soma do valor de venda das mercadorias com os gastos na aquisição dos ativos necessários à produção21. No IVA-produto, há, em verdade, sinais de cumulatividade, já que o tributo recolhido quando da aquisição do ativo fixo necessário para a produção, por não gerar crédito, compõe a base de incidência global do imposto incidente na etapa subsequente, na medida em que está imbutido no valor do custo de aquisição do bem destinado ao ativo permanente.

Na outra via, se ocorrer o aproveitamento integral e à vista do imposto incidente sobre os bens do ativo imobilizado, tem-se um imposto sobre o valor acrescido do tipo consumo, pois, pelo fato de o comerciante poder se creditar integralmente dos bens instrumentais por ele adquiridos, a base de cálculo do IVA-consumo será equivalente à despesa incorrida pelo consumidor final, dando-se a incidência do imposto sobre o valor do consumo.

Finalmente, ainda há a possibilidade de o crédito dos bens do ativo imobilizado serem tomados na medida de sua depreciação, ou seja, na proporção da incorporação de tais bens ao custo, conforme forem gerando rendimentos para o contribuinte. Tem-se, aqui, o denominado imposto sobre o valor acrescido tipo renda (IVA-renda), que atinge riqueza semelhante à alcançada pelo imposto sobre a renda22.

Nos casos do IVA-consumo e do IVA-renda, para que que seja admitido o direito ao crédito, os bens do ativo fixo devem ser destinados à atividade empresarial do contribuinte. No IVA-produto, por sua vez, como já salientado, fica vedado o crédito sobre a aquisição de bens do ativo permanente, ainda que afetados à atividade do contribuinte. Com relação ao ICMS, tende-se a adotar no Brasil o IVA-renda, mas, conforme veremos adiante, nos moldes da legislação atual, a sistemática de crédito do ICMS acaba por deixá-lo mais próximo do IVA-produto.

A partir de tais conceitos, dois questionamentos se fazem pertinentes: a lei complementar, na sua tarefa de disciplinar o regime de compensação dos créditos do ICMS, pode restringir tais créditos à adoção de apenas uma dessas sistemáticas? Caso seja permitido apenas o creditamento do crédito físico, o ICMS será, efetivamente, não cumulativo, de forma a garantir a neutralidade tributária, tal como preconiza a Constituição Federal de 1988?

Historicamente, ainda na vigência da Constituição Federal de 1967, o Decreto-lei nº 408/1968 introduziu para o ICM, em seu artigo 3º, parágrafo 1º, o regime de crédito físico, gerando crédito de ICM apenas para o imposto cobrado nas entradas de mercadorias cujas saídas subsequentes viessem a ocorrer com a incidência do imposto23.

Nota-se, portanto, que era vedado o creditamento do ICM cobrado sobre a entrada de bens do ativo imobilizado e de bens de uso e consumo. A racionalidade empregada era a de que apenas a mercadoria consumida ou integrada no processo de fabricação do bem que daria saída tributada tinha o condão de gerar crédito24.

Posteriormente, na vigência da Constituição Federal de 1988, foi baixado o Convênio ICMS 66/1988, que, na função de lei complementar, autorizada pelo artigo 34, parágrafo 8º, do ADCT da CF/1988, manteve a sistemática do crédito físico, pois restou vedado, no artigo 31, incisos I e II, o aproveitamento dos créditos decorrentes dos bens de uso e consumo e dos bens integrantes do ativo permanente.

Apesar de ser nítida a contribuição da própria evolução legislativa no sentido de preservar a manutenção da sistemática do crédito físico, Ricardo Lobo Torres ressalta o fato de o Supremo Tribunal Federal também ter contribuído casuisticamente, nas diversas vezes em que julgou de forma desfavorável o aproveitamento de créditos dos impostos incidentes sobre bens de uso e consumo, para a construção do sistema do crédito físico25.

Com o advento da Lei Complementar nº 87/1996, no entanto, passou a se admitir o então repudiado crédito financeiro. Além de o contribuinte ter sido autorizado a utilizar o crédito do imposto incidente sobre bens destinados ao ativo permanente, foi permitida a tomada de crédito na aquisição de mercadorias para uso e consumo, alinhando o País com as demais economias mundiais que adotam um imposto sobre o consumo plurifásico e não cumulativo26.

Para Ricardo Lobo Torres, a modificação promovida no sistema de aproveitamento de créditos deflui da alteração substancial que a Constituição Federal de 1988 promoveu no fato gerador do ICMS. Além de incidir sobre as operações de circulação de mercadorias (inclusive energia elétrica e combustíveis), o imposto passou a gravar também as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, havendo, portanto, a necessidade de se estender o direito à compensação dos créditos correspondentes a esses serviços, os quais não entram e saem fisicamente do estabelecimento do contribuinte, mesclando-se, então, o sistema do crédito físico com o do financeiro27.

O autor levanta ainda o problema de saber se a permissão trazida pela LC nº 87/1996 para a utilização do crédito financeiro trata-se de crédito estrutural do ICMS ou crédito-incentivo. Conclui, sobre tal reflexão, que houve uma tênue opção do constituinte de 1988 pelo sistema do crédito físico, mas que as novidades trazidas pela Lei Complementar nº 87/1996 acabaram por tornar frágil a tese de que houve a opção do sistema tributário brasileiro pelo crédito físico, sendo difícil a caracterização do crédito financeiro como crédito-incentivo28.

André Luiz Carvalho Estrella, ao revés, entende que a Constituição Federal estabeleceu como garantia constitucional a extensão da não cumulatividade apenas aos créditos físicos do ICMS, autorizando a lei complementar a instituir o crédito financeiro como benefício legal29. Assim, para o autor, o crédito físico se reveste da característica de direito fundamental, tratando-se o crédito financeiro de mero benefício legal instituído pela LC nº 87/1996, que, neste caso, está atuando na sua função de dispor sobre o regime de compensação do ICMS, em observância ao disposto no artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “c”, da CF/1988.

O tema revela contornos tão intrigantes que é possível encontrar na doutrina até mesmo autor que já defendeu, no passado30, que as empresas tinham direito constitucional ao crédito do ICMS incidido na aquisição de mercadorias ou bens, qualquer que fosse sua destinação posterior (revenda, uso ou consumo ou ativo fixo), em homenagem à não cumulatividade do imposto, disciplinada no artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da CF/1988, mas que atualmente31 sustenta que o critério de apuração da não cumulatividade (crédito físico e/ou financeiro) é matéria de livre escolha do legislador complementar, já que o Texto Constitucional não foi taxativo nem peremptório quanto a qualquer um deles.

Fato é que atualmente a LC nº 87/1996, embora preveja em seu artigo 20 a possibilidade do creditamento do ICMS sobre a aquisições de bens de uso e consumo, teve sua eficácia temporal prolongada para 1º de janeiro de 2020 pela LC nº 138/2010, que permitiu a apropriação dos créditos em questão apenas a partir da referida data.

Diante deste cenário, é possível inferir que prevalece, nos dias de hoje, a sistemática do crédito físico. Para quem adota o posicionamento de que a sistemática do crédito é objeto de escolha discricionária do legislador complementar, não há qualquer problema em se estabelecer eficácia para o futuro da norma que permite o aproveitamento do crédito financeiro para o futuro, como o fez a LC nº 138/2010.

Esse, no entanto, não é o nosso entendimento. Preferimos analisar a questão do prisma da alteração promovida pelo legislador constituinte quando da inserção do tema da não cumulatividade no altiplano constitucional. Tal fato, no caso da Constituição Federal de 1988, representou clara escolha do constituinte no sentido de buscar a neutralidade tributária.

Como destacado anteriormente, adotar apenas a sistemática do crédito físico significa aproximar-se do IVA-produto. Isso, por consequência, representa também adotar um sistema de compensação que, ao não permitir o crédito financeiro, deixa marcas de cumulatividade no ciclo econômico, o que, a nosso ver, não é o objetivo pretendido pela norma constitucional que prevê a não cumulatividade do ICMS, que, como dito, busca alcançar a neutralidade tributária.

Chega-se, então, ao ponto nevrálgico do presente estudo, que é o de construir o conteúdo da norma constitucional da não cumulatividade do ICMS, a fim de identificar o seu verdadeiro alcance, tema este que será objeto do próximo tópico.

4. O Alcance da não Cumulatividade do ICMS na Constituição Federal de 1988

A não cumulatividade do ICMS, da forma como delineada no artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal de 1998, consiste na compensação do imposto devido nas operações de saídas com o montante do imposto cobrado nas operações anteriores de entradas. Nota-se, como adiantamos no início do presente artigo, que o constituinte brasileiro optou por conferir eficácia a não cumulatividade por meio do método “imposto sobre imposto”.

O constituinte de 1988 previu ainda, no artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, da Lei Maior, como restrições a não cumulatividade, que “a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, (a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes; (b) acarretará a anulação do crédito relativo às operaçoes anteriores”.

Como se percebe, a própria Constituição Federal já disciplinou as exceções à não cumulatividade, ou seja, os casos em que o aproveitamento do crédito será vedado. Isso porque, como bem destacou Aires F. Barreto, “se a regra é constitucional, a exceção só pode estar na própria Constituição”32.

Foi dado tratamento minucioso a não cumulatividade justamente para limitar o espectro de atuação do legislador infraconstitucional no que concerne à restrição dos créditos relativos às operações anteriormente tributadas. Conferiu-se à lei a possibilidade de atenuar as restrições ao crédito supratranscritas, mas não de ampliá-las, de forma a abranger a restrição, por exemplo, do crédito do imposto pago na aquisição de bens de uso e consumo ou destinados ao ativo permanente.

Aqueles que defendem a possibilidade de a lei complementar restringir o direito ao crédito financeiro se apoiam, para tanto, na previsão contida na norma inserta no artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “c”, da Carta Magna, que atribui à lei complementar a função de disciplinar o regime de compensação do ICMS33.

Disciplinar o regime de compensação, por evidente, não implica conferir liberdade ao legislador complementar para tornar o imposto cumulativo34. Isso porque, como cirurgicamente destacou Gilberto de Ulhôa Canto:

“A não-cumulatividade do ICM não é apenas um fenômeno econômico ou financeiro, embora sejam desta índole alguns dos seus fundamentos. É, também, e principalmente, fenômeno jurídico a partir de quando a Constituição a enuncia como característica do tributo, que em virtude dela não poderá ser instituído e cobrado ‘em cascata’.”35

Sob este prisma, entendemos que a regra da não cumulatividade do ICMS36, da forma como prevista na Constituição Federal de 1988, não oferece margem ao legislador complementar para impor limites à compensação de créditos, pois o constituinte, ao dispor sobre o conteúdo da não cumulatividade, esgotou seus elementos essenciais e indispensáveis37, deixando claro que um dos valores fortemente perseguidos pela Carta Magna ao inserir a não cumulatividade no altiplano constituicional é o de alcançar a neutralidade tributária38. Ou seja, a não cumulatividade do ICMS possui dicção constitucional que não pode ser restringida por meio da lei complementar.

O artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “c”, da CF/1988 deixou a cargo da lei complementar tão somente a fixação dos mecanismos de implementação do regime de compensação (por exemplo, período considerado, forma escritural e operacional de apuração do crédito). Jamais se atribuiu ao legislador complementar o poder de dispor de forma discricionária quanto ao crédito que será compensado, se físico ou financeiro.

Ora, como sabemos, a não cumulatividade foi inserida no bojo das normas constitucionais justamente para eliminar os malefícios econômicos decorrentes da tributação em cascata, que distorce a formação dos preços de mercado, incentiva a verticalização dos agentes econômicos e afeta a neutralidade tributária e a livre concorrência.

Nessa toada, seria até mesmo ilógico que, buscando alcançar a neutralidade tributária, uma repercussão mais justa dos preços, sem perturbações e deformações do desenvolvimento econômico, e a não incidência do imposto sobre imposto, o constituinte conferisse ampla discricionariedade para o legislador complementar dispor sobre o crédito passível de compensação, de forma a poder vedar, por exemplo, o aproveitamento do crédito financeiro.

Em sendo previsto, em detrimento do crédito financeiro, apenas a concessão do crédito físico às empresas, limitando-se o aproveitamento do imposto incidente sobre produtos empregados fisicamente na industrilização ou comercialização da mercadoria tributada na etapa subsequente, é evidente que seria mitigado consideravelmente o instituto da não cumulatividade, comprometendo, por conseguinte, a neutralidade tributária almejada pelo constituinte de 198839.

Dizer que a Constituição Federal previu apenas o crédito físico, sendo o crédito financeiro mero benefício a ser concedido por lei complementar, é dizer que o ICMS, tal como previsto na Carta Magna, é um tributo que tem a característica de ser, a um só tempo, cumulativo e não cumulativo. Pior, é conferir plena liberdade para o legislador complementar instituir ou não um tributo efetivamente não cumulativo.

Esse raciocínio, por certo, não se coaduna com os efeitos jurídicos e econômicos plasmados no artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal de de 1998, que, em matéria de ICMS, fixou de forma minudente as hipóteses de restrição à não cumulatividade40.

Atualmente, o que acontece em razão de a LC nº 138/2010 ter prolongado apenas para janeiro de 2020 a eficácia do artigo 20 da LC nº 87/1996, que prevê a possibilidade do creditamento do ICMS sobre a aquisições de bens de uso e consumo, é uma verdadeira restrição inconstitucional a não cumulatividade. O legislador complementar dá com uma mão, mas tira com a outra, tornando o ICMS um imposto, verdadeiramente, meio cumulativo e meio não cumulativo.

Por isso, entendemos que imprimir restrição ao direito do contribuinte de aproveitar o crédito financeiro significa negar completamente a dicção constitucional da não cumulatividade41. Aplicar-se apenas a sistemática do crédito físico, de modo a impedir a dedução integral dos produtos adquiridos, é fazer com que imposto seja considerado custo e integre o preço do produto vendido, o que resulta em cumulatividade, ou seja, incidência de imposto sobre imposto.

Portanto, em que pesem os respeitados posicionamentos doutrinários divergentes, entendemos que, no caso do ICMS, para que o objetivo do constituinte de inserir no sistema tributário brasileiro um imposto sobre o consumo efetivamente plurifásico e não cumulativo seja alcançado, o legislador complementar deve disciplinar, necessariamente, sem realizar qualquer restrição que não aquelas já previstas nas próprias alíneas “a” e “b” do artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, os regimes de compensação tanto do crédito físico, quanto do crédito financeiro, sob pena de tornar o imposto cumulativo, e malferir as dimensões axiológias da igualdade, livre concorrência e neutralidade tributária, almejadas pela regra constitucional da não cumulatividade.

5. A Repercussão Geral do Tema no Supremo Tribunal Federal

No dia 3 de dezembro de 2012, foi publicada decisão pelo Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Luiz Fux, reconhecendo a repercussão geral do tema em análise no presente artigo nos autos do Recurso Extraordinário nº 662.976/RS.

O cerne da discussão ocorrida nos autos do aludido recurso diz respeito à possibilidade de ser assegurada a manutenção e o aproveitamento de créditos de operações anteriores de aquisição de bem para o ativo fixo no caso de exportação.

O Recurso Extraordinário em referência foi interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul. Em suas razões, defende que o legislador complementar nacional adotou, para a caracterização das operações de circulação de mercadorias e de prestação de serviços de comunicação e transporte, o crédito físico ou material, em contraposição ao financeiro, o que afasta a imunidade das exportações no caso sub judice, por não ser possível o aproveitamento de crédito financeiro.

Sustenta, ainda, que o crédito financeiro trata-se de benefício fiscal a ser concedido pelos Estados-membros dentro da competência prevista no artigos 150, parágrafo 6º, e 155, parágrafo 2º, XII, “g”, da Constituição Federal de 1988. Por isso, as restrições fixadas na Lei Complementar nº 87/1996 quanto ao aproveitamento de créditos de ICMS deve ser respeitada, sob pena de esvaziar o conteúdo da norma infraconstitucional e elevar o favor fiscal interestadual (crédito financeiro) ao status de garantia constitucional.

O contribuinte, por seu turno, alega em suas contrarrazões ter o direito de aproveitamento dos créditos de ICMS decorrentes da aquisição de bens para uso, consumo e ativo imobilizado, na proporção das operações que destinem mercadoria para o exterior. Sustenta que o crédito pretendido não consiste em favor fiscal, mas em garantia conferida pela Emenda Constitucional nº 42/2003, que possibilita o aproveitamento de créditos adquiridos nas etapadas anteriores no caso de operações de exportação, em respeito à imunidade das exportações. Aponta, ainda, que a norma inserta no artigo 33 da LC nº 87/1996 prevê a possibilidade de aproveitamento do crédito financeiro nas operações em que há a incidência do ICMS.

Diante deste cenário, o Supremo Tribunal Federal deixou consignado, na decisão que reconheceu a repercussão geral do tema, que é necessário definir-se o alcance do princípio da não cumulatividade na tributação do ICMS, principalmente a fixação do critério de definição do crédito acumulado nas operações anteriores, se físico ou financeiro, para, então, estabelecer as balizas para aplicação da regra que prevê a imunidade nas exportações.

É fato, portanto, que, para definir o alcance do princípio da não cumulatividade do ICMS, o Supremo Tribunal Federal deverá passar, necessariamente, por todas as problemáticas expostas ao longo do presente artigo. Assim, é extremamente importante que a decisão seja tomada levando em consideração todos os efeitos jurídicos e econômicos que defluem da regra constitucional que prevê a não cumulatividade do imposto em questão, sobretudo o objetivo precípuo de alcançar a neutralidade tributária.

6. Conclusão

A cumulatividade da tributação sobre o consumo apresenta uma série de efeitos econômicos e tributários negativos, dentre os quais se destacam a verticalização dos agentes econômicos, o desestímulo às exportações, a quebra da neutralidade da tributação, as distorções na formação dos preços dos produtos, a violação à livre concorrência e as mitigações à isonomia.

Diante dessa constatação, em matéria de ICMS, optou-se por inserir a não cumulatividade no altiplano constitucional por meio do artigo 155, parágrafo 2º, I, da Constituição Federal de 1988, que determina que o ICMS “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.

O constituinte não previu, contudo, a forma de compensação do crédito, deixando a cargo da lei complementar esta tarefa, nos termos artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “c”, da Carta Magna.

Sobre este aspecto, o legislador complementar ficou incumbido de dispor sobre o mecanismo de implementação do regime de compensação, sendo-lhe vedado, no entanto, restringir a não cumulatividade. A própria Lei Maior já delimitou as hipóteses de restrição à não cumulatividade no seu artigo 155, parágrafo 2º, inciso II.

Como se sabe, a amplitude do direito ao crédito de ICMS está ligada às sistemáticas do crédito físico e do crédito financeiro. No primeiro, em linhas gerais, reconhece-se apenas os créditos decorrentes do imposto incidente sobre produtos empregados fisicamente na industrilização ou comercialização da mercadoria tributada na etapa subsequente. No sistema do crédito financeiro, por seu turno, permite-se a tomada de crédito do imposto cobrado sobre as mercadorias que não se integram fiscamente na industrialização ou comercialização do produto final, como é o caso dos bens destinados a uso e consumo e dos investimentos em ativo fixo imobilizado.

Aqui, como vimos, instaura-se a celeuma acerca dos limites da lei complementar para restringir uma ou outra sistemática de compensação do crédito. No nosso sentir, não há qualquer fundamento constitucional que tenha o condão de conferir à lei complementar a possibilidade de impor limites à compensação de créditos, na medida em que o próprio constituinte já estabeleceu as situações em que a não cumulatividade encontra-se excepcionada.

Se o constituinte objetivou alcançar a neutralidade tributária, privilegiar a livre concorrência, garantir a isonomia, e eliminar os malefícios econômicos da tributação cumulativa do ICMS, é evidente que não cabe ao legislador complementar invocar sua função constitucional de disciplinar o regime de compensação dos créditos para restrigir e impor limites a tal compensação.

Por esse motivo, não se sustenta a ideia de que a Constituição Federal estabeleceu apenas o regime do crédito físico, representando o crédito financeiro mero benefício a ser instituído por meio de lei complementar. A Carta Magna fixou a não cumulatividade do ICMS. Ou seja, vedou a incidência plurifásica cumulativa, rechaçando qualquer sistemática que permita a incidência de imposto sobre imposto.

Assim, limitar o aproveitamento do imposto incidente apenas sobre produtos empregados fisicamente na industrilização ou comercialização da mercadoria tributada na etapa subsequente, vedando a tomada do crédito financeiro, é, por consequência imediata, mitigar o instituto da não cumulatividade.

Deflui das normas constitucionais atinentes à não cumulatividade do ICMS o claro objetivo do constituinte de 1988 de inserir no sistema tributário brasileiro um imposto sobre o consumo efetivamente plurifásico e não cumulativo. Portanto, não há lógica nem em se permitir que o legislador complementar vede a tomada do crédito financeiro, nem em se sustentar que a Constituição Federal contempla apenas o sitema do crédito físico.

A regra constitucional da não cumulatividade condecora os valores da igualdade, da livre concorrência e da neutralidade tributária. Portanto, o alcance da não cumulatividade do ICMS previsto na Constituição Federal não está limitado ao crédito físico ou financeiro, mas sim à efetiva concretização desses valores, objetivo último da não cumulatividade do imposto em questão.

Eis aqui a celeuma a ser enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 662.976/RS.

1 Cf. COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, pp. 5-11.

2 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 389.

3 Cf. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; e DERZI, Misabel Abreu Machado. “ICMS - direito ao creditamento - princípio da não-cumulatividade”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 102. São Paulo: Dialética, março de 2004, p. 147.

4 Trecho do Acórdão que reconheceu a repercussão geral do Recurso Extardinário nº 662.976/RS, publicado no DJe de 3.12.2012.

5 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Repetição do tributo indireto: incoerências e contradições. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 13-23.

6 Cf. DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. “Imunidades tributárias e impostos de incidência plurifásica, não cumulativa”. Revista de Direito Tributário v. 5. São Paulo: Malheiros, julho/setembro de 1978, pp. 70-71.

7 Cf. MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2012, pp. 62-63.

8 Cf. DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. “Imunidades tributárias e impostos de incidência plurifásica, não cumulativa”. Revista de Direito Tributário v. 5. São Paulo: Malheiros, julho/setembro de 1978, pp. 70-71.

9 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 355.

10 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Restrições à atividade econômica do contribuinte na substituição tributária e livre concorrência”. In: FERREIRA NETO, Arthur M.; e MICHELE, Rafael (coords.). Curso avançado de substituição tributária. São Paulo: IOB, 2010, pp. 522-523.

11 Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. “Distorções do princípio da não-cumulatividade no ICMS - comparação com o IVA europeu”. In: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro et. al. (coords.). Temas de Direito Tributário - I Congresso Nacional da Associação Brasileira de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 112.

12 Cf. COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, pp. 5-21.

13 Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. “Distorções do princípio da não-cumulatividade no ICMS - comparação com o IVA europeu”. In: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro et. al. (coords.). Temas de Direito Tributário - I Congresso Nacional da Associação Brasileira de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 110.

14 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 390.

15 ATALIBA, Geraldo. “ICMS na Constituição”. Revista de Direito Tributário nº 57. São Paulo: Malheiros, julho/setembro de 1991, p. 102.

16 Cf. COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, p. 27.

17 ATALIBA, Geraldo; e GIARDINO, Cléber. “ICM - abatimento constitucional - princípio da não-cumulatividade”. Revista de Direito Tributário nº 29-30. São Paulo: Malheiros, julho/dezembro de 1984, p. 115.

18 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 390.

19 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 392.

20 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, p. 24.

21 Cf. MOREIRA, André Mendes. “Não-cumulatividade tributária no Brasil e no mundo: origens, conceitos e pressupostos”. In: MACEDO, Alberto et. al. (coords.). VI Congresso Nacional de Estudos Tributários - sistema tributário brasileiro e a crise atual. São Paulo: Noeses, 2009, pp. 68-69.

22 Cf. COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1979, p. 24.

23 MATTOS, Aroldo Gomes de. “ICMS: o montante dos créditos compensáveis”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. ICMS - problemas jurídicos. São Paulo: Dialética, 1996, pp. 26-27.

24 ESTRELLA, André Luiz Carvalho. “O crédito financeiro do ICMS. Art. 20 § 1º da LC 87/96 - bens de uso, consumo e ativo permanente e seu regime no IVA do mercado comum europeu”. Caderno tributário e de finanças públicas nº 50. São Paulo: RT, 2003, p. 47.

25 TORRES, Ricardo Lobo. “O princípio da não-cumulatividade e o IVA no Direito Comparado”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Pesquisas tributárias nova série nº 10. São Paulo: RT, 2004, pp. 145-146.

26 Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. “Distorções do princípio da não-cumulatividade no ICMS - comparação com o IVA europeu”. In: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro et. al. (coords.). Temas de Direito Tributário - I Congresso Nacional da Associação Brasileira de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 116.

27 TORRES, Ricardo Lobo. “O princípio da não-cumulatividade e o IVA no Direito comparado”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Série Pesquisas Tributárias nº 10. São Paulo: RT, 2004, pp. 145-148.

28 TORRES, Ricardo Lobo. “O princípio da não-cumulatividade e o IVA no Direito comparado”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Pesquisas tributárias nova série nº 10. São Paulo: RT, 2004, p. 150.

29 ESTRELLA, André Luiz Carvalho. “O crédito financeiro do ICMS. Art. 20 § 1º da LC 87/96 - bens de uso, consumo e ativo permanente e seu regime no IVA do mercado comum europeu”. Caderno tributário e de finanças públicas nº 50. São Paulo: RT, 2003, pp. 48-49.

30 Cf. MATTOS, Aroldo Gomes de. “ICMS: o montante dos créditos compensáveis”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. ICMS - problemas jurídicos. São Paulo: Dialética, 1996, pp. 11-46.

31 Cf. MATTOS, Aroldo Gomes de. “ICMS: a eficácia e o alcance da não-cumulatividade”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 156. São Paulo: Dialética, setembro de 2008, pp. 23-28.

32 BARRETO, Aires F. “Créditos de ICMS - limites da Lei Complementar”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. O ICMS, a LC 87/96 e questões jurídicas atuais. São Paulo: Dialética, 1997, p. 11.

33 Por todos, Cf. ESTRELLA, André Luiz Carvalho. “O crédito financeiro do ICMS. Art. 20 § 1º da LC 87/96 - bens de uso, consumo e ativo permanente e seu regime no IVA do mercado comum europeu”. Caderno tributário e de finanças públicas 50. São Paulo: RT, 2003; e Cf. MATTOS, Aroldo Gomes de. “ICMS: a eficácia e o alcance da não-cumulatividade”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 156. São Paulo: Dialética, setembro de 2008.

34 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 395.

35 CANTO, Gilberto de Ulhôa. “ICM - não-cumulatividade - abatimento constitucional”. Revista de Direito Tributário nº 29-30. São Paulo: Malheiros, julho/dezembro de 1984, p. 203.

36 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 96.

37 Cf. HERON, Arzua. “Créditos de ICMS e IPI”. Revista de Direito Tributário nº 64. São Paulo: Malheiros, 1994, pp. 255-261.

38 CARVALHO, Osvaldo Santos de. Não cumulatividade do ICMS e princípio da neutralidade tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 157-178.

39 CARVALHO, Osvaldo Santos de. Não cumulatividade do ICMS e princípio da neutralidade tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 157-178.

40 BARRETO, Aires F. “Créditos de ICMS - limites da Lei Complementar”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. O ICMS, a LC 87/96 e questões jurídicas atuais. São Paulo: Dialética, 1997, pp. 11-17.

41 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 384-385.