A Tributação das Empresas pelo Rendimento Real*
José Casalta Nabais
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal.
Vamos procurar responder a esta questão: em que medida as empresas são tributadas pelo rendimento real? Uma pergunta que faz especial sentido em Portugal, em que a Constituição, no recorte do sistema fiscal contido no seu art. 104º, estabelece no seu n. 2 que “[a] tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”1. Um preceito constitucional que, como se compreende, além de constituir parâmetro de actuação do legislador fiscal, tem sido o suporte estudos da doutrina e servido de fundamento a decisões dos tribunais, designadamente do Tribunal Constitucional2.
I. Tributação integrada ou separada das sociedades
E, para dar uma resposta que satisfaça minimamente, impõe-se aludir ao problema bem conhecido e discutido desde há muitas décadas da tributação integrada ou tributação separada das sociedades e dos sócios3. Todavia, como é facilmente verificável, por toda a parte tem prevalecido a tributação separada, a favor da qual são invocáveis diversos e ponderosos argumentos que importa aqui recordar.
1. Razões da tributação separada
Pois bem, a favor da tributação separada das sociedades e dos sócios, havendo lugar a um imposto sobre as sociedades, são apontados os seguintes argumentos: (1) ser um substituto do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares ou físicas, já que este se confronta com obstáculos intransponíveis para integrar uma tributação óptima, cada vez mais limitada à tributação dos rendimentos do trabalho; (2) constituir um imposto sobre o rendimento dos empresários, evitando assim o recurso das empresas à não distribuição de dividendos (lock-in) e aos impactos desta na limitação da progressividade do imposto sobre o rendimento e na necessidade de um mínimo de estabilidade no fluxo das receitas fiscais do Estado; (3) ter o significado de uma contribuição para os bens e serviços públicos de que beneficiam as empresas, evitando que estas acabem por “viajar à boleia” (free riders) dos outros contribuintes que acabam suportando esses serviços; (4) conseguir uma tributação para as rendas puras das empresas, as quais mais não são do que superlucros decorrentes fundamentalmente da falta de eficiência económica; (5) contribuir para um sistema fiscal mais coerente, obstando ou limitando a existência de lacunas na tributação do rendimento, de modo a tornar esta mais transparente e compreensível aos olhos dos cidadãos, contribuindo assim para melhorar o consentimento do imposto4.
A que são de acrescentar razões mais amplas de natureza tanto política como regulatória. No concernente às primeiras, são apontadas como vantagens políticas as traduzidas em a incidência do imposto sobre as sociedades ser mais difusa e indirecta do que a do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares ou físicas, o que facilita a sua disciplina. Por seu lado, quanto às vantagens regulatórias da tributação autónoma das sociedades concretizam-se estas quer no incentivo para dotar a Administração Tributária de efectiva capacidade para o controlo financeiro e fiscal das empresas, facilitando este, pois a existência da tributação acaba por limitar a acumulação de recursos na empresa e o consequente poder excessivo ou abusivo dos gestores, seja desincentivando a inflação de resultados nas demonstrações financeiras, que tanto alicia a gestão de muitas empresas, seja obstando ou limitando a interferência dos sócios na gestão das empresas com o intuito de pagarem menos imposto sobre o rendimento pessoal5.
Por todas estas razões, parece dificilmente aceitável que se venha a eliminar o imposto sobre o rendimento das sociedades, integrando-o no imposto sobre o rendimento pessoal dos sócios, como de tempos a tempos é proposto, sendo-o nestes últimos tempos em virtude das dificuldades da tributação do rendimento ou lucro das empresas multinacionais ou das empresas com actividade centrada na economia digital. Diferente é, todavia, a sua substituição por outro tipo de imposto sobre as sociedades, como foi o que consta da proposta apresentada pelos Partido Republicano no Congresso dos EUA – o imposto sobre os fluxos de caixa baseado no critério do destino (destination-based cash flow tax) –, que, não obstante as vantagens que lhe são apontadas, não foi adiante pelos receios quanto aos efeitos que a sua adopção poderia desencadear6. Porém tudo leva a crer que o imposto sobre as sociedades é para manter, não se vislumbrando nas soluções mencionadas uma alternativa minimamente satisfatória.
Isto porque, como parece óbvio, como não consideramos constituir alternativa digna desse nome as qualificadas por alternativas menores – que nós, a serem efectivas alternativas, seriam de designar de preferência por alternativas parciais ou parcelares – traduzida na alteração do imposto sobre as sociedades em função das estruturas financeiras destas, em que temos, designadamente: o modelo Comprehensive Business Income Tax (CBIT), que não permite a dedução dos juros em sede das empresas; o modelo Allovance for Corporate Equity (ACE)7, que permite uma dedução na empresa, a título de remuneração do capital social, idêntica à dedução dos juros; o modelo Allovance for Shareholders Equity (ASE), que permite essa dedução a nível dos sócios; o modelo Destination-based Cash Flow Tax, com uma base tributável próxima do IVA, embora com dedução dos custos salariais; e o modelo Full Integration System, em que o imposto sobre sociedades é considerado pagamento por conta no imposto sobre o rendimento pessoal dos sócios8.
Diferente do que vimos de dizer será, contudo, modificar a configuração do imposto sobre as sociedades relativamente às empresas mais relevantes no que à erosão das bases tributárias diz respeito, como são as empresas multinacionais e as empresas da economia digital, em que um imposto focado na tributação do lucro enfrenta os problemas que o Plano BEPS tenta remediar. Pelo que em relação a estas mais do que acabar com o imposto sobre as sociedades ou substituí-lo por um outro imposto, exige-se antes recortar a sua incidência em termos bem diferentes, como vamos ver9.
2. O fundamento jurídico-constitucional da tributação das sociedades
Mas, para além de todo esse extenso e diversificado conjunto de razões que tornam de mui difícil aplicação uma tributação integrada do rendimento das sociedades e do correspondente rendimento dos sócios, há ainda outras que há que convocar. De facto, não podemos dispensar os fundamentos jurídicos que suportam a tributação separada do rendimento das empresas. Ou seja, há que perguntar pelo fundamento jurídico-constitucional que suporta essa tributação.
Ora, à solução em causa não faltam fundamentos jurídicos, entre os quais podemos mencionar os que têm a ver com o facto, de um lado, de o dever fundamental de pagar impostos ou tributos e, de outro, de as manifestações da capacidade contributiva poderem ser perfeitamente reportadas às pessoas colectivas ou jurídicas. Na verdade, quanto ao primeiro dos fundamentos, basta-nos aludir ao facto de um pouco por toda a parte ter aceitação e consagração gerais a sujeição aos deveres fundamentais das pessoas colectivas ou jurídicas, como consta da Constituição Portuguesa que, no art. 12º, ao enunciar o princípio da universalidade dos direitos e deveres fundamentais, estabelece no seu n. 2: “[a]s pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”. Por conseguinte, a natureza das pessoas colectivas ou jurídicas não constitui qualquer obstáculo à sua sujeição ao dever fundamental de pagar impostos ou tributos.
Por seu turno, no que concerne ao segundo fundamento jurídico, é de assinalar que as pessoas colectivas ou jurídicas não são alheias às manifestações clássicas da capacidade contributiva10, partilhando-as com as pessoas singulares ou físicas, pois, tal como estas, são susceptíveis de obter rendimentos, ou seja, lucro empresarial, de serem titulares de património ou capital e de utilizarem aqueles ou este na aquisição de bens ou serviços. Daí que às sociedades e demais pessoas colectivas ou jurídicas não se coloquem obstáculos intransponíveis à sua tributação em sede dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo. Ou seja, não coloca obstáculos diversos dos que decorrem do facto de serem, como todas as pessoas colectivas ou jurídicas, ficções jurídicas erigidas em centros de imputação de direitos e deveres, em que naturalmente se incluem também os direitos e deveres fundamentais que não exijam a qualidade de pessoa física.
Dado o tema destas reflexões, impõe-se que nos fixemos na tributação do rendimento das sociedades, ou melhor, do seu lucro. Prossigamos, então, analisando como esta base de tributação conduz ou não ao rendimento real.
II. O lucro das empresas
As sociedades e demais empresas são tributadas pelo lucro tributável que, segundo um modelo de dependência parcial do direito fiscal face ao direito contabilístico, não só parte do lucro apurado pela contabilidade como é determinado segundo os princípios e regras que servem de padrão normativo à elaboração dos registos contabilísticos, em relação aos quais se verificam apenas alguns desvios e algumas adaptações que, não pondo em causa aquele modelo, respondem à diversidade de preocupações e objectivos da fiscalidade face aos da contabilidade11. Embora devamos assinalar que a evolução mais recente tem caminhado no sentido de uma maior aproximação do lucro tributável ao lucro contabilístico.
Todavia, antes de entrarmos na consideração mais específica do lucro tributável, importa referir que o lucro revelado pela contabilidade não tem comportado nem comporta uma visão unívoca nem, apesar das relações de grande proximidade, se identifica com o lucro tributável. O que impõe uma alusão, ainda que sumária, às perspectivas que comporta o lucro das empresas e às razões que estão na base da não identificação total do lucro tributável com o lucro revelado pela contabilidade. Uma situação que não foi posta em causa por uma maior aproximação entre estes dois tipos de lucro, decorrente da reforma da contabilidade que teve lugar nos finais da primeira década deste século, o que, a seu modo, se encontra espelhado nos princípios da especialização dos exercícios e da prevalência da substância sobre a forma, como vamos ver.
1. Alusão às teorias do lucro empresarial
Pois bem, o lucro empresarial pode ser visto ou perspectivado a partir de três teorias, a saber: a teoria do balanço, a teoria da conta de exploração e a teoria do cash flow. A primeira, a teoria do balanço, olha para as contas das empresas com base em duas fotografias tiradas uma no início e outra no fim do exercício ou período de tributação, que é a que tem expressão no Código do IRC, em que depois de estabelecer no n. 1 do art. 3º que o IRC incide sobre: “a) o lucro das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, das cooperativas e das empresas públicas e o das demais pessoas colectivas ou entidades… que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola”12, prescreve no n. 3 desse mesmo preceito que “o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código”13.
O que é expressão de um conceito amplo de rendimento ou rendimento acréscimo, que é o que melhor se coaduna com o princípio da igualdade fiscal assente na capacidade contributiva como pressuposto e critério da tributação e que está em maior consonância com os princípios jurídico-constitucionais que integram a constituição fiscal especificamente desenvolvidos nos arts. 103º e 104º da Constituição. Esta foi a visão para que evoluiu a concepção da base do lucro tributável, depois de, numa primeira fase, a generalidade das legislações fiscais ter partido e seguido a teoria da conta de exploração, que foi a que estava na base do conceito de lucro tributável na Contribuição Industrial, o imposto que tributava as empresas no sistema fiscal que vigorou em Portugal antes da entrada em vigor do IRC em 198914.
Nesta concepção o lucro é apurado, não com base em duas fotografias sobrepostas do património líquido das empresas como na teoria do balanço, mas com base no filme dos rendimentos e ganhos e dos gastos e perdas com fonte na exploração correspondente à actividade social da empresa, o que excluía do lucro tanto os rendimentos excepcionais de fontes estáveis como os rendimentos de fontes ocasionais. Assim, o lucro apurado com base na teoria do balanço é um lucro em sentido amplo, pois corresponde ao revelado pela conta de exploração mais os rendimentos ou ganhos e gastos e perdas que não se reportem à exploração empresarial. É o que, em consonância com o que vimos constar do n. 3 do art. 3º, dispõe o n. 1 do art. 17º do Código do IRC, ao estabelecer que o lucro das empresas, “é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”15.
Por fim, é de fazer alusão à teoria do cash flow, que embora não seja relevante para o apuramento do lucro tributável, que é o que aqui nos interessa, e de constituir uma categoria diversa da do lucro, seja este entendido em sentido amplo ou estrito, ainda assim é importante dadas as suas relações com a do lucro das empresas. Numa tal concepção, o lucro tenderia a ser visto atendendo sobretudo aos fluxos de tesouraria da empresa, os quais permitem saber se esta ganha mais do que gasta e se dispõe de meios para investimentos no futuro, avaliando assim a sua efectiva capacidade ou potencialidade para criar valor. O que é particularmente relevante na óptica da corporate finance, pela qual hoje em dia se avalia o desempenho das empresas, sendo tida em conta pelos administradores e gerentes de modo a assim angariarem o financiamento adequado junto dos investidores.
Como será fácil de intuir, trata-se de uma perspectiva do desempenho económico das empresas que, pela própria natureza do direito fiscal, não será a mais adequada, porquanto o lucro a tributar encontra-se vinculado ao real e realizado e não ao potencial ou realizável, estando, por conseguinte, empenhado em obter receitas fiscais com base em manifestações da capacidade contributiva que tenham um mínimo de consolidação ou de solidez. Neste quadro, impõe-se tributar o rendimento ou lucro das empresas que, mais do revelarem a capacidade ou potencialidade para criar valor como o cash flow, constitua efectivo valor já criado e realizado. Afigura-se assim como algo evidente que uma concepção do lucro empresarial à medida que se aproxima da categoria do cash flow se afastará do correspondente lucro tributável. O que tem, desde logo, expressão importante no facto de o cash flow, ao ter por base o recebimento e o pagamento das receitas e despesas, se apresentar em contramão com o princípio da especialização dos exercícios ou da periodização económica pela qual se pauta o direito fiscal das empresas, como vamos ver16.
2. Da não identificação do lucro tributável com o lucro empresarial
Um afastamento que, embora de algum modo se tenha atenuado, continua a observar-se mesmo face ao lucro perspectivado pela teoria do balanço. O que tem por base três ordens de razões, a saber: razões ligadas a eliminação ou atenuação da dupla tributação, razões associadas à luta contra a evasão e fraude fiscais e razões que se prendem com o facto de, por vezes, na definição e determinação da base tributável se fazerem reflectir objectivos de natureza económica e social que, obviamente, não se encontram presente na actuação das empresas17.
Desde logo, importa assinalar que o resultado contabilístico e o resultado fiscal se reportam a realidades que não coincidem inteiramente ou são determinados de maneira algo diferente, em virtude de haver diferença entre patrimónios para a contabilidade e para a fiscalidade decorrente da aplicação territorial de regras jurídicas fiscais e da necessidade de evitar ou atenuar a dupla tributação jurídica e/ou económica. A que acresce a preocupação em a tributação atingir apenas os rendimentos e ganhos e gastos e perdas que se encontrem realizados, atento o peso que o princípio da realização não pode deixar de ter no direito fiscal.
Um princípio que tradicionalmente tem sido suportado em razões de natureza pragmática, ligadas à praticabilidade das soluções de tributação, mormente à falta de liquidez que enfrentariam os sujeitos passivos na tributação da generalidade dos rendimentos e ganhos verificados, que ainda não foram objecto de realização. O que poderia conduzir os contribuintes a terem de se desfazer de activos, alienando-os ou entregando-os ao Estado para pagarem os impostos, num quadro de maximização do “poder de destruir” que o poder tributário envolve18.
Caso em que a tributação, em vez de ter por objectivo a obtenção de receitas fiscais, acabaria por ter como resultado também a transferência forçada da propriedade dos contribuintes e, por conseguinte, a sua descapitalização. O que, a ser feito em larga escala, poderia conduzir àquilo para que nos alertava, já no longínquo ano de 1930, o grande Albert Hensel. Autor que, tendo em conta o sistema fiscal no seu todo, se inquietava com a possibilidade de uma “socialização a frio”, um socialismo por via fiscal em que o aumento sem cessar da tributação seria “o cavalo de Tróia do socialismo no Estado de direito burguês” que poderia operar a transferência para o Estado dos principais meios de produção sem recorrer à nacionalização ou expropriação massivas, como propunha o socialismo da época19.
Depois, temos as razões que se prendem com a luta contra a evasão e fraude fiscais, estando esta enquanto protagonizada pelo legislador fiscal na base da maior parte das divergências do lucro tributável face ao lucro contabilístico, traduzidas nas diversas situações de não aceitação de gastos e perdas e de outras componentes negativas ou no estabelecimento de limites a estas grandezas negativas do lucro tributável. O que tem expressão, de um lado, na lista dos encargos não dedutíveis para efeitos fiscais constante do art. 23º-A do Código do IRC, como são as despesas não documentadas ou insuficientemente documentadas, os encargos relativos a barcos de recreio e aeronaves de passageiros que não estejam afectos à exploração do serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo, as menos-valias realizadas relativas a barcos de recreio, aviões de turismo e viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, que não estejam afectos à exploração de serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo etc. E, de outro lado, na imposição de condições e no estabelecimento de limites para as depreciações e amortizações, imparidades e provisões e realizações de utilidade social.
Por fim, em terceiro lugar, encontramos algumas diferenças entre o resultado contabilístico e o resultado fiscal que têm a ver com a projecção na base tributável de legítimas opções do legislador fiscal no sentido da prossecução de determinados objectivos económicos e sociais, traduzidas na previsão de vantagens fiscais em que se incluem os próprios benefícios fiscais, sejam estes puros benefícios de carácter geral ou específicos incentivos ou estímulos. É o que acontece com determinados rendimentos ou ganhos que acabam excluídos da tributação, entendida esta exclusão em termos muito amplos, pois engloba a exclusão desses rendimentos ou gastos tanto da incidência como do lucro tributável, da matéria colectável e da colecta, ou com certos gastos e perdas que são objecto de majoração, sendo considerados fiscalmente por um valor superior ao relevado na contabilidade. Exemplo da primeira situação temo-la nos benefícios fiscais que operam em sede da determinação da matéria colectável do IRC objecto de dedução ao lucro tributável, nos termos da alínea a) do n. 1 do art. 15º do Código do IRC. Por seu lado, exemplo da segunda hipótese encontramo-la na majoração traduzida na consideração em 140% das despesas de utilidade social realizadas pelas empresas nos termos dos ns. 1 e 9 do art. 43º do Código do IRC
3. A aproximação do lucro tributável ao lucro contabilístico
Uma realidade que tem alguns sinais evidentes na substituição do Plano Oficial de Contabilidade (POC)20 para o Sistema de Normalização Contabilística (SNC) de 2009, que teve em conta, como se diz no preâmbulo do diploma legal que o aprovou21, designadamente: a concentração de actividades empresariais a nível nacional, europeu e mundial; o desenvolvimento de grandes espaços económicos; a regionalização e globalização dos mercados financeiros e das bolsas de valores; a liberalização do comércio e globalização da economia; a internacionalização das empresas, a criação de subsidiárias, fusões, aquisições, empreendimentos conjuntos e alianças estratégicas.
O que podemos ilustrar com a abertura do direito fiscal, designadamente, ao conceito de justo valor que passou a ter grande importância no direito contabilístico com a aprovação do SNC e que é definido como a “quantia pela qual um activo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transacção em que não existe relacionamento entre as partes”22. Um conceito que está em consonância com as alterações introduzidas pelo SNC que, como as IAS/IFRS, visaram alcançar uma maior justiça na valorização dos bens das sociedades proporcionando aos interessados um conhecimento mais adequado da situação económica, financeira e patrimonial das mesmas23. Pelo que a abertura da contabilidade ao justo valor visou ir ao encontro dos investidores que desejam obter uma informação real e fidedigna antes de decidir investir.
Uma abertura que vai ter expressão também no direito fiscal, pois embora esta abertura se revele bastante limitada, ainda assim há algumas situações em que o reconhecimento e a mensuração de activos são feitos ao justo valor. E é bastante limitada porque a relevância dos princípios estruturantes da contabilidade, pelos quais se continua a reger o apuramento do lucro tributável, são os princípios do custo histórico e da realização. O primeiro, o princípio do custo histórico, prevê que os activos são registados pela quantia de caixa, ou equivalentes de caixa paga ou pelo justo valor da retribuição dada para os adquirir no momento da sua aquisição, enquanto os passivos são registados pela quantia dos proventos recebidos em troca da obrigação, ou em algumas circunstâncias (por exemplo, impostos sobre o rendimento), pelas quantias de caixa, ou de equivalentes de caixa, que se espera que venham a ser pagas para satisfazer o passivo no decurso normal dos negócios. Por seu turno o segundo, o princípio da realização, estabelece que o valor de um activo é determinado por uma transacção, sendo qualquer mudança desse valor reconhecida apenas quando se realiza ou dispõe desse activo.
Uma limitação ao justo valor no direito fiscal que tem expressão eloquente no facto de os rendimentos e ganhos e os gastos e perdas relevados pela contabilidade se depararem com a restrição geral constante dos ns. 8 e 9 do art. 18º do Código do IRC, em que se prescreve, respectivamente, que “[o]s rendimentos e gastos…, relevados em consequência da utilização do método da equivalência patrimonial ou, no caso de empreendimentos conjuntos…, do método de consolidação proporcional, não concorrem para a determinação do lucro tributável, devendo os rendimentos provenientes dos lucros distribuídos ser imputados ao período de tributação em que se adquire o direito aos mesmos”, e [o]s ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto…”.
Significa isto que, por via de regra, os métodos utilizados no balanço contabilístico, em que naturalmente se destaca o do justo valor, não têm em consideração ou afastam-se da ideia ou princípio da realização, vigorando no domínio do direito fiscal a regra segundo a qual é necessário o encerramento ou a realização das posições jurídicas relativas aos activos, através de alienação, de exercício ou de outra forma, para que rendimentos ou gastos que respeitem aos mesmos tenham relevância. O que tem, de resto, diversas expressões específicas de afastamento do justo valor no Código do IRC, como a da alínea c) do n. 2 do art. 22º, dos ns. 2 e 3 do art. 45º-A e do n. 13 do art. 67º.
Mas essa regra comporta, todavia, excepções, as quais, reportando-se à relevância fiscal do justo valor, encontram-se referidas nas alíneas do n. 9 do art. 18º do Código do IRC, pelo que o afastamento do justo valor não se verificará quando os mencionados ajustamentos: (a) respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respectivo capital social; (b) isso se encontre expressamente previsto neste Código.
Por conseguinte a relevância do justo valor tem aplicação no respeitante aos instrumentos financeiros, de um lado, e nos demais casos previstos no Código do IRC. O que implica dizer alguma coisa relativamente às excepções em que no domínio fiscal se aplica o reconhecimento e a mensuração pelo justo valor.
4. Casos em que releva o justo valor no domínio fiscal
Como acabamos de referir, o justo valor aplica-se, de um lado, aos instrumentos financeiros, e, de outro, aos demais casos previstos no Código do IRC, reconduzindo-se estes aos activos biológicos, inventários, preços de transferência, pagamentos a entidades não residentes sujeitas a um regime fiscal privilegiado, transmissões de direitos reais sobre imóveis e à saída de activos de Portugal.
E, quanto aos instrumentos financeiros, não é preciso dizer mais, bastando-nos ter em conta que o seu reconhecimento ao justo valor consta, para além da reproduzida alínea a) do n. 9 do art. 18º, também da alínea f) do n. 1 do art. 20º (rendimentos e ganhos), da alínea j) do n. 2 do art. 23º (gastos e perdas), da alínea b) do n. 1 do art. 46º, e dos ns. 1, 2 e 3 do art. 49º (instrumentos financeiros derivados).
No que respeita aos activos biológicos, embora a mensuração pelo justo valor em sede contabilística tenha alguma amplitude e seja diferente consoante se trate de activos biológicos ou de produtos agrícolas, nos termos, respectivamente, das NIRF 16, § 13, e 17, § 13, e da NIRF 17, § 16, em sede do direito fiscal é aplicável apenas aos activos biológicos consumíveis. Neste sentido, segundo o disposto na alínea g) do n. 1 do art. 20º do Código do IRC, “[c]onsideram-se rendimentos e ganhos resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma ação normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente: … g) ganhos por aumentos de justo valor em ativos biológicos consumíveis que não sejam explorações silvícolas plurianuais”.
Também os inventários podem ser valorizados pelo justo valor, uma vez que a contabilidade admite essa possibilidade de mensuração. O que ocorre igualmente no direito fiscal, já que a alínea e) do n. do art. 26º do Código do IRC prevê, para efeitos de determinação do lucro tributável, a aplicação de “valorimetrias especiais para os inventários tidos por básicos ou normais”, embora estabeleça, depois no n. 6 desse mesmo preceito que a utilização de valorimetrias especiais carece de autorização prévia da Autoridade Tributária e Aduaneira, a qual deve ser solicitada até ao termo do período de tributação, através de requerimento em que se indiquem os critérios a adotar e as razões que os justificam.
Por outro lado, o Código do IRC, no seu art. 28º, relativo às perdas por imparidades em inventários, prevê que, no caso de desvalorização dos inventários, possam ser “dedutíveis fiscalmente no apuramento do lucro tributável os ajustamentos em inventários reconhecidos no período de tributação até ao limite da diferença entre o custo de aquisição ou de produção dos inventários e o respectivo valor realizável líquido referido à data do balanço, quando este for inferior àquele”. O que vai de encontro às normas contabilísticas ao admitir o valor realizável líquido como método de valorização dos inventários, aceitando fiscalmente esse valor e não o preço do mercado para o cálculo do ajustamento dos inventários, considerando-se para tal os gastos previsíveis de acabamento e venda na determinação desse valor.
Igualmente em sede dos preços de transferência, se recorre ao justo valor. O que acontece ao exigir-se, nos termos dos ns. 1 e 8 do art. 63º do Código do IRC, que quando entre entidades relacionadas seja praticado um preço diferente do preço de mercado ou do preço de plena concorrência, o sujeito passivo deve efectuar as “necessárias correcções positivas na determinação do lucro tributável, pelo montante correspondente aos efeitos fiscais imputáveis a essa inobservância”. Pois o critério da plena concorrência é uma tradução do justo valor que tem como objectivo colocar as entidades relacionadas em pé de igualdade com as entidades independentes.
Daí que, como prescreve o n. 2 do artigo em referência, os métodos utilizados com vista à “determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes”, devem ser “susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações…, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos…”24.
Também a norma constante da alínea r) do n. 1 do art. 23º-A do Código do IRC convoca o justo valor para determinar as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, as quais não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações que não têm um carácter anormal ou um montante exagerado. Com esta norma anti-abuso pretende-se prevenir as operações de transferência de rendimentos de uma empresa portuguesa para um sócio da empresa, através de uma sociedade localizada num país fiscalmente privilegiado, sendo os custos empresariais imputáveis à sociedade portuguesa, não sendo assim considerados fiscalmente na esfera do beneficiário efectivo do rendimento.
O recurso ao justo valor das transacções efectuadas nesta situação constitui, a seu modo, uma medida destinada a prevenir e corrigir situações de planeamento fiscal abusivo e de fraude e evasão fiscais, servindo de base à correcção das quantias declaradas das transacções, embora o justo valor não tenha em vista reprimir qualquer situação de fraude e evasão fiscais. Embora o recurso ao justo valor nesta situação, como valor de pendor subjectivo que em larga medida é, pode facilitar comportamentos menos aceitáveis em sede da gestão empresarial, como os de fazer espelhar nas demonstrações financeiras das empresas mais-valias potenciais, obtendo assim resultados não realizados para distribuir em dividendos aos accionistas e salários e bónus elevados aos administradores.
A um justo valor corresponde também o valor da transmissão de direitos reais sobre bens imóveis que, segundo o n. 1 do art. 64º do Código do IRC, deve ser efectuada de acordo com os valores normais do mercado, que não podem ser inferiores ao valor patrimonial tributário definitivo (VPT)25 que tenha servido de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT). Com efeito, o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, que é o valor a considerar pelo alienante e adquirente para efeitos de determinação do lucro tributável, constitui o justo valor do imóvel.
É na base deste valor que se efectuam eventuais correcções à matéria tributável do IRC, combatendo assim a fraude fiscal levada a cabo através de esquemas designadamente de simulação do preço na transmissão onerosa de direitos reais sobre imóveis. Assim como é igualmente em tributo ao justo valor que, nos termos dos arts. 31º-A do Código do IRS e 139º do Código do IRC, se permite ao sujeito passivo que, quando o valor constante do contrato de transmissão onerosa de direitos reais sobre imóveis seja inferior ao do correspondente valor patrimonial tributário, possa fazer prova desse valor através de um procedimento específico.
Enfim, também aquando da cessação de actividade de uma entidade com sede ou direcção efectiva em território português e da transferência da sua sede ou direcção efectiva para outro Estado, regulada no art. 83º do Código do IRC, tem lugar a convocação do justo valor, uma vez que a lei fiscal prevê a tributação à saída dos activos da sociedade, considerando que “a cessação de actividade de entidade com sede ou direcção efectiva em território português […], por virtude da sede e a direcção efectiva deixarem de se situar nesse território, constituem componentes positivas ou negativas as diferenças entre os valores de mercado e os valores contabilísticos fiscalmente relevantes dos elementos patrimoniais à data da cessação”.
Pois bem, nesta situação os activos são valorizados pelo justo valor à saída do território nacional, embora na prática se não realize uma efectiva transmissão económica e jurídica de activos, mas apenas uma mudança da residência fiscal do sujeito passivo para um outro Estado, já que os activos continuam a pertencer ao mesmo sujeito. É dado, porém, ao Estado de saída a possibilidade de tributar a valorização dos activos do sujeito passivo que se deslocaliza para evitar que se criem situações de evasão fiscal. Todavia, como esta tributação pode originar discriminação entre residentes e não residentes, os Estados-membros da União Europeia devem abster-se de praticar qualquer discriminação em matéria fiscal em função da residência e de criar obstáculos à liberdade de estabelecimento. Uma exigência que teve como consequência as soluções que encontramos no art. 83º do Código do IRC26.
5. A especialização dos exercícios e a prevalência da substância sobre a forma
Mas tributação das empresas pelo rendimento real tem diversas outras expressões que, como se afigura óbvio, não vamos cuidar aqui. Todavia, ainda assim, impõe-se referir aos dois importantes princípios da especialização dos exercícios e da prevalência da substância sobre a forma.
Quanto ao princípio da especialização dos exercícios, autonomia dos exercícios ou periodização económica, este impõe que os rendimentos e ganhos e os gastos e perdas economicamente imputáveis a um determinado exercício sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o correspondente resultado. Tem, assim, por objectivo tributar o rendimento gerado em cada exercício ou período de tributação de modo a que os rendimentos e ganhos e os gastos e perdas sejam contabilizados à medida que são obtidos ou incorridos e não à medida que são recebidos ou pagos. Ou, na formulação do n. 1 do art. 18º do Código do IRC, “[o]s rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”27.
Um preceito que, é de sublinhar, acaba por afirmar este princípio por três vezes – duas vezes pela positiva e uma vez pela negativa. Pela positiva ao dispor: (1) que os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados; e (2) que os rendimentos e os gastos e demais componentes do lucro tributável são imputáveis a este lucro segundo o regime da periodização económica. E pela negativa, ao estabelecer que os rendimentos e os gastos e demais componentes do lucro tributável são imputáveis a este lucro com total independência face ao recebimento ou pagamento dos mesmos.
O que mais não é do que uma expressão do realismo económico que o direito fiscal revela quando procura disciplinar a tributação das empresas, tendo em conta tanto quanto possível a realidade extra-jurídica que são as empresas e os grupos empresariais, sendo que estes constituem hoje em dia a forma mais comum de organização da actividade económica das empresas que tenham uma dada dimensão ou visem actuar em ambiente internacional. Daí que, num tal quadro de funcionamento da economia empresarial, para apurar o lucro tributável se parta do lucro contabilístico e, por via de regra, sejam seguidas as regras do apuramento deste, desviando-se dele apenas quando as específicas exigências da tributação de todo se não compaginem com essa realidade económica.
A este respeito importa assinalar, ainda, que o princípio da especialização dos exercícios no essencial não é posto em causa pela chamada “simetria dos balanços”, nos termos em que esta teoria vem sendo desenvolvida pela jurisprudência do nosso STA que, em tributo do respeito pelo princípio da tributação pelo rendimento real, implica proceder a correcções simétricas sempre que num exercício haja lugar a correcções. Pelo que se o lucro tributável for objecto de correcção num exercício, por nele terem sido imputados indevidamente gastos referente a exercício anterior, deve este último ser objecto de correspondente correcção28.
Pelo que respeita ao princípio da prevalência da substância sobre a forma, importa aqui assinalar que este princípio implica que, na definição do facto tributário ou facto gerador do imposto sobre o rendimento ou lucro das empresas, o legislador fiscal se socorra e aproveite o mais possível da realidade fornecida pela economia, delimitando a incidência do IRC em todas as suas dimensões – subjectiva ou pessoal e objectiva ou real (em que temos ainda a dimensão espacial, material, quantitativa, e temporal)29, considerando, em toda a linha, essa mesma realidade. Trata-se de um princípio que se relaciona com a característica da fiabilidade, devendo a informação contabilística representar fidedignamente as transacções e outros acontecimentos que tenha por fim representar, impondo-se que estes sejam contabilizados e apresentados de acordo com a sua substância e realidade económica e não meramente com a sua forma legal.
De facto, é de sublinhar que a substância das transacções ou de outros acontecimentos nem sempre é consistente com a que consta da sua forma legal. O que tem numerosas expressões, entre as quais se destacam as de alcance geral, em que o legislador fiscal em tributo ao conhecido realismo económico do direito fiscal impôs como regra a prevalência da substância (económica) sobre a forma ou formas (jurídicas), como é visível nas disposições legais que constam dos arts. 11º, ns. 1 e 3, 36º, ns. 1 e 2, 38º, ns. 1 e 2, e 39º, n. 1, da LGT. Senão vejamos, reproduzindo estes preceitos legais.
Assim o art. 11º dispõe-se que “na determinação do sentido das normas fiscais… são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação… das leis” (n.1), embora em caso de persistir “dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários” (n. 3)30. Por seu lado, o art. 36º prescreve que “[a] relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário” (n. 1) e que “[o]s elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes” (n. 2).
Já o art. 38º subordinado à epígrafe “ineficácia de actos e negócios jurídicos” contém a cláusula geral anti-abuso, estabelecendo que “[a] ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes” (n. 1), e que “[a]s construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objecto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efectuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou actos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas” (n. 2).
Importa sublinhar nesta sede, que a redacção deste n. 2 é a resultante da já referida Lei n. 32/2019, que transpôs para a ordem jurídica nacional a directiva europeia antielisão e que, além da significativa alteração do referido n. 231, acrescentou mais quatro números a esse artigo, todos relacionados com essa alteração. Trata-se de uma alteração significativa porque acabou por recortar em novos moldes a cláusula geral anti-abuso vigente entre nós, deixando esta, de um lado, de se referir à utilização de “meios artificiosos ou fraudulentos” e aproximando-se, de outro, da desenhada nas cláusulas especiais anti-buso do direito europeu como a constante do art. 1º da Directiva sociedades mães/sociedades afiliadas, resultante da redacção da Directiva 2015/121/UE do Conselho, de 27 de Janeiro32, e a contida na alínea a) do n. 1 do art. 15º da Directiva Fusões e Aquisições, que actualmente é a Directiva 009/133/CE do Conselho, de 19 de Outubro33.
Finalmente, temos o art. 39º, que consagra a irrelevância fiscal dos negócios jurídicos simulados, dispondo que “[e]m caso de simulação de negócio jurídico, a tributação recai sobre o negócio jurídico real e não sobre o negócio jurídico simulado”. Uma solução válida agora para todos os negócios simulados, uma vez que, antes da revogação do n. 2 desse artigo pela Lei do Orçamento para 2014, o afastamento fiscal do negócio simulado e a tributação do negócio real, quando este constasse de documento autêntico, implicava a prévia intervenção dos tribunais judicias.
Todo um importante conjunto de normas jurídico-fiscais de carácter geral, que prestam inequívoco tributo ao princípio da prevalência da substância (económica) sobre a forma ou formas (jurídicas).
III. Os regimes simplificados em IRS e em IRC
A este respeito deve ser sublinhado que o regime simplificado em IRS e o regime simplificado em IRC constituem regimes simplificados de tributação e não regimes simplificados de determinação do rendimento tributável, como sugeria a sua disciplina quando esses regimes foram criados no ano de 200034, e que estes regimes simplificados são diferentes quanto ao seu acesso, quanto aos requisitos a preencher, quanto aos coeficientes para o apuramento da matéria colectável.
Assim, em sede da opção, enquanto no IRS, conforme o disposto no art. 28º do Código, se presume a opção pelo regime simplificado, tendo de optar-se expressamente pelo regime da contabilidade organizada (opting out), no IRC, segundo o art. 86º-A do Código, tem de se optar expressamente pelo regime simplificado sob pena de se aplicar a tributação com base na contabilidade organizada (opting in). Em conformidade com os preceitos referidos, em matéria de requisitos para a opção pela tributação pelo regime simplificado, no IRS exige-se apenas que os sujeitos passivos, no exercício da sua actividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos de B 200.000 e não tenham optado pelo regime da contabilidade organizada.
Já no IRC, se impõe aos sujeitos passivos que: (a) no período de tributação imediatamente anterior, tenham tido um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a B 200.000; (b) o total do seu balanço relativo ao período de tributação imediatamente anterior não exceda B 500.000; (c) não estejam legalmente obrigados à revisão legal das contas; (d) o respectivo capital social não seja detido em mais de 20%, directa ou indirectamente, por entidades que não preencham alguma das condições previstas nas alíneas anteriores, excepto quando sejam sociedades de capital de risco ou investidores de capital de risco; (e) adoptem o regime de normalização contabilística para micro-entidades aprovado pelo Decreto-lei n. 36-A/2011, de 9 de março; (f) não tenham renunciado à aplicação do regime nos três anos anteriores.
Quanto aos coeficientes base para o apuramento da matéria colectável, constantes do art. 31º do Código do IRS e do art. 86º-B do Código do IRC, respectivamente, embora coincidam em geral, isso não se verifica, de um lado, em relação às vendas de mercadorias e produtos e prestações de serviços efectuadas no âmbito de actividades de restauração e bebidas e de actividades hoteleiras e similares, com excepção daquelas que se desenvolvam no âmbito da actividade de exploração de estabelecimentos de alojamento local na modalidade de moradia ou apartamento, em que o coeficiente em IRS é 0,15 e em IRC de 0,04, e, de outro lado, em relação às prestações de serviços que não integrem as actividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o art. 151º do Código do IRS, em que o coeficiente em IRS é de 0,35, e em IRC de 0,10. Se bem que aquele coeficiente de 0,35 em IRS (assim como o de 75% relativo às actividades profissionais da tabela referida) possa ainda ser maior depois das alterações levadas a cabo pela LOE/2018. Diferenças de tratamento que, importa sublinhar, a nosso ver não são postas em causa pelo facto de, no apuramento no IRS, haver ainda deduções à colecta e não haver lugar a tributações autónomas, que, todavia, subsistem no IRC.
Refira-se, a este respeito, que antes da LOE/2019, que revogou o n. 2 do art. 86.º-A do Código do IRC, havia ainda uma outra diferença entre o regime simplificado em IRS e em IRC. Com efeito, neste estava prevista uma espécie de colecta mínima, embora fosse determinada através da fixação de uma matéria colectável mínima, já que o valor do IRC apurado em sede do regime simplificado resultante da aplicação dos coeficientes que referimos não podia ser inferior a 60% do valor anual da retribuição mensal mínima garantida35.
Neste domínio relativo à adopção de regimes simplificados para as micro e pequenas empresas, interrogamo-nos se não seria de ser mais arrojado introduzir uma espécie de colecta mínima para as micro empresas que substituísse não só o IRS/IRC como também o IVA. Seria uma tributação tipo “imposto de porta aberta” que proporcionasse uma real e significativa simplificação da vida fiscal das referidas empresas. Um imposto que incidiria anualmente sobre o potencial de facturação das empresas, tendo estas, todavia, de definir um valor salarial a ser considerado em sede do imposto sobre salários.
Uma proposta que, deve ser sublinhado, tem sido feita no quadro de uma reforma mais ampla da tributação do rendimento pessoal, para a qual se recomendava uma taxa uniforme, no quadro portanto de uma flat tax36. Muito embora, como dissemos noutro lugar, a adopção deste tipo de tributação, levada a cabo com significativo êxito nos países que antes integravam a União Soviética ou a sua órbita, porque partiram de sistemas fiscais quase inexistentes, não tem condições mínimas de ser adoptada nos países com sistemas fiscais em que a carga e o esforço fiscais têm um patamar que se não compagina com impostos sobre o rendimento com taxas ou alíquotas na ordem dos 20% ou menos37.
IV. Os dois impostos sobre as sociedades: o IRC paralelo
Ainda nesta sede importa fazer referência aos dois impostos que actualmente suportam as sociedades. Dois impostos que suportam as sociedades em acumulação e não em alternativa como é o que acontece com o IRC normal, traduza-se este no regime geral ou em algum dos regimes especiais de tributação38 ou no regime simplificado de que falámos39.
Pois bem, como temos vindo a assinalar, tendo em conta a tributação das sociedades enquanto sujeitas ao referido IRC normal, o que verificamos é que elas se encontram sujeitas simultaneamente a dois impostos, a dois tipos de IRC: um, o verdadeiro IRC; outro, um “IRC paralelo” incidente sobre certas despesas ou activos empresariais, que encontramos em parte no Código do IRC e em parte em diversa e legislação avulsa.
O que, para além de tudo quanto se possa apontar a uma tal prática enquanto factores de erosão e de degradação dos princípios constitucionais do Estado de Direito e do Estado democrático, revela uma total falta de transparência que é particularmente patente no mencionado “IRC paralelo”. Pois que, como escrevemos noutro local, temos a tributação das empresas baseada no IRC que é para apresentar aos investidores, sobretudo internacionais, e assim atrair investimento, no quadro da forte concorrência fiscal que se instalou entre os Estados.
De facto, com esse objectivo de atrair investimento o IRC foi objecto de acentuado desagravamento patente no facto de a sua taxa nominal ter descido significativamente de 36% em 1989 para 21% em 2015. A que se juntam a adopção de toda uma série de outras medidas como o método da isenção em caso de participações qualificadas (participation exemption) na eliminação da dupla tributação jurídica e económica internacional40, e os incentivos ou estímulos fiscais constantes do Código Fiscal do Investimento (CFI) em que temos: os benefícios fiscais contratuais susceptíveis de concessão ao abrigo do disposto nos arts. 2º a 21º que ocupam a maior parte do CFI, o Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), a dedução de lucros retidos e reinvestidos (DLRR) e o Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE). A que acresce o benefício fiscal conhecido por patent box que, todavia, se encontra previsto no art. 50º-A do Código o IRC41. E no mesmo sentido temos a reintrodução e ampliação do regime simplificado de determinação da matéria colectável em IRC42, que, tendo vigorado de 2001 a 2010, havia sido revogado a partir de 2011, bem como o alargamento do reporte para diante de prejuízos que passaram a poder ser reportados nos doze períodos tributários seguintes àquele em que se verificaram, sendo antes reportáveis apenas nos cinco períodos seguintes43.
Por outro lado, se bem que agora num outro plano, também o maior equilíbrio no tratamento dos gastos com o financiamento da actividade das empresas, seja este obtido com o recurso a capitais próprios ou a capitais alheios, traduzido no reforço da neutralidade da consideração fiscal de tais gastos44, oferece um quadro de regulação fiscal às empresas que pode ser visto como minimamente adequado à tributação operada pelo IRC. De facto, as empresas, por um lado, estão sujeitas a um estrito limite de dedutibilidade dos gastos de financiamento baseado no endividamento, como consta do art. 67º do Código do IRC45, e, por outro, beneficiam da chamada “remuneração convencional do capital social” traduzida na dedução de um juro presumido de 7%, nos termos do art. 41º-A do Estatuto dos Benefícios Fiscais46.
Mas, ao lado deste indiscutível desagravamento da tributação do lucro das empresas, vimos assistindo à crescente criação de diversas tributações avulsas incidentes sobre as empresas que, a seu modo, põem em causa a referida evolução. A respeito dessas tributações avulsas, podemos referir, de um lado, as previstas no Códigos do IRC47, como são as tributações autónomas, em crescente ampliação nos últimos anos e as derramas, municipal e estadual, que se reportam ao rendimento empresarial, e, de outro lado, as que constam de legislação avulsa, como a contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o sector energético, a taxa de segurança alimentar e a contribuição sobre a indústria farmacêutica48.
Em direitas contas, podemos dizer que as mencionadas tributações avulsas se distribuem por três círculos concêntricos: o mais pequeno que integra as assim designadas “taxas de tributação autónoma”, que mais não são do que tributações autónomas sobre certas despesas; o círculo intermédio que é composto pelas sobretaxas de IRC, como são a derrama municipal e a derrama estadual; e o círculo maior que é constituído pelas tributações de natureza sectorial referidas. Portanto toda uma tributação das empresas que se vem construindo ao lado e em paralelo com a que inicialmente foi instituída e que o contexto da globalização económica e da acelerada internacionalização das relações jurídico-tributárias forçou a diminuir e a tornar mais atractiva49.
V. A tributação das empresas multinacionais e da economia digital
Importa, ainda, tecer algumas considerações, naturalmente muito sumárias, à tributação das empresas multinacionais e da economia digital, relativamente às quais é importante dizer que pretender continuar a tributá-las pelo lucro é uma missão bastante difícil, quase impossível, nos dias de hoje, muito embora continue a ser este o caminho que se mantém subjacente às soluções multilaterais que vêm sendo desenhadas.
1. A tributação das empresas multinacionais e da economia digital
Pois bem, porque se mantêm inteiramente fiéis ao modelo tradicional de tributação, não vemos como possam ser resposta adequada à tributação das empresas multinacionais e da economia digital as medidas do Plano BEPS do G 20/OCDE e as soluções adiantadas pela União Europeia, tendo estas sido adoptadas em larga medida na sequência daquelas, em que temos a directiva sobre a troca de informações50 e a já referida directiva antielisão fiscal, bem como as propostas, algumas já clássicas, de directivas respeitantes à matéria tributável comum consolidada do imposto de sociedades51, à tributação da economia digital, isto é, das sociedades com uma presença digital significativa52 e ao imposto sobre as transacções financeiras53. Soluções multilaterais a favor das quais se pronuncia a acção 15 do Plano BEPS, com base na qual foi já celebrada a Convenção Multilateral que, subscrita por mais de cem Estados, visa que no prazo de quatro anos se modifiquem as correspondentes convenções fiscais bilaterais no sentido das medidas constante do Plano BEPS.
Embora seja de observar que, em sede das acções deste Plano, se mobilizem para combater a dupla não tributação medidas que, curiosamente, têm por base o Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património da OCDE, cujo objectivo foi e é justamente o combate ao fenómeno oposto, ou seja, ao fenómeno da dupla tributação. O que nos permite a seguinte interrogação: como é que um instrumento pensado e construído para limitar o poder dos Estados face às situações tributárias plurilocalizadas, obstando a que um facto tributário seja tributado duas ou mais vezes, pode ser convertido em instrumento eficaz do combate ao fenómeno oposto, às reais possibilidades de que as empresas multinacionais dispõem de evitar pagar impostos seja em que jurisdição for?
Por isso, interrogamo-nos seriamente sobre se ainda faz sentido tentar tributar as empresas multinacionais bem como as que integram a economia digital segundo um quadro normativo construído tendo por base os Estados nacionais detentores de uma efectiva soberania fiscal, ao lado da qual passa, hoje em dia, toda ou a maior parte da actuação dessas empresas. Um problema para o qual o rendilhado de soluções tão complexo quanto ineficaz, que vem sendo proposto pela OCDE, UE, etc., mais não significa do que uma efectiva falta de resposta para o problema, bem aproveitada, de resto, por essas empresas que assim vêm conseguindo aumentar constantemente os lucros deslocalizados para países ou territórios de baixa ou nula tributação.
Daí que a tributação de tais empresas deva ser perspectivada unicamente a partir de cada um dos países em que actuam, assentando numa ideia de territorialidade e tendo por base elementos de natureza estritamente objectiva, segundo uma fórmula em que conte o volume de vendas realizadas, o capital afecto à produção, o montante de salários pagos e, dentro deste, atribuindo um peso específico às remunerações dos membros dos corpos sociais, uma vez que estas se apresentam como realidades insusceptíveis de ser hospedadas nos exíguos territórios de que dispõe a generalidade dos paraísos fiscais54.
De resto, as soluções adoptadas não estão a impedir que alguns Estados venham aprovando medidas de carácter unilateral e com efeitos extraterritoriais em termos de um efectivo imperialismo fiscal, nos domínios de tributação mais afectada pela globalização económica e internacionalização das relações tributárias, como é o caso da tributação das empresas multinacionais e da economia digital, em que o quadro clássico da tributação assente no lucro das empresas enfrenta as maiores dificuldades, tornando-se em larga medida impraticável ou mesmo impossível. Uma via que, dada a falta de dimensão ou de escala territorial, populacional e de recursos económicos, não está ao alcance da generalidade dos Estados, sendo assim permitida apenas a alguns países, em que o maior e mais eficaz protagonista, como é relativamente fácil de intuir, são os EUA. Algumas palavras a este respeito.
2. As recentes investidas unilaterais e o imperialismo fiscal
Nesta sede tem papel destacado, como não podia deixar de ser, os EUA, que estão longe de, ao longo da sua história, terem seguido uma linha contínua de multilateralismo e total respeito pela soberania fiscal dos outros Estados55. O que tem diversas expressões desde as mais antigas às mais recentes, a que importa aludir.
E uma das mais importantes do ponto de vista do seu significado e alcance, é a que se prende com a ligação da cidadania norte-americana à incidência de impostos que, instituída em meados do século XIX, se mantém actualmente. O que começou com a criação em 1861 do imposto sobre o rendimento para fazer face às despesas com a Guerra da Secessão, que, recorde-se, na sua configuração inicial tinha natureza estritamente territorial, pois reportava-se apenas a rendimentos gerados nos EUA, visando compensar a não participação na defesa da pátria dos americanos residentes no estrangeiro. O que, nessa situação de conflito bélico, explica não só a sua ligação à nacionalidade norteamericana, como também a sujeição a uma tributação superior à incidente sobre os residentes.
Todavia, ainda antes de terminar a Guerra, em 1864, esta tributação passou a ser uma tributação de base mundial, tendo vigorado até 1872 como imposto de carácter extraordinário para financiar a referida Guerra. Natureza que manteve quando em 1913, após a XVI Emenda Constitucional, foi reintroduzida no quadro da instituição do sistema federal de tributação do rendimento56, pois, não obstante ter sido bastante contestada por ser considerada inconstitucional, o Supreme Court, pelo acórdão Cook v. Tait (1924), veio julgá-la não inconstitucional, argumentando com os “inerentes benefícios” que os EUA proporcionariam aos americanos residentes no exterior57. Benefícios difíceis de descortinar à época, já que o benefício que parecia como mais associável à nacionalidade, traduzido no direito de voto dos americanos residentes no exterior apenas foi reconhecido em 1975. Pelo que o inerente benefício descortinável parece que seria apenas o que se concretiza no direito de os norte-americanos regressarem aos EUA.
Ora, parece óbvio que a nacionalidade não pode em si mesma ser constituída em facto tributário, pressuposto de facto ou facto gerador de impostos, nem ser erigido em elemento de conexão decisivo para desencadear o poder tributário de um Estado relativamente a não residentes ou a pessoas que não tenham com ele ligações de natureza económica que consubstanciem alguma das manifestações ou expressões da sua capacidade contributiva58. Uma visão das coisas que não faz qualquer sentido, por ser totalmente inadmissível, porquanto tributar alguém com base na nacionalidade em troca de poder exercer o direito de voto ou o direito de regressar ao país da nacionalidade, é confundir a cidadania política (direito e liberdade de voto) e a cidadania pessoal (direito-liberdade de regressar)59 com a cidadania de natureza económica que apenas pode ter por base vínculos económicos e não qualquer outro tipo de vínculos.
De resto, uma tributação cujo pressuposto e vínculo jurídico-tributário assente numa espécie de contrapartida pelo direito de voto ou pelo direito de poder regressar ao país de que se é nacional, constitui, a nosso ver, uma restrição de todo inaceitável àquelas liberdades fundamentais, porquanto violam a dignidade da pessoa humana na medida em que essas normas convertam esta ou algum dos aspectos da sua personalidade em objecto de relações de natureza patrimonial60.
Deixando de lado outras específicas manifestações do imperialismo fiscal norte-americano61 e reportando-nos apenas às expressões mais recentes do mesmo, são de apontar as medidas unilaterais que os EUA vêm adoptando desde 2010. O tem expressão na aprovação nesse ano pelo Congresso do Foreing Account on Tax Compliance Act (FATCA), uma lei extraterritorial cujo objectivo não é directamente o de tributar rendimentos obtidos no exterior ou o de alargar a base tributável interna desconsiderando gastos com empresas participadas estrangeiras, mas a de uma maior eficiência na gestão da tributação dos rendimentos obtidos pelas empresas nos EUA. Pois o FATCA obriga as instituições financeiras em sentido amplo de todo o mundo, que tenham clientes estadunidenses sujeitos à tributação pelo rendimento mundial, a fornecer e partilhar informação respeitante aos mesmos mediante um mecanismo de troca automática de informações62. Caso assim não façam, ficam essas instituições sujeitas a uma retenção de 30% de todos os rendimentos de fonte norte-americana que satisfaçam a qualquer entidade estrangeira. O que, dada a importância dos clientes dos EUA no mercado financeiro e segurador global, levou os operadores internacionais a cooperarem no sentido de respeitarem as imposições do FATCA, tendo, de resto, esta cooperação passado por muitos países terem concluído acordos com os EUA com o objectivo de reforçar o cumprimento fiscal e implementar o FATCA63.
A que se juntaram, mais recentemente, medidas estritamente fiscais, sejam de tributação, sejam de beneficiação fiscal. Quanto às primeiras, temos as conhecidas pela designação de Global Intangible Low Taxed Income (GILTI) e de Base Erosion and Anti-Abuse Tax (BEAT), ambas dirigidas ao alargamento da base tributável das empresas norte-americanas. Enquanto através do GILTI se consideram obtidos nos EUA, através do estabelecimento de uma espécie de rendimento intangível global mínimo, ganhos associados a bens intangíveis obtidos no estrangeiro por participadas de sociedades norte-americanas, no BEAT desconsideram-se, assim minimizado a perda de receita fiscal, pagamentos feitos a partes relacionadas de empresas afiliadas estrangeiras por parte de sociedades norte-americanas.
No respeitante às segundas, às medidas de beneficiação fiscal, reportam-se elas ao tratamento da repatriação de lucros. Trata-se do Foreign-Derived Intangible Income (FDII), promulgado como parte do Tax Cuts and Job Act (Lei de Corte dos Impostos e Promoção do Emprego), traduzida numa dedução permanente para sociedades norte-americanas que obtenham certos tipos de rendimento no estrangeiro, sendo aplicável nos exercícios iniciados depois de 31 de Dezembro de 2017. Não obstante o nome que ostenta, mais do que uma dedução estamos na verdade face a uma redução do Corporate Tax aplicável aos contribuintes norte-
-americanos que obtenham receitas das vendas ou da prestação de serviços destinados à exportação, a qual se concretiza na redução da taxa ou alíquota para 13,125% nos exercícios até 2025, e para 16,406% nos exercícios seguintes. Uma medida fiscal que, ao contrário das outras referidas que se concretizam na ampliação da base tributável norte-americana, pode entrar em colisão com as obrigações respeitantes ao comércio internacional decorrentes das obrigações da OMC, na medida em que as mesmas possam ser consideradas ajudas públicas64.
Um tipo de medidas que, a seu modo, tem sido adoptado também por outros países a fim de alargarem as bases tributáveis particularmente expostas à erosão fiscal internacional, seja pela consideração de ganhos verificados em empresas participadas sediadas no exterior, seja pela desconsideração de gastos realizados com empresas participadas ou relacionadas estrangeiras. É o que se verificou no Reino Unido que, em 2015, aprovou o Diverted Profits Tax, que é um imposto sobre lucros deslocados para o exterior, que visa contrariar os arranjos pelos quais as empresas estrangeiras exploram as regras do estabelecimento estável e impedir que as mesmas criem vantagens fiscais usando transacções ou entidades que não possuam substância económica. Um imposto que, embora com diverso recorte e nome, também foi adoptado pela Austrália em 2017 e pela França em 2018.
Num tal quadro a Índia criou o Equilization Tax, um imposto que constitui uma espécie de Google Tax indiano. Trata-se de um imposto que deve ser pago à taxa de 6% da contraprestação bruta recebida por não-residentes por serviços especificados fornecidos a residentes na Índia ou a não-residentes que disponham de estabelecimento estável na Índia, embora seja aplicável apenas a transacções Business to Business (B2B), sendo excluídas deste imposto, portanto, as transacções Business to Consumer (B2C)65.
Medidas que, dados os crescentes e preocupantes fenómenos de nacionalismo e populismo que se vêm verificando, é bem provável que, não obstante estarem longe de se tornarem fenómenos dominantes, venham a ocupar parte não despicienda do que devia ser veiculado pelo multilateralismo e, sobretudo, acabem por limitar em muito o desenvolvimento que este vinha tendo no domínio do direito dos impostos, ao qual tem sido endossada a referida luta conta a erosão das bases tributáveis e a deslocalização de resultados. O que, obviamente, não deixa de ser preocupante para a estabilidade e o desenvolvimento das relações económicas internacionais, em que tem assentado o contínuo progresso alcançado principalmente desde meados do século passado, o qual em muito se fica a dever à abertura das economias que tiveram no êxito, primeiro do GAAT e, depois, da OMC, um dos seus mais importantes suporte66.
1* Texto elaborado a partir da nossa participação no Seminário “O mito do lucro real: perspectivas portuguesa e brasileira”, promovido pelo IBDT, Auditório Ruy Barbosa Nogueira da USP, 23 de Abril de 2019.
Dispondo os outros três números desse preceito, que tem por epígrafe “impostos”, como segue: 1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar. 3. A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos; 4. A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo.
2 V. sobre o tema, a tão extensa quanto densa obra de Filipe de Vasconcelos Fernandes, Constituição e lucro real. Contributo ao direito fiscal constitucional português. Lisboa: AAFDUL Editora, 2108.
3 V. a este propósito, José Guilherme Xavier de Basto, O imposto sobre as sociedades e o imposto pessoal de rendimento – separação ou integração? Estudos em homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, número especial do BFDC, 1980. v. IV, p. 390 e ss.; J. J. Teixeira Ribeiro, Lições de finanças públicas. 5. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 322 e ss.; Abel L. Costa Fernandes, A economia das finanças públicas. Coimbra: Almedina, Coimbra, 2010, p. 287 e ss., e, sobretudo, Bert Brys e Christopher Heady, Fundamental reform of corporate income tax in OECD countries. OECD, Centre for Tax Policy and Administration (www.oecd.org/ctp).
4 V. por todos, Paul Sauveplane e Laurent Simula (coord.), Oú vá l’impôt sur les sociétés? Relatório Particular n. 6, um dos relatórios base do Relatório (Geral) do Conseil des Prélèvements Obligatoires, Adapter l’impôt sur les sociétés à une économie ouverte, Dezembro de 2016.
5 V. a este respeito, António Rocha Mendes, IRC e as reorganizações empresariais. Universidade Católica Editora, 2016, p. 37e ss.
6 Proposta integrada no documento de 2016 A better way – our vision for a confident America.
7 Que é uma solução tradicional em Portugal, designada por “remuneração convencional do capital social”, que agora tem natureza permanente e consta do art. 41º-A do Estatuto dos Benefícios Fiscais, e que no Brasil sob a designada de “juros sobre o capital próprio” integra o próprio direito societário – v. a nossa Introdução ao direito fiscal das empresas. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2018., p. 72 e 171 e s.
8 V. neste sentido Guillermo Sánchez-Archidona Hidalgo, La erosón de las bases imponibles societarias. Tese de Doutoramento, apresentada e discutida na Faculdade de Direito da Universidade de Málaga, em 20 de Dezembro de 2018, p. 188 e ss. V. também o Relatório Mirrlees de 2011 – James Mirrlees, Tax by design (versão espanhola Deseño de un sistema tributário óptimo. Editorial Universitária Ramón Areces, 2013).
9 V. o que dizemos na nossa Introdução ao direito fiscal das empresas, cit., p. 199 e ss., bem como o que dizemos infra, ponto V.
10 Falamos em manifestações clássicas ou tradicionais da capacidade contributiva, uma vez que, com base nas ideias de capacitações e disponibilidades desenvolvidas designadamente por Amartya Sen e Martha Nussbaum, há autores como Franco Gallo e José Andrés Rozas Valdés que opinam pelo alargamento da capacidade contributiva a manifestações diversas das clássicas ou tradicionais. Seriam estas novas manifestações as capacitações ou disponibilidades de que as pessoas beneficiam traduzidas no grau de educação, no acesso aos serviços de saúde, na longevidade, na integridade física, na qualidade ambiental, no nível de vida, etc. – v. Franco Gallo, Nuove espressioni di capacità contributiva. Rassegna Tributaria 4/2015, p. 771 e ss., em continuação de textos anteriores, como L’ugualianza tributaria. Editoriale Scientifica, 2012, esp. p. 7 e ss.; e José Andrés Valdés, De la justicia tributaria a la justicia financiera. Revista Empresa y Humanismo v. XV, 2/2012, p. 111 e ss.
11 Embora na perspectiva jurídica, que é a aqui tida em conta, seja de falar preferentemente de direito fiscal e de direito contabilístico, vamos utilizar indistintamente também o par de expressões fiscalidade e contabilidade. Sobre a natureza jurídica desses princípios e reras, v. José Engrácia Antunes, Direito da contabilidade. Uma introdução. Coimbra: Almedina, 2018, p. 23 e ss.
12 Segundo o disposto n. 4 desse art. 3º, são consideradas de natureza comercial, industrial ou agrícola todas as atividades que consistam na realização de operações económicas de caráter empresarial, incluindo as prestações de serviços.
13 Isto para as entidades empresariais, uma vez que o IRC também incide sobre o rendimento das pessoas colectivas que não sejam empresas, isto é, das pessoas colectivas que não exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola com o sentido referido na nota anterior, caso em que serão tributadas pelo rendimento global, correspondente à soma algébrica dos rendimentos das diversas categorias consideradas para efeitos de IRS e, bem assim, dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito, nos termos da alínea b) do n. 1 do mencionado art. 3º.
14 V., por todos, Manuel Henrique de Freitas Pereira, A periodização do lucro tributável. Ciência e técnica fiscal n. 349, Janeiro-Março de 1988, p. 28 e ss., bem como Filipe de Vasconcelos Fernandes, Constituição e lucro real. Contributo ao direito fiscal constitucional português, cit., p. 382 e ss.
15 Contabilidade que deve ser organizada em consonância com as exigências que constam do disposto no n. 3 desse mesmo art. 17º, ou seja: (a) estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código; (b) reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes; (c) estar organizada com recurso a meios informáticos.
16 V. infra, o ponto II.3. Relativamente ao imposto das sociedades incidente sobre o cash flow, conhecido também por Brown tax, por a sua temática ter sido introduzida por este autor em 1948, v., entre outros, James E. Meade (dir.), The struture and reforme of direct taxation. Londres, 1978, p. 230 e ss.; Michael Feldhoff, A tributação do cash flow e respectiva problemática. Fisco n. 23, Setembro 1990, p. 12 e ss.; Parthasarathi Shome e Christian Schutte, Cash flow tax. IMF Staff Papers v. 40, n. 3, Setembro 1993, p. 638 e ss. V. também Terence C. M. Tse, Corporate finance,the basics. Routledge, 2018, p. 29 e ss.
17 V. sobre estas razões Manuel Henrique de Freitas Pereira, A periodização do lucro tributável, ob. cit., p. 57 e ss., que seguimos no essencial.
18 Na expressão conhecida do Chief Justice Jhon Marshall, “the power to tax envolvs the power to destroy”, proferida no caso McCulloch v. Maryland (1819), que está na base do reconhecimento nos EUA das imunidades tributárias recíprocas entre a União e os Estados federados e entre estes, pois o poder de destruição foi inicialmente reportado à repartição do poder tributário entre os seus titulares, tendo apenas mais tarde vindo a ser aplicada aos contribuintes e demais sujeitos tributários passivos.
19 V. Albert Hensel, Verfassugsrechtliche Bindung der Steuergesetzgebers. Besteuerung nach der Leistungsfähigkeit – Gleichheit vor dem Gesetz. Vierteljahresschrift für Steuer- und Finanzrecht 4, 1930, p. 482; e K. M. Hettlage, Die Finanzverfassung im Rahmen der Staatsverfassung. VVDStRL 14 (1956), 1957, p. 5.
20 Que conheceu duas versões: a do POC 1977 e a do POC 1989, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1990 e mais não é do que a revisão daquele decorrente da Directiva n. 78/660/CEE (4ª Directiva), que a nossa adesão, em 1986, à então Comunidade Económica Europeia implicou.
21 O Decreto-lei n. 158/2009, de 13 de Julho.
22 Como consta de diversos pontos do IAS – International Accounting Standard (IAS) – Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) e do IFRS – International Financial Reporting Standards (IFRS) – Normas Internacionais de Relato Financeiro (NIRF).
23 Para atingir este desiderato a IFRS 13 veio estabelecer uma prioridade nas técnicas de mensuração do justo valor, considerando os seguintes níveis: (1) o valor do activo corresponde ao preço de cotação, que é bastante limitado pois restringe-se aos itens cotados em mercado aberto; (2) o relativo aos activos que não se transaccionam em mercado aberto, mas cuja informação que é disponibilizada pelo mercado contribui directamente para o valor do activo, como é o caso da taxa de juro ou do prazo médio de venda das habitações; (3) o baseado em estimativas, que tem natureza supletiva, sendo utilizado quando o mercado não oferece informações fidedignas, sendo a avaliação do item feita de acordo com os dados disponíveis na situação em concreto.
24 Métodos que, segundo o n. 3 desse art. 63º, são: (a) o método do preço comparável de mercado, (b) o método do preço de revenda minorado, (c) o método do custo majorado, (d) o método do fraccionamento do lucro, (e) o método da margem líquida da operação, (f) outro método, quando os métodos anteriores não podem ser aplicados ou não são fiáveis.
25 Que é o valor para efeitos de liquidação do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI). E, de acordo com o disposto no art. 38º do Código do IMI, o VPT dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços, é o resultante desta fórmula matemática: Vt = Vc × A × Ca × Cl × Cq × Cv, em que: Vt – valor patrimonial tributário; Vc – valor base dos prédios edificados; A – área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação; Ca – coeficiente de afectação; Cl – coeficiente de localização; Cq – coeficiente de qualidade e conforto; Cv – coeficiente de vetustez.
26 Que foi objecto alteração pela Lei n. 32/2019, de 3 de Maio, que transpôs a directiva europeia antielisão (Directiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de Julho). Relativamente aos casos em que releva o justo valor, v. José de Campos Amorim, O justo valor e as suas implicações fiscais, em <http://www.aeca1.org/xvencuentroaeca/cd/40a.pdf>.
27 Uma visão das coisas que se compagina com o que se verifica em sede das contas nacionais, em que a União Europeia vem impondo que as próprias contas públicas sejam registadas e apresentadas na óptica da contabilidade nacional. V. sobre o princípio da especialização dos exercícios, Manuel Henrique Freitas Pereira, A periodização do lucro tributável, ob. cit., 78 e ss.; e, tendo em conta a exigência constitucional da tributação das empresas pelo seu rendimento real, Filipe Vasconcelos Fernandes, Constituição e lucro real. Contributo ao direito fiscal constitucional português, cit., p. 382 e ss.
28 Uma ideia que tem outras expressões como a constante do n. 7 do art. 66º do Código do IRC que estabelece a dedução à matéria tributável dos lucros distribuídos ou rendimentos provenientes de entidades não residentes sujeitas a regime fiscal privilegiado no exercício em que tais lucros ou rendimentos são distribuídos ou obtidos, desde que o sujeito passivo prove que tais lucros ou rendimentos já foram imputados para efeitos de determinação do lucro tributável em períodos de tributação anteriores, sem prejuízo de aplicação nesse período de tributação do crédito de imposto por dupla tributação internacional a que houver lugar. Sobre o que dizemos no texto, v. o acórdão do STA de 05.02.2003, Processo n. 01648/02, e Filipe de Vasconcelos Fernandes, Constituição e lucro real. Contributo ao direito fiscal constitucional português, cit., p. 389 e s.
29 Segundo uma analítica que encontramos desenvolvida nos textos pioneiros e verdadeiramente clássicos de Fernando Sainz de Bujanda, Concepto del hecho imponible, e Naturaleza del hecho imponible, em Hacienda y derecho. 1966. v. IV, p. 259 e ss. e 567 e ss., respectivamente.
30 Uma disposição legal que, a nosso ver, não tem por objectivo reabrir a conhecida questão da “interpretação económica” ou da “consideração económica” das normas tributárias, que dispense ou substitua a sua exclusiva “interpretação jurídica”, mas tão só a de sublinhar a importância a reconhecer ao elemento teleológico na interpretação das normas tributárias que se reportam à incidência dos impostos, tendo em conta que o objecto destas normas são realidades económicas que, num Estado fiscal ou de economia de mercado, se impõem ao direito dos impostos. Interpretação económica ou da consideração económica (wirtschaftliche Betrachtungsweise) que teve origem no § 4 do Reichabgabenordnung, de 1919, a qual veio a ser contestada sobretudo em virtude da deturpação de que a mesma foi objecto por parte de alguma doutrina a partir da reforma operada (no quadro da ascensão do Regime Nacional Socialista) pelo § 1º da Steueranpassungsgesetz, de 1934. V., por todos, K. Tipke e J. Lang, Steuerrecht. 22. ed. Köln: Ottoscmitdt, 2015, p. 10, 12 e s., 203 e s., e 210 e ss.; Alberto Xavier, Manual de direito fiscal. Lisboa, 1974, p. 173 e ss.; e, sobretudo, Giuseppe Melis, L’interpretazione nel diritto tributario. CEDAM, 2003, p. 455 e ss.
31 Que dispunha: “[s]ão ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.
32 Constando esta última, por transposição dessa directiva, do n. 1 do art. 73º do Código do IRC.
33 V. quanto a esta à cláusula geral anti-abuso, J. L. Saldanha Sanches, Os limites do planeamento fiscal. Substância e forma no direito fiscal português, comunitário e internacional. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 165 e ss.; Gustavo Lopes Courinha, A cláusula anti-abuso no direito tributário. Contributo para a sua compreensão, reimpressão de 2009, Coimbra; e Marcelo C. Cavali, Cláusulas gerais antielusivas: reflexões acerca da sua conformidade constitucional em Portugal e no Brasil Coimbra: Almedina, 2007. Para o tema em geral, v. António Fernandes de Oliveira, A legitimidade do planeamento fiscal, as cláusulas gerais anti-abuso e os conflitos de interesse. Coimbra: Coimbra Editora, 2009; Marco Aurélio Greco, Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011; Sergio André Rocha, Planejamento tributário na obra de Marco Aurélio Greco. Juruá Editoral, 2019; e Carlos André Soares Nogueira, Planejamentos tributários. Limites e restrições da liberdade nos planejamentos abusivos e agressivos. Juruá Editorial, 2019.
34 Como sugeriam os arts. 87º da LGT, 31º, n. 2, do Código do IRS, e 58º do Código do IRC, que privilegiavam a adopção a prazo de um regime assente nos “indicadores objectivos de base técnico-científica” para os diferentes sectores da actividade económica, que de algum modo pudessem suportar uma verdadeira determinação indirecta do rendimento que se aproximasse do rendimento real. V. a nossa Introdução do direito fiscal das empresas, cit., p. 146 e ss.
35 Que relativamente ao ano de 2018, tendo em conta a retribuição mensal mínima garantida de B 580 e taxa ou alíquota do IRC aplicável ao escalão em causa de 17%, é de B 828,24 = 0,17× [0,60 × (580×14)]. Uma solução que estava ligada ao facto de no IRC haver lugar a um pagamento especial por conta que, todavia, se mantém no IRC não simplificado – v. os arts. 90º, n. 2, alínea d), 93º e 106º do Código do IRC.
36 Uma espécie de “licença” de porta aberta, no que não deixa de fazer lembrar o imposto municipal conhecido por “licença de estabelecimento comercial ou industrial”, um adicional à contribuição industrial previsto no Código Administrativo (arts. 710º a 713º) que, depois de 1964, passou a designar-se por “imposto de comércio e indústria”, adicional que foi extinto pela primeira Lei das Finanças Locais após 25 de Abril de 1974 (Lei n. 1/79, de 2 de Janeiro). V. a proposta referida, em José Dinis Carmo e Abel L. Costa Fernandes, A tributação dos rendimentos empresariais em Portugal. Coimbra: Almedina, 2013, p. 89 e ss.
37 V. o nosso estudo Reforma tributária num Estado fiscal suportável. Por um Estado fiscal suportável – estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2008, p. 67 e ss. (94 e ss.).
38 Como são o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades e o regime de transparência fiscal constante, respectivamente, dos arts. 69º a 71º, e do art. 6º do Código do IRC. Sobre a transparência fiscal, v. Micaela Andreia Monteiro Lopes, A transparência fiscal. Contributo para a compreensão do artigo 6º do CIRC. Vida Económica, 2018.
39 Um fenómeno que, a seu modo, encontramos também no IRS em que temos o IRS normal, sobre os rendimentos do trabalhos e pensões, que corresponde às exigências do disposto no n. 1 do art. 104º da Constituição e o IRS sobre os rendimentos de capital que têm um figurino bem diverso – v. o nosso estudo Que sistema fiscal para a o século XXI? Boletim da Faculdade de Direito v. LCV, 2019, Tomo I.
40 Previsto nos arts. 51º, 91º e 91º-A do Código do IRC.
41 V. o nosso estudo Justiça fiscal, estabilidade financeira e as recentes alterações do sistema fiscal português. Por um Estado fiscal suportável – estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2015. v. IV, p. 242 e ss.
42 Um regime optativo para as micro e pequenas empresas que, em vez de serem tributadas pelo lucro apurado com base na contabilidade organizada, são tributadas com base em coeficientes reportados ao seu volume de vendas ou rendimentos brutos. V. o nosso estudo O regime fiscal das pequenas e médias empresas. As pequenas e médias empresas, Congresso Internacional, IJ/FDUC e AFDL, 2017, p. 287-319; Por um Estado fiscal suportável – estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2018, p. 173-200.
43 Para mais desenvolvimentos, v. a nossa Introdução ao direito fiscal das empresas, cit., p. 146 e ss.
44 Tradicionalmente quase inexistente, porquanto eram considerados como gastos fiscais apenas os gastos com o recurso a capitais alheios, e estes, tirando o limite decorrente da aplicação da regra da subcapitalização, eram tidos em conta na sua totalidade.
45 Que também foi objecto de alteração resultante da transposição da referida directiva europeia antielisão.
46 O que tem tradição no Brasil com os chamados «juros sobre o capital próprio» (que tem um alcance mais geral, pois releva do direito societário), na Bélgica com os “juros nocionais” conhecidos do direito fiscal belga desde 2006, bem como, no quadro mais internacional, com as diversas formas da allowance for corporate equity. V., a este respeito e por todos, Diane Ring, The debt-equity conundrum: U.S. National Report. Cahiers de Droit Fiscal International. IFA, 2012, p. 771-791; Bert Brys e Christhofer Heady, Fundamental reform of corporate income tax in OECD countries. OECD, Centre for Tax Policy and Administration (www. oecd.org/ctp); João José Amaral Tomaz, Terá sido Portugal o primeiro país a implementar a remuneração convencional do capital social. Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal ano V (2011/12), n. 3, p. 59 e ss.; e João Pedro Leal Gomes, O tratamento fiscal dos encargos com o juros enquanto incentivo ao endividamento. Dissertação de Mestrado.Lisboa: ISEG, 2011; a nossa Introdução ao direito fiscal das empresas, cit., p. 71 e s. e 171 e s.
47 Previstas também, embora em menor medida, no IRS para as empresas singulares.
48 Refira-se que, no respeitante às contribuições sectoriais, se anunciam outras, como a “contribuição especial para a conservação dos recursos florestais”, constante da autorização legislativa do art. 314º da Lei do Orçamento do Estado para 2019, e uma taxa de protecção civil nacional para substituir as estabelecidas por alguns municípios, que foram declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional – v. os Ac.s n. 848/2017 e n. 367/2018.
49 Para maiores desenvolvimentos, v. o nosso estudo Justiça fiscal, estabilidade financeira e as recentes alterações do sistema fiscal português. Por um Estado fiscal suportável – estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2015. v. IV, p. 236 e ss.
50 A Directiva do Conselho sobre a Troca de Informações 77/99/CEE, de 19 de Dezembro de 1977, entretanto substituída pela Directiva do Conselho 2011/16/EU, de 15 de Fevereiro de 2011. Directiva esta transposta para o ordenamento português pelo Decreto-lei n. 98/2017, de 24 de Agosto, a qual foi, entretanto, objecto de diversas alterações posteriores todas no sentido de facilitar da troca de informações.
51 Proposta de Directiva do Conselho relativa a uma matéria colectável comum consolidada do imposto sobre as sociedades (MCCCIS)/COM/2011/0121 final.
52 Proposta de Directiva do Conselho que estabelece regras relativas à tributação das sociedades com uma presença digital significativa COM/2018/0147 final – 2018/072 (CNS).
53 V. sobre este José Casalta Nabais e Maria Matilde Lavouras, O imposto sobre as transacções financeiras. Boletim de Ciências Económicas v. LVII, 2014, p. 2.455 e ss.
54 Propondo uma tributação das empresas multinacionais baseada em uma fórmula desse tipo, v. Gabriel Zucman, A riqueza oculta das nações. Círculo de Leitores, 2013, esp. p. 134 e ss., bem como a Proposta da Independent Comossion for the Reform of International Corporate Taxation (ICRICT), subordinada ao título A roadmap to improve rules for taxing multinationals a fairer future for global taxation, cuja versão de Fevereiro de 2018 pode ser consultada em: <https://www.icrict. com/icrict-documents-a-fairer-future-for-global-taxation/>. Refira-se que a reforma fiscal, em termos de reforma de todo o sistema fiscal, está hoje na ordem do dia, como o demonstram, no Reino Unido, o Relatório Mirrlees de 2011 – James Mirrlees, Tax by design (v. na versão espanhola Deseño de un sistema tributário óptimo. Editorial Universitária Ramón Areces, 2013), e, nos EUA, Daniel S. Goldberg, The death of the income tax. A progressive consumption tax and the path to fiscal reform. Oxford University Press, 2013.
55 O que tem paralelismo com o livre-cambismo e o proteccionismo, presentemente muito em foco por causa das controversas medidas proteccionistas adoptadas pela Administração Trump relativamente aos principais parceiros comerciais dos EUA.
56 Pois a tentativa de o reintroduzir, em 1894, esbarrou com a oposição do Supreme Court por já não se estar na situação extraordinária que permitiu o imposto de 1861 e 1864 não ser julgado inconstitucional.
57 V. a este respeito também Philippe Marchessou e Bruno Trescher, Droit fiscal international et Europeén. Bruylant, 2018, p. 24 e ss.
58 Daí que, nos termos da alínea c) do n. 1 do art. 4º do Modelo de Convenção da OCDE, à nacionalidade se possa recorrer apenas como critério de desempate, quando o contribuinte seja residente simultaneamente nos dois Estados contratantes e não se consiga apurar que tem habitação permanente ou permanece habitualmente num deles.
59 Le droit ou la liberté d’aller et venir, na expressão francesa, que na Constituição portuguesa consta do art. 44º com a epígrafe “direito de deslocação e de emigração”, em cujo n. 2 se prescreve: «[a] todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar».
60 V. o nosso livro O dever fundamental de pagar impostos, cit., p. 262 e ss., e o nosso estudo Sobre a educação e cidadania fiscal. Em busca da justiça fiscal, Actas do 3º Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais e Aduaneiros. Porto, 2018, p. 53 e ss. Quanto ao sentido da multifacetada dignidade da pessoa humana, v., por todos, Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Brasileira Federal de 1988. 10. ed. Porto Alegre, 2019; e Aharon Barak, Human dignity: the constitutional value and the Constitution. Cambridge University Press, 2015.
61 Como a concretizada no imperialismo fiscal sobre Porto Rico, que se revelou um colonialismo bem mais eficaz e, eventualmente, mais opressor do que o anterior colonialismo político espanhol. V. a este respeito e por todos, Diane Lourdes Dick, US tax imperialism in Puerto Rico. 65 Am. U. L. Rev. 1, 2015. Disponível em: <http://digitalcommons.law.seattleu.edu/faculty/729>.
62 Sobre o FATCA como manifestação do imperialismo dos EUA, v. Bruce W. Bean e Abbey L. Wright, The US foreign account tax cosmpliance act: american legal imperialismm. ILSA Journal of International & Comparative Law v. 26.2, 2011.
63 V., por exemplo, o Acordo entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América para Reforçar o Cumprimento Fiscal e Implementar o Foreign Account Tax Compliance Act, assinado em Lisboa em 6 de Agosto de 2015 e aprovado pela Resolução da Assembleia da República n. 183/2016, de 5 de Agosto.
64 V. Guillermo Sánchez-Archidona Hidalgo, La erosón de las bases imponibles societarias, cit., p. 317 e ss., e o nosso estudo A erosão das bases tributárias das sociedades. Boletim de Ciências Económicas v. LXI, 2018, p. 291 e ss. (p. 340 e ss.).
65 Refira-se que de imperialismo fiscal dos países desenvolvidos sobre os países em desenvolvimento, se vem falando relativamente ao Modelo de Convenção da OCDE, sobretudo enquanto suporte das acções do Plano BEPS – v., todos, Sergio André Rocha, The oder side of BEPS: “imperial taxation» and «international tax imperialism”, em Sergio André Rocha e Allison Christians, Tax sovereignty in the BEPS Era. Wolters Kluwer, 2017, p. 179 e ss. Sobre outros aspectos da problemática em causa, v., para além dos estudos do referido livro de Sergio André Rocha e Allison Christians, em especial os textos de Allison Christians, BEPS and the power to tax, p. 3 e ss., e de Luís Eduardo Schoueri e Ricardo André Galendi Júnior, Justification and implementation of the international allocation of taxing rights: can we take one thing at a time?, p. 47 e ss. V. também o texto de Diane Ring, Democracy, sovereignty and tax competition: the role of tax sovereignty in shaping tax cooperation. Disponível em: <http://works.bepress.com/diane_ring/1>.
66 V. Guillermo Sánchez-Archidona Hidalgo, La erosón de las bases imponibles societarias, cit. p. 355 e ss.