Artigos de Autores (não Submetidos ao Sistema de Avaliação Double Blind Peer Review)
Notas sobre Litigiosidade Tributária e Compliance Cooperativo no Brasil
Remarks on Tax Litigation and Cooperative Compliance in Brazil
Carlos Otávio Ferreira de Almeida
Professor do Mestrado em Direito Tributário Internacional do Instituto Brasileiro Direito Tributário (IBDT). Professor Coordenador da Pós-graduação Lato Sensu em Direito Tributário da PUC-Campinas. Pesquisador Visitante na Vienna University of Economics and Business (Áustria). Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela USP. Mestre em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Tributário pela University of Florida-Levin (EUA). E-mail: cofalmeida@hotmail.com.
Resumo
Este trabalho analisa a importância da construção de um efetivo ambiente de compliance cooperativo entre fisco e contribuintes para o combate à elevada litigiosidade tributária vigente no Brasil. O sistema de cobrança de créditos tributários é ineficiente e inaceitavelmente moroso, o que estimula novas lides em detrimento da arrecadação oportuna, característica básica da conformidade cooperativa. Além de definir as bases de um sistema cooperativo, será contextualizado o ambiente litigioso fiscal e, ao final, após a identificação de alguns óbices à solvência cooperativa das obrigações tributárias, pretende-se demonstrar a importância do compliance cooperativo como instrumento crucial para redução dos índices de litigiosidade tributária e seus nítidos benefícios à Administração Fazendária e aos contribuintes.
Palavras-chave: conformidade cooperativa, litigiosidade tributária, dívida ativa.
Abstract
This paper analyzes the importance of developing an effective cooperative compliance system to reduce tax litigancy in Brazil. In fact, Brazilian tax collection is inefficient and unacceptably time-consuming, which encourages new litigation instead of timely collection, one of the basic feature of a cooperative tax milieu. At the end, this paper intends to define pillars of a cooperative system and its importance for reducing the litigation between tax administration and taxpayers.
Keywords: cooperative compliance, tax litigation, tax education.
1. O compliance cooperativo
Atualmente, o debate tributário puramente doméstico corre sérios riscos de ineficácia e ineficiência. Tanto os objetivos tornam-se de difícil concretização, quanto várias distorções podem influir nos formuladores de políticas públicas. Imprescindível, portanto, considerar os efeitos da mundialização da economia para acrescer o predicado internacional ao tradicional Direito Tributário.
Historicamente, o Estado buscava atrair residentes, conhecendo, portanto a quem dirigir sua política fiscal. Após o crescimento das inter-relações entre diversas jurisdições, reflexo da globalização, instala-se um ambiente de competição tributária internacional de tal modo inovador, que a mobilidade daquele então residente e a desmaterialização dos legítimos critérios de conexão necessários à pretensão tributária do Estado desafiam a própria arrecadação e, por conseguinte, a eficácia das políticas públicas correspondentes.
No tocante a políticas voltadas à conformidade fiscal (compliance), preocupa-se o Fisco com o monitoramento de grandes contribuintes, posto que respondem por significativa parcela da arrecadação. No corrente ambiente global, portanto, seria imprudente a demasiada confiança do Estado na manutenção da residência do contribuinte, justamente pelo predominante espectro concorrencial instalado no planeta. Medidas determinantes ao cumprimento voluntário das obrigações tributárias estão, hoje em dia, no cerne da discussão tributária para a preservação das receitas e, por conseguinte, para a consecução de finalidades típicas de um Estado Democrático de Direito.
Cresce, destarte, a relevância do compliance fiscal, sobretudo pelas medidas cooperativas para o aumento da confiança na relação entre Administração Tributária e contribuinte. Trata-se de um novo paradigma, crucial para o atingimento de metas de arrecadação do Estado, e para a segurança jurídica e previsibilidade do contribuinte.
A novel relação entre Fisco e contribuinte, de essencialmente conflitiva para prioritariamente cooperativa, tem sua gênese no âmbito da Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento – OCDE, quando o Fórum de Administrações Fiscais (FTA), publicou seu Study into the role of tax intermediaries, em 2008, preconizando a criação do que se definiu por enhanced relationship, i.e., um relacionamento aperfeiçoado pela confiança e pela cooperação a ser desenvolvido pelo Fisco, inicialmente, com grandes contribuintes1.
O relacionamento aperfeiçoado não tardou a ceder lugar ao que o FTA, cinco anos avante, denominou Co-operative Compliance – conformidade fiscal cooperativa –, ideia mais efetiva em dar cumprimento à obrigação tributária principal (pagamento) na quantia correta e no tempo exato, por meio da cooperação entre Fisco e contribuinte2.
A base de um sistema de compliance cooperativo estaria no tripé igualdade – espírito da lei – gerenciamento de litígios3, o que exige modificações na estrutura de atuação da Administração Tributária e do contribuinte. Àquela cabe conferir certeza à sociedade, construindo, na relação direta com o contribuinte, transparência recíproca, entendimento e confiança, o que afasta qualquer espécie de privilégio injustificável a determinada empresa. Ao contribuinte caberia cumprir não apenas a letra, mas o espírito da lei, mormente no que diz com planejamentos tributários agressivos. Interessa a este artigo, mais diretamente, o último dos aspectos de sustentação do compliance cooperativo, uma vez que, no Brasil, o grau de litigiosidade Fisco-contribuinte é demasiado elevado e ineficiente, motivando muitas vezes, e mais especialmente na esfera municipal, a propositura de inúmeras demandas judiciais para a satisfação de créditos tributários de monta inferior aos próprios custos das execuções fiscais para a máquina pública.
A seguir, analisa-se o atual quadro litigioso entre Administração Tributária e contribuintes no Brasil, desde a impugnação administrativa ao lançamento tributário até o deslinde das execuções fiscais, já no âmbito do Judiciário. Antes porém, por oportuno registro, cumpre informar, ainda que sem detalhamento nesta oportunidade, que outros programas de co-operative compliance têm sido bem-sucedidos em diversos países, como África do Sul, Austrália, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, Holanda, Irlanda, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, Rússia e Suécia4, razão não parecendo haver, pois, para que mantenhamos os atuais índices de litigiosidade em face da necessária competitividade internacional tributária, da qual o Brasil não poderá se desvincular sem graves prejuízos a seus jurisdicionados.
2. A disputa administrativa e judicial entre Fisco e contribuinte
O Brasil ocupa a modesta 125ª posição no ranking de ambiente de negócios (doing business) divulgado pelo Banco Mundial, atrás de todas as economias BRICS, Rússia (35ª); Índia (100ª); China (78ª) e África do Sul (82ª) e de concorrentes latino-americanos como México (49ª), Chile (55ª), Peru (58ª) e Colômbia (59ª)5. Variadas são as razões para este medíocre desempenho, inter alia, excesso de burocracia, falta de educação fiscal, noção equivocada do conceito de tributo, pacto federativo trino e elevada litigiosidade presente na relação Fisco-contribuinte. A este estudo, mais diretamente, interessa este último.
A elevada complexidade do ordenamento tributário concorre para o alto número de lides tributárias. Afinal, a edição constante de normas legais e, sobretudo, infralegais por 5.598 entes federados desafia a atuação dos contribuintes e seus consultores, frequentemente ameaçados pelo ambiente de insegurança que disso decorre.
A atuação do Fisco, historicamente, tem sido prioritariamente repressiva, priorizando auditorias sobre fatos praticados há anos pelos contribuintes e lavraturas de autos de infração. Este modelo não se adequa à atualidade, pois a delonga entre a prática da infração pelo contribuinte e a respectiva sanção do Estado enfraquece o enforcement, reduzindo as chances de correção de comportamento do contribuinte. Em contrapartida, a oportunidade de o contribuinte se valer de mera impugnação administrativa para suspender a exigibilidade do crédito tributário sem qualquer ônus é deveras atrativa, especialmente se se considerar o fator temporal, uma vez que a média de solução de processos dessa natureza é de oito anos6.
Eventual decisão desfavorável no âmbito administrativo não significa satisfação do crédito tributário, que poderá, ainda, ser discutido judicialmente por outros vários anos, inclusive chegando ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que o Direito Tributário encontra larga guarida constitucional. Controvérsias tributárias essencialmente constitucionais podem consumir até 20 longos anos desde o início da lide administrativa até o deslinde da questão judicial.
Imaginando-se, todavia, que o Fisco proceda à inscrição em dívida ativa e ingresse, no Judiciário, com ação de execução fiscal, diretamente após a decisão administrativa irreformável, o tempo médio para a solução do caso costuma ser de 16 anos (oito no processo administrativo e mais oito para a execução fiscal).
Tempo tão dilargado para a solução de uma discussão tributária tem consequências graves para as relações jurídicas e econômicas, conduzindo o País ao rumo inverso da competitividade no ambiente global, cada vez mais intolerante à ineficiência. Além de sérios prejuízos à ordem constitucional econômica, fundada na livre iniciativa e na livre concorrência, os danos ao orçamento são evidentes, já que o Estado, em vista de suas próprias normas, somente permite chegar à fase de execução créditos tributários resultantes de infrações longínquas, para cuja satisfação torna-se difícil localizar bens ou mesmo o estabelecimento infrator.
A inaceitável lentidão do Estado estimula, ainda, a atuação do contribuinte de má-fé, reduzindo as chances de êxito na satisfação do crédito tributário, não obstante os custos correspondentes com auditores, procuradores, juízes e respectiva logística. Ora, esses custos já foram considerados pela PGFN na Portaria n. 75/2012, cujo art. 1º, I, veda o ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional que não ultrapassem R$ 20.000,00. Para se ter uma ideia do desrespeito à eficiência, constitucionalmente destacada no art. 37 para informar todos os Poderes de qualquer ente federado, o valor médio de créditos tributários recuperados pela via (crucis) da execução fiscal chega a R$ 7.291,00, segundo dados dispostos no sítio do Conselho Nacional de Justiça7.
Apenas na União, dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional indicam que o montante de créditos inscritos em dívida ativa, em 2017, atingiu R$ 2 trilhões (incluindo o FGTS), o que corresponde a 30 % do PIB brasileiro, aproximadamente. Ocorre que a análise deste dado preocupa ainda mais quando, ao final dos processos de execução, apenas 25,8% são encerrados pelo pagamento e respectiva extinção do crédito tributário.
Os dados referentes a Estados e Municípios tampouco são animadores. As execuções fiscais na justiça estadual representam 37% do estoque de processos, sendo que, apenas no Estado de São Paulo correm 11,65 milhões de execuções fiscais. A taxa de recuperação de créditos pela Fazenda Estadual de São Paulo foi de 0,2% em 20148.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, execuções fiscais na justiça estadual atingem o tempo médio de quase sete anos, representando, naturalmente pelos milhares de entes subnacionais, a maior concentração de execuções fiscais, ou seja, 86% do total, restando à justiça federal os outros 14%9.
A gigantesca litigiosidade fiscal traz ainda outro dano ao funcionamento do Judiciário, uma vez que as execuções fiscais significam 75% do total das execuções pendentes naquele Poder. Disso decorre que as execuções fiscais apresentam taxa média de congestionamento de 91%, ou seja, apenas nove processos de execução fiscal, em cada 100, apresentam algum tipo de resolução no espaço de um ano.
Como se vê, a busca pela satisfação do crédito tributário pela via da execução fiscal é demorada e custosa, em virtude do alto grau de litigiosidade que caracteriza a relação entre a Administração Fazendária e o contribuinte desde a fase de investigação que culmina com o lançamento ex officio até o distante encerramento do processo de execução fiscal. Em síntese, trata-se de modelo de pouca eficácia na recuperação de créditos, que congestiona o Judiciário e desestimula a conformidade voluntária (compliance) fiscal das empresas10.
Fato que a desjudicialização da dívida ativa vem ganhando espaço na tentativa de melhorar os índices de recuperação de créditos tributários, destacando-se estratégias de cobrança diversas como a concessão de benefícios fiscais, o protesto e a inscrição no Cadastro de Inadimplentes da União, que juntos atingiram, no ano de 2017, 61,74% do total recuperado de créditos inscritos em dívida ativa, o que pode representar melhores e mais ágeis resultados de cobrança.
Neste sentido, o estudo desenvolvido por Queiroz e Silva para a Câmara de Deputados analisa métodos de cobrança coativa levados a efeito por Alemanha, Argentina, Chile, EUA, França e México para satisfação de créditos tributários. Curiosamente, observa-se que o menor índice de êxito na recuperação é justamente o brasileiro, único modelo totalmente judicializado. Como solução, o autor propõe a execução fiscal administrativa, inclusive para a busca e expropriação de bens, restando a atuação do Judiciário somente para os casos em que o contribuinte apresentar algum tipo de defesa à execução, o que corresponde a apenas 10,8% dos casos.
Em outro norte, o estímulo à conformidade voluntária, baseada numa relação de segurança e de confiança recíproca entre contribuintes e Fisco, pode levar a resultados bastante positivos na redução da litigiosidade que eleva os custos de transação para ambos os polos da relação obrigacional tributária. O sucesso do compliance cooperativo, no entanto, depende da superação de várias barreiras, analisadas a seguir.
3. Barreiras à efetiva solvência cooperativa no Brasil: aspectos jurídicos e práticos
3.1. Postura do Fisco brasileiro
A relação brasileira entre as Administrações Tributárias federal, estaduais e municipais e os contribuintes tem sido marcada pela desconfiança de ambas as partes. Enquanto o Fisco enxerga apenas sonegadores, os contribuintes identificam autoridades vingativas e oportunistas, sempre dispostas a autuações fiscais.
O Plano Anual da Fiscalização 2018, emitido pela Receita Federal do Brasil, traz importantes informações acerca da modalidade prioritária de atuação daquele órgão, verbis:
“A estimativa para lançamentos de ofício em 2017, de R$ 143,43 bilhões, como constava no Plano Anual da Fiscalização da Receita Federal, foi superada de forma expressiva: o montante de crédito tributário alcançou o valor de R$ 204,99 bilhões. Isso representa um montante 68,5% maior do que o valor lançado em 2016 (R$ 121,66 bilhões).” (Destacamos)
Naturalmente que se deve aplaudir a eficiência do Fisco em vista do aumento de arrecadação, mas a questão que se propõe é se esses lançamentos de ofício motivam o contribuinte, para os exercícios futuros, ao cumprimento voluntário das obrigações tributárias.
A contar da década de 1980, os sistemas tributários, nos países da OCDE, tornaram-se mais amigáveis aos negócios. Cortes até pela metade nas alíquotas do Imposto de Renda Pessoa Física; eliminação ou redução da tributação sobre ganhos de capital e dos impostos sobre heranças; redução do Imposto sobre Grandes Fortunas; e conversão do sistema universal de tributação para o territorial foram usuais desde então. Como os contribuintes, em geral, responderam a tais mudanças? Acaso aumentaram a conformidade voluntária ou se tornaram mais avessos aos riscos de um planejamento tributário agressivo?
A resposta é negativa. Com o ambiente global digital, Administrações Fazendárias têm se deparado com esquemas crescentemente complexos e criativos, especialmente executados por grupos multinacionais (MNEs) e indivíduos de elevada renda (HNWIs).
Conclui-se, portanto, que a lógica infração-auto não tem convertido a postura do contribuinte, que parece desmotivado do cumprimento voluntário, cooperativo, com base apenas na resposta dada pelo Fisco através de lançamentos ex officio.
Ao Fisco, segundo estudos vigentes na ordem internacional, capitaneados pela OCDE, melhor proveito para motivar a modificação da conduta do contribuinte resultariam de:
i) maior entendimento decorrente de consciência comercial, em que autoridades fiscais seriam treinadas para a percepção da realidade comercial/negocial do contribuinte;
ii) imparcialidade na edição de normas e medidas, de modo a não legislar em causa própria;
iii) abertura e responsividade, que demonstram transparência e vontade colaborativa do Estado, antecipadamente, de modo a esclarecer eventuais duvidas e reduzir custos desnecessários ao contribuinte.
A conquista da confiança do contribuinte não virá, portanto, da postura prioritariamente repressiva do Fisco, mas de atitudes proativas, prestadas previamente a fatos geradores ou entrega de declarações e que sejam capazes de influenciar as decisões futuras no sentido de estimular o contribuinte a um comportamento de conformidade.
3.2. Postura do contribuinte brasileiro
A Lei de causa e efeito é uma realidade da natureza. Em face do disposto no tópico precedente, o contribuinte reage de modo pouco colaborativo, mantendo-se temeroso do contato com o Fisco mesmo quando possui algum direito subjetivo. Nesta esteira, muito difícil promover as boas práticas de um efetivo compliance cooperativo entre Fisco e contribuinte, aguardando que o último voluntariamente revele informações que lhe possam trazer algum risco fiscal (voluntary disclosure).
A grande barreira, portanto, pelo viés do contribuinte, é a desconfiança.
A elevada litigiosidade tributária vigente no Brasil pode ser efetivamente reduzida através do novo paradigma de cooperação entre Fisco e contribuinte. Em contrapartida, enquanto os lançamentos ex officio forem a tônica da ação fiscal, o entulhamento dos tribunais administrativos e judiciais será a natural resposta do particular.
A conduta amigável e o aconselhamento tempestivo por parte do Fisco precisam ser postos de modo transparente, convocando os contribuintes para entenderem esta mudança no curso das ações fiscais. De repressivas, precisam se tornar eminentemente preventivas, o que o contribuinte assimilará, facilmente, ao perceber a redução com desnecessários gastos de conformidade e controvérsias.
O cooperative compliance deriva das primeiras ações do Forum on Tax Administration quando publicou seu Study into the role of tax intermediaries (2008), preconizando a criação do que se consagrou por enhanced relationship, um relacionamento aperfeiçoado pela confiança e pela cooperação a ser desenvolvido pelo Fisco inicialmente com grandes contribuintes.
O papel desses grandes contribuintes é determinante para a elevada litigiosidade tributária brasileira. O Relatório PGFN em números – 2018 mostra que R$ 1,3 bilhão dos créditos inscritos em dívida ativa, ou 60,56% do total, são devidos por apenas 29.551 contribuintes, o que corresponde a 0,65% da quantidade de devedores detalhados.
Contribuintes de maior capacidade contributiva apresentam maiores possibilidades de executar complexos planejamentos tributários com vistas a reduzir o tributo a pagar. Do mesmo modo, são esses os contribuintes com acesso a melhores serviços de assessoria contábil e jurídica para enfrentarem longos processos administrativos e judiciais, já que o mero fato de adiar o pagamento do crédito tributário pode ser, financeiramente, favorável. Por sua vez, a Receita Federal do Brasil sabe da importância de monitorar os grandes contribuintes, o que tem sido prática reiterada de Administrações Fiscais em vários países. A este respeito, assim dispõe o Plano anual da fiscalização 2018 – RFB, item 8.111:
“Fiscalização dos grandes contribuintes é a principal prioridade da Receita Federal – Resultado de uma atuação focada em recuperar os créditos tributários de maior relevância, de um consistente processo de capacitação e do desenvolvimento de ferramentas tecnológicas, os resultados a partir de 2010 demonstram uma participação relevante da atuação da Fiscalização da Receita Federal no segmento dos grandes contribuintes. Embora os 8.885 maiores contribuintes tenham respondido, em 2017, por 61% da arrecadação, os resultados obtidos pela Fiscalização da Receita Federal nesse grupo representaram 79,36% das autuações, demonstrando de forma transparente o foco no combate às infrações tributárias de maior relevância.” (Destacamos)
O relatório comprova que grandes contribuintes não apenas respondem pela maior fatia da arrecadação, mas sobretudo, praticam infrações tributárias de maior relevância cujo combate atingiu quase 80% do total de autuações naquele período. E qual o próximo passo, senão o início de diversos novos processos administrativos e judiciais pelos próximos 15 ou 20 anos?
Crucial, assim, que a Administração Fazendária altere o paradigma de atuação, pois nada na sistemática adversarial parece motivar esses grandes contribuintes a modificarem suas práticas. Em suma, o litígio vale a pena em caso de detecção de eventual infração, desprezando-se o fato de que outras infrações podem estar de tal forma acobertadas que restem insuscetíveis de detecção pelo Fisco até o prazo decadencial.
Alvíssaras no horizonte parecem surgir com a Lei Complementar n. 1.320/2018 do Estado de São Paulo, que implantou o primeiro amplo programa de cooperative compliance em nosso País, conhecido como “Nos Conformes”.
O programa bandeirante implanta modificação crucial na postura do Fisco para obter a correlata alteração das práticas dos contribuintes. Preocupado em desenvolver um ambiente de confiança recíproca entre os contribuintes e a Administração Tributária, inspira-se nos seguintes princípios:
I. simplificação do sistema tributário estadual;
II. boa-fé e previsibilidade de condutas;
III. segurança jurídica pela objetividade e coerência na aplicação da legislação tributária;
IV. publicidade e transparência na divulgação de dados e informações;
V. concorrência leal entre os agentes econômicos.
O Programa “Nos Conformes” classifica os contribuintes em faixas diversas, entre A+ e E, além dos não classificados (NC), conforme os seguintes critérios: (i) obrigações pecuniárias tributárias vencidas e não pagas relativas ao ICMS; (ii) aderência entre escrituração ou declaração e os documentos fiscais emitidos ou recebidos pelo contribuinte; e (iii) perfil dos fornecedores do contribuinte, conforme enquadramento nas mesmas categorias e pelos mesmos critérios de classificação previstos nesta lei complementar.
Desta feita, os contribuintes paulistas são estimulados à autorregularização, sem a já criticada postura repressiva tradicionalmente adotada pelo Fisco. Inova, sadiamente, a lei paulista, ao inserir o Estado de São Paulo nas melhores práticas internacionais no tocante à criação de um amplo ambiente cooperativo entre Fisco e contribuintes. Prova disso está nos arts. 14 e 15 da LC n. 1.320/2018, em que o Fisco passa a atuar por meio de Análise Informatizada de Dados – AID, consistente no cruzamento eletrônico de informações fiscais realizado pela Administração Tributária e de Análise Fiscal Prévia – AFP, consistente na realização de trabalhos analíticos ou de campo por Agente Fiscal de Rendas, sem objetivo de lavratura de auto de infração e imposição de multa.
Uma análise dos efeitos do Programa “Nos Conformes” quanto ao grau de litigiosidade nos tribunais paulistas ainda não é possível em face da implantação da nova lei e seus primeiros procedimentos estarem em curso. Acredita-se, contudo, que impacte favoravelmente na redução da litigiosidade tributária de modo bastante efetivo, o que se faz oportuno e necessário.
3.3. Educação fiscal de cidadãos e agentes públicos
A despeito do conceito contemporâneo de tributo estar estreitamente ligado às metas de desenvolvimento do País, servindo de instrumento básico para a consecução das normas programáticas definidas na Constituição Federal, sobretudo a dignidade humana, não parece haver acompanhamento das receitas tributárias após o ingresso nos cofres públicos, quando então, assumem caráter financeiro nas fases de gestão e posteriormente, gasto público.
A etapa da atuação fiscal termina com a entrega dos recursos ao Estado, mas esta mesma cédula avança para se submeter a decisões do gestor público até que se concretiza em alguma previsão de gasto na lei orçamentária, até seu efetivo dispêndio.
O imenso esforço arrecadatório do Fisco pode desaguar, por exemplo, na insuficiência de recursos para fazer frente aos gastos definidos pela equipe econômica do gestor-chefe (federal, estadual ou municipal).
A frustração causada aos contribuintes que não identificam a devida contraprestação na qualidade e cobertura de serviços públicos em face dos tributos que suportam, leva, igualmente, à desconfiança e, por conseguinte, à fuga do crédito tributário antes de seu lançamento ou em fase posterior, através das impugnações administrativas e judiciais. Esta é também uma barreira à efetiva solvência cooperativa que impacta o crescimento dos índices de litigiosidade tributária.
A mudança desse paradigma abrange a necessária educação fiscal do cidadão e dos agentes públicos. Afinal, evocar princípios sonoros como a solidariedade fiscal tem sido prática abrangente apenas da classe de contribuintes. De nossa vista, a solidariedade ultrapassa o direito tributário e avança serena sobre o direito financeiro, exigindo do gestor público que se solidarize, igualmente, com os pagadores para efetiva construção de uma sociedade em que se erradique a miséria, a pobreza e a ignorância.
A imposição da solidariedade pelo legislador pode restar inócua, já que solidariedade não deriva de normas impositivas, mas de cultura, exigindo construção social gradativa e real12.
Entende-se, assim, que a educação fiscal para agentes do Estado e para cidadãos incentiva a conformidade voluntária, cooperativa, fruto da relação de segurança e de confiança recíproca entre contribuintes e Fisco. Se ambos são sabedores do significado do tributo para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, torna-se viável a redução da litigiosidade tributária que eleva os custos de transação para ambos os polos da relação obrigacional tributária, estabelecendo-se, assim, um círculo virtuoso.
4. Considerações finais
O êxito de um programa de cooperative compliance requer do Fisco motivação e vontade suficientemente grandes para promover profunda modificação comportamental em seus agentes; e do contribuinte, a implantação de estruturas de controle interno capazes de fomentar governança corporativa sob valores éticos e abertos à sociedade e ao Estado. Por esta via, as empresas poderão atingir maiores graus de conformidade fiscal, estimulados, ainda, pelo avanço da confiança nas relações com o próprio Fisco.
Mas, se mudanças costumam trazer inquietude, inegável que o desenvolvimento de um ambiente de cooperação deve trazer recompensas a ambas as partes.
De um lado, o contribuinte reduz insegurança em vista do ganho em certeza e clareza por meio de um serviço coordenado em conjunto com a Administração Tributária; do prévio conhecimento dos custos de conformidade nos diversos órgãos fazendários e da respectiva chance de reduzi-los; da percepção comercial/negocial a ser desenvolvida no âmbito das atividades da fiscalização; da simplificação dos sistemas de decisões no âmbito do processo administrativo-fiscal; da tempestiva resposta da Administração a consultas e devolução de recursos e créditos.
O Fisco, por sua vez, tem maior previsibilidade e segurança na arrecadação, em razão do ganho em transparência com a divulgação voluntária de informações; do maior respeito ao espírito da lei por parte das empresas; do diálogo aberto e transparente com o setor privado; da cooperação na avaliação dos riscos fiscais; da assistência para entender negócios e práticas comerciais, além da melhoria no uso dos sistemas de gerenciamento de riscos fiscais.
O conceito de compliance cooperativo não reside numa relação de parcialidade que faculte tratamento mais benéfico a determinada empresa. Ao inverso, o objetivo desta mudança de paradigma é conclamar Fisco e contribuinte à cooperação mútua, exatamente para garantir o pagamento do tributo devido de modo correto e no tempo exato.
Ora, justamente ações coordenadas e planejadas pela Administração Tributária que ocorram preventivamente, mais próximas ao momento do fato gerador e não anos depois em auditorias que dissipam a lógica pedagógica da sanção pelo imenso transcurso do tempo, ainda ampliado pelos julgamentos administrativo e judicial, devem reduzir, drasticamente, a quantidade de lides tributárias. O pagamento tempestivo no valor correto, apurado pelo cumprimento voluntário das obrigações acessórias corretamente apuradas e satisfeitas, dispensa integralmente a impugnação administrativa ou judicial por parte do contribuinte solvente.
Trilhões de reais em créditos fiscais federais, estaduais e municipais a recuperar e os correspondentes altos custos administrativos com pessoal e material para cobrança oneram toda a sociedade. Ineficiência no processo de recuperação de créditos, insegurança jurídica, aumento da litigiosidade e outros fatores correlatos concorrem para a perda de competitividade brasileira num ambiente de concorrência tributária internacional e de alta sofisticação digital.
Imperioso reduzir o número de processos e os valores litigados entre Fisco e contribuinte. A cooperação na conformidade, além de uma relação mais saudável, contribui para a extinção oportuna do credito tributário, o que, de per si, já afasta as impugnações administrativas e judiciais. O Estado recebe antes e sem custos. O contribuinte paga menos, já que não sofre multas, e dentro de suas previsões.
O Estado de São Paulo lançou o exemplo através do Programa “Nos Conformes”, resta agora a ampliação e a efetiva aplicação do disposto no texto da Lei Complementar n. 1320/2018, pois como alhures esclarecido, índices de solidariedade ou cooperação não melhoram sob o império de normas prescritivas, mas por identificação cultural, elo fundamental para a caracterização do que se pode definir por Nação.
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4 OECD (2013). Co-operative compliance: a framework: from enhanced relationship to co-operative compliance. OECD Publishing, p. 21.
5 THE WORLD BANK. Doing business 2018 – reforming to create jobs. Disponível em: <http://espanol.doingbusiness.org/~/media/WBG/DoingBusiness/Documents/Annual-Reports/English/DB2018-Full-Report.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2018, p. 4.
6 SILVA, Jules Michelet Pereira Queiroz e. Execução fiscal: eficiência e experiência comparada. Câmara dos Deputados Estudo técnico julho/2016. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/a-camara/documentos-e-pesquisa/estudos-e-notas-tecnicas/areas-da-conle/tema20/2016_12023_execucao-fiscal-eficiencia-e-experiencia-comparada_jules-michelet>. Acesso em: 24 ago. 2018, p. 7.
7 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85452-o-governo-recupera-r-7-300-por-execucao-fiscal-concluida-na-justica>.
8 SILVA, Jules Michelet Pereira Queiroz e. Execução fiscal: eficiência e experiência comparada. Câmara dos Deputados Estudo técnico julho/2016, p. 8.
9 BRASIL: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2017: ano-base 2016, p. 113.
10 SILVA, Jules Michelet Pereira Queiroz e. Execução fiscal: eficiência e experiência comparada. Câmara dos Deputados Estudo técnico julho/2016, p. 9.
11 BRASIL: RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Plano anual da fiscalização 2018. Disponível em: <http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/2018_02_14-plano-anual-de-fiscalizacao-2018-versao-publicacao_c.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2018.
12 ROCHA, Sergio André. Reconstruindo a confiança na relação Fisco-contribuinte. In: ZILVETI, F. A. (ed.). Revista Direito Tributário Atual v. 39. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 2018, p. 501.