Consequencialismo e Argumento de Risco Fiscal na Modulação de Efeitos em Matéria Tributária

Consequentialism and Fiscal Risk Argumentation on the Judicial Modulation of Tax Effects in Time

José Maria Arruda de Andrade

Professor da Faculdade de Direito da USP (FDUSP). Livre-docente e Doutor pela FDUSP. Advogado. Foi Pesquisador Visitante no Max Planck Institute for Innovation and Competition (Munique-Alemanha). Foi Secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda (SPE/MF). E-mail: jmandrade@gsga.com.br.

Resumo

O presente texto trata do uso de argumentos consequencialistas de natureza fiscal (risco fiscal) para evitar a aplicação de um entendimento já firmado por um tribunal na respectiva demanda tributária de repercussão geral de forma a se obter a modulação de seus efeitos e evitar impacto nas contas públicas. Serão abordados o uso de argumentos fiscais, o atendimento dos dispositivos legais atinentes à modulação e se a responsabilidade pela derrota fiscal pode ser direcionada ao Poder Judiciário sem um juízo crítico acerca da falta de gestão estratégica do risco fiscal previsto no Anexo V da Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Palavras-chave: consequencialismo, modulação de efeitos, risco fiscal.

Abstract

This text is about the use of consequentialist arguments of fiscal nature (fiscal risk) in order to avoid the application of an understanding already set by the courts on the correspondent tax demand of general repercussion in a way to obtain the modulation of its effects and to avoid impact on the public finances. The intention is to address the use of fiscal arguments, the observance of the legal statutes related to the modulation and also whether the responsibility for the fiscal defeat can be taken to the judicial courts without a critical judgment about the absence of strategical management on the fiscal risk provided by Annex V of the Budget Guidelines Law.

Keywords: consequentialism, modulation of effects, fiscal risk.

Introdução

Quando se trata de discutir as formas, limites e possibilidades da interpretação e aplicação do direito vigente, não raras são as defesas (metodológicas) da necessidade de se valorizar técnicas ou argumentos que busquem não somente a decisão acerca do campo de aplicação de determinada norma, mas a conveniência de se considerar avaliações sobre as respectivas consequências de sua aplicação.

No limite, tal expediente poderá confrontar, no plano argumentativo, uma determinada interpretação acerca da aplicação de uma lei e a necessidade de deixá-la de aplicar com base em juízos acerca das consequências desta aplicação, que passa a ser evitada.

As formas como a defesa do consequencialismo pode aparecer são variadas e, muitas vezes, têm sua explicitação mitigada.

Por delimitação do tema aqui estudado, abordaremos uma forma de juízo consequencialista no controle de constitucionalidade ou legalidade de normas que instituem ou majoram tributos ou de decisões que formam um determinado entendimento acerca da obrigação tributária que contraria a interpretação fazendária.

Trata-se da defesa de argumentos de risco fiscal para afastar a aplicação integral de determinada decisão jurídica que reconhece a nulidade de uma norma tributária (ou de um entendimento mais extensivo da Fazenda) por meio da limitação de seus efeitos no tempo, valendo-se, para tanto, da modulação de seus efeitos – em favor de se evitar o risco fiscal de derrotas judiciais bilionárias.

Em outros termos, analisamos o argumento de que uma derrota do governo em matéria tributária, por acarretar perda bilionária, não deve ser proferida ou deve produzir efeitos somente a partir do futuro.

O consequencialismo jurídico, na forma como será aqui tratado, acaba por se valer de juízos de conta de chegada, pois, toda a vez que a aplicação de uma norma jurídica posta parece contrariar os interesses de natureza fiscal (e poderia ser moral, setorial, profissional ou ideológica, por exemplo), surge a defesa de que se deve evitar a aplicação de um determinado entendimento acerca da aplicação do direito posto em favor de argumentos extrajurídicos (risco fiscal).

Por necessidade de redução de escopo, não levaremos em conta, aqui, a influência de argumentos extrajurídicos sobre a formação de um determinado atendimento acerca da interpretação e aplicação da lei, mas somente de sua não aplicação – após definido um entendimento acerca de seus termos – por razões estranhas à regra jurídica positivada (os tais juízos consequencialistas).

Pois bem, o tema que pretendemos tratar pode ser resumido nas seguintes questões:

1) O risco fiscal por conta de uma perda bilionária do governo central seria fundamento jurídico suficiente para que o Supremo Tribunal Federal (STF) aplicasse uma modulação dos efeitos de sua decisão já construída? Pense-se no caso da exclusão do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) da base de cálculo do PIS (Contribuição ao Programa de Integração Social) e da COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social).

2) Haveria legitimidade dessa alegação (modulação em virtude de risco fiscal) por parte das Procuradorias da Fazenda, que o atribui (risco) à consequência da decisão da maioria dos Ministros e não à própria gestão desse risco por parte dos governos que representam judicialmente (governo central)?

Para enfrentar o tema, apresentaremos algumas explanações sobre a defesa de um positivismo jurídico não inclusivo, a desautorizar as incursões em argumentos não jurídico-positivados, e nossa crítica ao consequencialismo.

Por fim, trataremos da inconsistência dos argumentos consequencialista que se valem do risco fiscal para mitigar a aplicação da jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal.

1. Positivismo jurídico contemporâneo

Com essa expressão, positivismo jurídico contemporâneo, queremos, de início, evitar a falsa impressão de que defender modelos positivistas acarreta defender uma metodologia estilizada do século XIX, que prega a separação total dos saberes, a interpretação e aplicação mecanicista das normas jurídicas, enfim, a assepsia generalizada e a ausência de valores das normas do direito.

O complemento contemporâneo cumpre apenas essa função didática de ressaltar que existem um debate metodológico sério na academia e uma contestação embasada aos construtos que pregam o retorno ao moralismo, a proeminência do Poder Judiciário na construção do Estado de Direito, a ênfase aos aspectos programáticos da constituição, à ponderação dos princípios, ao uso argumentativo exagerado na proporcionalidade e da razoabilidade – tudo isso a partir de importações de teorias surgidas em contextos históricos, sociais, constitucionais e ideológicos muito distintos.

As influências externas (como economia, política, moral) sobre o direito (no processo de interpretação e aplicação das normas) são sempre possíveis e até prováveis. Contudo, não as analisaremos a partir da perspectiva objetiva da formação da legislação e nem da perspectiva subjetiva da interpretação dessa legislação.

Priorizamos a abordagem a partir dos argumentos utilizados nas decisões para justificar o entendimento firmado no processo de interpretação e aplicação.

Nosso trabalho está inserido no contexto de autores situados em um positivismo jurídico que aceita o direito como produto cultural e social, que reconhece as influências de toda a sorte no processo de concretização, mas que entende as decisões jurídicas, porque devem ser fundamentadas (com base no Estado de Direito, na Constituição Federal e na legislação vigente), o devem ser por argumentos e fundamentos jurídicos (teste do pedigree)1 e discorda da eleição prévia de valores a serem ponderados ou obedecidos2 ou de argumentos extrajurídicos a barrarem a aplicação de uma jurisprudência sem a devida autorização legal bem-posta.

Acreditamos que exista um risco metodológico de se defender boas intenções por meio de flexibilizações de fundamentação legal3. Não à toa, Stephen Toulmin, ao tratar de exageros argumentativos, recorda-se dos utilitaristas (que estão na base do discurso da maximização de riqueza):

“Parece que aconteceu com os utilitaristas algo deste tipo – convenceram-se de tal modo, e tão decididamente interessaram-se por questões de legislação e ação social, que passaram a acreditar que só havia um problema de avaliação, para todos os tipos de coisas; em todos os casos, para avaliar, bastava determinar as consequências associadas – ou a esperar – de qualquer tipo de coisa, em qualquer caso.”4

Dessa forma, se cada movimento consequencialista ou positivista inclusivo buscar a eleição de seu credo favorito – ou de seu direito favorito –, teremos abalo à segurança jurídica e ao Estado de Direito em seus elementos mais básicos (separação dos poderes e legalidade). Se cada teórico do direito eleger o seu autor predileto como norte magnético a impor aos aplicadores do direito suas conclusões, pouco sobrará das garantias do estado democrático de direito.

A referência à democracia é importante, pois esses projetos nunca são democráticos, e justamente por isso não são positivados. Eles dependem de convencimento doutrinário e de um juiz engajado. Daí a problemática do ativismo judicial. A retórica acadêmica buscará seduzir em busca de adeptos. O respeito ao direito positivo, por sua vez, em recursos típicos de construção de espantalhos, corresponderá à frieza metodológica que em um passado reescrito, teria conduzido a regimes totalitários5.

2. Decisão e argumentação jurídicas

Um dos pontos de partida de nosso texto é que o processo de interpretação e aplicação do direito está oculto à investigação de suas razões.

Interpretação e aplicação de textos normativos são o mesmo processo (quando se analisa a partir da perspectiva do processo envolvido na construção de uma norma decisão por parte da autoridade competente) e representam uma atividade de construção de sentido, que não parte do nada, possui parâmetros de comparação e segue algumas tantas regras, como a necessidade de fundamentação (a teoria da argumentação estudará isso) e a necessidade de se seguir regras procedimentais previamente estipuladas (direito constitucional e processual).

Não se deve olvidar, contudo, que a formação de consensos e constâncias semânticos está menos ligada a acessos precisos e compartilhados de conteúdos de mensagens e mais ligada a questões de nossa formação cultural e biológica e à existência de expedientes processuais como embargos de declaração, recursos especial e extraordinário (além de recursos repetitivos e da repercussão geral), que aperfeiçoam, aumentam a discutibilidade e, depois, forçam um trânsito em julgado.

Muitas vezes, a consolidação de uma determinada interpretação do Supremo Tribunal Federal, após encerrar uma discussão de muitos anos, é estabelecida por uma maioria simples e serão as regras processuais do sistema jurídico que permitirão a uniformização (mais do que a referência semântica, cuja disputa dera margem a uma interpretação problemática por maioria simples)6.

Por sorte, contra os arroubos das novas teorias e modas, pode-se contar, muitas vezes, com as regras processuais e certa tradição institucional.

3. Armadilhas e perigos do consequencialismo jurídico e o difícil debate em torno da teleologia jurídica

Há de se apartar a argumentação com base na teleologia das normas jurídicas, de um lado, do consequencialismo jurídico ou até mesmo do ativismo judicial, de outro.

A teleologia, após a definição dos tradicionais elementos da hermenêutica jurídica a partir de Savigny, foi incorporada a esses elementos, em decorrência, também, do prestígio teórico e dogmático da jurisprudência dos interesses7.

Pode-se afirmar ser questionável alegar a hierarquia entre os elementos da hermenêutica, algo que não fora defendido sequer por Savigny. Nos dizeres de Winfried Hassemer e Eros Grau, não existe uma metarregra que oriente a aplicação, no sentido de estabelecer para todos os casos práticos qual deve ser o critério hermenêutico a predominar em caso de conflito ou dúvida8.

Além desse ponto, o próprio aspecto teleológico começa a ser revisto, já que se trata de um dos mais difíceis de se utilizar com rigor, em virtude de sempre ser possível alegar uma razão do texto normativo, como lembrado por Tercio Ferraz Jr.9, que cita, ainda, o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro10.

Nessa releitura, pode-se até afirmar que o aspecto teleológico estaria presente nos demais aspectos da hermenêutica jurídica, seja nas considerações gramaticais, seja nas históricas e sistemáticas.

Esse tipo de leitura é útil para se analisar as constituições nacionais como a do Brasil, repleta de dispositivos que, ao lado daqueles extremamente analíticos, prescrevem normas do tipo que estabelecem objetivos.

Esse tipo de argumentação não deve ser confundido com a perspectiva consequencialista, que seria propor um objetivo à frente e acima dos demais. Isso porque, em primeiro lugar, muitos dos consequencialismos hodiernos têm como metarregra algo não positivado (é o caso do law and economics clássico, ao defender a eficiência econômica como critério válido e necessário). Da mesma forma os moralismos universais e procedimentais, que buscam reforços em discursos ou sobre princípios gerais (algo como a proporcionalidade em um de seus testes, o de adequação entre fins e meios etc.).

No caso da pesquisa teleológica, ao menos naquela aqui defendida, há apreço pelo texto positivado (ainda que se procure o afastamento de perspectivas essencialistas, de que o conteúdo já estaria contido nos textos) e respeito ao aspecto sistemático dos textos de normas jurídicas. Uma teoria eleita como predileta não deve substituir o texto posto das normas jurídicas, ainda que a sua concretização demande sempre decisões constitutivas de sentido.

Daí a conclusão de que se deve evitar o consequencialismo, mormente com base em ideologias e construtos teóricos sem respaldo e sem a adoção em textos do ordenamento jurídico. Se qualquer finalidade ou decisão for boa o suficiente, que o processo democrático reconheça tal fato e que o positive, por meio do processo legislativo.

4. Risco fiscal e terrorismo argumentativo

Uma das possíveis e questionáveis formas de se utilizar do consequencialismo em matéria tributária é a sua defesa toda vez que o Supremo Tribunal Federal fixa uma tese (construção de norma) em sentido contrário aos interesses da Fazenda.

De forma recorrente, a Procuradoria, em seu papel normal de advocacia de interesses (Ministério da Fazenda ou Secretarias de Fazenda) e não de justiça imparcial, recorre a argumentos de risco fiscal, apresentando uma conta do impacto no orçamento da decisão recém-formada pelo Poder Judiciário.

A situação fica ainda mais perigosa quando alguns dos ministros ressoam tal argumentação e buscam, eles mesmos, mudar a orientação da maioria da corte ou partem para uma estratégia de salvação das contas por meio da proposta de modulação dos efeitos da decisão.

Gostaríamos de explorar a utilização dos argumentos de terrorismo fiscal (i) a partir da noção de positivismo jurídico não inclusivo; (ii) a partir dos pressupostos legais que permitem a modulação de efeitos; e (iii) a partir do que seria uma boa gestão de riscos fiscais por parte do governo central, que parece, por vezes e por conservadorismo, se portar como um apostador compulsivo em resultados improváveis de contencioso tributário.

5. Argumento 1: terrorismo fiscal e positivismo jurídico não inclusivo

Como visto acima, quando se defende que as aplicações do direito, ainda que constitutivas de sentido (com carga construtiva e decisória), devem ter como fundamento o direito posto, defende-se, em verdade, que as decisões políticas e morais sejam feitas pelo Poder Legislativo e não pelos juízes ou pelos agentes fiscais.

Escolhas morais, por vezes, camuflam as escolhas pessoais e subjetivas. Acabam por buscar uma prevalência de visão de mundo – ou puro interesse processual – em detrimento de outra. Como exposto por Carl Schmitt, em seu texto A tirania dos valores:

“O valor maior tem o direito e até o dever de submeter o valor inferior, e o valor, como tal, tem toda a razão de aniquilar o sem valor como tal. Isto é claro e simples e tem seu fundamento na essência do valorizar. Isto é, precisamente, a ‘tirania dos valores’, que entra pouco a pouco em nossa consciência.”11

Diversos dispositivos constitucionais e legais prescrevem o dever de fundamentação das decisões e a garantia do devido processo legal. A começar pelas liberdades públicas (art. 5º da Constituição Federal de 1988):

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” (Destacou-se)

Além dos arts. 93 (incisos IX e X) e 37 do diploma constitucional:

“Art. 93. [...]

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...].

X – as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros.”

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]”

Além disso, o Código de Processo Civil determina:

“Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.”

“Art. 489. São elementos essenciais da sentença: [...]

II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões [...].

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

[...]

§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.” (Destacou-se)

Decisões administrativas ou judiciais que busquem fundamento em considerações morais e juízos consequencialistas, estranhos ao ordenamento posto, devem ser refutadas com base nas regras típicas do Estado de Direito mencionadas acima.

6. Argumento 2: pressupostos legais que permitem a modulação de efeitos

As procuradorias têm por regra geral de atuação, porque dentro dos limites de sua autorização, a defesa dos interesses fazendários até o final de cada discussão, com o trânsito em julgado de alguma decisão superior que vincule todas as esferas jurisdicionais (nos seus respectivos âmbitos).

Quando a decisão judicial acaba por declarar alguma forma de cobrança indevida (seja em sua extensão, seja por nulidade), tem sido frequente o pedido para que o entendimento seja aplicado somente para o futuro (modulação de seus efeitos) ou, quando muito, que se o aplique apenas às ações já ajuizadas até a data do julgamento.

Um dos exemplos mais marcantes aconteceu em março de 2017, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, decidiu que “o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da COFINS” (RE n. 574.706), definindo uma discussão judicial de décadas12.

Vislumbrando o risco de derrota judicial, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) requereu, por meio de embargos declaratórios, a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade para o início de 2018, o que permitiria, a partir de uma simples alteração por Medida Provisória reduzindo a base de cálculo das duas contribuições e aumentando as suas alíquotas, que se chegasse ao volume de arrecadação original.

Tal modulação permitiria, ainda, que todas as decisões judiciais posteriores, embora seguissem a orientação majoritária do Supremo Tribunal Federal, fossem esvaziadas de seus resultados, já que a inconstitucionalidade seria um fato jurídico com data marcada e futura para produzir seus efeitos, alterando as bases de nosso controle de constitucionalidade tradicional.

Muito bem, em construção de cenários, um pedido de modulação de efeitos pode ser (i) rejeitado; (ii) acolhido para produzir efeitos após a decisão (respeitando aqueles que já discutiam judicialmente as competências anteriores) e, em último caso, (iii) acolhido para produzir efeitos em data posterior, escolhida pela maioria (em tese, de quórum qualificado, nos termos da legislação)13.

O fundamento da modulação aparece na Lei n. 9.868/1999, permitindo-a em virtude de segurança jurídica ou de excepcional interesse social (em seu art. 27):

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” (Destacou-se)

No mesmo sentido, em matéria de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), há o art. 11 da Lei n. 9.882/1999:

“Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” (Destacou-se)

Os parâmetros para a modulação de efeitos foram estabelecidos pelo próprio legislador, ao realçar o caráter excepcional da modulação (razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social).

Juridicamente, ou bem a aplicação da modulação se dá por questão de reviravolta no entendimento jurisprudencial anterior (daí o uso da expressão “segurança jurídica”) ou por “excepcional interesse social”.

Nada mais correto que se reconheça que os tribunais podem rever seus entendimentos anteriores, seja porque toda aplicação de norma jurídica comporta uma decisão, seja porque a evolução da discussão pode reforçar novo entendimento. A modulação de efeitos do novo entendimento pode ser utilizada justamente para se preservar as expectativas legítimas daqueles que adotavam o entendimento outrora existente.

Agora, a adoção excepcional da modulação, tão somente porque uma das partes resolveu apostar em um entendimento por décadas e se viu derrotada em sua pretensão, desafia a interpretação de que frustração e segurança jurídica possam ser identificadas14.

7. Argumento 3: gestão de riscos fiscais por parte do governo central

A outra expressão a permitir o uso da modulação é o “excepcional interesse social”. Perceba-se, aqui, o uso da expressão excepcional e de que o interesse tem que ser social.

Pois bem, em alguma análise apressada, pode parecer que a alegação de risco fiscal (impacto nas contas públicas) pode ser argumento suficiente a justificar a aplicação da modulação. Mas alguns fatores precisam ser levados em conta: risco fiscal envolve não só a questão quantitativa do impacto, mas a gestão do risco que foi adotada pelo governo central, já que compete ao Poder Executivo apresentar, anualmente, o acompanhamento de possível impacto de seu contencioso.

Uma gestão sem qualquer estratégia de impacto e que insista na aposta, muitas vezes improvável, de que não haverá derrota, parece desafiar o aspecto social e coletivo, configurando, antes, a responsabilidade governamental por ausência de um cuidado maior com as contas públicas.

Parte do processo orçamentário versa sobre a gestão do risco fiscal. A Constituição Federal prescreve:

“Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:

I – o plano plurianual;

II – as diretrizes orçamentárias;

III – os orçamentos anuais.

[...]

§ 2º A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.”

No que é seguida pelos arts. 4º e 5º da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101, de 2000:

“Art. 4º A lei de diretrizes orçamentárias atenderá o disposto no § 2º do art. 165 da Constituição e:

[...]

§ 3º A lei de diretrizes orçamentárias conterá Anexo de Riscos Fiscais, onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem.

Art. 5º O projeto de lei orçamentária anual, elaborado de forma compatível com o plano plurianual, com a lei de diretrizes orçamentárias e com as normas desta Lei Complementar:

[...]

III – conterá reserva de contingência, cuja forma de utilização e montante, definido com base na receita corrente líquida, serão estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, destinada ao:

[...]

b) atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos.” (Destaques adicionados)

Nesse sentido, o governo, como qualquer empresa, deve fazer análises de risco de perda em ações judiciais, classificando-as de acordo com a Portaria da Advocacia-Geral da União – AGU n. 40, de 2015. Tal controle tem por fim formar o Anexo V (Riscos Fiscais) da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), tratando-se de uma forma de gerenciar os riscos de perdas acima de R$ 1 bilhão em ações judiciais15.

Os critérios são parecidos com aqueles adotados pelo Conselho Federal de Contabilidade, mas dotados de alguns requisitos mais específicos para aceitar uma decisão de tribunal superior.

Apenas para listar os principais requisitos para classificar uma contingência como sendo de risco provável de derrota, o art. 3º da Portaria da Advocacia-Geral da União – AGU n. 40, de 2015, exige os seguintes critérios (citaremos três dos principais):

a) Súmula Vinculante desfavorável à Fazenda Pública;

b) ação de controle concentrado de constitucionalidade, com decisão de colegiado do Supremo Tribunal Federal – STF desfavorável à Fazenda Pública, ainda que pendente o debate quanto à eventual modulação dos efeitos;

c) decisão de órgão colegiado do STF desfavorável à Fazenda Pública proferida em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, ainda que pendente a publicação do acórdão ou o julgamento dos embargos de declaração;

Duas coisas chamam atenção nesses critérios.

Em primeiro lugar, a alteração para o risco provável somente ocorre após decisão clara contra os interesses fazendários e desde que não haja chance de reversão (pelo STF, por exemplo). Não há qualquer sensibilidade para as decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) se ainda existir qualquer chance de argumento constitucional e não há muito espaço para construção de cenários realistas de acordo com a evolução dos processos.

Essa rigidez, por certo, resulta em um quadro de mudanças abrutas da contingência, pois se transforma em um tudo ou nada, que sequer respeita os cômputos parciais dos julgamentos colegiados (seis votos contrários a tese e pedido de vista, por exemplo, não seriam suficientes para alterar o quadro).

O controle de contingência e provisões de uma empresa privada certamente é mais sensível às chances de derrota e às tentativas de mitigar surpresas.

Em segundo, no caso específico do tema 1 do risco fiscal, a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, o acompanhamento da classificação de risco também chama a atenção.

A questão é acompanhada há muito pelo governo e consta na Leis de Diretrizes Orçamentárias.

No Anexo V da LDO de 2010, por exemplo16, há o registro da maioria de votos no STF contrária ao governo e a notícia de que houve a distribuição de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC n. 18) e a tese insistentemente defendida pela PGFN de que o controle concentrado prefere ao difuso, bem como a assunção de risco do governo federal de que valeria mais apostar na reversão da decisão por meio da ADC nº 18, do que orientar o Ministério da Fazenda a criar Medida Provisória para estancar o risco jurídico de derrota (aumento de alíquota e redução da base de cálculo).

Em 2010, o risco estava quantificado em R$ 89,44 bilhões. Em 2017, em R$ 250,3 bilhões17 (até 2014).

Para o ano de 2018, o risco continuava como sendo de perda possível, já com o registro de precedente contrário à Fazenda.

Para o ano de 2019, o que chama a atenção é a manutenção da chance de perda como sendo apenas possível18, mesmo com o registro de que houve decisão do Plenário do STF em repercussão geral desfavorável à Fazenda Pública. A classificação parece repousar na existência de embargos de declaração requerendo a modulação dos efeitos da decisão, mas o art. 3º, inciso I, alínea c, da Portaria da Advocacia-Geral da União – AGU n. 40, de 2015 parece determinar a mudança para o risco provável de perda19, com a devida e respectiva provisão.

Não entraremos no mérito, aqui, se o número contingenciado está majorado ou qual é a robustez dos cálculos da Receita Federal, mas um recente estudo demonstra o quanto pode se desconfiar da acuidade e transparência dos números20 que agora se pretende utilizar para sensibilizar os ministros do STF em relação às consequências da aposta realizada pelo governo.

A provocação é outra: se há preocupação do sistema jurídico positivo vigente na avaliação e acompanhamento de riscos fiscais (nas leis orçamentárias) e esses levam em consideração as estratégias processuais e a análise das decisões judiciais, poderia uma derrota que já se apresentara anteriormente no plenário do STF ser motivo para transformar a gestão do risco fiscal pelo governo federal em excepcional risco social, para fins de modulação de seus efeitos pelo STF?

Voltemos à comparação com as empresas, que realizam análises de riscos semelhantes em seus balanços. Há uma enorme preocupação na tentativa da melhor avaliação possível dos reais riscos de derrotas e, claro, assim como no Anexo V da LDO, elas acabam levando em conta a opinião dos patronos da causa e a posição dos tribunais superiores.

Mas aqui vem o nosso argumento principal: ao contrário do governo, as empresas apenas podem e devem acompanhar da forma mais diligente possível a avaliação dos riscos e a posição dos tribunais superiores, construindo cenários e levando em conta as decisões, ainda que não definitivas.

Não é o caso do governo! Ele pode alterar o cenário de risco, pela simples razão de que ele detém a competência para realizar alterações na legislação tributária.

Convém registrar algo de suma importância: à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional só cabe adotar a classificação nos termos da Portaria da AGU, ainda que cause estranheza a ausência de mudança para o risco de perda provável do tema acima mencionado.

O que queremos reforçar é que a análise estratégica do risco fiscal cabe ao governo central. Há de haver uma inteligência estratégica que reduza riscos e que não conte apenas com argumentos terroristas a imputar uma responsabilidade do Judiciário por perdas bilionárias que poderiam ser mitigadas pela atuação firme do Poder Executivo.

As procuradorias portam-se como advogados de empresas e atuarão na defesa dos interesses de seus clientes, mas ao governo central cabe o dever de reduzir riscos, sobretudo no caso de competência para iniciar processo legislativo em matéria tributária (por medida provisória ou projeto de lei).

Uma mera alteração legal reduzindo base de cálculo das contribuições e promovendo os ajustes das alíquotas (inclusive nas cadeias de setores com algum tipo de regime alternativo) seria facilmente aprovada pelo Legislativo, pelo singelo argumento da redução de riscos sem aumento de carga efetiva e minimizaria de forma eficiente os efeitos do risco de uma derrota.

O melhor exemplo disso foi a longa discussão em torno da definição da base de cálculo do PIS e da COFINS (entre faturamento e qualquer ingresso financeiro – art. 3º da Lei n. 9.718/1998). O aumento foi implementado por meio de Medida Provisória pouquíssimos dias antes da Emenda Constitucional n. 20/1998, que permitiu a tributação da receita bruta. Ou seja, a mera edição de uma nova Medida Provisória, no mês seguinte, teria evitado uma derrota bilionária do governo federal, mas ele preferiu insistir na aposta do risco, tal como um jogador compulsivo e irracional.

No presente caso, a situação é mais tênue, mas também poderia ter sido evitada. Não por acaso, a fala do então Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, afirmando que, no caso de derrota final no STF, promoveria a redução da base de cálculo atendendo a parâmetros constitucionais e o aumento das alíquotas para o mesmo patamar de arrecadação. Mas que só faria isso após esgotadas as discussões sobre modulação e forma de cálculo.

Em virtude desses elementos, o risco fiscal com números bilionários deveria ser colocado em perspectiva, não se permitindo o seu uso para fins consequencialistas que acarretem o perdão de um Estado apostador de riscos, em detrimento da aplicação vinculada e jurídica do art. 27 da Lei n. 9.868/1999. Não caberia aplicação discricionária deste dispositivo legal.

O mencionado artigo somente autoriza a modulação de efeitos em caso de risco à segurança jurídica – e aqui não há surpresa alguma no entendimento do STF – ou em caso de excepcional interesse social.

Tentar argumentar no sentido de que por se tratar de contas públicas estaria preenchido o requisito legal da expressão social falseia a triste constatação de que não há juízo estratégico na avaliação de risco fiscal quando se trata de avaliar a evolução do julgamento do tema. Revela, ainda, o quão lento é o governo para reformar as leis que estão sendo questionadas com chance de derrota.

Não há que se confundir o interesse público genuíno, que deve, inclusive, garantir a aplicação plena da legislação em vigor, com os interesses de uma parte do litígio, na sua tentativa de transferir a responsabilidade pela gestão dos recursos públicos aos ministros do STF com base em terrorismo consequencialista.

Não há excepcional interesse social em se evitar a aplicação plena do entendimento de um tribunal constitucional baseada em mera postergação do impacto fiscal.

Um juízo de ponderação entre a aplicação da legislação em vigor versus a proteção do mau litigante não cabe em um Estado de Direito. Aplica-se o direito posto sem jogos de sombra.

Não se pode esquecer, por fim, que eventuais medidas prévias que evitassem essa litigiosidade teriam permitido, ainda:

i) a eficiência administrativa de redução de custo com o acompanhamento de processos pela PGFN (custos nem sempre levados em conta),

ii) redução dos custos das próprias empresas com o seu contencioso, e

iii) redução do gasto público da prestação de serviço público jurisdicional, que tem, no próprio Estado, o seu maior e ávido usuário.

Em tempo, a aposta de risco fiscal de que não haveria derrota do governo, não sendo atendida pelo STF, apesar do apelo do argumento ad terrorem, gerará outro expediente de duvidosa legitimidade: a gestão fiscal no tempo (postergação da devolução dos créditos).

Esta gestão pode ser traduzida na recusa da Receita Federal em aceitar os pedidos de compensação dos contribuintes21, com a multiplicação da litigiosidade de recursos administrativos e judiciais, retroalimentando, viciosamente, os gastos públicos com fiscalização e com o Poder Judiciário, em nada atendendo aos interesses sociais primários e apenas buscando reforçar o interesse secundário, que vê, no Estado, o credor interessado e parcial e não a República de todos.

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1 Estamos bem conscientes do debate atual entre positivismo em sentido estrito e moralismo jurídico (ou pós-positivismo brasileiro neoconstitucionalista) e da série de questões de ordem levantadas para criticar o positivismo. Por uma questão de delimitação, não abordaremos o tema, deixando claro, contudo, nossa identificação com as críticas ao neoconstitucionalismo e, sobretudo, ao argumento do reductio ad Hitlerum. Para tanto, cite-se a excelente literatura brasileira sobre isso. Nesse sentido, ver DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006; DIMOULIS, Dimitri; e LUNARDI, Soraya Gasparetto. O positivismo jurídico diante da principiologia. In: DIMOULIS, Dimitri; e DUARTE, Écio Oto (org.). Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008, p. 179-197; TAVARES, André Ramos. Interpretação jurídica em Hart e Kelsen: uma postura (anti)realista? In: DIMOULIS, Dimitri; e DUARTE, Écio Oto (org.). Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008, p. 129-157; STRECK, Lenio Luiz. A crise paradigmática do direito no contexto da resistência positivista ao (neo)constitucionalismo. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; e BINENBOJM, Gustavo (org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 203-228; ÁVILA, Humberto Bergmann. Neoconstitucionalismo: entre a “Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência”. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; e BINENBOJM, Gustavo (org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 187-202.

2 “O direito moderno não é mau por ser assim organizado, da mesma maneira que a ligação ontológica pré-moderna entre direito e moral não constitui um bem em si mesma. Se Jesus Cristo era um jusnaturalista, Hitler também o foi. O direito natural parte do princípio antidemocrático de que há um conteúdo de justiça apriorístico em relação ao direito positivo, o qual precisa curvar-se a esses princípios e deve ser imposto a todos os desviantes e recalcitrantes. Mesmo com as tentativas de suavizar essas normas válidas em si mesmas, transferindo-as de um consenso sobre conteúdos para um procedimento qualquer, elas continuam autoimpositivas. Aí a contribuição ética do positivismo, no amplo sentido tal como definido aqui: como não há uma justiça evidente em si mesma, os próprios cidadãos é que têm de tomar em suas costas o fardo de dizer, de pôr (daí positivismo) o direito. Foi o que mudou: o direito continua axiológico como inevitavelmente o é, mas seu valor não está pré-fixado por qualquer instância a ele anterior ou superior. [...] A ‘racionalidade’, tenha dimensão ética ou meramente instrumental e tecnológica, não se impõe por si mesma ao direito, e há profundas e inconciliáveis divergências quanto ao seu significado.” (ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 219-220)

3 Eros Grau fez uma crítica certeira a esse tipo de argumentação bem-intencionada, mas enfraquecedora do Estado de Direito. Ver GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. rev. e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 148-161.

4 TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 49.

5 Demonstrando o equívoco deste relato típico de abordagens moralistas como as neoconstitucionais brasileiras, ver RÜTHERS, Bernd. Die unbegrenzte Auslegung: Zum Wandel der Privatrechtsordnung im Nationalsozialismus. Tübingen: Mohr Siebeck, 2005 e LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. v. 2, p. 212-246.

6 Inúmeros exemplos de direito tributário em ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária. São Paulo: MP, 2006.

7 Sobre o tema, dediquei-me em: ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária, p. 61-76; ANDRADE, José Maria Arruda de. A Constituição Brasileira e as considerações teleológicas na hermenêutica constitucional. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; e BINENBOJM, Gustavo (org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 323-340.

8 “Diante da não existência de uma ‘metarregra ordenadora da aplicação, em cada caso, de cada um deles’, os métodos funcionariam muito mais como instrumentos de justificativa de decisões tomadas”. (GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação e a aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 91; e HASSEMER, Winfried. Rechtssystem und Kodifikation: Die Bindung des Richters an das Gesetz, Winfried. Rechtssystem und Kodifikation: Die Bindung des Richters an das Gesetz. In: KAUFMANN, A.; e HASSEMER, W. (orgs.). Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart. 6. ed. Heidelberg: C. F. Müller Juristischer, 1994, p. 262-263.

9 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1994, p. 291.

10 “Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

11 SCHMITT, Carl. La tiranía de los valores. Revista de Estudios Politicos n. 115. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, Enero/Febrero de 1961, p. 75. Ainda: “Citamos anteriormente a frase de Nicolai Hartmann de que os valores sempre valem para alguém. Aparece agora, infelizmente, o ‘contrário fatal’: também valem sempre contra alguém.” (SCHMITT, Carl. La tiranía de los valores. Revista de Estudios Politicos n. 115. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, Enero/Febrero de 1961, p. 73)

12 Sobre esta batalha judicial, em detalhes, e também preocupado com a modulação de efeitos, ver ANDRADE, Fábio Martins de. Aspectos sobre a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base da COFINS e do PIS. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

13 A insegurança jurídica na modulação de efeitos se faz presente, inclusive, na determinação do quórum necessário para declará-la, já que a lei prevê a maioria qualificada de dois terços, mas já há defensores defendendo que, após a vigência do Novo Código de Processo Civil, poder-se-ia adotar a maioria simples, ainda que a modulação se trate de medida excepcional, nos termos do art. 27 da Lei n. 9.868/1999.

14 No exemplo da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, não haveria motivo para a modulação, já que não se trata de reviravolta no entendimento do STF (segurança jurídica), já que a corte declarara seu entendimento anteriormente no RE n. 240.785, tendo a Procuradoria insistido na judicialização, valendo-se da estratégia processual de distribuição de ação declaratória de constitucionalidade (n. 18) para se aproveitar de nova composição do tribunal constitucional.

15 Não à toa, devido à sensibilidade do tema, o Tribunal de Contas da União acompanha de perto os termos deste anexo.

16 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/Anexo/anl12309-10.pdf>, p. 98 e ss., notadamente, 136-7, em que se lê: “O STF discute a constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS, conforme autorizado pelo art. 2º, parágrafo único, da LC nº 70/91. O Min. Marco Aurélio, relator, deu provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Britto, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence. Entenderam os Ministros do STF estar configurada a violação ao art. 195, I, da CF. O Ministro Eros Grau, em divergência, negou provimento ao recurso por considerar que o montante do ICMS integra a base de cálculo da COFINS, porque está incluído no faturamento. Após, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes (RE 240.785/MG, rel. Min. Marco Aurélio, 24.8.2006). Posteriormente, a União ingressou com a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 18, na qual Supremo Tribunal Federal, por maioria absoluta de seus membros (9x2), vencidos os Min. Marco Aurélio e Min. Celso de Mello, deferiu a medida cautelar, determinando a suspensão de todos os processos sobre o tema (legalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS, como prevê o artigo 3º, parágrafo 2º, inciso I, da Lei nº 9.718/1998), nos termos do artigo 21 da Lei 9.868/99 (por 180 dias). O julgamento do tema será definido na ADC, uma vez que o STF firmou que o controle concentrado prefere o difuso (RE). A projeção dos valores envolvidos, segundo estimativas da Receita Federal do Brasil (RFB), equivale a 89,44 bilhões, considerado o período de 2003 a 2008.”

18 De acordo com o Tribunal de Contas da União (Ofício n. 171/2014-TCU/SEMAG), processos com risco considerado como provável deverão ser provisionados pela Secretaria do Tesouro Nacional.

19 “01: PIS e COFINS. Base de cálculo, inclusão do ICMS. Ré: União

Passivo Contingente. Risco: Possível – artigo 3º, II, ‘e’ e § 2º. Justificativa: julgado pelo Plenário do STF em repercussão geral desfavorável à Fazenda Pública. Houve oposição de embargos de declaração pela PGFN postulando a modulação dos efeitos da decisão.

Objeto: questiona-se a inclusão da parcela relativa ao ICMS na base de cálculo da contribuição para o PIS e da COFINS (sistemática da tributação por dentro).

Instância: STF

Estimativa de Impacto: conforme dados da Receita Federal do Brasil, impacto estimado de R$ 89,44 bilhões, no período de 2003 a 2008. Este valor foi atualizado pela Nota Cetad/Coest nº 146, de 7 de outubro de 2014, utilizando a SELIC como indexador e chegou-se ao seguinte valor: 2003 a 2008: R$ 133,6 bilhões, totalizando um valor de devolução aos contribuintes em caso de derrota da União de R$ 250,3 bilhões e uma perda de arrecadação projetada para 2015 de R$ 27,12 bilhões. Para o ano de 2016 foi fornecido um novo cálculo pela Receita Federal do Brasil, em 02.06.2016, no valor de R$ 19,7 bilhões e para o período de 2012 a 2016 um valor de R$ 101,7 bilhões.” Ver a Lei n. 13.707, de 14 de agosto de 2018 (LDO), em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13707.htm>.

20 PISCITELLI, Tathiane; VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; e MATTHIESEN, Maria Raphaela Dadona. ICMS na base do PIS/COFINS e a modulação de efeitos da decisão do STF: o risco fiscal e a reconstrução de um argumento. Revista de Direito Tributário Contemporâneo v. 9. São Paulo: RT, 2017, p. 17-48. Reveladora a resposta recebida pelos autores da Receita Federal acerca da robustez dos cálculos: “Para arrematar, o Parecer ainda transcreve o seguinte trecho da nota interna CETAD/COEST, que merece intenso destaque: Por fim, para aduzir as razões da utilização deste mesmo percentual nas estimativas referentes ao Anexo de Riscos Fiscais, cumpre registrar que este documento que acompanha a peça orçamentária no processo legislativo não possui o condão de demonstrar com precisão a composição das bases de tributação e tampouco ser utilizado como referência para aferir precisamente o efeito de eventuais decisões desfavoráveis ao Fisco. Tais estimativas objetivam sobretudo delimitar a ordem de grandeza aproximada dos valores referentes às demandas judiciais de natureza tributária e que podem impactar o exercício financeiro seguinte.” (p. 10)

21 Como já o está fazendo no caso da derrota no contencioso acerca da incidência do PIS-Importação e da COFINS-Importação.