Teoria da Argumentação em Humberto Ávila: uma Análise Crítica

Arthur M. Ferreira Neto

Mestre e Doutor em Direito (UFRGS) e Mestre e Doutor em Filosofia (PUCRS). Professor e Coordenador do Curso de Especialização em Direito Tributário da PUCRS-IET e Professor da Graduação da PUCRS. Professor-Pesquisador da FEEVALE. Vice-Presidente do Instituto de Estudos Tributários – IET. 2º Vice-Presidente do Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais do Rio Grande do Sul – TARF/RS. E-mail: aferreiraneto@yahoo.com.br

“Para a Ciência não importam a idade, a origem e a hierarquia do cientista; interessam a consistência, a coerência e a pretensão de objetividade de seus argumentos. Irrelevantes são igualmente os poderes políticos e econômicos do interlocutor; relevam apenas o seu poder argumentativo e a estrutura racional de sua argumentação. Ciência é trabalho compartilhado e não discussão autorreferencial. É disputa por ideias, baseada na razão, não na querela em torno de palavras, fundadas no rebuscamento estilístico. Ciência requer, sobretudo, liberdade intelectual. E liberdade intelectual só prospera em um ambiente marcado pela igualdade, pela humildade, pelo respeito, pela tolerância, em que não se abre uma fresta, por menor que seja, para a intimidação, para a soberba, para a depreciação ou para idolatria. Cientista imune à crítica pode ser tudo, menos cientista.”1

“Die Erklärungen haben irgendwo ein Ende (Explanations come to an end somewhere).”2

Introdução

Homenagem a Humberto Ávila

Sinto-me lisonjeado pelo convite a mim direcionado pelos Professores Daniel Mitidiero e Pedro Adamy, organizadores da presente obra, para contribuir nesse projeto coletivo que homenageia aquele que foi, sem dúvida, um dos mais importantes pilares da minha formação profissional: o estimadíssimo Humberto Ávila.

Na vida, temos inúmeros professores, mas poucos mestres. Um professor é aquele capaz de nos transmitir determinado conteúdo, nos treinar em uma técnica ou nos ensinar uma profissão. Já um mestre é aquele que, por suas qualidades pessoais e por seus feitos, apresenta-se como um exemplo, uma fonte de inspiração, um modelo a ser seguido por seus pupilos. Humberto Ávila enquadra-se na segunda categoria. Fui, verdadeiramente, abençoado em ter recebido a orientação deste grande Mestre, tanto em meu Mestrado, como em meu Doutorado em Direito, oportunidades essas que não apenas imbuíram em mim o gosto pela pesquisa e pela vida acadêmica, mas também me colocaram diante de um jurista no sentido pleno do termo.

Ávila, em suas aulas, não está preocupado em dar respostas prontas e acabadas aos seus alunos, mas sim em intrigá-los com questionamentos pujantes acerca do tema sendo discutido. Com isso, ele não deseja que seus alunos simplesmente recebam a informação atualizada sobre o assunto em debate, mas busca estimulá-los a formular as perguntas que são pertinentes e relevantes ao caso. Em muitas situações, o saber perguntar é mais importante que o saber responder.

O Prof. Humberto assume, ainda, a marca de um pensador combativo e reflexivo, o qual, com coragem atípica para o atual cenário universitário brasileiro, não se esconde no tranquilo porto da cordialidade acadêmica, jamais tendo construído a sua carreira por meio de trabalhos meramente congratulatórios e elogiosos direcionados aos seus pares. Em verdade, desde seus primeiros escritos, ele sempre trilhou um percurso intelectual mais tortuoso e, em certo sentido, mais arriscado, pois escolheu seguir o caminho verdadeiramente científico, marcado pela análise crítica séria e profunda das propostas teóricas que o antecederam, independentemente da estatura do seu autor, preocupando-se, assim, não com a autoridade da pessoa, mas sim a veracidade do argumento. Além disso, seus escritos são sempre inovadores e propositivos, jamais visando ele a apenas compilar ideias já pensadas por terceiros nem a desenvolver projetos teóricos que, sob as vestes de suposta complexidade, são apenas marcados pela obscuridade da sua linguagem e pelo baixo grau de compromisso para com a solução de problemas concretos. Nesse ponto, cabe citar duas lições fundamentais que aprendi, bastante cedo, com Humberto Ávila: um trabalho científico relevante deve sempre apresentar critérios aplicativos, com o intuito auxiliar na resolução das questões práticas em disputa, e deve sempre apresentar uma variedade de exemplos concretos que demonstrem como as ideias defendidas podem se moldar à realidade, evitando-se, com isso, que a respectiva proposta teórica se perca no plano estéril e vazio das puras especulações abstratas.

Evidentemente, esse espírito crítico pode e deve também ser direcionado à produção teórica de Humberto Ávila, o qual, aliás, sempre recebeu tais investidas de braços abertos e com ampla disposição ao diálogo. Isso porque, um verdadeiro cientista – conforme anunciado na citação de Ávila que serviu de epígrafe a este artigo – permite que o seu pensamento seja avaliado e criticado sem restrições, uma vez que somente assim poderá ele evoluir e se aprimorar, permitindo que as suas premissas sejam reorganizadas e suas conclusões reformuladas, sem dogmatismos nem preconceitos na incorporação de novos elementos à sua proposta teórica original. Aquele que não permite que seu pensamento evolua, apenas aguarda o momento da sua caída na irrelevância e a sua completa extinção.

Com efeito, em um ambiente acadêmico saudável, a melhor forma de se homenagear um estudioso sério é realizando uma análise crítica sincera e transparente da sua obra. E é com esse espírito que pretendemos desenvolver o presente estudo.

Objetivos deste estudo3

Pois bem, seguindo essa inspiração, pretende-se, neste estudo, desenvolver uma análise crítica de uma parte importante da obra de Humberto ÁVILA, mais especificamente a teoria da argumentação por ele estruturada, inicialmente, no artigo “Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico”4 e que recebeu importantes aperfeiçoamentos em escritos posteriores.

A tese central deste estudo pretende demonstrar que uma leitura sistemática dos trabalhos de ÁVILA permite identificar duas propostas teóricas distintas acerca da argumentação no direito, as quais são marcadas por diferenças sutis, mas relevantes. Tais mudanças tocam não apenas no escopo científico dentro do qual uma teoria da argumentação deve ser analisada, mas especialmente nos elementos constitutivos e fundacionais da atividade argumentativa a ser desenvolvida, não apenas perante os tribunais, mas no direito em geral, o que exige levar em consideração não só seus atores imediatos de uma prática jurídica, mas também todos os que participam direta e indiretamente desse empreendimento discursivo. Aliás, diante dessa ampliação no mobiliário teórico que passa a decorar o seu pensamento, torna-se possível separar o projeto teórico de ÁVILA em duas fases, o que permite aqui classificar tais fases – para fins de clareza expositiva – como HA1 e HA2, sendo a primeira marcada pelo conteúdo que se extrai do já referido “Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico” e a segunda iniciada pelo seu “Teoria dos Princípios” e, posteriormente, consolidada nos artigos que apreciam criticamente o trabalho de Paulo de Barros Carvalho5.

Para que tal reconstrução crítica do projeto teórico de ÁVILA não fique apenas no plano descritivo, mas seja efetivamente propositiva, será ainda fundamental a elaboração de uma moldura firme dentro da qual tais considerações adicionais possam ser desenhadas. Para tanto, neste estudo, em relação à uma teoria da argumentação propriamente jurídica, pretende-se dar um passo para trás e, depois, um passo para frente. Um passo atrás, ao se buscar algumas reflexões filosóficas acerca da argumentação em geral, ou seja, do argumentar sobre questões teóricas e práticas nos diferentes campos de conhecimento, mesmo que não mantenham qualquer relação direta com as tarefas desenvolvidas pelos operadores do direito. E um passo à frente no sentido de identificar e categorizar determinadas formas de argumentação que são de uso recorrente em qualquer debate envolvendo disputas de ordem prática (i.e., acerca da avaliação e justificação do correto agir humano dentro de um contexto determinado).

Quanto ao passo para trás, dois serão os filósofos que a serem prioritariamente utilizados nesse esforço preliminar de se estabelecer alguns pressupostos gerais para uma teoria da argumentação, quais sejam: WITTGENSTEIN e TOULMIN. Do primeiro, serão exploradas as ideias envolvendo os conceitos de jogos de linguagem (Sprachspiele) e de forma de vida (Lebensform), por ele desenvolvidos nos livros “Investigações Filosóficas”6 e “Da Certeza”7. Tais noções, como se verá, fixam um ponto de partida sólido para a compreensão de como acessamos a realidade por meio do uso das nossas habilidades linguísticas, bem como estabelece alguns importantes limites acerca do que pode e do que não poder ser objeto de explicação e justificação, sendo esses objetivos essenciais de qualquer atividade argumentativa.

Já de TOULMIN, pretende-se aqui tomar de empréstimo dois insights importantes apresentados em seu “The Use of Arguments”8: a crítica que ele apresenta ao formalismo lógico de teorias da argumentação desenvolvida por alguns autores clássicos e a distinção por ele realizada entre elementos argumentativos invariáveis (field-invariant) e aqueles que dependem do seu campo de aplicação (field-dependent).

Tais considerações servirão de base para o último passo que aqui se pretende dar, principalmente na organização de uma proposta de tipologia da argumentação, a qual, partindo do modo comum e rotineiro de como apresentamos razões de distintas naturezas para explicar ou justificar uma conclusão diante de uma discussão prática (mesmo que não jurídica), permite dissecar a estrutura interna de diferentes tipos de raciocínios argumentativos, os quais poderão ainda ser hierarquizado em razão do peso que devem exercer no convencimento daqueles que participam desse debate.

Este trabalho pode ser visto como um tanto ambicioso, principalmente em razão da importância do tema sendo analisado, bem como da perenidade dos problemas enfrentados nessa área do conhecimento. No entanto, mesmo que sujeito a críticas, este árduo e talvez inesgotável esforço justifica-se precisamente em razão do papel indelével exercido pelo nosso homenageado no campo da teoria do direito e do direito tributário.

1. Argumentar em caráter geral e argumentar no direito

1.1. Argumentação como jogo de linguagem e de acordo com uma forma de vida

Antes de se discorrer sobre os elementos necessários para a elaboração de uma teoria argumentativa, entende-se relevante analisar quais são os pressupostos filosóficos desse tipo de atividade discursiva. Isso porque, para se bem compreender o objeto próprio da argumentação, mostra-se importante fixar o seu limitador e o seu ponto de contato com a realidade, tal como essa é por nós vivenciada. Tais considerações serão fundamentais para se delimitar, na última parte deste artigo, os diferentes tipos de argumentação que rotineiramente são utilizados, não apenas no direito, mas em qualquer espécie de discussão acerca da melhor resposta para um problema prático.

E, para a análise desses pressupostos linguísticos e vivenciais da argumentação, Ludwig WITTGENSTEIN aparenta fornecer reflexões bastante instigantes, principalmente quando levadas ao campo jurídico. Isso ocorre porque tornou-se comum para alguns teóricos do direito formularem teorias interpretativas e argumentativas que, invocando a filosofia da linguagem wittgensteiniana, pressupõem que esses empreendimentos discursivos teriam uma função constitutiva da nossa realidade, no sentido de afirmar que seriam as nossas relações intersubjetivas, por meio de mecanismos linguísticos, que seriam capazes de criar, integralmente, o espaço social no qual vivemos e interagimos. Para fundamentar tal conclusão normalmente é invocada, de modo isolado, a proposição número 5.6 do Tractatus Logico-Philosophicus, na qual se lê “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”9, mas que muitas vezes é erroneamente transcrita nos seguintes termos: “os limites da linguagem são os limites do mundo”10. Essa sutil diferença na leitura dessa proposição de WITTGENSTEIN causa um enorme impacto nas teorias interpretativas e argumentativas que passarão a ser a partir daí estruturadas, uma vez que o pressuposto de que o sujeito que interpreta é o móvel criador do mundo simplesmente afasta a realidade como sendo o objeto último da interpretação, fazendo com que a linguagem seja não apenas o modo prioritário de seres humanos acessarem aquilo que pode ser considerado o mundo externo, mas passa a ser o único modo desse existir. Com efeito, a interpretação e a argumentação formada a partir de tais pressupostos passa a ser totalmente vinculada aos agentes que se valem da linguagem e das relações intersubjetivas que esses formam. Com isso, acaba-se com qualquer pretensão de real objetividade interpretativa e argumentativa, aceitando-se no seu lugar a simples formação de consensos como o resultado a ser sempre alcançado, de modo que tais teorias invariavelmente culminarão em ceticismos, relativismos e subjetivismos na interpretação e na argumentação. Pretende-se, aqui, portanto, demonstrar que tal leitura de WITTGENSTEIN não é apenas imprecisa, mas deixa de lado as fundamentais evoluções que seu pensamento adquiriu a partir das obras “Investigações Filosóficas”11 e “Da Certeza”12. Assim, vejamos.

Primeiramente, impõe-se destacar que as ideias centrais do WITTGENSTEIN do Tractatus foram explicitamente rejeitadas pelo WITTGENSTEIN do Investigações13, o que, inclusive, tornou comum o uso na literatura especializada da referência a esse pensador como “Primeiro Wittgenstein”, enquanto autor da primeira obra, e “Segundo Wittgenstein”, como o autor da segunda, quase como se fossem diferentes indivíduos. A tese central do Tractatus era de que a linguagem teria uma única essência, assumindo assim uma única estrutura lógica e que essa seria capaz de descrever todas as dimensões da realidade passíveis de conhecimento, o que se daria sempre por meio de uma relação denotativa entre nomes e objetos. Por isso, todos os problemas que enfrentamos no conhecimento do mundo são problemas de obscuridade e dubiedade no uso da linguagem, os quais, uma vez esclarecidos, seriam capazes de resolver todas essas dificuldades aparentes14. De outro lado, todas as demais questões sobre as quais não há como se estabelecer uma pura relação denotativa entre nome e objeto (e.g., metafísicas) a única solução seria acerca delas nada falar, pois “sobre aquilo que não podemos falar, devemos permanecer em silêncio”15.

Grande parte dessas conclusões são rejeitadas pelo “Segundo Wittgenstein”, uma vez que, a partir do Investigações, ele passa a defender que não há apenas uma lógica por trás da linguagem, mas sim inúmeras formas de sua estruturação, na medida em que existem diferentes práticas linguísticas, pois há distintos modos de se relacionar intersubjetivamente e cada um desses assumirá a sua lógica própria16. Com efeito, o significado não consiste apenas na relação denotativa entre palavra e objeto, mas sim na multiplicidade de usos dentro de diferentes contextos práticos. A linguagem, portanto, não pode ser estudada e compreendida de modo isolado ou apenas pela captação das suas estruturas lógico-formais, como se fosse dotada de uniformidade e autonomia diante das demais experiências humanas. WITTGENSTEIN rejeita a ideia de que compreender um significado pressuponha apenas a execução correta de um determinado processo intelectual, o que não corresponde a negar que atividades mentais sejam também, em parte, indispensáveis no ato de compreender. Com isso, WITTGENSTEIN acaba distanciando-se tanto da visão idealista, quanto da visão empirista da interpretação, as quais pressuporiam que o compreender um significado ou seria um processo de retificação do pensamento conforme seu objeto ou uma forma de captação sensorial de fenômenos externos ao sujeito.

E é precisamente a partir dessa constatação vivencial acerca de como interagimos por meio de mecanismos linguísticos que WITTGENSTEIN introduz o seu conceito de “jogos de linguagem”17 (Sprachspiele). Tal noção pretende captar a ideia de que a nossa relação com o mundo (não constitutiva dele, porém) sempre pressupõe o domínio de uma linguagem que consiste, não na capacidade de identificar a sua estrutura lógica uniforme, mas sim na habilidade de empregar as suas expressões nas diferentes atividades concretas a que ela pertence (e.g., descrever, relatar, informar, negar, especular, dar ordens, fazer perguntas, contar histórias, fingir, cantar, adivinhar charadas, contar piadas, solucionar problemas, traduzir, pedir, agradecer, cumprimentar, amaldiçoar, rezar, avisar, recordar, expressar emoções etc...18). Por isso, todos os jogos de linguagem estão entrelaçados “nesse padrão de atividade e caráter humanos, e o significado é atribuído a suas expressões pela perspectiva compartilhada e pela natureza dos seus usuários”19. Assim definida, toda linguagem pressupõe uma dimensão intersubjetiva sobre a qual é necessário que se estabeleçam determinado acordos sobre definições e, inclusive, sobre como produzimos juízos acerca delas, o que se dá, não por uma necessidade lógica, mas prática e comunicativa. Por isso, um “jogo de linguagem” jamais poderá ser integralmente explicado a alguém por meio de demonstrações lógicas e formais20, mas exigirá que ele seja “mostrado” por meio do apontamento de como uma linguagem é, de fato, usada21. Isso explica como crianças interagem com o mundo mesmo sem terem conhecimento formal de qualquer linguagem e como são introduzidas a linguagens naturais ao serem treinadas nos diferentes tipos de práticas linguísticas (para somente mais tarde, quando mais maduras, poderem compreender as diferentes formas lógicas das linguagens que já usam)22. Além disso, tal concepção demonstra porque é inviável formular uma linguagem que possa ser considerada puramente privada23, assim entendida aquela inventada por e inteligível para um único indivíduo.

Para os propósitos da teoria da argumentação que aqui será esboçada, o conceito de “jogos de linguagem” será fundamental para se compreender o substrato não meramente formal que a atividade argumentativa pressupõe, em especial a noção de que essa é realizada por inúmeras atividades discursivas, permitindo, assim, a formulação de diferentes “jogos argumentativos”, cada um com uma lógica interna própria e um modo de uso particular que dependerá da forma como, em realidade, tal tipo de discurso é utilizado pelos seus interlocutores. Portanto, não há uma prática argumentativa, mas uma multiplicidade.

Poderíamos encerrar aqui as reflexões acerca de como a filosofia da linguagem de WITTGENSTEIN pode contribuir na construção de uma teoria da argumentação. No entanto, tal corte abrupto na reconstrução do pensamento desse autor não faria jus à sofisticação da sua proposta teórica e deixaria de fora um dos seus elementos fundamentais, o que, aliás, é bastante comum para muitos que se valem das ideias desse pensador (principalmente no campo do direito). A adoção do conceito de “jogo de linguagem” como elemento de explicação da atividade interpretativa e argumentativa passa a impressão de que o seu fundamento último seria formado, exclusivamente, pelos consensos linguísticos que são formados de modo intersubjetivo, bem como pelas regras que são a esses subjacentes.

Tal conclusão, porém, contém um grave erro. Isso porque, para WITTGENSTEIN, conhecer uma linguagem não depende apenas da compreensão das diferentes práticas dentro das quais instrumentos linguísticos que são utilizados, mas essencialmente pressupõe uma “forma de vida”24 (Lebensform), na qual o praticante dessa linguagem deve já estar inserido. Em verdade, em última instância, é impossível sequer imaginar uma linguagem sem reconhecer a existência de uma “forma de vida” que lhe garante substrato25. É a “forma de vida”, portanto, que representa o fim da linguagem, a sua estrutura de referência, o que vem a atribuir sentido à correspondente prática que está nela entrelaçada26.

Com efeito, a compreensão de determinado “jogo de linguagem” envolve não uma função simplesmente intelectual nem apenas a execução de uma prática institucionalizada, mas também pressupõe reconhecer a existência de um plano fenomenológico e ontológico no qual essa atividade discursiva está inserida. Isso exige um tipo de relação com a realidade de diferente natureza (não apenas especulativa nem apenas pragmática), a qual impõe um tipo de compreensão vivencial daquele contexto concreto e contingente em que tais práticas discursivas são exercitadas. Isso não permite reduzir o reconhecimento de uma “forma de vida” à mera compreensão descritiva de natureza empírico-sensorial dessa realidade, tal como poderia ser realizada por um sociólogo ou antropólogo. Exige-se uma espécie de iniciação na respectiva “forma de vida”27. E isso faz com que o conceito de “jogo de linguagem” não possa ser perfeitamente demarcado em termos formais28 nem possa ser explicado por meio de simples esquemas intersubjetivos de colaboração. E o mais relevante acerca do reconhecimento de uma “forma de vida” é a aceitação de que ela representa o ponto firme da realidade contra o qual não se pode logicamente opor uma radical objeção, exigindo, pois, nessa etapa do processo de cognição do mundo, a simples aceitação de que existe algo que é certo, que é dado29 e que, por isso, está além de qualquer possibilidade de dúvida. Isso porque, para WITTGENSTEIN, o conhecimento pressupõe um tipo de reconhecimento30 e aquilo que deve ser objeto desse ato recognitivo será sempre uma “forma de vida”. Portanto, no final das contas, será a “forma de vida” e não o “jogo de linguagem” o elemento experiencial que será constitutivo do modo como interpretamos e argumentamos, jamais sendo essas atividades aquelas capazes de integralmente criar os significados das palavras que usamos31.

O reconhecimento de que existem “formas de vida” que fixam a estrutura de referência de qualquer empreendimento discursivo não deve ser visto como a porta de entrada para um dogmatismo cego e acrítico32 nem para um relativismo que aceitaria qualquer coisa33. Em verdade, esse conceito apenas reconhece uma das característica essenciais no uso da linguagem, a qual reestabelece um limitador ao discurso racional que é perfeitamente humano (com todos os seus defeitos e imperfeições), o qual permite resgatar o inegável fato de que nenhuma dimensão da realidade poderá ser analiticamente demonstrada na sua inteireza, ou seja, em toda a sua complexidade ontológica. Além disso, traz à lembrança o também inegável fato (desconfortável para alguns teóricos analíticos e racionalistas) de que determinados elementos da nossa realidade devem ser considerados evidentes, indisputáveis e impossíveis de serem duvidados34. Aquele que duvidar de tudo, não conhecerá nada. Por isso, a compreensão de qualquer “jogo de linguagem” sempre dependerá de algum grau de confiabilidade35 e o repositório dessa confiança será sempre a respectiva “forma de vida”. Isso ocorre porque uma “forma de vida” é sempre a “rocha dura”36 que encerra o processo de justificação, impondo o reconhecimento de que – tal como anunciado na segunda Epígrafe deste artigo – em algum momento a intepretação e a argumentação deve chegar a um fim37, a qual não será uma verdade absoluta, mas sim um tipo de atividade humana natural38.

Tais considerações acerca do conceito de “forma de vida”39, em nossa opinião, são fundamentais para a compreensão plena da atividade discursiva e dialógica que é utilizada para a formulação de respostas para problemas práticos – principalmente no campo do direito. Por isso, neste artigo, tais considerações sobre “jogos de linguagem” e “formas de vida” servirão de amparo filosófico para a proposta de tipos de argumentação a ser apresentada ao final deste estudo.

De outro lado, a desconsideração desse elemento fenomenológico e ontológico na reconstrução dos processos linguísticos que subjazem a argumentação faz com que, em regra geral, sejam formuladas teorias argumentativas excessivamente formalistas e que, no final das contas, apresentam um retrato artificial e distante do cenário prático real no qual discussões jurídicas são efetivamente travadas.

1.2. A atividade argumentativa segundo Stephen Toulmin: o variável e o invariável nos diferentes campos de argumentação

As situações concretas em que nos valemos de argumentos são, entre si, bastante diferentes, razão pela qual a forma como argumentamos também apresenta determinadas particularidades dependendo do seu campo de realização. Essa mesma consideração vale para o direito, na medida em que as discussões jurídicas podem ser travadas em diferentes contextos, com diferentes propósitos e por interlocutores que ocupam distintos cargos ou funções (juízes, acadêmicos, advogados, promotores etc...) ou, inclusive, que possuem diferentes formações técnicas (cientistas políticos, sociólogos, jornalistas, leigos etc...)40. Diante disso, caberia questionar se a atividade argumentativa poderia ser considerada um único tipo de empreendimento discursivo, com uma única lógica interna, ou se, partindo-se das reflexões do Segundo Wittgenstein acima traçadas, deveria ela ser analisada como sendo formada por diferentes tipos de argumentação, as quais seguiriam distintos “jogos de linguagem”. Nesse ponto, a proposta de teoria da argumentação elaborada por TOULMIN41 mostra-se útil, principalmente para se compreender a existência de dimensões mutáveis e invariáveis que uma teoria da argumentação deveria observar.

TOULMIN critica as posturas teóricas que se valem apenas da lógica formal para explicar o modo como se argumenta validamente, na medida em que, segundo ele, o modelo silogístico tradicional (i.e., premissa maior, premissa menor e conclusão) seria reducionista na explicação de como, rotineiramente, argumentamos. Ao invés do puro formalismo lógico-argumentativo, ele propõe – inspirado em WITTGENSTEIN – a primazia da linguagem natural na formulação de uma teoria da argumentação42, valendo-se, assim, de uma estrutura lógica informal43, a qual deveria seguir um modelo jurisprudencial, uma vez que, segundo ele, a argumentação praticada no âmbito do direito representaria o caso central e mais bem elaborado da atividade argumentativa44.

Pois bem, sempre que alguém apresenta uma proposição ou veicula uma pretensão esse indivíduo deseja que os respectivos enunciados sejam levados a sério. O “ser levado a sério”, porém, irá depender das explicações ou justificações que sejam apresentadas por aquele que estiver trazendo ao debate sua proposição ou pretensão45. Tais explicações e justificações, por sua vez, deverão ser analisadas e avaliadas com base no seu mérito e o seu mérito é definido a partir da força da argumentação desenvolvida para lhe dar embasamento. Ocorre que aquilo a ser considerado como “argumentação” não pode ser definido monoliticamente, como se fosse uma única espécie de atividade, aplicada de modo idêntico a todos os campos de interesse humano, sempre seguindo os mesmos critérios e possuindo sempre a mesma estrutura de raciocínio.

Em verdade, segundo TOULMIN, a argumentação varia conforme o seu campo de aplicação, de modo que a mera estruturação lógica de argumentos jamais seria suficiente para esclarecer e justificar a atividade argumentativa aplicável em todas as áreas do conhecimento humano. Por isso, o argumentar deve ser compreendido como uma forma de interação humana e não como mero mecanismo calculativo que ensina a relacionar proposições em termos formais e analíticos. Com efeito, a argumentação, segundo TOULMIN, deve ser analisada a partir da natureza dos casos em que estará sendo aplicada, possuindo diferentes “tipos lógicos” de argumentação46.

Dentro desse contexto, TOULMIN introduz a ideia de “campo de argumentos” (field of arguments)47, a qual demarcaria o âmbito dentro do qual um mesmo tipo lógico de argumentação seria prevalecente (sem excluir totalmente outros tipos), na medida em que são de mesma natureza os dados utilizados na justificação e para a conclusão a ser alcançada48. Cabe esclarecer que TOULIM não está defendendo uma teoria argumentativa integralmente relativista, de acordo com a qual nenhuma uniformidade ou estabilidade pudesse ser garantida nos diferentes campos de argumentação. Em verdade, a sua proposta pretende evitar dois extremos teóricos, quais sejam: o dogmatismo argumentativo – pressupondo que argumentar segue um padrão universal e imutável que necessita apenas ser descoberto e relevado por aquele interessado em formular argumentos com retidão – e o relativismo argumentativo – que aceita que toda atividade argumentativa seja variável e contingente e que o máximo que se poderia desejar seria a identificação dos padrões habituais em que argumentos são apresentados e nos quais são socialmente aceitos.

Portanto, evitando tais posturas extremadas, TOULMIN propõe a definição de elementos argumentativos que são invariáveis e que exercem função uniforme em todos os campos de argumentação (field-invariant) e aqueles que são dependentes do seu campo específico de aplicação (field-dependent)49. Com isso, uma teoria de argumentação que não pretende ser aleatória nem dogmática deveria ter fluidez suficiente que permita identificar os diferentes “tipos lógicos” de argumentação, com critérios de mérito e de inferência distintos, sem se abdicar da pretensão teórica-analítica que forneça estruturas uniformes e estáveis a ser observadas e respeitadas em todos os campos de argumentação (e.g., noções como dedução, indução, premissas, conclusão, inferência, analítico, sintético etc...)50.

Com base em tais considerações preliminares, cabe ser agora discorrer sobre alguns termos e elementos essenciais que poderiam ser considerados invariáveis nos diferentes campos de argumentação.

1.3. Argumentação, raciocínio e argumento

“Argumentar no direito é uma coisa; já argumentar em outras áreas é algo bastante diferente”. Tal frase transmite a ideia comum, amplamente compartilhada por muitos dos operadores do direito, de que a atividade argumentativa por eles desenvolvidas na defesa de determinado interesse, pretensão ou causa acerca de um problema prático qualquer envolve um tipo de raciocínio peculiar e exclusivo, envolto em técnicas e procedimentos apenas por eles dominados e que permite acesso a determinado conteúdo cognitivo que somente pode ser acessado por quem já é iniciado na área jurídica. Por isso, assumem a presunção de que a argumentação que tocar em questões de relevância jurídica deve ser reservada, em última instância, apenas àqueles que possuem tal formação profissional. Afinal de contas, são esses profissionais os únicos dotados da capacidade para extrair o conteúdo que está integrado aos textos do direito positivo vigente, de modo que invariavelmente serão tais indivíduos os habilitados para, em última instância, fornecer a resposta definitiva para toda espécie de problema prático que afeta a vida e os interesses de todos os membros da sociedade. Obviamente, até se admite que os demais destinatários dos comandos produzidos dentro do direito – com formações não jurídicas (economistas, sociólogos, biólogos, psicólogos etc...) – possam participar dessas discussões, de modo a se aventurarem na elaboração de proto ou pseudoargumentos, mas sabe-se de antemão que tais raciocínios, por mais verdadeiros e bem elaborados que sejam, não serão capazes de exercer uma influência direta no resultado final da disputa, pois tal esforço não passará de uma atividade lúdica ou de simulacro de argumentação, tal como a criança que simula dirigir o carro enquanto sentada no colo do seu pai. Isso porque qualquer outra consideração que não seja demonstrável como “normativa”, no sentido de exclusivamente derivada do direito positivo vigente, deveria ser excluída do debate sério, pois representaria uma futilidade ou extravagância teórica51.

Segundo MACINTYRE, essa postura que consagra uma espécie de “reserva de mercado argumentativa” representa uma atitude típica da nossa cultura pós-moderna e tecnocrata, a qual está “dominada por especialistas, os quais professam estar nos auxiliando, mas que, ao invés disso, frequentemente, nos transformam em suas vítimas”52. E, de acordo com MACINTYRE, são precisamente os tecnocratas do direito que, com maior frequência, vitimizam os não iniciados na área jurídica, pois esses acabam “nos representando por palavras que não são nossas” e exigem que o leigo aceite como consensual determinados fundamentos sobre o direito e sobre questões morais que, em realidade, estão marcados por enormes divergências básicas53. Além disso, tal rotineira postura pressupõe que exista uma racionalidade que seja própria do direito e cujos parâmetros mínimos não sejam perfeitamente inteligíveis pelos demais cidadãos, o que permite construir a crença de que os tipos argumentativos articulados dentro do campo jurídico possuem uma diferente estrutura e não se comunicam com aqueles que são frequentemente articulados fora desse campo discursivo.

No entanto, considerando que questões de ordem prática (i.e., aquelas sobre como agir e como interagir em sociedade) afetam absolutamente todos os seres humanos, caberia questionar seriamente se a primeira frase apresentada neste tópico realmente mostra-se plausível ou se, no que tange à argumentação, existem elementos que são invariáveis e que, portanto, independem do círculo discursivo dentro do qual esteja sendo disputado um problema prático54.

Não se pretende, com isso, defender que não haja qualquer argumento cujo conteúdo derive diretamente do direito positivo ou cuja fonte de autoridade dependa apenas do seu processo de institucionalização formal. Obviamente, há argumentos que, de fato, somente poderão ser adequadamente dominados e corretamente formulados por aqueles profissionais com a formação técnica necessária para interpretar o sistema jurídico-positivo. No entanto, reconhecer que alguns argumentos terão tal delimitação técnica, de nenhum modo significa reconhecer que a integralidade da argumentação jurídica possa ser determinada apenas por padrões teóricos e linguísticos que buscam a sua fundamentação no universo do direito positivo. Tal visão acaba confundindo “argumentação jurídica” com “argumentação judicial ou advocatícia”, como se a atividade argumentativa no direito tivesse como único propósito o convencimento dos membros do Poder Judiciário, na medida em que – sustentarão os defensores dessa visão – serão esses os indivíduos que, em última instância, decidirão o conteúdo efetivo do direito.

Com efeito, rejeitando-se tal postura claramente inspirada pela tradição do realismo jurídico55, busca-se neste artigo demonstrar que uma teoria da argumentação jurídica, para ser completa, não pode ficar adstrita apenas à descrição e ao detalhamento sistemático daqueles argumentos que são diretamente derivados do direito positivo vigente (DPV) e que são hierarquizados de acordo com força vinculante das suas diferentes fontes produtoras. Em verdade, tal teoria da argumentação jurídica deve partir de uma estruturação teórica mais ampla, que esclareça quais são os pressupostos comuns e invariáveis na argumentação prática em geral, permitindo, com isso, ilustrar tipos argumentativos que sejam também compreensíveis e inteligíveis pelos demais destinatários do direito, não apenas por força da sua origem, mas com base na sua estrutura interna e em parâmetros racionais que sejam comunicáveis a todos, mesmo àqueles sem formação técnico-jurídica.

Pois bem, partindo-se dessas premissas, cabe, inicialmente, estabelecer algumas especificações conceituais que possam ser consideradas comuns a uma teoria da argumentação em geral, o que permitirá, ao final, organizar uma teoria da argumentação aplicável ao direito. Comecemos, portanto, pela definição dos termos “argumentação”, “argumento” e “raciocínio”.

O termo “argumentação” (argumentation) – que para fins de precisão conceitual não pode ser tratado como sinônimo de “argumento” – deve ser utilizado para se referir à atividade discursiva global, por meio da qual alguém apresenta uma ou mais pretensões, amparadas em evidências ou razões, de modo confirmar uma conclusão (pretensamente válida e/ou verdadeira) ou a contraditar a higidez dos raciocínios desenvolvidos, refutando o conteúdo das premissas ou o percurso que culminou no enunciado conclusivo56. A “argumentação” representa, desse modo, um empreendimento necessariamente intersubjetivo, na medida em que pressupõe dois ou mais parceiros dessa atividade discursiva, os quais apresentarão seus argumentos e contra-argumentos, de acordo com diferentes linhas de raciocínio que estejam sendo por eles desenvolvidas. “Argumentação”, nesse sentido, não se desenvolve em isolamento, jamais assumindo feições monológicas. Portanto, os diferentes modos de se desenvolver esse tipo de atividade intersubjetiva – globalmente considerada – é o objeto próprio de uma “Teoria da Argumentação”57.

Já um “raciocínio” (reasoning) pode ser visto como um conjunto de ideias e proposições que são concatenadas com o intuito de embasar uma ou mais conclusões sendo propostas em um processo de argumentação. O “raciocínio”, portanto, representa o processo intelectual-linguístico que visa a fundamentar em termos racionais a atividade argumentativa como um todo, pretendendo garantir que uma série de proposições sendo sustentadas siga um encadeamento lógico minimamente inteligível aos demais partícipes dessa atividade discursiva. Os raciocínios podem ser de diferentes naturezas, de acordo com o seu objeto e seu propósito. Por exemplo, raciocínios podem ser imediatos ou mediatos, dependendo do número de argumentos que são necessários para fundamentar a conclusão desejada. No primeiro caso, há situação em que basta o uso de um argumento que, por si, garante uma passagem inferencial direta das premissas para o enunciado conclusivo pretendido. No segundo caso, será necessária uma progressão argumentativa que exigirá a formulação de uma cadeia coerente de diferentes argumentos até ser possível a demonstração da conclusão almejada. Além disso, raciocínios podem ser teóricos ou práticos58, na medida em que ou pretendem captar e descrever, de modo verdadeiro, uma parcela da realidade ou buscam avaliar e justificar uma ação humana como correta, adequada ou justa59. No campo do direito, raciocínios teóricos e práticos exercem um papel argumentativo fundamental, de modo que, para os objetivos limitados deste estudo e utilizando nomenclatura proposta por ATIENZA, podem ser eles caracterizados como explicativos ou justificativos60, sendo que:

i) no primeiro caso, são apresentadas razões que esclarecem porque uma decisão veio a ser tomada, indicando os motivos que provocaram, de modo causal, o resultado ou conclusão que se alcançou, de modo a tornar inteligível o que veio a ser praticado (e.g., “ele tomou um copo d’água, pois estava com sede”; e “ele foi multado, uma vez que ficou demonstrado que ele estava dirigindo com excesso de velocidade”); e

ii) no segundo caso, são fornecidas razões que, não apenas indicam o caminho causal do raciocínio, mas visam a convencer que um determinado padrão de conduta é vinculante ou recomendável, motivo pelo qual deve ser seguido ou evitado (e.g., “você não deve tomar café antes de ir dormir, pois terás dificuldade para dormir”; e “você não deve dirigir acima da velocidade permitida, pois isso é perigoso e você poderá tomar uma multa”).

Por fim, a expressão “argumento” (an argument)61 corresponde ao elemento unitário que compõe a atividade discursiva caracterizada como “argumentação”. Tradicionalmente, um “argumento” é composto por uma sequência de enunciados ordenados de modo que alguns desses (as premissas) pretendem fornecer razões que autorizem a chegada a outro tipo de enunciado (a conclusão)62. Nesses termos, um “argumento” pode ser formalmente analisado e dissecado – normalmente pela disciplina da lógica –, de modo a permitir que sejam compreendidos os seus elementos internos, bem como sejam identificados os seus diferentes modos de articulação63. Os “argumentos”, portanto, representam a unidade básica que compõe a atividade da argumentação, funcionando, assim, como ferramentas a serem utilizadas nesse tipo de atividade discursiva64. E – seguindo tal analogia – nenhuma ferramenta será útil para todas as obras, sendo evidente que existem diferentes instrumentos para diferentes propósitos, o que permite concluir que existem aqueles que são mais precisos/contundentes/afiados e aqueles que são simplesmente imprecisos/frágeis/cegos (chegando, inclusive, ao ponto de poderem se caracterizar como completamente defeituosos65). Tal esforço analítico torna possível classificar “argumentos” segundo as suas diferentes espécies, as quais são categorizadas de acordo com o seu critério de aplicação e pela sua força no amparar a conclusão desejada66. E desse tipo de empreendimento teórico surge um vasto catálogo de argumentos, como, por exemplo, argumentos dedutivos e indutivos, analíticos e sintéticos, formais e substanciais, analógicos, de autoridade, dentre muitos outros. Aliás, algo semelhante ocorre no campo do direito ao se classificar os argumentos jurídicos com base na sua fonte de produção ou a partir da força vinculante que exercer (e.g., argumentos semânticos, históricos, sistemáticos, sociológicos etc...). Não se pode negar que esse tipo de empreendimento classificatório seja de máxima importância para a compreensão do conteúdo da atividade argumentativa. No entanto, tais classificações não podem ser confundidas com uma teoria da argumentação completa, uma vez que, valendo-se mais uma vez da analogia acima utilizada, não se explica plenamente uma construção apenas elencando as ferramentas que foram usadas na sua construção.

Com efeito, uma verdadeira teoria da argumentação deve dar conta de todos os elementos constitutivos dessa atividade prático-discursiva, de modo a considerar seus pressupostos lógicos, epistemológicos, linguísticos, ontológicos e, inclusive, éticos. E serão esses aspectos de uma teoria da argumentação que se pretende delinear – de bastante modo resumido – nos itens que seguem.

Antes de se avançar, porém, podem ser sintetizados os conceitos até aqui expostos nos seguintes termos: a argumentação representa a atividade prático-linguística que visa a dar ou contraditar razões que amparem uma conclusão desejada por um dos partícipes desse empreendimento discursivo, sendo que tais razões estão fundamentadas em argumentos, assim entendidos como os elementos unitários que compõem as variadas cadeias de raciocínios que integram essa atividade argumentativa como um todo (e.g., “minha argumentação desenvolve-se de acordo com o seguinte raciocínio que é composto por três argumentos centrais”).

1.4. Elementos essenciais para uma Teoria da Argumentação (o “para que argumentar”, o “com o que argumentar” e “como se portar na argumentação”)

Considerando-se o escopo acima traçado, cabe esboçar, no reduzido espaço deste artigo, alguns elementos que podem ser considerados indispensáveis para a articulação de uma Teoria da Argumentação, os quais permitam compreender e avaliar essa atividade discursiva de forma mais completa, não apenas focando nos seus aspectos formais e linguísticos, como ocorre muitas vezes quando a atenção é destinada apenas ao estudo analítico das suas estruturas internas e à classificação das diferentes espécies de argumentos que são rotineiramente utilizados.

Portanto, entende-se também necessário que uma Teoria da Argumentação leve em consideração o objetivo último desse empreendimento cognitivo, bem como as atitudes práticas que devem ser exigidas ou podem ser esperadas dos indivíduos que participam desse tipo de empreendimento discursivo. Sem o detalhamento teórico desses aspectos, qualquer atividade argumentativa acaba apresentando-se como algo artificial e completamente distanciada da realidade prática em que embates argumentativos são, de fato, travados, na medida em que tal modo de idealização formal da argumentação acaba obscurecendo o “para que”, em última instância, argumentamos e o “como devemos nos portar” quando participamos de debates que visam a convencer terceiros da veracidade, validade ou plausibilidade das nossas conclusões.

Desse modo, propõe-se, aqui, que uma Teoria da Argumentação deverá desenvolver, ao menos, três aspectos teóricos internos, quais sejam: (i) uma teoria da verdade (o “para que argumentar”); (ii) uma gramática argumentativa (“com o que argumentar”); e (iii) uma ética argumentativa “como se portar na argumentação”)67. Vejamos.

1.4.1. Teoria da verdade

Todo empreendimento intelectual que pretende tornar mais clara (ou menos obscura) alguma dimensão da realidade, invariavelmente, pressupõe algum critério último de controle ou de verificação da compatibilidade com o mundo daquilo que está sendo afirmado ou negado por aquele que pretende convencer outrem do conteúdo das proposições por ele apresentadas em um ambiente intersubjetivo de discussão. Assim, qualquer tipo de teoria acaba adotando (mesmo quando não o faça expressamente) um elemento norteador, o qual se presta a atribuir sentido à atividade intelectual sendo realizada, bem como a fornecer um objetivo comum a todos que, direta ou indiretamente, dela participam, desde que esses partícipes não estejam agindo com má intenção, insinceridade ou por motivações arbitrárias68. A esse elemento norteador a filosofia da ciência normalmente atribui o nome de “verdade”69. Assim, qualquer teoria da argumentação – estando ela incluída no conceito de projeto científico – exigirá a formulação (consciente ou inconsciente) de uma teoria da verdade.

Isso, de nenhum modo, significa dizer que todas as teorias argumentativas tenham a pretensão de viabilizar sempre a formulação de argumentos verdadeiros ou, ainda, a de garantir o atingimento de conclusões que devam ser consideradas verdades insuperáveis. Ora, reconhecer a fundamentalidade de uma teoria da verdade não significa exigir que o conteúdo produzido por meio dos projetos teóricos que assumam tal pressuposto seja sempre verdadeiro. Exigir isso seria, sem dúvida, um absurdo. Esse pressuposto apenas corresponde à aceitação de que o fim de todo e qualquer empreendimento científico (seu telos) será sempre uma concepção substantiva de verdade, na medida em que uma ciência sempre necessitará de um critério último de verificação das explicações e justificações desenvolvidas pelos operadores desse empreendimento teórico. Não se pretende, ainda, com isso, sustentar que a prática argumentativa somente se interessa pelo veritativo ou por conclusões verdadeiras, pois, evidentemente, a argumentação também irá trabalhar com raciocínios válidos, hipotéticos, verossímeis, prováveis etc... De qualquer modo, não se pode negar que uma conclusão verdadeira possui um maior peso argumentativo, precisamente por avalizar o maior grau de objetividade em comparação com as demais espécies de conclusões, de modo que ninguém poderia, em termos lógicos, abdicar de uma conclusão verdadeira em favor de uma conclusão provável. Exatamente, por isso, a verdade funciona como o critério norteado que guia qualquer processo argumentativo.

Com efeito, o conceito de verdade pressuposto por qualquer teoria argumentativa exerce a função de ser (i) a linha condutora da racionalidade que deve guiar o respectivo discurso, (ii) o marcador definitivo de objetividade das premissas adotadas e das conclusões almejadas e (iii) o garantidor da inteligibilidade mínima da atividade discursiva sendo descrita, analisada ou criticada por meio dessa teoria. De outro lado, sem uma teoria da verdade, a respectiva atividade discursiva (i) será irracional e incontrolável, (ii) seu conteúdo arbitrário, subjetivo e meramente opinativo e (iii) seus resultados serão incompreensíveis, acidentais e aleatórios.

Obviamente, não há apenas uma forma de se definirem as propriedades inerentes à uma concepção de verdade, de modo que diferentes teorias poderão ser propostas como fundamento e objetivo último da atividade argumentativa. Por isso, uma teoria da argumentação poderá se estruturar em torno de diferentes concepções de verdade, adotando-se, por exemplo, as conhecidas teorias correspondenciais, coerenciais, consensuais e até não cognitivistas ou céticas70.

Seria excessivo e impertinente querer desenvolver todos os detalhes dessas diferentes noções da verdade neste artigo. De qualquer modo, pode-se destacar, nesse cenário teórico, representa pressuposto invariável de toda teoria da argumentação a adoção (implícita ou expressa) de concepção de verdade, mesmo que essa seja negativa ou deflacionada71. Isso porque o abraçar uma teoria da verdade enquanto exigência de racionalidade do discurso científico, antes de ser uma mera exigência lógica ou metodológica, é um compromisso ontológico, na medida em que sempre representa a asserção de que há uma realidade das coisas que é capaz de ser, intencionalmente, captada na sua forma. Dito de outro modo, a racionalidade que o conhecimento científico pressupõe é o que atesta ser possível captar a formalidade do real, com a intencionalidade subjetiva de querer conhecê-lo.

1.4.2. Gramática argumentativa

Reconhecer que uma teoria da argumentação deverá ser organizada em torno dos ideais de racionalidade, objetividade e inteligibilidade nada diz acerca de como essa atividade discursiva deverá ser linguisticamente ordenada e praticada por aqueles que se engajarem nesse empreendimento. Seria inútil uma teoria da argumentação que apenas anunciasse que a verdade deve ser buscada por meio do uso de argumentos, mas que não se dedicasse a elaborar um sistema explicativo responsável pela organização de critérios de estruturação, aplicação e avaliação dos argumentos a serem apresentados. Sem isso, o uso de argumentos permaneceria em um plano incontrolável, em que a argumentação poderia ser vista como mero artifício para mascarar preferencias pessoais ou apelos intuitivos, tornando a argumentação uma atividade acidental ou um processo de racionalização a posteriori de decisões arbitrárias já tomadas.

Portanto, uma teoria argumentativa sempre terá que se dedicar a explicitação de critérios que permitam organizar normativamente o modo como argumentos devem ser estruturados e expostos ou detalhar e classificar o modo como, em realidade, esses argumentos são por nós usados. Com efeito, qualquer teoria da argumentação necessitará de uma gramática argumentativa.

A Gramática representa um conjunto de prescrições e/ou descrições que pretendem ordenar ou explicar como uma determinada linguagem (natural ou formal) é utilizada de modo considerado correto72. A linguística contemporânea dedica-se intensamente ao estudo das estruturas formais que são necessárias para a formação de frases por meio do uso de palavras, especificando os critérios normativos que são indispensáveis para o uso de determinada linguagem com sentido e de modo válido, normalmente dividindo esse campo de estudo entre semântica, sintática e pragmática73. Por isso, qualquer proposta de teoria argumentativa deverá desenvolver uma gramática que organize os pressupostos lógicos e linguísticos dessa atividade discursiva, explicitando os sentidos básicos dos termos indispensáveis à argumentação, as regras a serem seguidas na combinação de enunciados para a construção de argumentos válidos, bem como a forma como argumentos são, intersubjetivamente, apresentados e recebidos por interlocutores em um ambiente de debate. A gramática argumentativa, portanto, é o que atribui conteúdo e solidez à uma teoria da argumentação, sendo esse o seu núcleo duro74.

Ocorre que, no campo da ciência do direito, considerando a enorme importância que a lógica deôntica e a filosofia analítica vem assumindo nas últimas décadas, as teorias da argumentação jurídica desenvolvidas nessa área do conhecimento quase sempre pressupõem que o estudo dessa disciplina exige tão somente o detalhamento dos aspectos formais e normativos que um procedimento argumentativo ideal deve seguir75. Não desejando minorar a fundamentalidade de uma gramática argumentativa, esse aspecto de uma teoria da argumentação jamais poderia ser considerado um projeto teórico completo. Esse reducionismo teórico, na verdade, acaba desenhando um cenário de argumentação um tanto artificial e bastante distanciado da realidade, normalmente culminando em uma descrição opaca e estéril de como efetivamente argumentos e contra-argumentos são oferecidos em um contexto prático concreto. Isso porque acabam desconsiderando determinados aspectos limitadores do intelecto humano (psicológicos, antropológicos e sociológicos) que são inerentes à subjetividade daqueles indivíduos que, de fato, irão usar argumentos no seu dia-a-dia.

Assim, ao focar-se apenas nas estruturas formais de um discurso, idealizando como devem ser travados embates argumentativos, tornam invisíveis uma série de obstáculos, vícios e focos de ignorância que a atividade argumentativa real sempre irá apresentar. Essa tendência teórica idealizadora, portanto, não esclarece porque um argumento estruturalmente hígido e integralmente verdadeiro pode não gerar convencimento para alguns ou ser simplesmente inaceitável a depender do ambiente em que é apresentado. Por isso, uma teoria da argumentação, além dos dois aspectos já aqui citados, deverá desenvolver uma Ética Argumentativa.

1.4.3. Ética argumentativa

Mesmo que o foco central de uma teoria da argumentação seja a sistematização da sua gramática, um projeto teórico completo dessa natureza deverá esclarecer como os interlocutores devem agir e se portar quando estiverem participando de um empreendimento argumentativo real.

Considerando que mesmo a mais perfeita gramática não será capaz de criar – apenas por meio dos seus instrumentos linguísticos e procedimentos normativos – um ambiente discursivo satisfatório que espontaneamente garanta honestidade e sinceridade nas intenções dos agentes, que imponha respeito à dignidade dos interlocutores, que gere sentimentos de empatia e tolerância diante de um opositor e que vincule todos ao valor intrínseco de uma proposição verdadeira, determinadas exigências éticas deverão ser compartilhadas ou desenvolvidas pelos seus partícipes de qualquer atividade discursiva-dialógica. Isso porque a boa argumentação necessita não apenas das regras argumentativas corretas, mas de pessoas com traços internos que sejam capazes de lhes dedicar respeito e efetivação76. Não é, portanto, exagero reconhecer que, sem uma ética argumentativa mínima, nenhuma argumentação será, de fato, possível.

Tais considerações devem ser vistas como puro sentimentalismo ou como um sonho utópico? Entende-se que não, pois a atividade argumentativa, considerada em termos ontológicos e não apenas em termos lógico-formais, pressupõe a participação integrada de duas capacidades discursivas, exclusivamente, humanas, quais sejam: o intelecto e a vontade. Esses são, portanto, os dois “influenciadores” de um discurso racional77. E, enquanto capacidades humanas, conceitualmente, imperfeitas, tanto o intelecto, quanto a vontade poderão ser alvo de uso defeituoso78. Exatamente por isso, uma perfeita gramática argumentativa (considerando hipoteticamente que seja possível elaborar algo assim) apenas seria capaz de harmonizar os processos mentais do indivíduo que argumenta com as exigências lógicas e racionais que esse tipo de discurso irá, normativamente, impor. Com efeito, a só-retidão formal de mecanismos argumentativos não será jamais garantia do seu uso adequado dentro de determinado contexto real de aplicação, pois argumentar não é apenas um modo de pensar, mas também um modo de agir e tal ação para ser adequada em termos práticos não pode apenas buscar conformidade teórica, mas deve também ambicionar conformidade ética.

De outro lado, não só o pensamento pode ser treinado para permitir uma melhor construção de argumentos (por meio de chamadas de virtudes intelectuais), mas também as disposições volitivas do sujeito podem ser treinadas a ponto de criar um hábito (por meio das chamadas de virtudes morais) que será capaz de controlar as influências emocionais e passionais que poderão obstaculizar ou até inviabilizar a apresentação de argumentos válidos e verdadeiros em determinados contextos. Dito de forma mais clara, bons argumentos podem perder a sua relevância e utilidade se forem formulados e apresentados em público com algum tipo descontrole emocional, tal como arrogância, raiva, medo, inimizade etc... Com efeito, uma teoria ética argumentativa visa a fornecer critérios (não meramente teóricos) que harmonizam as atividades do intelecto na construção de argumentos com os fatores volitivos que influenciam todos aqueles agentes humanos que participam desse empreendimento discursivo, o que é realizado, não pela aprendizagem de regras e fórmulas, mas por meio do treinamento de determinados hábitos saudáveis (i.e., virtudes79) daqueles que argumentam80.

Uma teoria argumentativa completa deve, portanto, em termos ontológicos, almejar duas ordens de harmonização, fornecendo elementos que esclareçam e tornam inteligíveis não uma harmonia interna (i.e., do pensamento com as regras lógicas da argumentação), mas também uma harmonia externa (i.e., dos argumentos corretamente formulados com aqueles sujeitos que deverão ser por eles persuadidos)81. Para tanto, uma adequada teoria da argumentação deverá ser estruturar e propor um conjunto de “virtudes argumentativas” que se recomenda seja desenvolvido pelos partícipes de uma interação discursiva, na qual se pretende argumentar e contra-argumentar soluções possíveis para um problema prático, de modo a viabilizar uma real cooperação discursiva entre eles. Diferentemente do que pressupõem teorias argumentativas lógicas e analíticas, as regras formais que criam um procedimento colaborativo para a discussão não serão suficientes de, por si só, criarem esse ambiente. Isso porque um ambiente saudável de argumentação depende de alguns traços de personalidade manifestados por seus operadores, os quais são os únicos capazes de efetivamente criar condições substanciais que permitem a formação de determinados vínculos que estimulam a aceitação de argumentos legítimos e que tendem a excluir (ou minorar a presença de) atitudes danosas a esse empreendimento discursivo.

Novamente em razão dos limites expositivos deste artigo, não se mostra viável o desenvolvimento completo e detalhado da lista de virtudes argumentativas que são recomendáveis na argumentação. De qualquer modo, para que não seja integralmente procedente a eventual crítica de incompletude dos comentários propedêuticos preparados para este artigo de homenagem, pode- se aqui apresentar um esboço precário e ainda provisório da ideia central sendo construída – do piso para cima – neste estudo.

Para tanto, mostra-se esclarecedora a sugestão (provisória e incompleta) para uma ética argumentativa que se estruture em torne das quatro virtudes consideradas cardinais dentro da tradição aristotélico-tomista, quais sejam: (i) prudência, (ii) justiça, (iii) temperança e (iv) fortaleza/coragem82. Nessa visão, essas quatro disposições virtuosas serão indispensáveis na condução saudável de uma discussão prática, pois indicam uma tendência (mas não uma certeza) de que as atitudes intersubjetivas serão bem-intencionadas, serenas, amistosas, honestas, etc.., permitindo que o melhor argumento tenda a prevalecer, mesmo quando não perfeitamente compatível com o conjunto de interesses de um dos interlocutores. De outro lado, em um ambiente discursivo viciado, o mais perfeito dos argumentos será sempre infrutífero para aquele que for absolutamente imprudente, injusto, raivoso (ou incontinente) e covarde (ou inconstante). Importante, ainda, ressaltar que, tal ética argumentativa, exige que todas as virtudes acima destacadas83 sejam vistas como complementares e não excludentes, nenhuma delas podendo ser integralmente abdicada em uma determinada situação concreta de debate. Como acima adiantado, este tópico seria merecedor de um verdadeiro tratado para que as ideias aqui esboçadas pudessem adquirir a sua verdadeira forma. Mesmo assim, apenas para fins ilustrativos, a seguinte tabela poderá auxiliar na visualização superficial de uma pequena parte do que se pretende aqui sustentar:

Virtude

Conteúdo prático

Conteúdo argumentativo

Vício

Prudência

Saber avaliar meios adequados que estão disponíveis para atingir um fim correto

Escolher quais argumentos são mais eficientes para gerar persuasão do auditório particular que pretende ser convencido

Imprudência argumentativa

Justiça

Saber o que é devido a alguém em um contexto relacional

Avaliar quais argumentos devem ser apresentados para um determinado interlocutor, tendo em vista os seus possíveis limites cognitivos (imaturidade, despreparo ou ignorância)

Injustiça argumentativa

Temperança

Saber controlar as paixões para evitar desejos excessivos (saber controlar emoções)

Ter paciência e serenidade na apresentação de argumentos contra interlocutor emocionalmente descontrolado, desinteressado ou mal-intencionado

Destemperança argumentativa

Fortaleza/Coragem

Saber agir controlando o temor acerca do próprio bem-estar (saber resistir ao doloroso ou difícil)

Ter coragem de apresentar argumentos verdadeiros perante aqueles que poderão ser agressivos ou em situação que poderá gerar consequências prejudiciais ao sujeito que argumenta

Covardia argumentativa

2. A evolução no pensamento de Humberto Ávila e sua Teoria da Argumentação

2.1. A proposta classificatória de argumentos jurídicos e sua força prima facie

No tópico anterior, pretendeu-se desenhar a moldura para uma teoria da argumentação que fosse capaz de enquadrar as mais diferentes propostas teóricas. E, com razão se poderia sustentar que uma pintura pode receber diferentes molduras, da mesma forma que determinadas molduras não serão esteticamente compatíveis com qualquer obra de arte. Tal ponto de crítica abre um flanco inesgotável de debates, pois, sem dúvida, será possível discutir-se ao infinito as possíveis metateorias da argumentação (i.e., teorias sobre teorias argumentativas). Mesmo que assim seja, entende-se que a proposta acima esboçada – além de trazer alguns elementos essenciais para o estudo de qualquer prática argumentativa, não apenas em termos analítico-formais, mas também em termos substancias e existenciais – permitirá bem compreender aspectos fundamentais do pensamento teórico de Humberto ÁVILA, especialmente para se captar um importante movimento evolutivo no seu projeto teórico de análise da ciência do direito.

Para tanto, inicia-se pela apreciação crítica do principal texto em que ÁVILA elabora a sua proposta para uma teoria da argumentação aplicável ao direito, a qual se encontra no artigo “Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico”84. Defender-se-á que esse trabalho marca uma primeira fase (HA1) na formulação do pensamento teórico do jurista aqui homenageado, sendo que esse gradualmente passa por importante processo evolutivo que culmina em uma elaboração mais completa e aprofundada dos diferentes jogos de linguagem que serão necessários na execução das atividades interpretativas e argumentativas no âmbito do direito. Essa segunda fase (HA2), inicia-se no seu “Teoria dos Princípios” e é, posteriormente, consolidada nos artigos “Função da Ciência do Direito Tributário: do Formalismo Epistemológico ao Estruturalismo Argumentativo” e “Ciência do Direito Tributário e Discussão Crítica”85.

Pois bem, iniciemos pela análise da primeira fase aqui demarcada.

Partindo da conhecida distinção entre a justificação interna e a justificação externa86, a qual se presta, em outros termos, a diferenciar o plano da validade argumentativa (i.e., coerência entre premissas, conclusão e a inferência que conduz tal raciocínio) e o plano veracidade (i.e., demonstração do grau de objetividade do conteúdo dos enunciados contidos nesse silogismo), adota-se a definição de “argumentos” como sendo os “elementos de justificação racional da interpretação jurídica” em que a “tarefa da interpretação jurídica é, precisamente, fundamentar esse tipo de premissa”87. Pode-se entender que a justificação interna materializa por meio do respeito às regras que compõem a gramática argumentativa – tal como definida na primeira parte deste artigo. Já a justificação externa dependerá de um tipo de atividade intelectual de distinta natureza, a qual, segundo HA1, poderá fornecer diferentes interpretações dos dados externos que dão conteúdo às premissas que são “escolhidas” por aquele que argumenta, o qual deverá “decidir” qual interpretação será prevalecente nesse caso, o que permitirá que surjam, também, divergências entre “os próprios argumentos que são utilizados pelos autores para justificar as premissas que adotam”88. Portanto, uma teoria da argumentação jurídica deverá apresentar “critérios para valorar as decisões de intepretação de acordo com o ordenamento jurídico (razões justificativas ou objetivas)”, o que exige a apresentação dos diferentes tipos de argumentos, conforme o “seu fundamento”, bem como o valor que cada um assume perante o “ordenamento jurídico brasileiro”89. Quanto a essas primeiras colocações, três observações críticas já podem ser apresentadas.

Em primeiro lugar, ao se assumir que quem argumenta “escolhe” as suas premissas e depois “decide” dentre as opções interpretativas que, de início, estavam em colisão está adotando um ponto de partida que contém um gérmen de voluntarismo argumentativo. Isso porque, por meio do uso dessa terminologia, acaba-se dando ênfase à atividade volitiva do intérprete na resolução dos conflitos hermenêuticos, com os quais se depara enquanto realiza o seu processo interno de cognição, e isso pressupõe que não esteja ele submetido a critérios veritativos que limitam quais enunciados poderão ser considerados efetivas premissas a serem inseridas no seu argumento, bem como que excluem aqueles enunciados falsos, inverossímeis ou improváveis, os quais, a rigor, não poderiam ele desejar escolher como uma premissa. Mesmo que todos os raciocínios relevantes, aceitáveis e pertinentes a um debate possam partir de diferentes premissas, sendo evidente que não existem premissas já prontas à disposição do intérprete, apenas aguardando a sua identificação e coleta, também não soa plausível presumir que tal atividade intelectual envolva uma simples escolha ou decisão desta ou daquela premissa. Em verdade, a seleção das premissas sempre deverá impor ao agente uma deliberação interna que sofre a influência de fatores inerentes à sua racionalidade. Até porque, após o desdobramento do processo discursivo interno e a exposição pública das premissas que acabaram ingressando como conteúdo da sua argumentação, seus interlocutores sempre poderão questionar o motivo no uso dessa premissa ou dessa forma de interpretar-se seu conteúdo e jamais será satisfatório dizer apenas “assim escolhi” ou “porque assim decidi”.

Portanto, aparenta ser mais afinada com a realidade argumentativa a presunção de que, das inúmeras premissas possíveis, o argumentar está normativamente vinculado ao deliberar acerca dos conteúdos a serem extraídos dessas opções (e, inclusive, permitir seja o sujeito chamado, posteriormente, a considerar outras premissas), descobrindo os méritos e defeitos das alternativas disponíveis, de modo a firmar, ao final desse processo racional, a convicção acerca de quais são mais razoáveis, plausíveis ou até decretar qual é a verdadeira (este último, obviamente, ocorre em situações mais raras). Certo é, porém, que o intérprete não “escolhe” tout court quais as premissas do seu raciocínio nem decide, solipsisticamente, qual a intepretação ele seguirá. Neste ponto, como já adiantado na primeira parte deste estudo, fica clara a importância máxima que uma teoria da verdade assume na ordenação de uma teoria da argumentação.

Em segundo lugar, a classificação de argumentos jurídicos proposta por HA1, em nossa visão, não está articulada em razão do seu “fundamento” – assim entendido como aquilo que esclarece seus pressupostos essenciais, sejam de ordem lógica, epistemológica ou ontológica – mas, sim, em razão da fonte de produção formal (ou não) na qual se escora determinado argumento. Tal ponto será melhor explorado em seguida.

Por fim, cabe questionar se a força de justificação e persuasão de um determinado argumento jurídico é, em todos os casos possíveis, determinada pela sua proximidade com ou sua distância do texto do DPV, na medida em que, conforme se pretende analisar, haverá situações de debates jurídicos em que o critério da vinculação imediata ou mediata com o ordenamento jurídico- positivo não será o fator determinante90. Essa questão também será enfrentada de forma mais profunda posteriormente.

Pois bem, colocando-se em suspenso tais considerações críticas iniciais, cabe detalhar a classificação de argumentos elaborada por HA1.

A proposta classificatória estruturada por HA1 parte de uma primeira separação geral de argumentos jurídicos, a qual os divide entre “institucionais” e “não institucionais”, sendo os primeiros “aqueles que, sobre serem determinados por atos institucionais – parlamentares, administrativos, judiciais –, têm como ponto de referência o ordenamento jurídico”, enquanto os segundos “são decorrentes apenas do apelo ao sentimento de justiça que a própria interpretação evoca”91 e que “não fazem referência aos modos institucionais de existência do direito”, reportando-se, assim, a “qualquer outro elemento que não o próprio ordenamento jurídico”92.

A primeira categoria possuiria, pelo seu próprio conceito, “maior capacidade de objetivação”, enquanto que a segunda possuiria menor93. Aqui, percebe-se que a noção de objetividade de um determinado argumento é mensurada, exclusivamente, pelo grau em que seu conteúdo é consagrado no texto do direito positivo vigente (DPV), oscilando do mais ao menos conforme a intensidade com que se pode reconduzir – direta ou sistematicamente – uma conclusão ao conteúdo escrito do material jurídico (e.g., Constituição, leis, decretos, precedentes etc...) invocado pelos operadores do direito na sua atividade prática diária.

Por isso, no que se refere ao menor grau de objetivação dos chamados argumentos “não institucionais”, esclarece HA1 que eles são “meramente práticos que dependem de um julgamento, feito pelo próprio intérprete, sob o ponto de vista econômicos, políticos e/ou éticos”94, razão pela qual “nunca serão conclusivos, porque manipuláveis arbitrariamente conforme interesses em jogo”, precisamente pela “falta de referência a pontos de vista objetivos e objetiváveis”95.

Continuando no detalhamento analítico dessa classificação, os argumentos de natureza “institucional” abarcariam ainda uma subdivisão entre “imanentes” e “transcendentes”, sendo os primeiros “construídos a partir do ordenamento jurídico vigente, assim da sua linguagem textual e contextual como dos seus valores e da sua estrutura” e os segundos “aqueles que não mantêm relação com o ordenamento jurídico vigente, mas dizem respeito ou a sua formação ou ao sentido dos dispositivos que eles antes continham”96.

Os “imanentes” receberiam, por sua vez, mais uma ramificação, de modo a permitir separá-los entre institucionais-linguísticos e os institucionais-sistemáticos, sendo que os linguísticos buscariam a sua carga de justificação no significado (semântico ou sintático) que se poderia extrair dos “dispositivos ou enunciados prescritivos” presentes no DPV, enquanto que os sistemáticos dependeriam, não diretamente dos textos autorizados em vigor, mas sim do modo como os elementos presentes no DPV poderiam ser relacionados e confrontados, visando a afastar contradições internas e garantir maior coerência sistêmica. Por isso, esses últimos envolveriam a combinação de “princípios ... com a norma objeto de interpretação”, exigiriam a análise de questões envolvendo a localização de um dispositivo dentro do sistema jurídico ou a constância no uso de uma expressão jurídica, bem como a invocação de precedentes jurisprudenciais que exercem “papel fundamental na construção do significado de qualquer norma constitucional”97.

Por fim, os chamados argumentos “transcendentes” seriam “históricos” ou “genéticos”, os quais seriam desprovidos de força vinculante própria, mas apenas participariam da recomposição do sentido da norma que, hoje, seria válida. Os “históricos” fariam referência ao “texto normativo” não mais vigente e os genéticos a “textos não normativos”, representando apenas os elementos deliberativos que participaram do processo de elaboração do DPV, mas que não chegaram integrar expressamente o produto normativo final (e.g., debates parlamentares, projetos legislativos e exposição de motivos, indicadores daquilo que é conhecido como a “vontade do legislador”)98.

Pois bem, diante de tal lista de argumentos jurídicos, HA1 propõem uma forma de hierarquizar o uso de tais argumentos com base em três regras prima facie de interpretação, quais sejam: (a) argumentos institucionais prevalecem sobre não institucionais; (b) argumentos imanentes prevalecem sobre transcendentes; e (c) a justificação daqueles argumentos considerados imanentes deve levar à escolha de significado “mais coerente com os princípios constitucionais axiologicamente sobrejacentes à norma interpretada”99. Com isso, de modo a esquematizar essa escala hierárquica e apriorística de argumentos jurídicos, propomos, aqui, a seguinte tabela comparativa:

A

R

G

U

M

E

N

T

O

S

C

O

N

T

E

Ú

D

O

INSTITUCIONAIS

NÃO INSTITUCIONAIS

(a) Imanentes

(b) Transcendentes

1. Linguísticos

2. Sistemáticos

3. Históricos

4. Genéticos

5. Práticos

1.

Elementos semânticos ou sintáticos extraídos dos enunciados prescritivos contidos no direito positivo vigente.

2.

Elementos contextuais extraídos da leitura coerente e não contraditória do sistema jurídico ou da construção de significados por meio jurisprudencial.

3.

Elementos “textuais normativos” extraídos do direito positivo não mais vigente.

4.

Elementos “textuais não normativos” que participaram do processo de formação do direito positivo vigente, mas que não integraram o seu produto final.

5.

Questões políticas, econômicas e éticas, avaliações consequenciais e invocação de sentimento de justiça.

Maior grau de objetivação e controle racional intersubjetivo do argumento

Menor grau de objetivação e controle racional intersubjetivo do argumento

Não permitem controle racional objetivo, apoiando-se em opiniões subjetivas e pessoais

A explicação para esse escalonamento no peso justificador de cada espécie de argumento estaria fundada nos seguintes princípios jurídicos consagrados pela Constituição Brasileira de 1988: o princípio do Estado Democrático de Direito, o Republicano, o Democrático e da separação de poderes100. Tais normas constitucionais presentes no nosso sistema jurídico seriam a razão justificadora da prevalência dos argumentos institucionais imanentes (sejam linguísticos, sejam sistemáticos) diante dos argumentos transcendentes (históricos e genéticos), na medida em que os atos do parlamento possuem autoridade para decidirem como problemas práticos devem ser resolvidos e somente quando tais decisões deixarem margem à indeterminações linguísticas, ambiguidades ou lacunas é que se deveria recorrer aos demais atos institucionais que não derivariam diretamente do DPV101. Além disso, pelos mesmos motivos, os chamados argumentos não institucionais teriam ainda maior fraqueza justificadora, pois “nem mesmo indiretamente fazem referência à força vinculativa do Poder Legislativo”102, de modo que não poderiam ser reconduzidos aos princípios constitucionais acima referidos.

Feita a síntese das principais ideias defendidas no artigo aqui submetido à análise, pode- se, com o espírito amistoso e fraterno que inspira a presente homenagem, destacar os seguintes aspectos criticáveis da teoria da argumentação proposta por HA1, os quais, em grande parte, foram retificados ou aprimorados por HA2, conforme se verá no item que segue.

Comecemos pelo critério de classificação de argumentos adotado, qual seja: a força justificadora de uma espécie de argumento é derivada exclusivamente do grau de proximidade que mantém com as fontes formais de produção do DPV. O peso de um argumento jurídico, portanto, é sempre definido pela forma como as respectivas proposições argumentativas podem ser reconduzidas a atos que foram, no passado, recepcionados pela estrutura política do Estado (Poderes Constituinte, Legislativo, Judiciário e Executivo)103. Por isso, todos os argumentos assim classificados seguem um critério comum e possuem, em certo sentido, uma mesma estrutura argumentativa, a qual apenas depende do modo como determinado conteúdo normativo se relaciona com o DPV104 (textualmente, sistematicamente, historicamente, geneticamente ou negativamente).

Com efeito, a gramática argumentativa aqui proposta pressupõe que a argumentação no direito esteja incorporada por apenas um “jogo de linguagem”, o qual poderia ser discursivamente compreendido a partir de único fator e esse seria o “ponto de referência [diante d]o próprio ordenamento jurídico”. É inegável que os argumentos chamados institucionais possuem maior grau de inserção social e, por isso, garantem maior grau de publicidade, comunicabilidade, consensualidade e, por consequência, devem assumir força justificadora mais intensa na maior parte das discussões práticas relevantes ao direito. No entanto, tal consideração, da forma como apresentada, gera algumas dificuldades que não podem deixar de ser destacadas. Isso porque não se pode limitar argumentação jurídica apenas aquelas atividades discursivas que se prestam a convencer os agentes públicos de que a conclusão pretendida é a que está mais diretamente vinculada ao DPV. Como já referido na primeira parte deste artigo, não se pode reduzir a argumentação jurídica a uma espécie de argumentação judicial ou advocatícia, em que o mérito definitivo de um argumento pode ser visto como a sua capacidade de coagir um determinado órgão do Poder Estatal a se vincular à conclusão pretendida por aquele que argumento105. Ao menos três tipos de atividades discursivas poderiam ser consideradas perfeitamente jurídicas, mas cuja argumentação não iria seguir, de modo fiel e cogente, o critério proposto por HA1: (a) um debate jurídico ainda puramente científico, em que se argumenta qual seria a melhor resposta que o Direito pode dar para a resolução de um problema prático real, independentemente das idiossincrasias e paroquialidades de um ordenamento jurídico concreto; (b) um debate jurídico para possíveis soluções, no plano internacional, a problemas práticos de ordem global, em que inúmeros ordenamentos jurídicos disputariam prevalência e, teoricamente, nenhum poderia ter prioridade em relação a outro; e (c) discussões jurídicas sobre o conteúdo de uma nova ordem constitucional a ser implementada, a qual dependerá precisamente da derrogação do suporte de validade do DPV. Nesses casos, a hierarquia de argumentos fornecida não segue necessariamente as regras de prevalência oferecidas por HA1.

Em segundo lugar, vislumbram-se certas dificuldades conceituais com a ideia de argumentos “não institucionais”, os quais, como se viu, por sua natureza, teriam “menor capacidade de objetivação”. Ocorre que, considerando o critério classificatório antes referido, tal tipo de argumento é definido, prioritariamente, de modo negativo (i.e., pela carência de uma propriedade que esse tipo de argumento não possuiria), pois a sua fraqueza justificadora seria derivada do fato dele não fazer qualquer referência ao DPV, o que novamente conduz às lacunas explicativas destacadas no parágrafo anterior. Além disso, em mais adiante, os argumentos de estilo não institucional são definidos negativamente em razão da sua própria ausência de objetividade, na medida em que, no final das contas, esses sequer viabilizariam algum debate intersubjetivamente controlável, pois, segundo HA1, “apoiam-se exclusivamente em opiniões subjetivas e individuais, contrapondo-se, portanto, às exigências de racionalidade e de determinabilidade da argumentação, ínsitas ao princípio do Estado Democrático de Direito”106. Como se vê, os chamados argumentos “não institucionais” – dentro da moldura teórica proposta – acabam se transformando exatamente naquilo que se desejaria evitar por meio do esforço classificatório pretendido, visando a organizar e esclarecer argumentos jurídicos dotados de mínima objetividade e intersubjetivamente controláveis. Ocorre que os argumentos “não institucionais” se prestam apenas para demarcar aquilo que estaria fora do âmbito discursivo dotado de alguma pretensão de objetividade. Ora, assim definidos os argumentos “não institucionais”, caberia verificar se esses seriam, de fato, argumentos jurídicos em algum sentido inteligível ou se, em verdade, deveriam ser entendimento como simples instrumentos retóricos, desprovidos de conteúdo racional passível de justificação e capazes de gerar convencimento público. Isso porque, se são definidos como subjetivos, opinativos, irracionais e jamais capazes de determinar objetivamente o resultado de uma discussão prática, seria contraditório querer enquadrá-los no conceito de argumentos enquanto “elementos de justificação racional da interpretação jurídica”. Em verdade, eles seriam – na melhor das hipóteses – apenas uma cortina de fumaça que se prestaria a favorecer o acolhimento de desejos pessoais ou interesses setoriais, a qual, uma vez denunciada e desmascarada, deveria ser excluída da atividade argumentativa, para deixar prevalecer apenas aqueles argumentos que poderiam ser, legitimamente, caracterizados como tal. Desse modo, dentro da matriz proposta, argumentos “não institucionais” seriam pseudoargumentos e, em realidade, somente os argumentos “institucionais” deveriam participar de modo influente e determinante do empreendimento argumentativo.

A separação entre argumentos “institucionais” e “não institucionais”, ainda, cria um impasse curioso, uma vez que a invocação de questões substancias que se reportam a “sentimentos de justiça” ou avaliações pragmáticas acerca da eficiência ou da consequência de uma decisão107 podem, em um primeiro momento, não contar com qualquer ponto de referência no DPV, mas serem, posteriormente, incorporadas ao ordenamento jurídico positivo por decisão de órgão de poder, como é o caso do princípio da eficiência, introduzido no artigo 37 da Constituição apenas pela EC 19/98, e, mais recentemente, o artigo 24 da LINDB108, o qual consagra a necessidade de formulação de argumentos consequenciais na esfera pública. Seria extravagante afirmar que, em período anterior à positivação no ordenamento brasileiro desses dispositivos, esse tipo de argumento (i.e., de eficiência e com base nas consequências esperadas) seriam subjetivo, opinativo e não passível de controle racional, mas que passaria a ser objetivável, racional e controlável após a sua consagração expressa no DPV.

Em terceiro lugar, merece ser discutida a intenção de se fundamentar uma proposta de teoria da argumentação diretamente na Constituição em vigor, bem como de justificar a força das regras de prevalência argumentativa nos princípios do Estado de Direito, Republicano, Democrático e Separação de Poderes.

Quanto ao primeiro ponto, há um sentido possível dessa afirmação que contém um elemento incontroverso, na medida em que muito dificilmente alguém estaria disposto a admitir que a teoria jurídica sendo por esse defendida estaria contraditando ou seria manifestamente incompatível com o conteúdo consagrado no texto constitucional. Para aquele que efetivamente deseja realizar ciência do direito, mostra-se como uma tendência universal, ao menos psicologicamente, a pretensão de formular uma teoria jurídica que se apresente como sendo aquela que melhor capta aquilo que deseja ser transmitido e promovido por uma determinada Constituição (ou até por mais de uma Constituição). De outro lado, porém, em uma perspectiva científica mais ampla, a veracidade e a higidez de uma teoria da argumentação jurídica não poderão depender apenas das escolhas contingentes adotadas pelos redatores de um texto constitucional. Isso porque, por um, seria um tanto exagerada a presunção de que os membros do Poder Constituinte teriam, intencionalmente, privilegiado uma teoria argumentativa em prejuízo de outras, não se podendo, inclusive, descartar a possibilidade de que nenhum modelo de interpretação e argumentação tenha sido sequer imaginado por aqueles responsáveis pela elaboração do texto constitucional. As opções de teorias argumentativas a serem seguidas, portanto, ficam a cargo dos teóricos do direito e não daqueles investidos de poder (mesmo que esses venham, intencionalmente, a se arrogar dessa pretensão).

Por dois, os instrumentos fornecidos por uma teoria argumentativa prestam-se não apenas para explicar/justificar, da melhor forma possível, o conteúdo do DPV, mas esses também poderão ser utilizados para criticar esse mesmo conteúdo ou propor conteúdos de inovação paradigmática, em especial nos casos (a), (b) e (c) destacados parágrafos acima. Por isso, os méritos de uma teoria argumentativa para o direito devem ser pensados e fixados de modo pré-constitucional para que tal instância crítica seja preservada. Ao se negar tal escopo a uma teoria argumentativa, ela poderá redundar em uma simples descrição de como argumentos jurídicos são rotineiramente aplicados e recebidos pelos órgãos estatais.

Aliás, seguindo uma das importantes lições de TOULMIN antes destacada, a atividade argumentativa pressupõe alguns elementos essenciais que são invariáveis, ou seja, definidos de modo independente do seu campo de aplicação. Por isso, se tal pressuposto está correto, tais elementos invariáveis de uma teoria argumentativa não buscarão seu fundamento nesse ou naquele texto constitucional nem nessa ou aquela instituição política. Portanto, os méritos de uma teoria da argumentação jurídica concreta dependerão da sua capacidade de melhor ordenar as exigências lógicas e racionais ditadas por uma teoria da verdade, uma gramática argumentativa e uma ética argumentativa, mesmo que, simultaneamente, deva demonstrar mínima compatibilidade com a Constituição sob a qual deverá funcionar.

Por isso, pode-se concluir que as vantagens que se atribui a um sistema republicano, democrático, representativo e observador do Estado de Direito não os são fatores que justificam necessariamente a prevalência da semântica sobre a sintática nem do direito positivado sobre o direito não (mais) positivado. Analisando-se a questão em termos epistemológicos, a determinabilidade e a clareza linguística que se extrai de um texto (qualquer, não apenas jurídico), por si só, já projeta autoridade cognitiva superior (portanto, prioridade epistemológica) diante de qualquer outro caminho interpretativo que conduza à obscuridade, vagueza ou ambiguidade no uso de determinadas expressões. De modo semelhante, epistemologicamente, um conjunto de informações e dados qualificados como atuais e que partam de decisões práticas ainda consideradas vigentes possuem uma prevalência – apenas de modo apriorístico – em relação aos diferentes conteúdos informacionais que ficaram no passado.

Com isso se quer defender que a superioridade de um argumento derivado diretamente da sua consagração semântica em textos positivados e institucionalizados não possui nenhuma relação necessária com a natureza de regime político em que esses sejam produzidos. Ora, determinados tipos de governos autoritários (ou até totalitários) certamente poderiam defender que os argumentos prevalecentes na aplicação do direito seriam aqueles extraídos diretamente dos textos jurídicos vigentes (até porque com grande probabilidade esses acabariam também sendo produzidos pelo mesmo mecanismo de poder), de modo que, também nesse contexto não democrático, o mesmo estilo de escala argumentativa poderia ser sustentada como correta, em que argumentos semânticos valeriam mais que sistemáticos e, esses, por sua vez, mais que históricos e genéticos109. E, de modo curioso, é precisamente em cenários políticos não democráticos – marcadamente em autoritarismos personalistas, nos quais a “instituição jurídica” mais importante é a própria personificação do ditador – que argumentos “não institucionais” serão considerados de baixíssimo grau de objetividade, na medida em que esses, quando invocados por alguém que não está vinculado a uma instituição de poder, serão automaticamente descartado pelo estamento jurídico oficial como “nunca ... conclusivos, porque manipuláveis arbitrariamente conforme interesses em jogo”, precisamente pela “falta de referência a pontos de vista objetivos e objetiváveis”.

Importante destacar que, por meio dessas ponderações, não se está querendo defender que o conteúdo interno da proposta classificatória de HA1 seja falsa ou irrelevante nem se está querendo negar que instituições democráticas e republicanas sejam as mais adequadas para a boa prática discursiva110. De forma alguma! Apenas se destaca que o fundamento dos pesos argumentativos propostos (mesmo que a sua escala possa ser considerada correta) não poderá ser justificado a partir dos conteúdos de determinados princípios jurídicos consagrados em uma Constituição. Em realidade, uma adequada teoria da argumentação deverá fincar seu suporte em elementos formais e materiais que transcendam tais contingências.

Feitos tais apontamentos críticos à teoria da argumentação jurídica formulada por HA1, cabe expor como seu pensamento evoluiu de modo a elaborar uma proposta teórica mais robusta, complexa e aprofundada, o que permite, inclusive, identificar uma nova fase na sua produção teórica (HA2). Com efeito, conforme se passa a expor, HA2 redimensiona o campo de atuação da ciência jurídica, ampliando as funções interpretativas e argumentativas a serem praticadas no âmbito do direito, o que torna possível retificar inúmeras das dificuldades e lacunas acima apresentadas.

2.2. Aprofundamento teórico a partir das funções da ciência do direito

Há um interessante paralelismo entre a evolução teórica no pensamento de WITTGENSTEIN, no campo da filosofia, e de ÁVILA, no campo da teoria do direito, uma vez que, nos dois casos, é possível identificar um relevante aumento no escopo de captação da realidade pretendida, por cada um, a ser analisada e ordenada nos seus respetivos campos de conhecimento. Conforme já destacado neste estudo, o “Primeiro Wittgenstein”, no Tractatus, pretendeu arquitetar um sistema todo abarcante de proposições, estruturadas segundo uma única lógica, o qual seria adequado e suficiente para resolver todas as disputas filosóficas por meio da ordenação semântica e sintática dos seus elementos linguísticos. Por isso, todos os problemas filosóficos dependeriam apenas de um esclarecimento linguístico, ao qual caberia afastar contradições e obscuridades, de modo que aquilo que não pudesse ser compatibilizado com esse sistema denotativo estaria apenas fora do alcance de qualquer controle racional, representando, em verdade, pseudoproblemas filosóficos (sobre os quais deveríamos apenas nos calar). Como visto acima, guardadas as devidas proporções, HA1 propôs uma teoria da argumentação que estaria fundamentada em um único critério de objetividade (a proximidade do conteúdo interpretativo com a respectiva fonte formal de produção do DPV), o qual ordenaria uma lista de argumentos jurídicos hierarquizados a partir desse mesmo critério e que valorizariam, em realidade, apenas aqueles que pudessem encontrar algum escoro no sistema jurídico vigente e relegariam ao campo da mera subjetividade e irracionalidade os argumentos não vinculados a esse critério, na medida em que não objetivamente controláveis, de modo que, no final das contas, esses seriam apenas pseudoargumentos aguardando ser desmascarados ou retificados.

Como também já visto, o “Primeiro Wittgenstein” acaba sendo explicitamente rejeitado pelo WITTGENSTEIN do Investigações, o qual passa a defender que não há apenas uma lógica por trás da linguagem, mas sim inúmeras formas de sua estruturação, razão pela qual existem diferentes práticas linguísticas (jogos de linguagem), as quais somente poderão ser compreendidas por aqueles que participarem efetivamente do respectivo contexto discursivo, estando esse sempre vinculado a uma forma de vida. Conforme se passa a demonstrar, HA2 pode ser interpretado como tendo realizado semelhante movimento teórico (obviamente, não idêntico em todos os aspectos111), em especial no que se refere à reformulação das funções da ciência do direito, ampliando o números de critérios epistemológicos que participam da atividade interpretativa e argumentativa no direito, podendo ele, assim, ser lido como estando a fixar as bases para diversos jogos interpretativos-argumentativos (e.g., descritivos, construtivos, reconstrutivos, decisórios e criativos) necessários à compreensão e aplicação do direito. Assim, vejamos.

Nenhuma mudança de paradigma ocorre de abrupto, mas sempre pressupõe um gradual movimento de esgotamento dos modelos teóricos disponíveis na resolução de problemas, uma crise epistêmica surgida em razão dessas dificuldades e um ato de conversão para um novo sistema que, não derroga o anterior, mas o aprimora em inúmeros dos seus elementos essenciais112. Entendemos que tal ruptura paradigmática, no caso do pensamento teórico de Humberto ÁVILA, deu-se com a publicação do seu já clássico “Teoria dos Princípios”.

Abre-se tal obra com o diagnóstico de uma verdadeira crise paradigmática que estaria sendo vivenciada no cenário jurídico brasileiro, a qual poderia ser rotulada pelo nome de “Estado Principiológico” em que “exageros e problemas teóricos” teriam “inibido a própria efetividade do ordenamento jurídico”113. Dentre os problemas que marcariam essa crise paradigmática, os seguintes mereceriam aqui destaque: (i) a invocação sem controle (e até a fabricação subjetiva) de princípios jurídicos, (ii) a depreciação da força vinculante das regras jurídicas, (iii) a dificuldade conceitual de diferenciar uma estrutura normativa da outra, (iv) a pressuposição de que normas jurídicas teriam existências independentes dos processos interpretativos a serem realizados pelos operadores do direito e (v) a visão de que a interpretação jurídica envolveria sempre um processo de descoberta de significados prontos e acabados.

Tais defeitos seriam fruto de uma cultura jurídica, ao mesmo tempo, (a) normativista – a autoridade de um argumento jurídico esgota-se no fato de “ser” ele uma norma presente (quase fisicamente) no DPV –, (b) formalista – a forma de uma estrutura normativa valeria sempre mais que o conteúdo argumentativo que dela se poderia extrair, daí a predileção por princípios jurídicos, os quais, pelo seu próprio conceito, teriam valor supremo enquanto “pilares do ordenamento jurídico”114 – e (c) voluntarista/decisionista – o conteúdo prático (valores, bens tutelados, finalidades, efeitos etc...) que o direito incorpora seria sempre variável e subjetivo, o que impõe sejam esses simplesmente escolhidos por quem investido de poder ou por aquele que interpreta –. A soma desses fatores havia tornado a prática do direito, no Brasil, absolutamente, aleatória e incontrolável. Portanto, como mecanismo de conversão a novo modelo paradigmático, ÁVILA propõe a revisão de conceitos basilares e a reformulação de determinados pontos de partida fundamentais à compreensão do direito. Dentre essas, aos objetivos deste artigo, merecem ser ressaltados os seguintes aspectos:

i) A fundamental distinção entre texto e norma, de acordo com a qual “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”, de modo que “os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado”115;

ii) O reconhecimento, com base nesse pressuposto, de que “... há normas, mesmo sem dispositivos específicos que lhes deem suporte físico”116;

iii) A compreensão de que “... a função da Ciência do Direito não pode ser considerada como mera descrição do seu significado, quer na perspectiva da comunicação de uma informação ou conhecimento a respeito de um texto, quer naquela da intenção do seu autor”117;

iv) A noção “significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e intepretação”, razão pela qual “... a linguagem nunca é algo pré-dado, mas algo que se concretiza no uso ou, melhor, com o uso”118;

v) Tal dimensão constitutiva da linguagem pelo seu uso exigiria, de qualquer modo, reconhecer que há “traços de significados mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem”119; e, somados tais pressupostos,

vi) A conclusão de que “interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir...”, já que previamente delimitada essa atividade por textos, como pontos de partida, e os significados mínimos, como núcleos de significados incorporados por esses elementos textuais e “preexistentes ao processo de interpretação individual”120.

A importância da reformulação desses pressupostos teóricos permite que se considere o livro “Teoria dos Princípios” como o marcador principal da transição de HA1 para HA2. Mesmo que assim seja, a mudança paradigmática sendo aqui narrada necessita trazer à análise mais dois trabalhos fundamentais de ÁVILA, os quais aprofundam a elaboração do seu projeto teórico, tomando como mote para o desenvolvimento desse avanço uma crítica frontal e transparente à proposta de ciência jurídica defendida por Paulo de Barros CARVALHO, renomado tributarista brasileiro, conhecido por abraçar, enfaticamente, os pressupostos do formalismo, normativismo e voluntarismo acima apontados121.

No “Função da Ciência do Direito Tributário: do Formalismo Epistemológico ao Estruturalismo Argumentativo”122, HA2 contrapõe a visão defendida por CARVALHO, por meio da adoção das seguintes teses:

i) a ciência do direito envolveria a realização das atividades de (a) descrição, (b) construção, (c) decisão e (d) criação de significados;

ii) a adequada compreensão das funções da ciência do direito deveria evitar simplificações e reducionismos, devendo ser rejeitadas as propostas teóricas rivais qualificadas como apenas descritivistas (i.e., aquelas que pressupõem que interpretar é ato puro de conhecimento – teorias cognitivas), e aquelas exclusivamente construtivistas (i.e., aquelas que pressupõem que interpretar redunda em mero ato de vontade ou subjetivo – teorias céticas);

iii) o objeto de interpretação das ciências jurídicas não poderia ter escopo delimitado apenas a elementos textuais, mas também extratextuais;

iv) os chamados elementos extratextuais – representados por atos, fatos, costumes, finalidades e efeitos – não poderiam ser interpretados por meio da dimensão, exclusivamente, gramatical ou lógica das palavras que os representam nem por meio da análise das respectivas estruturas sintáticas;

v) tendo em vista a amplitude textual e extratextual dos elementos que compõem o objeto da ciência do direito, a atividade do jurista envolveria o desenvolvimento de variadas atividades discursivas, cada uma com técnicas, métodos e processos próprios dependendo da estrutura argumentativa sendo utilizada para justificar determinado raciocínio jurídico; e

vi) Poderia ser denominada de “Estruturalismo Argumentativo” a sua proposta teórica, a qual permitiria identificar diferentes estruturas argumentativas que se prestariam a melhor esclarecer uma teoria das fontes, uma teoria das normas, uma teoria dos sistemas, uma teoria da interpretação e uma teoria jurídica da argumentação.

Após singela réplica publicada por CARVALHO em mídia eletrônica123, HA2 toma tal oportunidade para polir e aprimorar as teses científicas acima enumeradas, consolidando, assim, aquela que poderia ser considerada a mais bem-acabada versão (até o presente momento) da sua proposta teórica acerca da interpretação e argumentação no direito124.

Em “Ciência do Direito Tributário e Discussão Crítica”125, HA2 revisita o conceito de “objetividade jurídica”, o qual, em HA1, era definido conforme o “ponto de referência [n]o ordenamento jurídico”126, ou seja, a maior ou menor proximidade com o DPV, e agora passa a exigir uma detalhada especificação de diferentes planos de objetividade, permitindo a identificação de uma objetividade Semântica (“existente no conhecimento sem intuição ou sentimento de algo externo ao sujeito”), Metafísica (“presente quando há algo real no mundo, independente até do seu conhecimento”), Lógica (“surge quando há consistência formal e ausência de vagueza nas proposições”) e Discursiva/metodológica (“baseada na neutralidade e na igualdade no processo interpretativo e aplicativo [...], fundada em um discurso baseado em princípios públicos, intersubjetivos, de justificação das suas pretensões cognoscitivas”)127.

O grau de sofisticação trazido pelo reconhecimento desses diferentes planos de objetividade introduz uma nova gama de possibilidades explicativas para a atividade interpretativa e argumentativa, na medida em que amplia os objetos que deverão ser adequadamente conhecidos e manejados pelos operadores do direito quando atuam em processos discursivos que visam a justificar possíveis soluções para problemas práticos.

Por isso, HA2 passa a afirmar que “[n]esse âmbito da objetividade discursiva, situam-se questões como a finalidade de um ato, os efeitos de uma medida adotada, a intencionalidade dos agentes que tomaram determinada decisão a ser avaliada, a razoabilidade de critérios de diferenciação, bem como a relação de proporção entre medida adotada e o seu resultado”128. Tais novos objetos de conhecimento jurídico (“novos” apenas em referência a HA1) não dizem respeito a conteúdo que se possa diretamente extrair PDV, na medida em que não ficam vinculados, necessariamente, aos elementos textuais presentes no ordenamento jurídico nem podem ser atribuídos a ato oficiais de autoridades públicas que teriam previamente submetidos esses a algum processo de institucionalização. Dito de outro modo, a partir do momento em que se reconhece que a interpretação e a argumentação jurídica devem dar conta de elementos não apenas textuais, mas também extratextuais129, passa a se impor uma reformulação (ampliadora) das atividades que serão necessárias para a execução do discurso jurídico. Isso porque os elementos extratextuais possuem uma composição epistemológica diferenciada, podendo exigir a explicação e justificação de questões empíricas e vivenciais, contextuais e contingentes, que, na maior parte das vezes, não foram previamente especificadas pela autoridade ou órgão de poder responsável pela positivação de determinado conjunto de enunciados textuais que integram o sistema jurídico.

Com a reconfiguração dessa moldura teórica, novos jogos de linguagem passam a ser exigidos pela ciência do direito, pois o “discurso doutrinário, além de descrição, envolve a reconstrução, a decisão e a criação de significados de elementos textuais e extratextuais, com base em métodos, argumentos e critérios de prevalência argumentativa.”130 Desse modo, a atividade interpretativa do direito não pode apenas envolver a descrição de normas jurídicas válidas nem apenas a identificação e formulação de argumentos de natureza institucional (semânticos, sintáticos, históricos e genéticos)131. Por isso, as atividades discursivas exigidas pela prática jurídica passam a envolver o “emitir proposições descritivas, destinadas a descrever significados de dispositivos que já sofreram processos anteriores de significação, emit[ir] enunciados interpretativos reconstrutivos, voltados a reconstruir o significado de dispositivos, enunciados interpretativos adscritivos, dirigidos a decidir o significado de dispositivos, e formulações normativas, utilizados para introduzir novos significados.”132

Com isso, aquele que interpreta e argumenta no direito deixa de assumir uma postura de mera passividade diante do fenômeno jurídico – agora compreendido em toda a sua complexidade –, mas passa a atuar de modo ativo, propositivo e transformador, podendo agir sobre o material cognitivo pertinente ao direito (textos, fatos, costumes, finalidades e efeitos), de modo a reconstruir o conteúdo significativo dos parâmetros normativos disponíveis, os quais deverão fornecer possíveis soluções aos problemas práticos, mas sem jamais abdicar da observância dos limites já predeterminado pelos focos de univocidade presentes nos textos autorizados e nos significados mínimos que esses podem ter incorporados133.

Por isso – fechando-se o círculo comparativo entre HA2 e o “Segundo Wittgenstein” –, a interpretação e argumentação não mais podem ser compreendidas por meio de uma única lógica, a qual buscaria referência a um sistema normativo que se fecharia em um catálogos de argumentos vinculantes em razão da sua fonte formal de produção (i.e., a de identificação dos significados que poderiam ser derivados do DPV), mas passa a ser compreendido como uma atividade prática134 que adota diferentes jogos interpretativos e argumentativos, cada com seus próprios métodos e critérios de prevalência135.

2.3. Análise crítica e possibilidades de aprimoramento por meio de nova tipologia argumentativa

A robustez da reformulação teórica proposta por HA2 retifica inúmeras dificuldades presentes na proposta de teoria da argumentação desenvolvida por HA1, de modo que reposiciona os termos da atividade interpretativa e argumentativa em uma moldura mais complexa e sofisticada. Com isso, HA2 fixa as balizas para o desenvolvimento de uma nova teoria da argumentação, a qual poderá (a) captar uma maior gama de elementos (textuais e não textuais) que são pertinentes à realidade jurídica, os quais não ficam adstritos a um catálogo de argumentos jurídicos nem possuem sua força vinculante conectada direta e necessariamente com o DPV, (b) assumir diferentes critérios de objetividade (complementares e não excludentes), calcados em significados mínimos e aspectos lógicos, metafísicos e discursivos que não são derivados exclusivamente do sistema jurídico-positivo e (c) dar conta de diferentes jogos interpretativos e argumentativos (descritivo, construtivo, reconstrutivo, decisório e criativo), desenvolvendo distintos métodos e critérios de prevalência para esses.

Uma elaboração detalhada desses aspectos, porém, não veio a ser realizada, até o presente momento, por ÁVILA em seus escritos, de modo que já se poderia identificar quais os focos dessa futura teoria argumentativa necessitariam em nossa visão um esclarecimento mais aprofundado:

i) seria relevante a explicação acerca da composição linguística e do status epistemológico da noção de significados mínimos, de modo a apontar qual seria seu fundamento e como devem eles ser identificados (descoberta de convenções sociais em si arbitrária, intuição sensível, reconhecimento de uma instância ontológica ou se também seriam eles objeto de uma reconstrução intersubjetiva). Aceitar que existe algum núcleo de significação ou algum significado mínimo que deve ser pressuposto pelo intérprete exige também que se aceite que, no processo racional de interpretação e de argumentação, existirão alguns elementos que não poderão ser analiticamente demonstrados aos destinatários desse empreendimento discursivo. Até porque, se assim não fosse, deveria existir um argumento prévio que permitiria demonstrar de modo ainda mais geral e com maior indeterminabilidade a origem e o fundamento do conteúdo que estaria predeterminando os núcleos de significação e os chamados significados mínimos. Mas se assim fosse, esses não seriam os pressupostos daquela prática linguística, mas também submetidos a processo de reconstrução passível de ser executado pelo intérprete, o que encaminharia o percurso desse raciocínio ao infinito136;

ii) haveria a necessidade de se elaborar uma teoria epistemológica mais ampla que permitisse esclarecer como são inter-relacionados no direito os diferentes planos de objetividade (semântico, lógico, metafísico e discursivo), indicando se todos são pertinentes à prática argumentativa do direito e, caso afirmativo, como cada uma participa da deliberação e tomada de decisão jurídicas;

iii) Seria necessário discorrer sobre os diferentes métodos aplicáveis aos aqui caracterizados como jogos interpretativos e argumentativos (descritivo, construtivo, reconstrutivo, decisório e criativo)137, reformulando os critérios de prevalência que esses deveriam passar a seguir; e

iv) Se correta a proposição sugerida na primeira parte deste estudo, formular uma teoria da verdade e uma ética argumentativa que seria compatível com essa nova teoria da argumentação.

Com base em tais comentários, pode-se perceber que, diante da nova matriz teórica inaugurada por HA2, surge a necessidade de uma ampla reformulação da teoria da argumentação inicialmente apresentada por HA1, não para dispensar por completo todo o seu conteúdo, abdicando-se do uso dos argumentos institucionais lá classificados (i.e., semânticos, sintáticos, históricos e genéticos), mas para readequá-la ao novo escopo de cognição agora ampliado.

Não obstante a já excessiva extensão do presente artigo, que já impõe cansativo esforço no seu leitor, não se poderia deixar de “dar um passo à frente” conforme prometido na Introdução deste estudo. Por isso, mesmo que não seja possível aqui realizar o detalhamento completo das ideias aqui ventiladas, caberia esboçar, de modo um tanto superficial, um projeto de teoria argumentativa que iniciaria a sua estruturação, não por meio da lista dos argumentos que são utilizados, mas sim dos diferentes tipos de argumentação que agregam raciocínios de diferentes naturezas, com estruturas próprias e objetos também distintos.

Com efeito, esse ponto de partida mais amplo propõe uma tipologia de argumentação que considera os diferentes modos de se raciocinar na proposição de respostas a problemas práticos, raciocínios esses que poderão agregar diferentes espécies de argumentos (seguindo a distinção entre “argumentação” e “argumentos” proposta no item 1.3). Por isso, em linhas ainda bastante gerais, propõe-se a ramificação dos tipos argumentativos em três categorias (sempre complementares e muitas vezes compostas simultaneamente em uma mesma cadeia complexa de raciocínios jurídicos), cada uma com objeto próprio, estrutura interna específica e modo de justificação também distinto:

1) Argumentação empírica: metaforicamente, dizemos “contra fatos não há argumentos”, mas é inegável que se pode argumentar a partir de alguns fatos estabelecidos138, bem como se pode argumentar acerca da real composição de determinado cenário empírico. Isso exige reconhecer que a atividade discursiva em geral, assim como no direito, não envolve apenas a justificação da adequada estrutura normativa que deve guiar uma decisão jurídica diante de um caso, mas também a análise e a explicação das diferentes versões possíveis do contexto fático sobre o qual tal ato decisório será realizada. Por isso, a natureza prática do discurso jurídico exige também que tais decisões levem em conta e sejam direcionadas de acordo com os elementos de fato que desenham o contexto de ação em que tal ato decisório deverá ser tomado. Portanto, a argumentação jurídica não pressupõe apenas o estabelecimento de raciocínios normativos, mas também de raciocínios que pretendam descrever da forma mais verdadeira ou verossímil possível o conteúdo empírico relevante para o caso em que uma conclusão jurídica deve ser justificada. E, considerando que nem todos os fatos são incontroversos, em relação a eles também haverá divergências e disputas, de modo que explicações sobre a melhor narrativa que possa corresponder àquele contexto prático deverão ser interpretadas, discutidas e definidas. Por essa razão, uma teoria da argumentação deverá identificar o campo próprio de atuação das questões envolvendo a comprovação do conteúdo empírico de enunciados, o que exigirá do operador do direito argumentação que envolva a elaboração de narrativas que descrevam com coerência um contexto prático e/ou demostrem a sua correspondência com a realidade por meio de testemunhos ou provas. Esse tipo de argumentação envolverá o desenvolvimento prioritário das capacidades sensoriais (ver, ouvir, cheirar etc.), descritivas, narrativas e demonstrativas de evidências físicas acerca de como os objetos se portaram no mundo139.

2) Argumentação deontológica: o caso central do direito, obviamente, envolve a formulação válida e correta de enunciados prescritivos que permitirão a estruturação de raciocínios normativos dotados de força cogente na justificação e no convencimento da decisão jurídica a ser tomada. No entanto, muitos equivocadamente pressupõem que o conceito de normatividade, no campo jurídico, somente poderia ser utilizado para se reportar ao conteúdo de enunciados prescritivos que já estariam presentes e deveriam ser, de modo puramente intelectual, extraídos direta ou indiretamente do ordenamento jurídico vigente. Tal visão, portanto, confunde deontologia com positivação jurídica, como se nenhum conteúdo normativo pudesse ser interpretado e argumentado de fora das convenções firmadas perante e institucionalizadas no DPV. No entanto, na filosofia, a dimensão deontológica da realidade jamais esteve limitada apenas àquilo que os operadores do direito consideram uma norma que ordena uma ação humana ou uma decisão prática. Com efeito, a normatividade que pode (e deve) ser compreendida e interpretada é multidimensional e, em vários casos, não depende de uma aceitação pela vontade humana nem do consenso social. Por isso, os padrões de normatividade que podem justificar uma conduta e gerar convencimento nos demais necessitam ser compreendidos em parâmetros mais amplos, de modo a permitir a compreensão das influências prescricionais ditadas por padrões normativos (2.1) formais e (2.2) materiais que não são determinadas exclusivamente por normas jurídicas positivas, mas que representam raciocínios normativos que participam, de modo influente e ativo, da atividade interpretativa e argumentativa no direito140. Por isso, de modo bastante resumido, pode-se apontar para a existência de dimensões formais e materiais da normatividade, sendo que as primeiras aquelas tocam em questões envolvendo a necessidade de respeito a exigências lógicas/estruturais que fixam as condições de possibilidade para a emissão de proposições válidas141 e as segundas pretendem justificar padrões normativos substanciais (valores, bens tutelados pelo direito, finalidades a serem perseguidas e efeitos/consequências a serem atingidos) que se prestam a direcionar e ordenar da melhor forma disponível uma ação. Diante dessa amplitude de elementos substanciais a serem interpretados, uma subdivisão dentre as hipóteses de argumentação material será necessária, de modo que os padrões normativos materiais poderão assumir estruturas internas que aqui pode ser caracterizadas como anticonsequenciais (ou seja, o dever que dita o percurso de ação possui seu valor no próprio agir, justificando-se como correta/boa/adequada tal decisão independentemente dos efeitos e consequências gerados) ou consequenciais142 (ou seja, o dever que direciona a ação possui valor meramente instrumental, de modo a estimar- se quantitativamente a intensidade ou probabilidade no atingimento de um resultado desejado por aquele que argumenta). Raciocínios jurídicos anticonsequenciais estarão organizados em torno de juízos analíticos143 (deveres categóricos, apriorísticos e incondicionais)144, enquanto que Raciocínios jurídicos consequenciais em torno de juízos sintéticos145 (deveres hipotéticos, instrumentais e condicionais)146.

3) Argumentação147 a partir de “formas de vida”148: a só-possibilidade dessa forma de argumentação no direito poderá ser considerada inaceitável para muitos, especialmente porque não busca seu fundamento imediato de justificação no ordenamento jurídico e porque a conclusão por ela alcançada jamais poderá ser perfeitamente demonstrada em termos silogísticos e analíticos. E como tal fundamento é considerado uma propriedade essencial da argumentação jurídica para alguns, a sua carência em determinado tipo de raciocínio seria suficiente para exclui-los desse ambiente discursivo. O fato, porém, é que esse tipo de argumentação surge com enorme frequência nos debates jurídicos e muitas vezes acabam sendo o veículo definitivo para o convencimento e para a conclusão. Por isso, para se introduzir tal ideia – contraintuitiva para alguns –, vale-se aqui de interessante reflexão apresentada por BANKOWSKI149 ao comparar-se o modo como regras de trânsito são obedecidas na Itália e na Alemanha, em que o modo aceitável, tolerável e até esperado de um motorista conduzir o seu veículo é radicalmente distinto, mesmo que os códigos jurídico-positivos dos dois países sejam semelhantes. Na Itália, a direção ao trânsito é mais desordenada, flexível no cumprimento de regras e tolerante com determinadas infrações, o que gera determinadas expectativas perante todos os participantes de jogo de linguagem, de modo, inclusive, a permitir a visualização de certa “harmonia no caos”. Já na Alemanha o cumprimento das regras de trânsito é categórico, sendo inaceitável o cometimento da menor das infrações (tanto pelo motorista, quanto pelo pedestre), o que, também, por sua gera a sua “harmonia na estabilidade”. Não obstante as diferenças no modo de se experenciar tais práticas jurídicas, uma coisa é certa: é objetivamente errado dirigir-se na Itália como se dirige na Alemanha e vice-versa. E como explicar e justificar essas intensas diferenças no modo de agir, especialmente considerando que as regras jurídicas aplicáveis nos dois casos são tão semelhantes? Para BANKOWSKI, esse tipo de situação argumentativa pressupõe um “viver plenamente o direito” (living lawfully), indicando que a compreensão de uma prática jurídica concreta jamais se esgota no seu entendimento intelectual150, por meio da simples depuração analítica e interna do conteúdo do sistema jurídico-positivo, pois essa atividade discursiva, mesmo que essencial e indispensável ao direito, não permitirá a adequada captação da realidade prática enquanto tal. Há, pois, formas de argumentação cuja força justificadora é derivada não propriamente do conteúdo do DPV, mas da moldura institucional dentro da qual esse é vivenciado pelos seus operadores e destinatários, na medida em que a sua dimensão cogente e vinculante decorre imediatamente do tipo de cultura, vivência, hábito daquela comunidade ou ainda da autoridade da função, do cargo ou de uma prática estabelecida151. Com efeito, há por meio desse tipo de argumentação o reconhecimento de que se tem, não um sistema jurídico autopoiético, isolado e fechado, mas sim uma realidade institucionalizada mais ampla a que pressupõe não mera legalidade como processos de produção válida de enunciados prescritivos, mas uma legalidade porosa (porous legality152), permitindo que argumentos que não derivem sua autoridade diretamente dos enunciados prescritivos presentes no DPV, mas sim da forma de vida compartilhada por aqueles indivíduos que integram essa comunidade jurídica específica. E tais questões exigirão daquele que argumenta, não uma demonstração analítica da conclusão pretendida, mas apenas o reconhecimento imediato da força vinculante do modo como os membros de uma comunidade ou de uma instituição compartilham a visão de mundo, as quais criam expectativas legítimas de como deve-se conduzir naquele contexto prático-existencial153. Há, obviamente, riscos de aplicação e dificuldades de objetivação e de determinabilidade desse tipo de argumentação, na medida em que ela é sempre dependente de contingência e de verificações fenomenológicas que não asseguram um alto grau de segurança na comprovação do seu conteúdo. É, precisamente, em razão dessa particularidade que essa argumentação de estilo institucional comumente é assumida como insuperável por aquele que já está bem integrado àquela comunidade concreta ou já internalizou determinado conjunto de hábitos (dizendo algo como “aqui fazemos assim” ou “essa é a nossa prática”), mas pode ser considerada, simultaneamente, como infundada ou até arbitrária por aquele que adota uma perspectiva exterior. Exatamente em razão de fraqueza demonstrativa é que esse tipo de argumentação deve ser considerado de menor força argumentativa ou como ultima ratio em uma discussão jurídica concreta, somente invocável diante de impasses discursivos surgidos na argumentação empírica e deontológica.

1 – Argumentação empírica

“Fatos” são razão de convencimento

Questões envolvendo a comprovação do conteúdo empírico de enunciados, por meio da elaboração de uma narrativa que descreve com coerência um contexto prático e/ou pela demonstração da sua correspondência com a realidade por meio de testemunhos ou provas.

2 – Argumentação deontológica

“Prescrições” são razão de convencimento

2.1. Formais

Questões envolvendo a necessidade de respeito a exigências lógicas/estruturais que fixam as condições de possibilidade para a emissão de proposições válidas.

2.2. Materiais

2.2.1. Anticonsequenciais

2.2.2. Consequenciais

Questões envolvendo a justificação de padrões normativos substanciais que se prestam a direcionar e ordenar da melhor forma disponível uma ação, pautando-se em juízos analíticos (deveres categóricos, apriorísticos e incondicionais) ou em juízos sintéticos (deveres hipotéticos, instrumentais e condicionais).

3 – Argumentação a partir de formas de vida

“Hábitos/Cargo/Práxis/Tradição” são razão de convencimento

Questões envolvendo o reconhecimento imediato da força vinculante do modo como os membros de uma comunidade ou de uma instituição compartilham a visão de mundo, as quais criam expectativas legítimas de como deve-se conduzir naquele contexto prático-existencial.

Conclusão

Conforme inicialmente destacado, o presente trabalho visa a homenagear aquele que pode ser considerado um dos principais juristas contemporâneos, não apenas no âmbito nacional, mas também em um plano internacional. E tal reconhecimento não se deve à mera preferência subjetiva, o que se poderia imaginar em razão da influência que Humberto Ávila exerceu na formação deste que escreve o presente artigo, mas sim à importância que ele exerceu na identificação de uma crise paradigmática vivenciada pela cultura jurídica brasileira, o que levou- o a reformular pressupostos teóricos tomados como incontroversos por grande parte de nossa dogmática e dos nossos operadores do direito. E os efeitos dessa mudança paradigmática passam a ser sentidos na prática do direito, o que deve ser atribuído à gradual assimilação de inúmeras lições que o nosso homenageado transmite por meio de suas obras.

Uma homenagem acadêmica àquele que incorpora em sua vida o verdadeiro espírito científico exige uma leitura atenta e minuciosa da sua produção intelectual. Essa apreciação detalhada e completa dos trabalhos de destaque de um jurista, porém, não deve se converter em um texto que apenas visa a direcionar elogios ao homenageado, mas sim deve buscar reconstruir criticamente o seu projeto teórico, permitindo, assim, uma compreensão sob nova luz do seu pensamento, bem como o eventual aprimoramento deste.

E tal esforço somente pode ser realizado com espírito amistoso, sincero e honesto daquele que realiza tal homenagem crítica. Esses sentimentos foram precisamente aqueles que mobilizaram a elaboração do presente artigo, de modo que se espera sirvam eles também de inspiração por aqueles que leiam este estudo.

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1 ÁVILA, Humberto. Função da Ciência do Direito Tributário: do Formalismo Epistemológico ao Estruturalismo Argumentativo. In: Revista Direito Tributário Atual, nº 29. São Paulo: Dialética, 2013, p. 197.

2 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophiche Untersuchungen) – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 2.

3 Agradeço, profundamente, a Eduardo Halperin, Eduardo Kronbauer, Elton Somensi, Luis Fernando Barzotto e Pedro Adamy pelas discussões que muito contribuíram para o aprimoramento das ideias desenvolvidas neste artigo.

4 ÁVILA, Humberto. Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico. Porto Alegre: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 19, março/2001.

5 Função da Ciência do Direito Tributário: do Formalismo Epistemológico ao Estruturalismo Argumentativo. In: Revista Direito Tributário Atual, nº 29. São Paulo: Dialética, 2013; Ciência do Direito Tributário e Discussão Crítica. In: Revista Direito Tributário Atual, nº 32. São Paulo: Dialética, 2014, pp. 159-197.

6 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophiche Untersuchungen) – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003.

7 WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty (Über Gewissheit). Edição bilíngue. EUA: Harper Torchbooks, 1972.

8 TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986.

9 “Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt.” (Logisch-philosophische Abhandlung. Alemanha: Suhrkamp, 2001).

10 Por exemplo, em CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 25.

11 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophiche Untersuchungen) – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003.

12 WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty (Über Gewissheit). Edição bilíngue. EUA: Harper Torchbooks, 1972.

13 GRAYLING. A. C. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, p. 90.

14 Op. cit., pp. 29-30.

15 Op. cit., p. 89.

16 “Os conceitos tendenciosos são a essência e a forma lógica da linguagem. A ideia de que a linguagem tem uma natureza unitária que pode ser capturada numa fórmula única, cuja identificação fornece de um só golpe soluções para todos os problemas filosóficos sobre o pensamento, mundo, valor, religião, verdade e outras coisas é extraordinariamente ambiciosa, mas isso o que o primeiro Wittgenstein nos pede que aceitemos. Em Investigações filosóficas Wittgenstein rejeita essa supersimplificação e argumenta o oposto, que a linguagem é uma vasta coleção de diferentes atividades, cada qual com sua lógica. ... Em síntese, o Tractatus negligencia totalmente a grande variedade da linguagem...” (GRAYLING. A. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, pp. 70-1).

17 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophiche Untersuchungen) – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003 p. 4.

18 GRAYLING, A. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, p. 95.

19 GRAYLING, A. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, p. 110.

20 “208. But if a person has not yet got the concepts, I shall teach him to use the words by means of example and practice.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 73)

21 “655. The question is not one of explaining a language-game by means of our experience, but of noting a language-game.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 141)

22 “5. A child uses such primitive forms of language when it learns to talk. Here the teaching is not explanation but training.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 03)

23 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, pp. 75 e 269.

24 “23. Here the term ‘language-game’ is meant to bring into prominence the fact that the speaking of language is part of an activity, or of a life-form. // Das wort ‘Sprachspiel’ soll hier hervorheben, dass das Sprechen der Sprache ein Teil ist einer Tätigkeit, oder einer Lebensform”. (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 10)

25 “19. … – And to imagine a language means to imagine a life-form. // Und eine Sprache vorstellen heisst, sich eine Lebensform vorstellen”. (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 10)

26 GRAYLING. A. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, p. 10.

27 SLUGA, Hans; STERN, David (org.). The Cambridge Companion to Wittgenstein. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 2.

28 “71. One might say that the concept of ‘game’ is a concept with blurred edges.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003 p. 29)

29 “What has to be accepted, the given, is – so one could say – forms of life”. (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003 p. 192)

30 “378. Knowledge is in the end based on acknowledgement // Das Wissen gründet sich am Schulss auf der Anerkennung.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty (Über Gewissheit). Edição bilíngue. EUA: Harper Torchbooks, 1972, p. 49)

31 “198. Interpretation by themselves do not determine meaning.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 68)

32 GARVER, Newton. Philosophy as Grammar. In SLUGA, Hans; STERN, David (org.). The Cambridge Companion to Wittgenstein. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 156.

33 “…On Certainty he insists that every particular belief must always be seen as part of a system of beliefs which together constitute a world-view. … This does not mean that he was advocating a careless relativism. His view is rather a form of naturalism which assumes that form of life, world-views, and language-games are ultimately constrained by the nature of the world. The world teaches us that certain games cannot be played.” (SLUGA, Hans; STERN, David (org.). The Cambridge Companion to Wittgenstein. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 22)

34 “150…Must I not begin to trust somewhere? That is to say: somewhere I must begin with not-doubting; and that is not so to speak, hasty, but excusable: it is part of judging.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty (Über Gewissheit). Edição bilíngue. EUA: Harper Torchbooks, 1972, p. 22)

35 “509. ...a language-game is only possible if one trusts something…” (WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty (Über Gewissheit). Edição bilíngue. EUA: Harper Torchbooks, 1972, p. 66).

36 “217… If I have exhausted the justifications I have reached bedrock, and my spade is turned. Then I am inclined to say: ‘This is simply what I do.” // Habe ich die Begründungen erschöpft, so bin ich nun auf dem harten Felsen angelangt, und mein Spaten biegt sich zurück. Ich bin dann geneigt, zu sagen: ‘So handle ich eben’.” (Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, p. 72)”.

37 “... o que justifica nossos usos é a forma de vida subjacente a eles, e isso é tudo: nada mais precisa ser dito, nem pode ser. A forma de vida é a estrutura de referência em que aprendemos a trabalhar quando treinados na linguagem da nossa comunidade. ... E é por isso que a explanação e a justificação não precisam nem podem ir além de um gesto em direção à forma de vida.” (GRAYLING, A. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, p. 110-1)

38 “Here, too, the conclusion is that all philosophical argumentation must come to an end, but that the end of such argumentation is not an absolute, self-evident truth, that it is rather a certain kind of natural human practice.” (SLUGA, Hans; STERN, David (org.). The Cambridge Companion to Wittgenstein. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 23)

39 Por tal referência não se deseja passar a impressão de que o conceito de “forma de vida” proposto por WITTGESNTEIN seja imune à crítica. Na verdade, intensas disputas são travadas acerca dos méritos e deméritos dessa expressão, não cabendo aqui entrar nos detalhes dessa profunda discussão filosófica. Cabe, aqui, apenas desatacar que há uma disputa eterna dentre os intérpretes de WITTGENSTEIN, os quais se dividem entre os que o enquadram como um realista (há uma realidade objetiva independente do intelecto humano) e os que o caracterizam como um relativista (todas as percepções linguísticas do mundo são relativas, pois as formas de vida também o são). Há determinados excertos dos seus escritos que permitem, simultaneamente, as duas leituras, de modo que a confusão e obscuridade no pensamento do austríaco é perfeitamente compreensível. Em contraposição a todos excertos aqui transcritos, que permitem a leitura realista aqui defendida, não se poderia deixar de citar o famoso aforisma de WITTGENSTEIN que ampara a sua leitura relativista: “If a lion could talk, we could not understand him. // Wenn ein Löwe sprenchen könnte, wir könnten ihn nicht verstehen.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations/Philosophiche Untersuchungen – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 68). Acerca dessa discussão crítica, recomenda-se a leitura de: CAVELL, Stanley. Must we say what we mean. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 44-72; SCHEMAN, Naomi. Forms of life: Mapping the rough ground; BLOOR, David. The Question of linguistic idealism Revisited. In SLUGA, Hans; STERN, David (org.). The Cambridge Companion to Wittgenstein. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, pp. 383 e ss.; GRAYLING. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, pp. 132 e ss.

40 ATIENZA, Manuel. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação. São Paulo: Landy, 2ª edição, 2015, p. 209.

41 TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986.

42 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação jurídica – Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros. São Paulo: Landy, 2ª edição, 2002, p. 134.

43 Segundo TOULMIN, a estrutura analítica de um argumento simples será composta por uma pretensão (claim), o seu suporte (grounds), a garantia (warrant) e o respaldo (backing).

44 TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986, p. 94.

45 TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986, p. 09.

46 “...depending on the logical types of facts adduced and of the conclusions drawn from them, the steps we take – the transitions of logical types – will be different” (TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986, p. 13).

47 Exemplos dos principais “campos de argumentos” seriam o matemático, científico, físico-biológico, moral, jurídico, estético, dentre outros.

48 TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986, p. 14.

49 TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986, p. 15.

50 Por exemplo, para TOULMIN, os termos “impossível” e “possível” possuem uma força que é independente do campo (field-invariant), mas os critérios de aplicação que esses deverão seguir serão variáveis de acordo com cada campo de aplicação (field-dependent). (TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986, p. 38)

51 Não se está pretendendo sustentar que esse tipo de visão seja unânime entre os operadores do direito, mas há claros indícios de que ela, ao menos na realidade jurídica brasileira, seja majoritária.

52 MACINTYRE, Alasdair. Theories of Natural Law in the Culture of Advanced Modernity. In MCLEAN, Edward (org.) Common Truths: New Perspectives on Natural Law. Wilmington: ISI Books, 2000, p. 91.

53 Op. cit., p. 93.

54 Esse ponto também é suscitado por ALEXY por meio da sua hoje famosa “tese do caso central do discurso jurídico”, segundo a qual o “discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral.” (Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação. São Paulo: Landy, 2ª edição, 2015, p. 45) Pretende ALEXY, com isso, sustentar que a argumentação desenvolvida por aqueles que efetivamente integram ou participam do estamento jurídico (i.e., pelos diferentes operadores do direito) deve ser parcialmente diferenciada dos esforços argumentativos realizado por outros indivíduos interessados em fornecer respostas a problemas práticos em geral, mas que não possuam propriamente formação técnica no direito nem ocupem algum cargo ou função vinculada à produção ou aplicação do direito positivo vigente. Por isso, ALEXY destaca que “a argumentação jurídica se caracteriza pela vinculação ao direito vigente”, de modo que “uma das principais diferenças entre argumentação jurídica e a argumentação prática geral” é que as “disputas jurídicas não submetem todas as questões à discussão”, as quais são “feitas com algumas limitações”. (Op. cit., p. 210)

55 Sobre o realismo ou empirismo jurídico, vide o nosso Metaética e Fundamentação do Direito. Porto Alegre, Elegantia Juris, 2016. Vide, ainda, STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas Fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, pp. 245 e ss.

56 MITTLESTRASS, Jürgen (Org.). Enzyklopädie Philosophie und Wissenschaftstheorie. Stuttgart: Metzler, 2004, vol. 1, p. 161.

57 Op. cit., p. 161.

58 AUDI, Robert (Org.). The Cambridge Dictionary of Philosophy. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2ª edição, 2005, p. 728.

59 Sobre raciocínio prático, vide SIMON, Yves. Practical Knowledge. Estados Unidos da América: Fordham, 1991 e AUDI, Robert. The Architecture of Reason – The Structure and Substance of Rationality. Estados Unidos da América: Oxford University Press, 2001.

60 ATIENZA, Manuel. Derecho y Argumentación. Bogotá: Universidad Externado Colombia, 1998, p. 33.

61 Cabe mencionar que a distinção semântica entre “argumentação” e “argumento” encontra paralelo em outras línguas estrangeiras. Ilustrativamente, em inglês e em alemão também se diferencia “argumentation” e “argument”. Em inglês, porém, “an argument” pode também ser coloquialmente compreendido como sendo a forma interativa de uma ou mais pessoas se engajarem em um debate ou uma discussão.

62 AUDI, Robert (Org.). The Cambridge Dictionary of Philosophy. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2ª edição, 2005, p. 43.

63 Segundo ATIENZA, os elementos constitutivos de um argumento são: (i) uma linguagem, pois toda atividade argumentativa é de natureza linguística (o que não significa dizer que UM argumento tenha que adotar exclusivamente pontos de partida linguísticos); (ii) uma conclusão, pois todo argumento possui ponto de chegada, um telos, um fim, o que exige que essa cadeia de enunciados sirva para embasar uma explicação, uma justificação, uma decisão etc...; (iii) premissas, pois todo argumento deve partir de algum lugar, i.e., deve iniciar por algo que é mais bem fundado ou mais conhecido dos interlocutores do que a conclusão desejada; e (iv) um modo específico de se relacionar as premissas e com a respectiva conclusão (e.g., inferências dedutivas, indutivas, necessárias, probabilísticas etc.). (ATIENZA, Manuel. Derecho y Argumentación. Bogotá: Universidad Externado Colombia, 1998, p. 38)

64 Tal analogia pode ser encontrada em WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophiche Untersuchungen) – Edição bilíngue. Estados Unidos da América: Blackwell, 3ª edição, 2003, p. 5.

65 Por esse motivo, um argumento falso ou falacioso pode possuir a aparência de um argumento e, em sentido puramente formal, é um argumento, sendo que somente poderá ser desmascarado dentro do processo discursivo que é a argumentação.

66 TOULMIN, Stephen. The Use of Arguments. Nova Iorque: Cambrigde University Press, 1986, p. 30.

67 Cabe destacar, ainda, uma teoria da argumentação deverá, em cada um desses itens, também fornecer uma teoria do erro (ATIENZA, Manuel. Derecho y Argumentación. Bogotá: Universidad Externado Colombia, p. 60), de modo a permitir a identificação de premissas falsas, de estruturas argumentativas falaciosas e de atitudes sofisticas do argumentador.

68 Nenhuma concepção de verdade consegue obrigar, pelos próprios termos, o reconhecimento do seu valor intrínseco e da sua natureza vinculante, uma vez que qualquer indivíduo, por sua vontade, poderá desprezá-la ou destituí-la da função norteadora que impõe a um discurso pretensamente racional. Por essa razão, conforme se verá, qualquer teoria (aí incluídas as diferentes teorias da argumentação) dependerá, para seu adequado funcionamento, de uma Ética argumentativa que vise a controlar o agir e a atitude motivacional dos sujeitos que participam desse empreendimento teórico.

69 Para uma exposição mais completa acerca da fundamentalidade do conceito de verdade em qualquer empreendimento científico, vide o nosso “Por uma Ciência Prática do Direito Tributário”. São Paulo: Quartier Latin, 2016, pp. 150 e ss.

70 Para esse detalhamento, vide “Por uma Ciência Prática do Direito Tributário”. São Paulo: Quartier Latin, 2016, pp. 154-161.

71 Mesmo aquelas as posturas filosóficas abertamente não cognitivistas e céticas assumem um tipo de teoria da verdade mínima (e negativa), na medida em que atribuem ao “verdadeiro” o significado de algo artificial, ilusório ou mero resultado de exercício arbitrário de poder. Portanto, esse tipo de teoria argumentativa deseja descrever que há uma realidade (obscura e arbitrária) por trás de qualquer processo argumentativo, o qual não passa de uma disputa de forças. Mesmo diante desse cenário, não se pode negar que um conceito de “verdade” ocupe um papel relevante. Sobre não cognitivismo, vide o nosso Metaética e Fundamentação do Direito. Porto Alegre, Elegantia Juris, 2016. Vide, ainda, STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas Fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, pp. 287 e ss.

72 AUDI, Robert (Org.). The Cambridge Dictionary of Philosophy. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2ª edição, 2005, p. 352.

73 MITTLESTRASS, Jürgen (Org.). Enzyklopädie Philosophie und Wissenschaftstheorie. Stuttgart: Metzler, 2004, vol. 1, p. 807.

74 Novamente, em razão da profundidade desse tema, não haveria como se desenvolver neste artigo todos os desdobramentos que uma gramática argumentativa deve perseguir, sendo suficiente, para os propósitos aqui almejados, apenas destacar que tais aspectos são indispensáveis para o desenvolvimento de uma teoria da argumentação.

75 Possivelmente, o exemplo mais bem-acabado dessa tendência no campo do direito seja a proposta teórica de ALEXY, no seu clássico Teoria da Argumentação Jurídica (ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação. São Paulo: Landy, 2ª edição, 2015). Em tal obra, ALEXY, inspirado na teoria da ação comunicativa de HABERMAS, propõe um complexo sistema contendo enorme volume de regras e formas de justificação para um discurso racional, o qual, mesmo fornecendo um rigoroso procedimento normativo que supostamente se prestaria a controlar o modo como discussões jurídicas deveriam ser conduzidas, acaba, em verdade, delineando um cenário argumentativo excessivamente formalizado e completamente artificial, o qual pouco se aproxima daquilo que operadores do direito reais efetivamente consideram relevante quando argumentam diante de um caso concreto. Aliás, o próprio ALEXY reconhece que tais regras procedimentais de um discurso prático racional possuem um caráter idealizado e não são capazes de guiar todos os passos da argumentação jurídica (ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos humanos. Bogotá: Universidad Externado Colombia, 2001, p. 51). Para uma crítica a teoria argumentativa de ALEXY a partir da visão hermenêutica de Lenio Streck, vide BARBA, Rafael Giorgio Dalla. Nas Fronteiras da Argumentação: A Discricionariedade Judicial na Teoria Discrusiva de Robert Alexy. Salvador: Jus Podium, 2017. Vide, ainda, STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 6ª edição, 2017.

76 Para uma crítica contundente ao projeto contemporâneo de uma ética discursiva organizada em torno de esquemas cooperativos de discussão (como as condições ideais de discurso de Habermas ou a ideia de razão Pública de Rawls), recomenda-se a leitura do seguinte artigo de John FINNIS: Natural Law and the Ethics of Discourse. In Ratio Juris, Vol. 12, nº 4, 1999, pp. 354-73. Oxford: Blackwell Publishers, 1999.

77 MACIEJEWSKI, Jeffrey. Thomas Aquinas on Persuasion: Action, ends and natural rhetoric. Maryland: Lexington Books, 2014, p. 58.

78 De modo simplificado e atentando-se aos limites expositivos deste artigo, pode-se qualificar como ignorância a falha na operação do intelecto e de vício o defeito no controle do exercício da vontade.

79 Sinteticamente, virtudes podem ser, aqui, definidas como disposições habituais de caráter que direcionam racionalmente o apetite volitivo do indivíduo, permitindo que esse aja corretamente diante de um caso concreto.

80 MACIEJEWSKI, Jeffrey. Thomas Aquinas on Persuasion: Action, ends and natural rhetoric. Maryland: Lexington Books, 2014, p. 72.

81 MACIEJEWSKI, Jeffrey. Thomas Aquinas on Persuasion: Action, ends and natural rhetoric. Maryland: Lexington Books, 2014, p. 74.

82 Para o embasamento teórico-filosófico dessa visão, recomenda-se a leitura dos seguintes textos: Gorgias de Platão, in Plato – Complete Works. Cambridge: Hackett Publishing, 2001, p. 791; Livros IV, V, VI e VII do Ética a Nicômacos in ARISTÓTELES. BARNES, Jonathan (editor). The Complete Works of Aristotle, Vols. I & II. Estados Unidos da América: Princeton University Press, 1995; Tratado da Virtude in AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. São Paulo, Loyola, 2004; Commentary on Aristotle’s Nicomachean Ethics. Estados Unidos da América: Dumb Ox Books, 1993. GEACH, Peter. Las Virtudes. Pamplona: EUNSA, 2005, pp. 119-195.

83 Outras virtudes também serão fundamentais para uma ética argumentativa. Uma das mais relevantes, porém, que complementa as quatro virtudes cardinais já apontada é a amizade (philia). Nesse sentido, cabe dar destaque novamente à leitura que John FINNIS apresenta sobre o diálogo Gorgias, no qual são apresentadas as virtudes indispensáveis para um diálogo dentro de uma comunidade discursiva real (e não apenas formalizada por um procedimento ideal): “The indispensable conditions on which discussion is worthwhile, then, can be reduced to the two human goods which Socrates/Plato keeps tirelessly before the attention of the reader of the Gorgias: truth (and knowledge of it), and friendship (goodwill towards other human persons)”. (Natural Law and the Ethics of Discourse. In Ratio Juris, Vol. 12, nº 4, 1999, p. 356).

84 ÁVILA, Humberto. Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico. Porto Alegre: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 19, Março/2001. Vide, ainda, ÁVILA, Humberto. Teoria giuridica dell’argomentazione. In: GUASTINI, Ricardo; e COMANDUCCI, Paolo (orgs.). Analisis e Diritto 2012. Madri: Marcial Pons, 2012, pp. 11-40.

85 Função da Ciência do Direito Tributário: do Formalismo Epistemológico ao Estruturalismo Argumentativo. In: Revista Direito Tributário Atual, nº 29. São Paulo: Dialética, 2013; Ciência do Direito Tributário e Discussão Crítica. In: Revista Direito Tributário Atual, nº 32. São Paulo: Dialética, 2014, pp. 159-197.

86 A noção de justificação interna e justificação externa também é ponto de partida para a teoria da argumentação de ALEXY. Vide Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação. São Paulo: Landy, 2ª edição, 2015 p. 218-226; e Recht, Verfunft, Diskurs: Studien zur Rechtsphilosophie. Nördlingen: Suhrkamp, 2016, p. 17-8.

87 Op. cit., p. 158.

88 Op. cit., p. 158.

89 Op. cit., p. 159.

90 Mais adiante, HA1 reforça esse ponto, destacando o critério que deve guiar uma classificação jurídica “...será a compatibilidade com o ordenamento jurídico que permitirá avaliar a procedência da classificação...” (Op. cit., 160)

91 Op. cit., p. 161.

92 Op. cit., p. 169.

93 Op. cit., p. 161.

94 Op. cit., p. 169.

95 Op. cit., p. 170.

96 Op. cit., p. 162.

97 Op. cit., pp. 164-5.

98 Op. cit., p. 169.

99 Op. cit., p. 177.

100 Op. cit., pp. 174-5.

101 Diante de “vagueza, ambiguidade, variedade de uso, falta de especificidade aplicativa, falta de atualidade” no uso da linguagem ordinária, o “recurso aos outros argumentos é imprescindível”. (Op. cit., p. 171).

102 Op. cit., p. 175.

103 Cabe referir que o mesmo critério classificatório também é defendido na proposta teórica de ALEXY, o qual, de modo semelhante, propõe classificação de argumentos jurídicos em quatro diferentes grupos: linguísticos, genéticos, sistemáticos e práticos gerais. Os Linguísticos baseiam-se na identificação de como um idioma é utilizado, de modo que, quando há clareza semântica acerca dos termos contidos em uma norma, um resultado final já pode ser alcançado. Os genéticos são argumentos históricos e psicológicos, na medida em que atentam à vontade do legislador, os quais possuem eficácia duvidosa. Os sistemáticos apoiam-se na ideia da unidade e da coerência do sistema jurídico. Por fim, os práticos-gerais dividem-se entre teleológicos e deontológicos, preocupando-se com a justificação dos fins a serem promovidos pela norma ou por algum valor incondicional (i.e., independente das consequências) que tal norma visa a proteger. (ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos humanos. Bogotá: Universidad Externado Colombia, 2001, p. 55-7).

104 Ou, se outros critérios poderiam diferenciar os argumentos jurídicos classificados, esses não chegam a ser explicitados.

105 Não se nega, porém, que esse, de fato, seja o caso central da prática profissional do direito.

106 Op. cit., p. 175.

107 Para HA1, raciocínios consequencialistas seriam um exemplo de argumento “não institucional”, tal como ocorre na invocação pela Fazenda Pública de “perda significativa de receita para o Estado no futuro”. (op. cit., p. 176)

108 “Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.”

109 Não se pode negar que existem casos de regimes não democráticos em que o grau de controle estatal é tamanho que o detentor de poder irá considerar cada uma das suas manifestações individuais como sendo sempre o melhor argumento, situação em que, porém, sequer haverá se falar em prática argumentativa sendo executada, de modo que sequer haverá de se falar em tentativa de argumentação racional. Esse tipo de caso extremado, porém, não exclui a possibilidade de regimes autoritários que ainda pretendam permitir a realização pública de jogos argumentativos, os quais poderão seguir exatamente a mesma escala hierárquica proposta por HA1.

110 Esse argumento, aliás, é uma das teses centrais da maior parte dos filósofos e pensadores políticos contemporâneos, como se vê, por exemplo, no conceito de “condições ideais de discurso” de HABERMAS e na “ideia de razão pública” de RALWS.

111 Tal conexão com WITTGENSTEIN é reconhecida expressamente pelo próprio ÁVILA em Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Editora Malheiros, 12ª edição, 2011, p. 32.

112 KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Estados Unidos da América: University of Chicago Press, 2ª edição, 1970. Sobre mudanças paradigmáticas no direito tributário brasileiro, vide o nosso “Por uma Ciência Prática do Direito Tributário”. São Paulo: Quartier Latin, 2016.

113 Op. cit., pp. 21-7.

114 Op. cit., p. 24.

115 Op. cit., p. 30. Cabe referir que a distinção entre texto e norma, aparentemente, ainda não se fazia clara em HA1, pois, no artigo Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico, identificam-se referências à expressão “norma” em situações nas quais “texto” seria a mais adequada, como por exemplo “norma objeto de interpretação” e “dentre os significados possíveis da norma deverá ser escolhido aquele mais intensamente correspondente aos valores estabelecidos pelos princípios” (pp. 165 e 176).

116 Op. cit., p. 30.

117 Op. cit., p. 31.

118 Op. cit., p. 31-2.

119 Op. cit., p. 32.

120 Op. cit., p. 33.

121 Para crítica mais detalhada ao paradigma formalista-linguístico apresentado por CARVALHO, vide o nosso “Por uma Ciência Prática do Direito Tributário”. São Paulo: Quartier Latin, 2016, pp. 234 e ss.

122 ÁVILA, Humberto. Função da Ciência do Direito Tributário: do Formalismo Epistemológico ao Estruturalismo Argumentativo. In: Revista Direito Tributário Atual, nº 29. São Paulo: Dialética, 2013.

123 CARVALHO, Paulo de Barros. Breves considerações sobre a função descritiva da Ciência do Direito Tributário. Rede Mundial de Computadores, CONJUR, http://www.conjur.com.br/2013-out-01/paulo-barros-breves-consideracoes-funcao-descritiva-ciencia-direito-tributario, acesso em 05/02/2019.

124 Aliás, a leitura do referido artigo de CARVALHO ilustra bem a razão pela qual aqui se defendeu que uma ética argumentativa é recomendável na boa condução de um embate discursivo racional.

125 ÁVILA, Humberto. Ciência do Direito Tributário e Discussão Crítica. In: Revista Direito Tributário Atual, nº 32. São Paulo: Dialética, 2014, pp. 159-197.

126 ÁVILA, Humberto. Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico. Porto Alegre: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 19, Março/2001, p. 169.

127 No artigo aqui mencionado, apenas as noções de objetividade semântica e discursiva são referidas, pois o completo detalhamento delas consta de ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – entre Permanência, Mudança e Realização no Direito Tributário. São Paulo: Editora Malheiros, 2ª edição, 2011, p. 120.

128 Op. cit., p. 161.

129 Citando CHIASSONI e GUASTINI, os elementos extratextuais pertinentes ao direito seriam elementos extralinguísticos que receberiam qualificação normativa após um processo heterogêneo de interpretação. Como exemplos desses elementos extratextuais, teríamos os fatos, costumes, a identificação de artigos pertinentes, a resolução de antinomias, o preenchimento de lacunas. Representariam, pois, “fatos jurídicos sem linguagem” (Op. cit., p. 175).

130 Op. cit., p. 166.

131 Por coerência conceitual, o conteúdo dos elementos qualificados como extratextuais por HA2 seriam enquadrados por HA1 na definição central de argumentos não institucionais.

132 Op. cit., p. 172.

133 “...o intérprete, embora desenvolva e transforme o Direito, parte sempre de núcleos de significação. A opção pelo termo ‘reconstruir, em vez de ‘construir’, deve-se ao fato de que, conquanto o intérprete contribua para a determinação do significado dos dispositivos, sua atividade não pode ser nem totalmente constitutiva do significado, nem integralmente desestruturada: não pode ser totalmente constitutiva do significado, na medida em que a interpretação não surge ex nihilo, do nada ou no vácuo – antes se submete a limites decorrentes da estrutura sintática do dispositivo, dos núcleos de significação dos seus termos, do contexto normativo em que eles se insere e de processos institucionais anteriores de conotação relativos a seus termos; tampouco pode ser integralmente desestruturada, na medida em que deve obedecer a diretrizes argumentativas e metodológicas capazes de justificar a determinação do significado com base em critérios racionais e jurídicos.” (Op. cit., p. 188).

134 “Como a intepretação é uma atividade argumentativa e o Direito, sobretudo uma atividade, e não apenas um objeto, revela-se insuficiente a referência a uma fonte normativa para justificar uma interpretação.” (Op. cit., p. 190)

135 Op. cit., p. 189.

136 Na obra Teoria dos Princípios a ideia de significados mínimos, para ÁVILA, estaria relacionada com as noções de jogos de linguagem em Wittgenstein, de enquanto hermenêutico em Heidegger, de condição a priori intersubjetiva de Miguel Reale. Mais adiante também se esclarece que “...o uso comunitário da linguagem constitui algumas condições de uso da própria linguagem.” (Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Editora Malheiros, 12ª edição, 2011, p. 33) Entendemos, porém, que significados mínimos se compreendidos como jogos de linguagem ainda necessitariam explicar o seu fundamento último em formas de vida, tal como esclarecido na primeira parte deste trabalho, de modo que a fundamentação final de um jogo argumentativo não seriam determinados significados mínimos, pois ainda se deveria esclarecer como esses são intersubjetivamente fixados naquela determinada comunidade linguística.

137 A título ilustrativo, alguns autores contemporâneos, principalmente norte-americanos, consideram tão diferenciadas as naturezas dessas atividades intelectuais que preferem não as qualificar todas como espécies do gênero “interpretação”. Por exemplo, diante dessa suposta diferença essencial, preferem separar as atividades de “interpretação” e de “construção”, como se fossem tarefas completamente distintas a serem realizadas no campo jurídico. Assim, seguindo SOLUM, “interpretação” seria guiada por fatos linguísticos fixados por padrões de uso e sua compreensão independente de valoração (value-free). Já construção envolveria uma atividade normativa que permitiria a formulação de juízos construtivos de sentido por parte do intérprete. (SOLUM, Lawrence. The Interpretation-Construction Distinction. Apud SUNSTEIN, Cass. Constitutional Personae. Nova Iorque: OUP, 2015, p. 58) Mesmo não se compartilhando dessa visão, ela representa postura teórica que vem ganhando adeptos e, por isso, deve ser enfrentada.

138 “519...in order for you to be able to carry out an order there must be some empirical fact about which you are not in doubt. Doubt itself rests only on what is beyond doubt.” (WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty//Über Gewissheit. Edição bilíngue. EUA: Harper Torchbooks, 1972, p. 68)

139 Exemplos simples de argumentação empírica: (a) em discussões envolvendo a legitimidade do aborto, questões acerca do início da vida humana são, em parte, biológicas e, portanto, exigem a execução de raciocínios empíricos sobre essa realidade; (b) a demonstração fática de que o acidente de trânsito, o homicídio, o dano ambiental etc... ocorreram de tal ou qual modo, podendo exigir argumentação que parta de testemunhos, perícias, dados documentais etc...; e (c) a comprovação simples de que determinada lei foi publicada no diário oficial no dia XX e, portanto, não estava em vigor no momento da ocorrência dos fatos em discussão.

140 Segundo FINNIS, “Doing law immerses one both in practical reason’s activities, thinking about what to choose and do, and in a certain amount of reflection on the content and structure of that thinking.” (FINNIS, John. Collected Essays – Volume I: Reason in Action. Oxford University Press: Oxford, 2011, p. 19).

141 A execução de qualquer raciocínio prático deverá respeitar parâmetros lógicos mínimos e a não observância a tais critérios formais poderá ser invocada como defeito de um raciocínio dentro de um cenário de argumentação jurídica, como, por exemplo, argumentando que não foram respeitadas regras formais da dedução, da indução, da analogia, das próprias regras gramaticais da linguagem ordinária que permitem uma comunicação inteligível, ou ainda o uso adequado de modais lógicos, como impossível, possível, provável, improvável, ou de modais deônticos, como proibido, obrigatório e permitido etc... A argumentação jurídica deverá trabalhar também tais critérios formais e esses não são ditados pelo DPV, mas, em verdade, são eles que articulam a possibilidade lógica de um discurso jurídico inteligível. Exemplificando: invocar a máxima “ninguém pode ser obrigado ao impossível” exigirá, em parte, a estrutura de uma argumentação formal.

142 Consequencial, de nenhuma forma, por ser considerado sinônimo obrigatório de raciocínio meramente instrumental ou utilitário. Isso porque a execução de um raciocínio consequencial está em posição de subordinação às argumentações anticonsequenciais, as quais possuem prioridade argumentativa e antecedência discursiva relativamente àquele primeiro. Por isso, a argumentação consequencial somente poderá ser considerada relevante e pertinente na justificação da melhor resposta possível para um problema prático quando mais de uma conclusão em raciocínios anticonsequenciais (ou seja, acerca do fim, do bem, do valor a ser protegido ou promovido no caso concreto) mostrar-se razoável. Somente haverá risco de um raciocínio consequencial culminar em puro utilitarismo quando for descartada ou desprezada a necessidade de se esgotarem as discussões acerca de considerações argumentativas de ordem anticonsequencial.

143 Segundo TOULMIN, analíticos são argumentos cujo conteúdo da conclusão já se encontra presente no significado das premissas (e.g., “o triângulo tem três lados” ou “minha irmã de sangue é filha da minha mãe”). Nesse sentido, argumentos analíticos contém tautologias e se afirmam dentro do raciocínio como auto-evidentes. (Op. cit., p. 125)

144 Exemplificando: pressupõe argumentação anticonsequencial (a) no contexto do debate acerca do aborto, defender tanto que o feto possui dignidade indisponível, quanto que a mulher possui uma liberdade inalienável sobre o próprio corpo; (b) no contexto do direito do trabalho, a argumentação de que atividades equiparadas à escravidão são categoricamente proibidas; (c) no direito penal, a alegação de que a prisão de condenado somente pode ocorrer após o trânsito em julgado, não obstantes os eventuais riscos de segurança pública. Importante ressaltar que aqui não se advogada que um ou outro conteúdo desses enunciados seja necessariamente correto e verdadeiro, mas apenas que esses exemplos captam situações concretas de argumentação anticonsequencial.

145 Juízo sintético é aquele em que o predicado acrescenta algo à compreensão do sujeito, na medida em que não pode ser conceitualmente derivado das propriedades desse sujeito, motivo pelo qual demandarão certa demonstração empírica. (e.g., Paris é a capital da França; Chove lá fora).

146 Exemplificando: pressupõe argumentação consequencial (a) a defesa da prática legalizada do aborto, em razão do número de mulheres que poderão ter melhor assistência médica; (b) o argumento de que a prisão antes do trânsito em julgado irá contribuir a redução da criminalidade; e (c) a modulação de efeitos de uma lei tributária declarada inconstitucional em razão do abalo orçamentário que a devolução do indébito provocará.

147 Agradeço a André Coelho por me convencer de que a expressão “Argumentação a partir de formas de vida” seria mais adequada que “Argumentação Institucional”, a qual poderia gerar confusões no campo da dogmática jurídica.

148 Certamente há na expressão “a partir de ‘formas de vida’” uma dificuldade de nomenclatura que poderá gerar certa resistência na sua aceitação. Por isso, necessitaria ela de um esclarecimento mais delongado. Isso, porém, não será possível no espaço deste artigo. Entendemos, porém, que a ideia central desse tipo de argumentação poderá ser visualizada em termos genéricos pelos exemplos dados, não obstante seja necessário um profundo detalhamento dos seus termos em trabalhos futuros.

149 BANKOWSKI, Zenon. Living Lawfully – Love in Law and Law in Love. Dordrecht: Kluwer, 2001.

150 “Epistemologically, our rationality pushes us into making more of the world than a set of disordered instances. Morally, being a structured being means that we think of our lives as having meaning.” (BANKOWSKI, Zenon. Living Lawfully – Love in Law and Law in Love. Dordrecht: Kluwer, 2001, p. 181).

151 Exemplificando: pressupõe a estrutura de argumentos de formas de vida (a) a invocação, em termos de direito comparado, de instituto presente em diferentes sistemas jurídicos, buscando justificar ou que a nossa prática tem qualidades próprias e incompatíveis com esse ou que tal prática estrangeira é mais razoável e deve servir de parâmetro (e.g., dizer que o mecanismo da modulação de efeitos está presente na maior parte dos países considerados civilizados, motivo pelo qual Brasil também deve adotá-lo ou destacar que o Brasil está em dissintonia com a maioria dos países quanto à prisão apenas depois do trânsito em julgado, o que exigiria a adequação à tendência mundial); e (b) a fixação da autoridade de uma decisão ou de um comando a ser seguido pela função, cargo ou órgão que a tomou ou o emitiu, em casos de maior discricionariedade decisória (e.g., em cenários de avaliação do mérito em concurso artístico, atlético ou acadêmico, quando esgotados todos os critérios normativos para avaliação e diante da persistência de empate, a decisão que resolve o impasse poderá ser baseada apenas no(a) expertise/autoridade/tradição daquele que decidiu). Por fim, ilustra também o ponto aqui pretendido a situação em que se apresenta um Parecer Jurídico elaborado por jurista de renome numa disputa judicial controversa. A importância dessa atitude e a força autoritativa das conclusões alcançadas nesse Parecer somente podem ser adequadamente compreendidas dentro do escopo de uma argumentação a partir de uma forma de vida. Isso porque a justificação do conteúdo prático apresentado no referido documento, mesmo que dependa da sua compatibilidade com o DPV, em grande parte exige o reconhecimento pelos demais operadores do direito da autoridade daquele que é signatário do referido Parecer.

152 Op. cit., p. 193.

153 A inspiração teórica desse tipo de argumentação reporta-se, não apenas ao conceito de formas de vida (Lebensform) do “Segundo Wittgenstein”, já explorado na primeira parte deste artigo, mas também na noção de Integridade de Ronald DWORKIN (Law’s Empire. Estados Unidos da América: Harvard University Press, 1986).