Artigos Espontâneos (não Submetidos ao Sistema de Avaliação Double Blind Peer Review)

Considerações sobre a Moeda e suas Implicações Legais e Tributárias (do Escambo e da Tributação “in Natura” à Moeda Funcional)

Studies on the Currency and its Legal and Tax Consequences (from Barter and “in Natura” Taxation Tillfunctional Currency)

Ricardo Mariz de Oliveira

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT.

Resumo

Com a introdução de diversas novas práticas contábeis no Brasil, a partir de 2008, foi necessário adaptar e atualizar a legislação tributária, o que, em seu último estágio, foi implantado pela Lei n. 12.973. A despeito do tempo decorrido desde o início do ano de 2008 até a Medida Provisória n. 627, o qual deveria ter sido suficiente para que todas as adaptações e ajustes necessários fossem percebidos e tratados adequadamente, a realidade demonstrou a subsistência de algumas lacunas e de diversas imperfeições. Uma das matérias que muito impacta determinadas empresas brasileiras, e que requer cuidados especiais tanto perante as leis tributárias quanto perante as leis em geral, vigentes no Brasil, é a que diz respeito à moeda, e particularmente à chamada “moeda funcional”. O objetivo destas considerações é expor e analisar esta matéria.

Palavras-chave: tributação “in natura”, moeda, função legal, contabilidade, moeda funcional.

Abstract

After the introduction in Brazil of several new accounting procedures, in 2008, it was necessary to adapt and update the tax legislation, and the last step for it was taken through Law no. 12973. Notwithstanding the lapse of time between 2008 and the Medida Provisória n. 672, which was enough for that all adjustments could be noted and duly dealt with, there remained a few loopholes and several mistakes. One issue of most concern for certain Brazilian enterprises is related to the currency and particularly the so called ‘functional currency’. These commentaries seek to explain and discuss such a matter.

Keywords: “in natura” taxation, currency, legal function, accounting, functional currency.

Qualquer principiante do estudo do direito tributário brasileiro sabe que a moeda é denominador do “quantum debeatur” da própria obrigação tributária, dado que o art. 3º do Código Tributário Nacional – CTN prescreve que “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

Outrossim, sabe-se que as bases de cálculo expressas em moeda estrangeira devem no lançamento ser convertidas para moeda nacional, segundo a regra do art. 143 do mesmo CTN, dado que parte da atividade administrativa de constituição do crédito tributário corresponde à respectiva quantificação (art. 142), a qual somente pode ser feita pela moeda de curso forçado e por seu valor nominal e legal. Por esta última razão, o pagamento do tributo em moeda corrente, que tem poder liberatório legal, é o meio por excelência de extinção da respectiva obrigação (art. 162, inciso I e parágrafo 1º).

Por fim, dentro do CTN, vamos encontrar a entrega de moeda nacional ou estrangeira como suporte para incidência e cálculo do imposto sobre operações financeiras, ou sobre operações de câmbio (incisos II dos art. 63 e 64), em situações nas quais ela própria, e não apenas sua expressão nominal, aparece como uma espécie de bem (quase mercadoria) cuja transação representa manifestação de capacidade contributiva.

Desde que o nominalismo da moeda voltou a presidir as obrigações em geral, e particularmente as relativas aos tributos sobre a renda, o que ocorreu com as Leis ns. 8.880, de 27 de maio de 1994, e 9.249, de 26 de dezembro de 1995, qualquer acréscimo de unidade da moeda brasileira ao patrimônio passou a ser possivelmente sujeito à tributação, assim como qualquer redução em tese pode representar uma redução patrimonial. Neste sentido, a Lei n. 9.718, de 27 de novembro de 1998, em continuidade à reintrodução do nominalismo no sistema legal relativo aos tributos federais, estatui que as variações monetárias, assim entendidas as variações da moeda nacional perante qualquer moeda estrangeira, em relação a direitos de crédito do contribuinte, ou das suas obrigações, devem ser consideradas receitas ou despesas financeiras para fins do imposto de renda, da contribuição social sobre o lucro, da contribuição ao PIS e da Cofins (art. 9º).1

Enfim, em nosso ordenamento jurídico, inclusive em nosso Sistema Tributário Nacional, a moeda nacional de curso forçado e poder liberatório, com seu valor nominal legal, preside a quantificação das obrigações tributárias e lhes dá uma de suas características essenciais, que é serem obrigações “in pecunia”, e não “in natura”, a serem pagas nessa moeda.

Quanto a isto, o direito tributário brasileiro seguiu na esteira da evolução da humanidade e das relações sociais, que chegou a este estágio após começar com a tributação imposta aos súditos dos soberanos, para que trabalhassem em favor destes ou lhes entregassem partes dos seus próprios bens, principalmente dos advindos da sua produção agrícola e pastoril.

Nesta evolução, a moeda substituiu a entrega de trabalho ou de bens no âmbito da tributação dos súditos, o que também ocorreu nas relações individuais, nas quais a moeda corrente substituiu o escambo ou outros meios de pagamento. Mas no campo tributário, ela foi acompanhada de outra evolução, que foi a possibilidade da cobrança de tributos mediante o consentimento dos súditos, fossem eles nobres ou simples homens do povo, chegando ao Estado Democrático, que submete o poder de tributar ao princípio da legalidade.

Por evidente, legalidade e natureza pecuniária da obrigação subsistiram em tempos nos quais, em nosso País, a inflação desenfreada acarretou a implantação de sistemas de indexação (correção monetária) das bases de cálculo dos tributos e dos próprios valores dos créditos tributários, pois aquelas características não são ligadas necessariamente ao nominalismo, podendo conviver, como conviveram por décadas, com a prática legal da correção monetária.

Mas no nominalismo a legalidade e a natureza pecuniária adquirem o colorido mais vivo da força e da resistência da moeda ante a inflação, o colorido da sua capacidade de representar verdadeiro poder aquisitivo, embora afetado na prática pela majoração de preços, especulativa ou decorrente do império da lei da oferta e da procura, mas também pela indesejável submissão aos efeitos da inflação, enquanto moderada.

Por isso que em épocas de alta inflação não havia sentido em tributar a mera correção monetária, que tentava representar a perda de poder aquisitivo de um mesmo capital, ou seja, para um mesmo capital a correção nada mais era do que uma nova expressão em quantidade de moeda, sem nada acrescentar ou diminuir substancialmente.

Naquele tempo, a própria variação cambial, isto é, a variação entre a moeda nacional e qualquer outra moeda estrangeira, era falseada, embora houvesse especulação com moedas mais fortes, ou aquisição destas para proteção do valor do patrimônio.

Já em tempos de inflação controlada passa a ter sentido que a variação cambial possa representar ganho ou perda financeira, não apenas nas situações de especulação ou de proteção patrimonial, mas também em todas as transações comerciais e financeiras, do mesmo modo que faz sentido considerar renda ou despesa a variação de um direito ou obrigação que não esteja expresso em moeda brasileira, sem se cogitar do efetivo poder aquisitivo desta ou da outra. E o mesmo ocorre com obrigações em reais, mas sujeitas a qualquer indexação.

Neste cenário, a Lei n. 12.973, de 13 de maio de 2014, veio confirmar o sistema tributário tendo em vista a introdução de novas práticas contábeis a partir da Lei n. 11.638, de 28 de dezembro de 2007, e determinou em seu art. 62 que o contribuinte pessoa jurídica, para efeitos da tributação federal relativa aos tributos acima mencionados, reconheça e mensure em moeda nacional seus ativos, passivos, receitas, custos, despesas, ganhos, perdas e rendimentos, ou seja, todos os elementos positivos e negativos que componham seu patrimônio e o modifiquem para mais ou para menos.

Paralelamente, a Lei n. 12.973, fiel ao princípio da realização da renda, determina a desconstituição, para fins tributários, dos efeitos de todas as diretrizes contábeis relativas a avaliações de bens e obrigações que antecedam a sua efetiva realização: é o que consta de inúmeros dispositivos da lei, cuja menção específica não é necessária nestes comentários.

O art. 62 e todos os mencionados dispositivos da Lei n. 12.973 também se tornaram necessários dentro do objetivo central da primeira parte desse diploma legal, que não foi instituir novas normas pertinentes à determinação das bases de cálculo desses tributos, mas apenas neutralizar os efeitos decorrentes das referidas práticas contábeis, de modo a manter o regime tributário que vigia antes delas e a manter a tributação submetida ao Sistema Tributário Nacional prescrito pela Constituição Federal e complementado pelo CTN. Por isso mesmo, pode-se dizer com certeza que a Lei n. 12.973 não teria existido se a contabilidade não tivesse sido profundamente modificada em virtude da Lei n. 11.638 e das prescrições dos órgãos de regulação contábil.2

Sendo assim, o parágrafo 1º do mesmo art. 62 não deixou espaço a dúvidas quanto ao papel da moeda, já definido no seu “caput”, prescrevendo em complemento os ajustes necessários quando não se encontrar na contabilidade a observância do nosso ordenamento tributário. De fato, lemos nesse parágrafo que, se a contabilidade adotar, para fins societários, moeda diferente da moeda nacional no reconhecimento e na mensuração dos elementos do patrimônio e dos resultados, a diferença entre os resultados apurados com base naquela moeda e na moeda nacional deve ser neutralizada mediante adição às bases de cálculo dos tributos, ou por exclusão das mesmas.

Nem poderia ser diferente, pois as práticas contábeis adotadas a partir de 2008 são oriundas de costumes internacionais, os quais estão muito distantes dos princípios constitucionais brasileiros e das regras do nosso direito. Ademais, as empresas de pessoas jurídicas nacionais expandem-se cada vez mais para mercados externos, tornando conveniente que seus balanços se assemelhem aos de entidades situadas nesses outros mercados ou nos mercados onde seus valores mobiliários sejam negociados.

Pois bem, nesta nova realidade passou a ser considerado nos conceitos contábeis um novo denominador de direitos e obrigações, enfim, dos elementos do patrimônio que sejam direitos e obrigações com conteúdo econômico.

Realmente, ao lado da consideração da moeda brasileira e das moedas em que determinados ativos ou passivos, receitas ou despesas sejam exprimidos, surgiu a noção de “moeda funcional”.

Comecemos por deixar clara essa noção, e depois vejamos quais consequências legais e tributárias ela acarreta.

Não se trata de uma nova moeda, diferente do real, do dólar norte-americano, do euro, da libra ou de qualquer outra, nem é uma moeda internacional válida independentemente de fronteiras nacionais.

Nem a adjetivação “funcional” deve ser entendida como uma moeda que tenha função diferente da de ser denominação legal dos valores dos bens e das obrigações, que é a função de todas as moedas dentro dos domínios territoriais em que elas circulam. O termo também não significa a existência de uma função diferente da de ser meio de troca e extinção de obrigações.

Trata-se apenas de uma noção contábil, entre nós explicitada pelo Pronunciamento CPC n. 02, correlato às Normas Internacionais de Contabilidade – IAS 21.

Note-se desde logo, que a ideia da “moeda funcional” surgiu com esse ato regulatório contábil, pois não aparece na Lei n. 11.638 ou na Lei n. 12.973, e também não se encontra referência a ela nas disposições sobre as demonstrações financeiras, contidas na Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de1976.

Nesta última lei há apenas o vínculo indireto, imposto às companhias abertas e facultado às fechadas, de observância em suas contabilidades das normas baixadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM (as quais incorporam pronunciamentos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC), cujas normas devem ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários (parágrafos do art. 177, com as inovações introduzidas pelas Leis ns. 11.638 e 11.941, de 27 de maio de 2009).

Portanto, é no referido Pronunciamento CPC n. 02 que vamos encontrar o que seja “moeda funcional”.

Como sói acontecer com os pronunciamentos do CPC, até em virtude da sua origem, o de n. 02 é didático e explicativo, embora complexo e de compreensão não fácil.

O Pronunciamento CPC n. 02 começa por descrever seu objetivo, dizendo que uma entidade (termo equivalente à pessoa jurídica ou empresa, para tanto prestigiada, o que a contabilidade entende por prevalência da essência sobre a forma jurídica) pode manter atividades em moeda estrangeira de duas formas, quais sejam, ou por ter transações em moedas estrangeiras ou pode ter operações no exterior.

Em virtude disso, o pronunciamento explicita que seu objetivo é orientar acerca de como incluir transações em moeda estrangeira e operações no exterior nas demonstrações contábeis da entidade, e como converter demonstrações contábeis para moeda de apresentação. E admite que a entidade apresente adicionalmente demonstrações contábeis em uma moeda estrangeira.

Aí surgem várias definições, das quais impende destacar as seguintes:

– “moeda estrangeira” é qualquer moeda diferente da moeda funcional da entidade, isto é, não é necessariamente outra moeda que não seja o real;

– “entidade no exterior” é uma entidade que pode ser controlada, coligada, empreendimento controlado em conjunto ou filial, sucursal ou agência de uma entidade que reporte informação, por meio da qual sejam desenvolvidas atividades que sejam baseadas ou conduzidas em um país ou em moeda diferente daquelas da entidade que reporta a informação;

– “moeda funcional” é a moeda do ambiente econômico principal no qual a entidade opere; por sua vez, o ambiente econômico principal no qual a entidade opere é normalmente aquele em que principalmente ela gere e despenda caixa, e se deve considerar, na determinação da moeda funcional, entre outros fatores, a moeda que mais influencie os preços de venda de bens e serviços da entidade (geralmente é a moeda na qual os preços de venda para seus bens e serviços estejam expressos e sejam liquidados) e a moeda do país cujas forças competitivas e regulações mais influenciem na determinação dos preços de venda dos bens e serviços, e também a moeda a que mais influencie fatores como mão de obra, matéria-prima e outros custos para o fornecimento de bens ou serviços (geralmente é a moeda na qual tais custos estejam expressos e sejam liquidados);

– “moeda de apresentação” é a moeda na qual as demonstrações contábeis sejam apresentadas.

Temos aí, portanto, o que seja “moeda funcional”, e também encontramos a ideia de “moeda de apresentação”, estando claro que não se trata necessariamente da moeda brasileira ou da moeda nacional de qualquer outro país, utilizada na precificação de uma determinada negociação e na sua liquidação. Por exemplo: uma entidade no Brasil que exporte noventa por cento da sua produção e cuja moeda na qual sejam cursadas as exportações seja o dólar norte americano, este poderá ser a sua moeda funcional, ainda que a mesma entidade tenha negócios em reais e negócios em outras moedas que não a norte-americana.

Segundo o mesmo pronunciamento contábil, a moeda funcional da entidade deve refletir as transações, os eventos e as condições subjacentes que sejam relevantes para ela, de tal modo que, uma vez determinada, a moeda funcional não deve ser ela alterada a menos que tenha ocorrido mudança nas transações, nos eventos e nas condições subjacentes.

O pronunciamento também prescreve que, quando a entidade mantenha seus registros contábeis em moeda diferente da sua moeda funcional, no momento da elaboração das suas demonstrações contábeis todos os montantes devem ser convertidos para a moeda funcional, cujo procedimento gera os mesmos montantes na moeda funcional que teriam ocorrido caso os itens tivessem sido registrados inicialmente na moeda funcional. E exemplifica: itens monetários devem ser convertidos para a moeda funcional, utilizando-se a taxa de câmbio de fechamento; e itens não monetários que sejam mensurados com base no custo histórico devem ser convertidos utilizando-se a taxa de câmbio da data da transação que resultou em seu reconhecimento.

Assim, repita-se, não interessa a moeda efetivamente empregada neste ou naquele negócio, nem a moeda legal brasileira, mas, sim, a moeda predominante tida como funcional.

Por ser a moeda funcional haurida de fatores não ligados a qualquer moeda corrente, podem ocorrer duas situações distintas, sendo a primeira aquela em que a moeda funcional determinada for moeda de economia hiperinflacionária, caso em que o CPC 02 prescreve que as demonstrações contábeis da entidade devem ser reelaboradas nos moldes do Pronunciamento Técnico CPC n. 42 (ainda não editado quando escrito este texto, sendo que, na sua ausência, aplica-se apenas o que determina o CPC n. 02).

A segunda é a existência de variações monetárias entre moeda ou moedas e a moeda funcional, as quais são tratadas como variações cambiais. Note-se que não se trata necessariamente de variação entre o real e determinada moeda, mas entre qualquer moeda, incluindo o real, e a moeda funcional.

Como decorrência desta segunda consequência, ainda outros efeitos podem surgir, como, por exemplo, nas avaliações a título de “impairment”.

Quanto às variações cambiais no sentido da moeda funcional, há muitas variáveis nas regras contábeis do Pronunciamento CPC n. 02, mas convém destacar algumas:

– uma transação em moeda estrangeira deve ser reconhecida contabilmente, no momento inicial, pela moeda funcional, mediante a aplicação da taxa de câmbio à vista entre a moeda funcional e a moeda estrangeira, na data da transação, sobre o montante em moeda estrangeira;

– quando um item monetário fizer parte do investimento líquido em entidade no exterior, da entidade que reporte a informação, e estiver expresso na moeda funcional dessa entidade, surge uma variação cambial nas demonstrações contábeis individuais da entidade no exterior; se esse item estiver expresso na moeda funcional da entidade no exterior, surge uma variação cambial nas demonstrações contábeis separadas e nas individuais da entidade que reporte a informação; se esse item estiver expresso em moeda que não seja a moeda funcional da entidade que reportar a informação, nem tampouco a moeda funcional da entidade no exterior, surge uma variação cambial nas demonstrações separadas e nas individuais da entidade que reporte a informação e nas demonstrações contábeis individuais da entidade no exterior;

– tais diferenças cambiais devem ser reconhecidas em outros resultados abrangentes, em conta específica do patrimônio líquido, nas demonstrações contábeis que incluam a entidade no exterior e a entidade que reporte a informação (exemplo: demonstrações contábeis nas quais a entidade no exterior seja consolidada ou seja tratada contabilmente pelo método da equivalência patrimonial).

Ao mesmo tempo, o Pronunciamento CPC n. 02 trata do uso de moeda de apresentação diferente da moeda funcional, e da conversão para a moeda de apresentação.

Nesta parte, o pronunciamento admite que a entidade possa apresentar suas demonstrações contábeis em qualquer moeda (ou moedas), e prossegue dizendo que, se a moeda de apresentação das demonstrações contábeis for diferente da moeda funcional da entidade, seus resultados e sua posição financeira devem ser convertidos para a moeda de apresentação. Dá como exemplo a situação em que um grupo econômico seja composto por entidades individuais com diferentes moedas funcionais, prescrevendo neste caso que os resultados e a posição financeira de cada entidade sejam expressos em uma mesma moeda comum a todas elas, para que as demonstrações contábeis consolidadas possam ser apresentadas.

Também determina que os resultados e a posição financeira da entidade, cuja moeda funcional não seja moeda de economia hiperinflacionária, sejam convertidos para moeda de apresentação diferente, adotando-se os procedimentos que descreve, e novamente podendo surgir variações cambiais. O mesmo ocorre quanto à moeda funcional de economia hiperinflacionária, cujas diretrizes estão fixadas no pronunciamento.

Não se tem aqui como objetivo expor, e muito menos explorar, a totalidade das diretrizes contábeis sobre moeda funcional, mas apenas dar a noção de moeda funcional para que se possa – este sim o objetivo pretendido – enfocá-la dentro do contexto das suas implicações no terreno da legalidade e da tributação no Brasil.

E neste aspecto o Pronunciamento CPC n. 02 tem um capítulo sobre os efeitos fiscais de todas as variações cambiais, no qual afirma que os ganhos e perdas em transações com moedas estrangeiras e variações cambiais advindas da conversão do resultado e da posição financeira da entidade (incluindo a entidade no exterior), para moeda diferente, podem produzir efeitos fiscais. Em vista disso, determina que o Pronunciamento CPC n. 32, relativo a tributos sobre o lucro, seja aplicado no tratamento desses efeitos fiscais.

Ocorre que o Pronunciamento CPC n. 32 alude a todos os impostos e contribuições nacionais ou estrangeiros que incidam sobre o lucro, mas, como não poderia deixar de ser, não fixa quais sejam os efeitos fiscais, os quais estão na competência apenas das leis de cada país. Sendo assim, ele trata tão somente dos procedimentos contábeis relacionados aos ditos efeitos fiscais, como, por exemplo, provisionamentos relativos a diferenças temporais quanto à apropriação de receitas, custos e despesas.

Destarte, também não cabe nestes comentários qualquer investigação sobre o conteúdo desse outro pronunciamento do CPC.

O que nos compete analisar, portanto, é o tratamento legal no Brasil aos efeitos do Pronunciamento CPC n. 02, inserindo-se nisto não apenas a lei tributária, mas também a legislação em geral.

A primeira advertência que se impõe no terreno da legalidade em geral é que as demonstrações financeiras das pessoas jurídicas sediadas no Brasil necessariamente têm de ser elaboradas e divulgadas (publicadas) em moeda brasileira, porque, como visto, esta é a moeda de curso forçado e poder liberatório que exprime todas as relações jurídicas e, portanto, todos os itens positivos e negativos de um patrimônio.

O curso forçado, juntamente com o nominalismo da moeda com poder liberatório, advém presentemente do Decreto-lei n. 857, de 11 de setembro de 1969, o qual, sob a epígrafe de que consolida a legislação sobre moeda de pagamento de obrigações exequíveis no Brasil, decreta a regra geral de nulidade de pleno direito dos contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como suas obrigações que, exequíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro.3

O cruzeiro, moeda nacional vigente em 1969, passou por sucessivas alterações de denominações até chegar ao real, que, segundo a Lei n. 9.069, de 28 de junho de 1994, a partir de julho daquele ano passou a ser a unidade do Sistema Monetário Nacional.

Como se sabe, essa lei instituiu o Plano Real, extinguiu a correção monetária tal como era praticada segundo a legislação anterior, determinou os critérios de conversão, para a nova moeda, dos valores até então vigentes, e determinou a nulidade de avenças contrárias às suas normas, ressalvando o Decreto-lei n. 857 e a Lei n. 8.880.

Portanto, a moeda nacional de curso forçado e com poder liberatório, e seu valor nominal, foram estabelecidos pela Lei n. 9.069.

Esse regime foi depois prestigiado no Código Civil de 2002, cujo art. 315 prescreve que, salvo as exceções que admite, as dívidas em dinheiro devem ser pagas em moeda corrente e pelo valor nominal, e cujo art. 318 declara nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial.

O mesmo vamos ter na Lei n. 6.404, a qual, já no seu art. 5º, determina que o estatuto da companhia fixe o valor do capital social expresso em moeda nacional, assim como as debêntures devem ser emitidas nessa moeda, salvo se previsto pagamento em outra moeda (art. 54). De modo igual, o art. 997, inciso III, do Código Civil manda que o capital das sociedades seja expresso em moeda corrente no Brasil.

Por necessária coerência, dado que a conta capital é parte de um todo uniforme, as demais contas patrimoniais ou de resultado devem estar em real, mesmo quando sejam obrigações em outra moeda, ou em real com paridade cambial, casos em que devem ser convertidas para a moeda brasileira na data do encerramento das demonstrações (art. 184, inciso II, da Lei n. 6.404). O Código Civil, por sua vez, é explícito quanto a que a escrituração deve ser feita em idioma e moeda corrente nacionais (art. 1.183).

Aliás, essa harmonia normativa sempre existiu, bastando recordar que o Decreto-lei n. 486, de 3 de março de 1969, que rege a escrituração mercantil, também determina que ela deve ser completa e em idioma e moeda corrente nacionais (art. 2º).

O mais relevante é observar que, além do que se tem em todas as demais leis, na própria Lei n. 6.404, fonte de origem dos pronunciamentos contábeis do CPC, a moeda de operação e de publicação das contas é o real, não a moeda funcional.

Em outras palavras, perante a lei brasileira, a moeda de trabalho e de apresentação das demonstrações financeiras necessariamente deve ser o real. Isto significa que a chamada “moeda funcional” não pode ser encarada de outro modo do que apenas um critério de valoração de itens patrimoniais e de resultado exclusivamente para fins contábeis, sem eliminar a moeda brasileira, e que a chamada “moeda de apresentação” somente pode ser admitida em adição às demonstrações financeiras em real.

No plano tributário também não se encontra em lei alusão à “moeda funcional” ou à “moeda de apresentação”.

Mesmo o Decreto-lei n. 1.598, de 26 de dezembro de 1977, que é de suma importância para a quantificação do lucro tributável pelo imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ), mas também do lucro tributável pela contribuição social sobre o lucro (CSL), malgrado ter sido alterado em virtude da introdução das novas práticas contábeis, comanda que o lucro real seja determinado com base na escrituração mantida em conformidade com as leis comerciais e fiscais (art. 7º), ou, seja, mantida em reais, é silente quanto à moeda funcional e contém diversas normas relativas à variação cambial entre a moeda brasileira e qualquer outra moeda estrangeira pela qual algum ato ou negócio seja realizado e cumprido, mas não em relação à funcional.

Com isto, atentando-se para que os ajustes do lucro líquido, para quantificação do lucro real tributável pelo IRPJ e da base de cálculo da CSL, devem estar expressamente previstos na lei tributária, alguém poderia imaginar que, não havendo na Lei n. 12.973 ou em qualquer outra lei a determinação de ajuste, para estes fins, relacionado à moeda funcional, esta acabaria por influenciar o cálculo dos dois tributos.

Neste sentido, o art. 58 da Lei n. 12.973 prescreve que a modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação dessa lei, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria.

Perante essa norma, pode-se também imaginar que a Lei n. 12.973 deveria ter anulado todos os efeitos dos métodos e critérios contábeis decorrentes de atos administrativos anteriores à sua publicação, de tal modo que a ausência de neutralização expressa de algum procedimento contábil importaria manutenção deste quando da quantificação das bases de cálculo do IRPJ e da CSL.

Ora, o Pronunciamento CPC n. 02 é de 3 de setembro de 2010 e foi publicado em 7 de outubro de 2010. Nesta data também foi editada a Deliberação CVM n. 640, que o aprovou, e ela foi publicada no dia 8 de outubro de 2010.

Portanto, segundo esse raciocínio, como a Lei n. 12.973, que é de 13 de maio de 2014, não neutralizou os efeitos do Pronunciamento CPC n. 02 e da Deliberação CVM n. 640, estes deveriam valer para efeitos fiscais. Tal raciocínio e sua conclusão manter-se-iam inclusive se o aplicássemos considerando os efeitos da Medida Provisória n. 627, origem da Lei n. 12.973, porque ela, sendo de 11 de novembro de 2013, também é posterior aos referidos atos administrativos.

Por outro lado, segundo o parágrafo único do art. 58 da Lei n. 12.973, a Secretaria da Receita Federal do Brasil somente teria competência para identificar os atos administrativos, e dispor sobre os procedimentos para anular os efeitos desses atos sobre a apuração dos tributos federais, que fossem posteriores à lei, dado que teoricamente esta teria neutralizado os atos anteriores a ela.

Entretanto, embora a sistemática da Lei n. 12.973 realmente tenha sido esta, ela não conseguiu abranger todos os critérios contábeis, previstos ou não em atos administrativos do CPC e da CVM, anteriores à sua vigência ou à da Medida Provisória n. 627.

Mesmo assim, como uma lei não esgota o ordenamento jurídico e não vige divorciada de outras que o compõem, qualquer prática contábil, mesmo que decorrente de pronunciamento do CPC e aprovada pela CVM, não pode subsistir contra o ordenamento legal, mormente em matéria tributária submetida irrefreavelmente ao princípio da legalidade.4

Assim, a moeda funcional, que nem sempre é a moeda brasileira pela qual se apura o lucro, e que também não é necessariamente a moeda pela qual esta ou aquela obrigação deva ser liquidada, gera variações cambiais que não são verdadeiras perante as moedas reais dos fatos verdadeiros, e, portanto, são admitidas apenas para os efeitos visados pelos procedimentos contábeis que tratam da moeda funcional.

Neste passo, a submissão das contabilidades de pessoas jurídicas sediadas no Brasil às diretrizes da moeda funcional vai acarretar distorções (que para essas regras são “variações cambiais”), as quais seguramente terão que ser neutralizadas para efeitos tributários.

E não há a mínima dúvida quanto a isto, eis que a Instrução Normativa RFB n. 1.515, de 24 de novembro de 2014, nos seus arts. 155 a 157, veio tratar do assunto com observâncias das normas legais que vigem no País.

Esse ato fazendário reconhece que, para fins tributários, os ativos, passivos, receitas, custos, despesas, ganhos, perdas e rendimentos devem ser mensurados com base na moeda nacional, sendo esta a moeda da escrituração a ser transmitida ao Sistema Público de Escrituração Digital – Sped.

O mesmo ato trata especificamente da moeda funcional, prescrevendo que, se a pessoa jurídica adotar, para fins societários, moeda funcional diferente da moeda nacional, deve elaborar, para fins tributários, escrituração contábil com base na moeda brasileira.

Sendo redundante, mas justificadamente, a instrução normativa preconiza que a escrituração a que se refere, isto é, a destinada à apuração do lucro líquido básico para a determinação do lucro tributável, tanto pelo IRPJ quanto pela CSL, deve ser obtida com base na escrituração contábil feita com observância das normas da Lei n. 6.404, ressalvando, contudo, expressamente, a necessidade de ser adotada a moeda nacional.

E mais, a instrução fiscal especifica que os ajustes de adição, exclusão ou compensação, prescritos ou autorizados pela legislação tributária para a determinação do lucro tributável pelo IRPJ e pela CSL, devem ser realizados com base nos valores reconhecidos e mensurados na moeda nacional.

Por fim, a instrução normativa estende o critério à Cofins e à contribuição ao PIS.

Se, na prática, a Instrução Normativa RFB n. 1.515 coloca o contribuinte a salvo de interpretações divergentes, não apenas pela aplicação do parágrafo único do art. 100 do CTN, como também, e principalmente, face ao princípio que veda “venire contra factum proprium”, na doutrina e na teoria ainda se pode questionar se o ato fazendário pode vir a ser contestado, ou se, com resguardo das mencionadas proteções, pode vir a ser modificado prospectivamente.

Tal indagação se apresenta ante a comentada suposição de que a Lei n. 12.973 teria neutralizado inteiramente todos os efeitos de práticas contábeis ditadas por todos os atos administrativos anteriores a ela, e que apenas os futuros estariam automaticamente neutralizados pela norma constante do “caput” do seu art. 58.

Em sequência, sendo isto verdadeiro, segundo o parágrafo único do mesmo art. 58, a Secretaria da Receita Federal do Brasil somente teria competência para identificar atos posteriores à lei, e não atos anteriores, como são os dois que ditam procedimentos pertinentes à moeda funcional.

Para adentrarmos nesta perquirição, convém ter presentes os termos da referida norma legal:

“Art. 58 – A modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação desta Lei, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria.

Parágrafo único – Para fins do disposto no ‘caput’, compete à Secretaria da Receita Federal do Brasil, no âmbito de suas atribuições, identificar os atos administrativos e dispor sobre os procedimentos para anular os efeitos desses atos sobre a apuração dos tributos federais.”

A leitura pura e simples do “caput” e do parágrafo do art. 58 conduz à conclusão de que a premissa da Lei n. 12.973 seria de que apenas atos do CPC e da CVM posteriores a ela estariam automaticamente neutralizados até o surgimento de uma lei tributária regulando o assunto por eles tratados, mas não os anteriores. A mesma leitura conduz à conclusão de que a competência atribuída à RFB seria também apenas para os atos posteriores, porque estes são os abrangidos pela cabeça do artigo.

Entretanto, uma interpretação jurídica correta não pode admitir tal conclusão simplista, mormente quando se detectam situações de ausência de ajuste na Lei n. 12.973 ou em qualquer outra norma legal, mas ajuste que se imponha perante o Sistema Tributário Nacional ou mesmo perante outras normas legais confrontadas em algum procedimento contábil, como é o caso, sob ambas as vertentes, das práticas relacionadas à moeda funcional.

Por outro lado, neste caso específico, há, sim, norma expressa na Lei n. 12.973, não uma que, a exemplo de outras relacionadas a determinado procedimento contábil, prescreva um ajuste específico, mas uma norma de caráter geral que implicitamente conduz ao mesmo resultado quanto à moeda funcional, a saber:

“Art. 62 – O contribuinte do imposto sobre a renda deverá, para fins tributários, reconhecer e mensurar os seus ativos, passivos, receitas, custos, despesas, ganhos, perdas e rendimentos com base na moeda nacional.”

Não é preciso qualquer explicação para se demonstrar o que é cristalino, ou seja, que o Pronunciamento CPC n. 02 e a Deliberação CVM n. 640 são incompatíveis com a norma legal manifestada pelo art. 62, no que diz respeito à apuração do lucro tributável.

Destarte, seja em vista do art. 62, seja em face de todas as demais normas legais antes referidas, a Instrução Normativa RFB n. 1.515, em seus art. 155 a 157, tem base jurídica, ou seja, é legal, e se for modificada sem haver alteração legal, sua alteração, dependendo do que contiver, é que poderá ser ilegal.

1 Sobre a extinção da correção monetária e o retorno ao nominalismo da moeda, veja-se OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, Capítulo XVII, p. 939.

2 Sobre isto, consulte-se OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. “Os vários caminhos da Lei n. 12.973 – cuidados na sua interpretação”. In: ROCHA, Sergio André (coord.). Direito tributário, societário e a reforma da Lei das S/A. Vol. IV. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 472.

3 Sobre as obrigações em moeda estrangeira, veja-se também a Lei n. 8.880, de 27 de maio de 1994, que em seu art. 6º reiterou a nulidade das mesmas, salvo as exceções previstas em lei federal e os arrendamentos mercantis decorrentes de captações no exterior.

4 Sobre isto, veja-se também “Lei n. 12.973: efeitos tributários das modificações contábeis (escrituração x realismo jurídico)”. In: CARVALHO, Paulo de Barros (coord.); e SOUZA, Priscila de (org.). O direito tributário entre a forma e o conteúdo. São Paulo: coedição Ibet e Noeses, 2014, p. 1.045, e RODRIGUES, Daniele Souto; e MARTINS, Natanael (coords). Tributação atual da renda. São Paulo: Noeses, 2015, p. 328.