Tipo Receita em Restruturação Societária - Caso Bovespa

Fernando Aurelio Zilveti

Livre-docente da GV Administração.

Resumo

Este artigo trata da questão da tributação de PIS e Cofins nas operações de restruturação societária. O autor explora o caso Bovespa como paradigma de aplicação do tipo receita, prescrito na Constituição Federal e na legislação brasileiras. Propõe, afinal a consideração do tipo para aferir o cumprimento do princípio da igualdade na tributação.

Palavras-chave: tributação nacional, caso Bovespa, tipo na legislação do PIS/Cofins.

Abstract

This paper deals with PIS and Cofins levied on company restructuring process. The author uses Bovespa case to check the typus revenue provided by Brazilian Federal Constitution and tax legislation. In conclusion, the author proposes the typus to comply with the equality principle.

Keywords: national taxation, case Bovespa, typus concept in the legislation of the PIS/Cofins.

1. Introdução

No campo jurídico, a metáfora da pirâmide kelseniana do ordenamento jurídico cedeu lugar para a representação do sistema jurídico centrado sob o modelo de uma rede entrelaçada.1 A rede entrelaçada do sistema jurídico é mais eficaz do que o sistema piramidal, principalmente nos dias de hoje, com a pluralidade sistêmica e as tensões naturais do choque entre civilizações. Jurisdicionado, mundializado ou circunscrito em mercados comuns, o contribuinte sofre as tensões das múltiplas relações sociais e econômicas. Sob a perspectiva de um sistema jurídico como um todo, a interpretação discricionária pode ser ampla. Igualmente ampla pode ser a fonte normativa.

Atualmente, a verticalidade da ordem jurídica imposta cede espaço à circularidade e à horizontalidade de um tecido normativo negociado, na medida em que as considerações de eficiência das políticas públicas tendem a disputá-lo à validade formal do direito. A urdidura normativa multidirecional se impõe diante da constatação inexorável de que apenas um poder não é capaz de garantir a regulação das relações humanas, plurais e dinâmicas. A segurança jurídica provém dessa pluralidade de fontes normativas, institucionalmente garantidas por jurisdições soberanas, porém, inseridas na ordem mundial, o que sugere alianças mais amplas e sem intervenção militar obrigatória. O sistema de valores jurídicos forma o Estado de Direito, constitucionalizado ou não, conferindo segurança jurídica ao jurisdicionado. Ao tratar de segurança jurídica e Estado de Direito é preciso salientar que o primeiro é fruto do segundo. Sem direito não há segurança.2

A tecnologia revoluciona o comportamento social e seus concertos políticos intramuros. Os EUA e a extinta União Soviética foram alguns dos poucos exemplos de Estados criados por intelectuais, antecipando o concerto jurídico da jurisdição em formação. Outros Estados, criados por baionetas, foram pensar seu sistema normativo jurisdicional bem depois do restabelecimento da paz. Assim, as construções filosóficas de poder e sua contenção passaram, a partir do final do século XVIII, pela positivação estrutural do Estado, culminando com o que se convencionou denominar Estado de Direito. Carta Constitucional e Estado guardam entre si uma relação de identidade. A Constituição foi por um longo período histórico pré-requisito do Estado de Direito. Hoje não mais. O sistema normativo garante segurança jurídica por meio de uma rede normativa constitucional, supraconstitucional e infraconstitucional. A determinação normativa confere ao jurisdicionado a noção de segurança jurídica. A percepção da segurança, porém, se dá a partir de um “controle semântico-argumentativo”. Esse controle não é propriedade do Direito, mas deve ser buscado nele, num “processo de legitimação, de determinação, de argumentação e de fundamentação normativas”.3

Nesse contexto, o positivismo serve o pensamento circular na construção das estruturas de dominação estatal, bem como da consagração das garantias de direitos fundamentais. O tipo serve a igual finalidade, porém num sentido elíptico evolutivo. Ambos são comuns no pensamento humanista. O segundo acompanha com maior elasticidade a evolução da humanidade. O pensamento elíptico tipológico não se presta ao jusnaturalismo. Trabalha em defesa da segurança jurídica do jurisdicionado. Não se nega com isso que o tipo, dada a amplitude de seu halo, traga problemas de interpretação jurisdicional, principalmente quando a norma interpretada utiliza figuras normativas extrassistêmicas. O legislador trabalha com o tipo tributário, interpretando a elasticidade conceitual nos casos em que a norma tributária traz em si uma desigualdade ao contribuinte.4

A questão da autonomia do Direito Tributário foi amplamente discutida no último século, sob a perspectiva didática, legislativa e hermenêutica. Isso demandou que as relações jurídicas obrigacionais do Direito Tributário encontrassem correspondência com figuras do Direito Privado, notadamente relações de direito.5 Esse debate teve na tributação sua ponta de lança. Havia de início uma obscura intenção de premiar a arrecadação para custear o Estado Social. Num segundo momento histórico, esse mesmo movimento autonomista oscilou entre a defesa do Estado arrecadador e a defesa do direito do contribuinte de resistir à tributação. O Estado Social foi sucedido pelo Estado da Sociedade de Risco e, desde então, se convive com uma interminável retórica de justificação do Estado, ainda que boa parte de seus pressupostos tenham se esfacelado em função das relações sociais multidirecionais, características daquilo que se convencionou chamar mundialização. A autonomia do Direito Tributário é, portanto, um fato a ser assumido sem, necessariamente, pensar nele como única característica sistemática da tributação.6

No sistema proposto de rede, urdidura compatível com a sociedade tecnológica de hoje, a autonomia serve para se desenvolverem conceitos próprios do Direito Tributário, interligados com outros ramos do conhecimento. O tipo não pretende constituir realidade de pensamento. É apenas meio para o conhecimento das classificações verdadeiras. Constrói apenas a rede, a trama sobre a qual se ordenam as descrições.7 Nisso, admite-se relativa prevalência do Direito Privado na elaboração conceitual, reconhecida a multiplicidade do Direito Privado e não apenas aquele constante do Código Civil. Os fenômenos econômicos impactam as mais diferentes áreas das ciências sociais e, até certo ponto, também das exatas, de modo que delas se obtêm definições precisas para uso das demais ciências. O Direito Tributário é sensível a isso e absorve conceitos oriundos das mais diversas fontes. Noticia-se até a erosão do Direito Civil, algo impensável há 40 anos, quando o Código Civil brasileiro, em vigor desde 2002, passou a ser elaborado. É um fato, portanto, que o desenvolvimento conceitual levou em consideração conceitos de Direito Privado que não estão necessariamente previstos no Direito Civil. Se os conceitos objeto dos tratados não contemplam figuras do Direito Civil, configura-se uma efetiva erosão nas raízes do Direito Privado. A propriedade privada, portanto, tal qual conceituada no Direito Civil e objeto da tributação, passa por revisão. O conceito de propriedade do Direito Tributário Internacional adota estruturas do Direito Comercial. Por outro lado, o conceito de propriedade do Direito Interno adota estruturas do Direito Civil. Se as estruturas forem divergentes no campo normativo, pode se configurar na aplicação dos tratados internacionais um problema de atribuição (Zurechnung). A atribuição sofre com os conceitos fluidos ou multifacetários como o de fonte, apenas para se dar um exemplo da complexidade do tema.8

Não obstante apenas os fenômenos eminentemente econômicos sob o ponto de vista da movimentação da riqueza interessarem à tributação e, consequentemente, ao Direito Tributário, a justificação do tributo parece distorcer perigosamente a doutrina e até mesmo a filosofia do Direito. Se o Estado tem sua justificação na ficção de uma entidade jurídica, cujo custo deve ser suportado por aqueles que participam da ficção por interesse ativo ou passivo de agregação social, a incapacidade dessa ficção em dar ao contribuinte a segurança justificadora da própria criação coloca em xeque toda a construção jurídica em questão. O Estado tem com o contribuinte uma relação dicotômica de cria e criador incompatível com a fundamentação do Direito para o primeiro. Não pode haver direito fundamental para uma ficção. Apenas ao homem cabem os direitos fundamentais, declarados e concretizados na dinâmica institucional da ficção Estado de Direito.

Afinal, a receita, fato gerador das contribuições sociais PIS e Cofins, pode ser considerada um tipo tributário? Faz sentido tratar receita como tipo, com seu núcleo duro mantido no tempo, alterando-se apenas seu halo na medida do avanço epistemológico?

Passamos a testar os argumentos do tipo em casos concretos, descritos a seguir.

2. Caso Bovespa

A história das bolsas de valores no Brasil foi inaugurada em 1845, com a criação da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Posteriormente, surgiram outras bolsas, com destaque para a Bovespa, criada em 1890 sob a denominação de Bolsa Livre e que, a partir de 1895, passou a se chamar Bolsa de Fundos Públicos de São Paulo, alterando sua denominação em meados dos anos 1960 para Bolsa de Valores de São Paulo - Bovespa. A estrutura jurídica das bolsas de valores de então eram, invariavelmente, de associações civis, previstas no Código Civil brasileiro. No modelo tradicional, portanto, as bolsas de valores se organizavam como associações civis sem fins lucrativos.

Nos últimos anos do século XX e início do presente século, as bolsas de valores do mundo todo passaram por processos de reorganização, convertendo-se em instituições em que os sócios patrimoniais fossem substituídos por simples acionistas, além dessas entidades assumirem o caráter natural de entidades com finalidade lucrativa. Esse processo foi denominado de desmutualização, uma vez que os sócios de associações deixariam de ter títulos associativos de sociedade civil para ter títulos mobiliários de sociedade de capital, notadamente de sociedade por ações.

No Brasil, esse processo de modernização se iniciou em 2000, quando foi celebrado um acordo de integração das nove bolsas de valores existentes à época em atividade, por meio do qual toda a negociação de renda variável em bolsa no País passou a ser realizada na Bovespa. Posteriormente, cinco daquelas bolsas foram encerradas por seus membros. Algumas bolsas tardaram a ser incorporadas ou extintas. Em 2002, a sociedade civil Bovespa assumiu toda a administração da negociação de renda variável do mercado organizado no Brasil.

Em 28 de agosto de 2007, os administradores da Bovespa Holding, da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), da Companhia Brasileira de Liquidações e Custódia (CBLC) e da Bovespa Serviços e Participações S.A. (BSP) decidiram, através de Assembleias Gerais Extraordinárias, reorganizar suas estruturas societárias. A reorganização societária das associações civis significou transformar tais instituições em sociedades por ações.

Como resultado, a Bovespa Holding passou a controlar integralmente a CBLC e a BSP, sendo que essa última teve sua razão social alterada para Bolsa de Valores de São Paulo S.A. (BVSP), exercendo as atividades operacionais anteriormente executadas pela Bovespa. A consequência dessa reorganização societária motivou o acesso das sociedades corretoras aos sistemas de negociação administrados pela BVSP, bem como o acesso dos agentes de compensação e liquidação aos sistemas administrados pela CBLC. Isso decorre de relação contratual desvinculada da participação societária.

O caso Bovespa, sob apreciação do Carf - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, chama a atenção em função da criatividade de seu processo de restruturação societária com vistas a promover a abertura de capital das sociedades por ações resultantes do processo de desmutualização. A restruturação societária, frise-se bem, nada gerou de riqueza, apenas alterou posições contábeis de natureza patrimonial no balanço das empresas investidoras.

A transformação dos títulos associativos em ações e S.A. é fruto de cisão e incorporação de parcela do patrimônio cindido da Associação Bovespa, bem como da CBLC - Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia, pela Bovespa Holding S/A. Essas operações seguiram a legislação vigente de Direito Privado, notadamente o Código Civil e Lei das S/A. Notável criatividade de planejamento tributário sem deixar de lado a relativa prevalência do Direito Privado sobre o Direito Tributário no campo conceitual.

Sob a perspectiva do contribuinte sócio da Bovespa, que passou a ser sócio da Bovespa Holding S/A, houve uma alteração na qualidade societária de seu investimento, fruto de uma reorganização societária formal das entidades investidas. Nos livros contábeis do contribuinte ora sócio de uma sociedade civil e posteriormente sócio de uma sociedade por ações, houve apenas uma alteração de nomenclatura e de registro contábil. O investimento é essencialmente o mesmo.

Para encaminhar a análise do caso neste ensaio, é preciso formular algumas questões, a serem respondidas afinal, tais como:

a) Faturamento é a soma das receitas oriundas do exercício da atividade empresarial?

b) Transformação de títulos em ações constitui receita?

c) Alienação posterior representa receita?

d) Receita é igual a faturamento?

e) Todo tributo repercute? Como se dá a não cumulatividade?

f ) É possível conceber a cumulatividade zero?

g) Qual seria a base do tributo não cumulativo, afinal?

3. Legislação do PIS e da Cofins

As Leis Complementares nº 7/19709 e nº 70/199110 introduziram as contribuições PIS e Cofins no ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal de 1988 recepcionou a LC nº 7/1970. As leis complementares acima mencionadas foram modificadas em parte pela Lei nº 9.718/1998, que alargou o que se entendia por faturamento, redimensionando a base de cálculo da contribuição.11 Mais tarde, a questão das mencionadas contribuições sociais voltou a ser tratada, desta feita no modelo não cumulativo, pelas Leis nº 10.637/200212 e nº 10.833/200313. As últimas duas leis tiveram origem, respectivamente, nas Medidas Provisórias nº 66/2002 e nº 135/2002. Na exposição de motivos desses diplomas legais provisórios, é possível verificar o aspecto teleológico do sistema de PIS e Cofins.

A CF/1988 disciplina a competência da União para legislar sobre ambas as contribuições sociais, para o financiamento da seguridade social. De fato, a CF/1988 trouxe os tipos tributários a serem objeto da tributação do PIS e da Cofins, “receita ou o faturamento”.14 Previa a Constituição, na redação original do inciso I do artigo 195, que a contribuição para a seguridade social devida pelo empregador incidiria sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros, deixando ao legislador complementar determinar o que fosse efetivamente faturamento. Esse dispositivo constitucional foi emendado como resultado consolidado da interpretação do STF. A posição do STF forçou a alteração da Carta, por meio da Emenda Constitucional nº 20/1998. Mesmo com a alteração da CF/1988, a posição do STF considerou inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/1998.15

A Exposição de Motivos da MP nº 66/2002, item 28, estabelece a neutralidade tributária nas operações de reorganização tributária, sempre sob o controle das autoridades fiscais nas mencionadas operações. Promove a introdução gradual de um regime de agregação de valor. Este dispositivo da Exposição de Motivos da MP nº 66/2002, ratificado pelo artigo 39 do mesmo diploma, reflete a intenção do legislador de não considerar receita aquilo que efetivamente não agregou valor econômico na operação cotidiana do contribuinte, conforme seus objetivos sociais.

A Exposição de Motivos da MP nº 135/2003 vai ainda mais longe:

“O principal objetivo das medidas ora propostas é o de estimular a eficiência econômica, gerando condições para um crescimento mais acelerado da economia brasileira nos próximos anos. Neste sentido, a instituição da Cofins não-cumulativa visa corrigir distorções relevantes decorrentes da cobrança cumulativa do tributo, como por exemplo a indução a uma verticalização artificial das empresas, em detrimento da distribuição da produção por um número maior de empresas mais eficientes - em particular empresas de pequeno e médio porte, que usualmente são mais intensivas em mão de obra.”

A racionalidade desse sistema não cumulativo para as contribuições sociais PIS e Cofins está na possibilidade da compensação do custo da operação original na determinação da base tributária das contribuições sociais cobradas na etapa posterior. Esse é o sentido teleológico constitucionalizado. Pretendeu o constituinte afastar a duplicidade de cobrança, o bis in idem. O comando da não cumulatividade indica a conta-corrente como instrumento de contabilização daquilo que for devido ao Fisco. O contribuinte é compelido a ir até o Fisco e apresentar sua conta daquilo que será pago.16 Hoje, inclusive, para os grandes contribuintes, essa conta é feita eletronicamente, facultado ao Fisco negar de pronto créditos que não julga pertinentes na apuração da base tributária.

4. Tipo Receita

A receita, o insumo e o crédito são elementos determinantes da base de cálculo do PIS e da Cofins. Esses elementos característicos das contribuições sociais em comento são núcleo e halo do tipo receita. Nos textos legais mencionados acima, reproduzidos em parte nas notas de rodapé, a receita núcleo parece ter sido inalterada no tempo. A preocupação do legislador complementar e ordinário em esclarecer o halo do núcleo receita foi descrita sob diversas formas, explicada até mesmo em parágrafos, quando o caput não bastasse.

Ao trabalhar com tipos, o constituinte brasileiro distribuiu competências tributárias a partir do nome dos impostos, sem preocupação com critérios lógico-racionais. No sistema tributário nacional, assim como no alemão, a repartição de competências levou em conta as necessidades de receita dos entes federados, acomodando disputas políticas históricas sobre determinadas fontes tributárias.17 Schoueri aceita o tipo no plano constitucional, um avanço na doutrina paulista do Direito Tributário, com base em monografias de notáveis tributaristas alemães.18

O Direito Financeiro precede o Direito Tributário no plano constitucional. Trabalha com interesses políticos cotidianos, com regras complicadas, de difícil análise aplicativa. Sob a perspectiva da formulação de política fiscal é possível tratar de dois temas delicados: a metodologia e a funcionalidade. Na elaboração de normas constitucionais, então, o legislador se depara com duas opções de difícil escolha, uma vez necessário fazer uso de ambas em doses adequadas para tornar o sistema tributário constitucional eficaz. Pendula, portanto, entre a rigidez e a flexibilização.19 No sistema tributário constitucional brasileiro, optou-se pela rigidez na determinação de competências tributárias e flexibilização das hipóteses tributárias. O tipo utilizado na determinação de hipóteses tributárias, seja no plano constitucional ou infraconstitucional permite ao legislador considerar a flexibilização das hipóteses no seu halo, sempre que mantida a rigidez nuclear.

No Direito Tributário, o legislador trabalha, ainda, com normas massificantes. Os fatos econômicos sujeitos à tributação levam em conta aspectos sociais relevantes no âmbito da política fiscal. Nesse sentido, o Direito Tributário precisa ser prático, fazendo-se necessárias regras generalizantes e simplificadoras no processo legislativo em matéria fiscal. Para tanto, leva-se em conta a igualdade geral, no sistema como um todo, mesmo que essa igualdade seja levada a cabo por discriminações generalizantes. O legislador lança mão, então, de ferramentas simplificadoras e tipificantes, que podem afetar a igualdade no plano individual. Para determinar um grupo de interesse econômico, a norma generalizante deixa de lado características próprias individuais, no exercício da determinação em massa.20 A praticidade da norma tributária pode ferir o princípio da igualdade quando seu corolário princípio da capacidade contributiva não é minimamente considerado. Frise-se, para evitar mal-entendido, que tipo e tipicidade não são a mesma coisa, embora representem estruturas lógicas semelhantes. Não vale aqui deitar doutrina sobre tal distinção, espancada por Ricardo Lobo Torres nos seus mais diversos textos sobre a matéria. Para Ricardo Lobo Torres, o Direito Tributário deve conviver com a tensão entre os conceitos determinados e indeterminados.21-22

Sustenta-se que as raízes do imposto de renda estariam no sistema tributário feudal inglês. Sob a perspectiva da riqueza arrecadada, a Inglaterra feudal tinha a tributação direta esporádica, hipótese em que era necessário distinguir efetivamente capital e renda, especialmente se as alíquotas aplicadas presumiam a tributação apenas do retorno de capital anual. O desenvolvimento do tributo direto dentro de um contexto social leva em conta os passos iniciais no sentido de um sistema efetivo. Entender o modo como se dava o domínio da terra na Inglaterra medieval é crucial para compreender o desenvolvimento do imposto direto naquele país. A maior parte das receitas necessárias para o governo derivavam de incidentes feudais, como a maioridade do filho mais velho e o casamento da filha mais velha. Outros eventos esporádicos também rendiam tributos à Coroa. Diversos seriam, então, os institutos feudais da tributação a serem incorporados ao imposto de renda de 1799.23

O imposto de renda progressivo surgiu na América do Norte ainda no período colonial, no assim chamado faculty tax, como um imposto suplementar ao imposto sobre patrimônio. Em 1643, a colônia de Nova Plymouth tributava seus contribuintes de acordo com a capacidade contributiva, ou seja, de acordo com as terras e as habilidades pessoais. Mais tarde, em 1646, a colônia de Massachusetts Bay estabeleceu um tributo sobre o patrimônio real e pessoal, envolvendo também as receitas e os ganhos dos homens de comércio, artesãos e operários. O faculty tax se espalhou pelas demais colônias, até ficar em desuso na primeira metade do século XIX.24

A receita das empresas, assim entendida como fato gerador do imposto indireto, tem origem remota. Trata-se de tributo indireto sobre o consumo. Não há nesse tributo uma relação pessoal direta com o consumidor, o que prejudica sua identificação com o princípio da capacidade contributiva.25 Quanto ao dilema fiscal de equidade e eficiência, pode ser dito que esse tributo afeta a todas as necessidades do homem.26

O imposto de consumo no Reino Unido foi introduzido em 1643 como parte das medidas de governo para conter a guerra civil inglesa. Esse tributo deveria recair sobre diversos artigos de consumo, e viria a ser largamente expandido no século XIX. O imposto de consumo tem características de arrecadação que lhe proporcionam grande eficiência. Essa renda segura pode ser garantida por meio de leis que determinem que o produto submetido ao comércio não entre no consumo sem o pagamento ou recolhimento do imposto.27

A renda bem como a receita (tributo sobre o consumo), portanto, sempre se mantiveram essencialmente iguais, com seus núcleos absolutamente incólumes. O que se transformou através do tempo foi o halo da renda, da receita e de outras formas de expressão de riqueza do interesse da tributação.

No julgamento do STF sobre a constitucionalidade da lei que “ampliou o conceito” de receita, o então ministro Eros Grau tratou do tipo receita com precisão ímpar. Ao tratar da ordem constitucional, esclareceu que a Carta Política retrata o momento histórico da sociedade. Esta está em constante movimento de transformação. O Direito, assim, retrata a realidade social, incompatível com a linguagem congelada.28

A diferença entre a norma e a situação fática regulada não é novidade nos sistemas jurídicos. Para tanto, o Poder Judicial exerce seu papel de guardião dos direitos fundamentais. À Corte Constitucional compete esclarecer conflitos gerados por normas infraconstitucionais, a partir de tipos constitucionais desenhados pelo constituinte, no intuito de garantir o princípio da igualdade.29 O conflito entre direitos fundamentais num sistema jurídico tem como efeito a afirmação dos princípios de liberdade e de igualdade.30

O STF tratou da questão de faturamento e receita, distinguindo um do outro. Excluiu da base tributária das contribuições sociais PIS e Cofins aquilo que não fosse essencialmente produto da atividade empresarial. De igual sorte, a Corte Suprema brasileira demonstrou oscilação hermenêutica na questão. Ao considerar receita e faturamento, em determinados julgamentos, sinônimos, e em outros, conceitos distintos, forçou o constituinte derivado a descrever dois substantivos para exprimir igual significado epistemológico.31

O que se extrai dos julgamentos do STF sobre receita e faturamento, afinal, é que ambos são tipos, variações axiológicas que exprimem o mesmo fato gerador idealizado pelos ingleses no século XVII para tratar do imposto indireto sobre o consumo. Também guarda relativa identidade com aquilo que os mesmos britânicos trataram por renda, ainda no período feudal e, posteriormente, para custear as guerras napoleônicas.

Sustenta-se que a renda é o melhor exemplo de tipo no sistema tributário. O Direito Tributário brasileiro precisa reconhecer as características determinada e indeterminada da renda na doutrina, na legislação e na jurisprudência brasileiras. De igual sorte, a receita também se vê na indeterminação determinada. Compete ao intérprete, portanto, efetuar a constante atualização da norma, guiado pela pré-compreensão. O conceito de tipo é sempre fluido, a ser determinado pelas cortes. O tipo receita é sempre elusivo, como elusivo é o tipo receita.32

Afinal, o que é receita para fins do tipo fato gerador das contribuições sociais PIS e Cofins? Trate-se de definir o tipo pela negativa. Receita para fins de PIS e Cofins não é restruturação societária. Esta operação não representa ingresso de riqueza nova.

5. Conclusão

Afinal, a proposta deste trabalho é buscar razão no tipo receita para configurar o halo do núcleo, tal qual descrito nas normas constitucionais e infraconstitucionais. A atividade empresarial pressupõe ingressos de rendimento no âmbito da atividade descrita no objeto social do contribuinte. Considerando-se a soma das receitas oriundas da atividade empresarial, halo do tipo receita, não há faturamento na restruturação societária.

No caso Bovespa, a transformação de títulos em ações não constitui receita. A transformação de sociedade civil em sociedade por ações resulta para o contribuinte empresa apenas uma mutação na descrição de seu patrimônio, lançado contabilmente no ativo. O patrimônio é essencialmente idêntico, alterado somente seu formato societário.

De igual sorte, quando o contribuinte, detentor de ações de sociedade empresarial resultante da transformação de sociedade civil, resolve alienar seu patrimônio, este não está no seu objeto social e nem poderia estar. A alienação de tais participações societárias oriundas de restruturação societária representa um título patrimonial de origem associativa. O tipo receita permanece imutável na transformação de sociedade civil em sociedade por ações. Nenhuma das características do halo previstas na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional estão presentes.

Receita e faturamento são sinônimos, como reconheceu tacitamente o constituinte derivado. O núcleo do tipo receita é o ingresso de riqueza nova, fato gerador do tributo indireto sobre o consumo desde a Idade Média. A evolução social, dinâmica responsável por moldar o halo do núcleo tipológico, passou a brindar riquezas novas de acordo com definições de Direito Privado, presentes não só no Código Civil, mas também na legislação privada como um todo, uma urdidura horizontal sistêmica. A erosão do Direito Civil não significa seu desaparecimento. Apenas um reconhecimento de que esse Código é hoje acompanhado de diversas outras normas que complementam a construção lógica e epistemológica do tipo receita.

É fato que todo o tributo repercute. A não cumulatividade, prevista constitucionalmente no Brasil, é um objetivo, uma ideia-força, perseguida utopicamente pelo legislador infraconstitucional em atenção ao mandamento construído pelo constituinte original e derivado. A restruturação societária nada traz de novo em termos de riqueza, de sorte que tributar tal fato significaria afrontar até mesmo esse princípio, que determina que somente seja objeto das mencionadas contribuições sociais o acréscimo.

A base do tributo não cumulativo seria apenas a riqueza nova, destacada do insumo efetivo, previsto na legislação em caráter exemplificativo. Compete ao Poder Executivo o ajuste axiológico dessa riqueza. Em sua falta, compete ao Poder Judiciário suprir tal omissão, sob pena de se tributar o capital, em afronta ao princípio da capacidade contributiva.

O caso Bovespa expõe, afinal, a fragilidade argumentativa da autoridade fiscal em procurar receita onde não há. O tipo receita confere suficiente segurança jurídica ao contribuinte para evitar que uma simples mudança de nomenclatura no investimento produza o infeliz efeito de expropriação patrimonial indevida.

No Direito Tributário, o tipo tem a função de determinação e de indeterminação. Por mais contraditório que isso possa parecer sob o ponto de vista da lógica, no campo semântico faz todo sentido. Assim, a receita descrita na legislação como fato gerador das contribuições sociais PIS e Cofins contempla uma indeterminação determinada, que confere segurança jurídica suficiente ao jurisdicionado para que este não sofra tributação nas operações de restruturação societária.

1 Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. “Mutações, complexidade, tipo e conceito, sob o signo da segurança e da proteção da confiança”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário - Estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 233/284, p. 248.

2 Cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica no Direito Tributário, entre permanência, mudança e realização. Tese apresentada para o concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular do Departamento de Direito Econômico e Financeiro, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2009, p. 732.

3 Cf. ÁVILA, Humberto. Ob. cit. (nota 2), p. 732.

4 Cf. TIPKE, Klaus; LANG, Joachim e outros. Steuerrecht. 20ª ed. Colônia: Dr. Otto Schmidt, 2010, p. 152. O autor desse trecho, Joachim Lang, comenta, inclusive, alguns exemplos de tipo consagrados pela jurisprudência alemã, como empresário, parceiro comercial, administração patrimonial etc.

5 Cf. KRUSE, Heinrich Wilhelm. Lehrbuch des Steuerrechts. Vol. I. Munique: C. H. Beck, 1991, parágrafo 5, IV, p. 95.

6 Cf. MACHADO, Brandão. “Prefácio”. In: HARTZ, Wilhelm. Interpretação da lei tributária: conteúdo e limites do critério econômico. São Paulo: Resenha Tributária, 1993, p. 12.

7 Cf. RADBRUCH, Gustav. “Klassenbegriffe und Ordnungsbegriffe im Rechtsdenken.” Forschungen und Fortschritte. Wiesbaden: F. Steiner, pp. 46/54, p. 47.

8 Cf. VOGEL, Klaus. Zur Dogmatik der Verteilungsnormen in Doppelbesteuerungsabkommen. In: LANG, Michael; e JIROUSEK, Heinz (coords.). Práxis des Internationalen Steuerrechts, Festschrift für Helmut Loukota zum 65. Geburtstag. Viena: Linde, 2005, pp. 621/630, p. 624.

9 A mencionada lei complementar estabeleceu o Programa de Integração Social.

10 O art. 2º dessa lei estabelece: “A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por cento e incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza.”

11 O art. 3º da lei estabelece: “O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa juridica. (…) § 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa juridica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas.”

12 O art. 1º da lei estabelece: “A contribuição social para o PIS/Pasep tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.”

13 O art. 1º da lei estabelece: “A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - Cofins, com a incidência não-cumulativa, tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa juridica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.”

14 A CF/1988, art. 195, b, estabelece: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recurso provenientes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (…) I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada, na forma da lei, incidentes sobre: (…) b) a receita ou o faturamento.”

15 STF, RE nº 346.084/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgado em 9.11.2005, Tribunal Pleno.

16 RE nº 236.408, Rel. Min. Marco Aurélio, maioria, DJ de 26.5.2000.

17 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 249/250.

18 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Ob. cit. (nota 17), p. 250.

19 Cf. VOGEL, Klaus. “§ Grundzüge des Finanzrechts des Grundgesetzes. Die Finanzverfassung”. In: ISENSEE, Josef; e KIRCHHOF, Paul (orgs.). Handbuch des Staats Rechts. Tomo IV - Finanzverfassung - Bundestaatliche Ordnung. Heidelbergue: C.F. Müller, 2005, pp. 3/86, p. 82.

20 Cf. KRUSE, Heinrich Wilhelm. Ob. cit. (nota 5), p. 49.

21 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Princípio da Tipicidade no Direito Tributário”. Revista de Direito Administrativo vol. 235. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 193/232, p. 207.

22 Maior tributarista brasileiro em atividade, o autor explorou a matéria do tipo em boa parte de sua obra. Destaque para o texto em que tratou do tema tipo de modo específico e preciso mencionado na nota anterior.

23 Cf. HARRIS, Peter. Income tax in common law jurisdictions. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 13.

24 Cf. COHEN, Edwin S. “Reflections on the U.S. progressive income tax: its past and present”. Virginia Law review nº 8, vol. 62. Dezembro de 1976, pp. 1.317/1.335, p. 1.318.

25 Cf. TIPKE, Klaus; LANG, Joachim e outros. Ob. cit. (nota 4), p. 98.

26 Cf. CAVALCANTI, Amaro. Elementos de finanças (estudo theorico-pratico). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1896, p. 217.

27 Cf. STEBBINGS, Chantal. “Traders, the excise and the Law: tension and conflicts in early Nineteenth Century England”. In: TILEY, John (ed.). Studies in the history of Tax Law. Vol. 4. Oxford: Hart Publishing, pp. 139/160, p. 139.

28 RE nº 346.084/MG. Acórdão de 9.11.2005, Rel. Min. Ilmar Galvão, publicado no DJ em 1º.9.2006. Consulta ao site do Supremo Tribunal Federal, disponível em http://www.stf.gov.br/jurisp.html. Acesso em 15.1.2007.

29 Cf. ROELLECKE, Gerd. “§ 67 Aufgaben und Stellung des Bundesverfassungsgerichts im Verfassungsgefüge”. In: ISENSEE, Josef; e KIRCHHOF, Paul (orgs.). Handbuch des Staats Rechts. Tomo III, Demokratie - Bundesorgane. Heidelbergue: C.F. Müller, 2005, pp. 1.201/1.219, p. 1.202.

30 Cf. KIRCHHOF, Paul. “§ 21 Grundrechtsinhalte und Grundrechtsvoraussetzungen”. In: MERTEN, Detlef; e PAPIER, Hans-Jürgen (orgs.). Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa. Entwicklung und Grundlagen. Vol. 1. Heidelbergue: C.F. Müller, 2004, pp. 807/852, p. 816.

31 Recursos Extraordinários nº 346.084, nº 390.840, nº 357.950 e nº 358.273.

32 Cf. McKERCHAR, Margaret; e COLEMAN, Cynthia. “The ever-elusive definition of income: a historical perspective from Australia”. In: TILEY, John (ed.). Studies in the history of Tax Law. Oxford: Hart Publishing, 2007, pp. 357/373, p. 357.