Livre Concorrência e Imunidade dos Correios: Limite a uma Limitação

Leonardo Buissa Freitas

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás.

Lucas Bevilacqua

Mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo.

Resumo

O presente trabalho trata do princípio constitucional da ordem econômica da livre concorrência como um limite à limitação do poder financeiro do Estado, tendo como caso concreto analisado a imunidade tributária recíproca da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT). Para tanto, serão abordados temas como o poder financeiro, a limitação a tal poder, a ligação entre imunidade tributária e a proteção das liberdades, especialmente a liberdade concorrencial e, por fim, a questão da imunidade recíproca das empresas estatais e a limitação que sofre pela ordem econômica, fundamentada na livre concorrência.

Palavras-chave: imunidade tributária recíproca, federalismo, liberdade, livre concorrência, limite.

Abstract

The present work deals with the constitutional principle of the economic order of free competition as a threshold to limit the financial power of the State, with the case examined the reciprocaltax immunity of the Brazilian Post and Telegraph Company (EBCT). To do so, will discuss topics such as financial power, a limitation to this power, the connection between tax immunity and protection of freedoms, especially freedom competitive and, ultimately, the issue of reciprocal immunity of state companies and limiting suffering in the order economic, based on free competition.

Keywords: tax imunity, federalism, free competition, limit.

1. Introdução

O poder financeiro do Estado, radicado nos direitos fundamentais, já nasce limitado na democracia. As limitações a tal poder, exteriorizadas por princípios e regras de competência e de imunidade, protegem igualmente tais direitos fundamentais, tutelando-os de modo a não permitir uma atividade financeira despótica.

No meio deste movimento entre o poder e as limitações ao poder, pode-se visualizar que estas também sofrem limitações. São então limitações às limitações e que, ainda que pareça paradoxal, servem para a proteção dos mesmos direitos fundamentais, basilares ao Estado Democrático de Direito.

Sob esta ótica é que se dará o presente estudo. Existem limitações ao poder financeiro do Estado que necessitam ser limitadas para que possam verdadeiramente atingir o objetivo para o qual foram estabelecidas pela Constituição.

Especificamente, sendo a imunidade tributária ligada ao conceito de liberdade, não pode, portanto, ser utilizada no afã de vulnerar tal direito fundamental, em qualquer de suas acepções. Assim, a imunidade, tutora das liberdades, não pode ser manejada em contrariedade ao direito que visa tutelar, qual seja, a liberdade.

Nesta perspectiva, tem-se que a imunidade recíproca das empresas estatais só é aplicável se tais entes exercerem serviço público, nunca quando realizarem atividade econômica. A razão jurídica e econômica de tal tratamento diferenciado reside na ordem constitucional econômica, fundamentada na livre iniciativa e que tem como um de seus pilares fundamentais o princípio da livre concorrência. Ora, conferir privilégio fiscal a empresas do Estado em detrimento das empresas privadas pode afrontar o conceito de liberdade econômica, tal como ele vem inserto no Texto Constitucional, já que poderia ferir de morte a liberdade concorrencial, alicerce necessário e imprescindível na construção do nosso sistema constitucional econômico.

Escorado nesta construção teórica, defendida pela melhor doutrina, este trabalho apresenta como caso a ser analisado a questão da imunidade tributária da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e seus reflexos na liberdade econômica estabelecida na Constituição, que elege como um dos fundamentos da ordem econômica a livre iniciativa e como princípio fundamental a livre concorrência.

2. O Poder Financeiro: Soberania e Consentimento

O fundamento do poder de tributar era, inicialmente, a soberania que o Estado exerce em seu território, determinando que os súditos estatais colaborassem com a despesa pública através do pagamento de tributos. A ideia era centralizada na soberania do Estado, havendo então uma relação de poder entre o soberano (acima de todos) e os súditos. A relação de poder era justificada pela supremacia do interesse da coletividade sobre os interesses dos particulares, isto tanto no campo do Direito Financeiro, em acepção lata, quanto na seara específica do Direito Tributário.

O poder financeiro, nesta concepção clássica, decorre unicamente do poder estatal. Aqui, pouco influente é o consentimento popular, seja na receita pública, seja na despesa. Insta lembrar, pois, dos ensinamentos de Ricardo Lobo Torres, para quem a atividade financeira emana do poder ou da soberania financeira do Estado e de que tal poder nada mais é do que uma parcela do poder estatal, ao lado do poder de polícia, do poder penal, do poder de domínio eminente.1

A doutrina moderna, entretanto, tem visualizado no poder financeiro uma exteriorização do Estado de Direito. Assim, tal poder advém do consentimento da população, o que se dá por intermédio da lei, vale dizer, das leis orçamentárias e tributárias.

Há, portanto, uma firme ligação entre o poder financeiro e o princípio da legalidade. Fazendo um breve escorço histórico acerca do princípio da legalidade tributária, Luiz Emygdio F. da Rosa Júnior indica que o princípio da legalidade tributária teve seu berço de origem na Magna Carta Libertatum, documento criado com finalidade de limitar os seus poderes reais, em razão principalmente da maneira exorbitante e abusiva com que impunha tributos aos cidadãos. Posteriormente, a Constituição Federal dos Estados Unidos, de 1787, conferiu ao Congresso, órgão de representação popular, a competência exclusiva para fixar e cobrar exações, direitos, impostos e tributos. Finalmente, a “Declaração de Direitos”, de 1789, exigiu a aprovação de impostos por órgão de representação popular.2 Vislumbra-se, com nitidez, que a concepção hodierna do Estado Democrático de Direito passa, invariavelmente, pelo assentimento popular na obtenção de ingressos, como também na autorização dos gastos públicos.

Resta patente, pois, que o poder financeiro, na democracia, já nasce limitado. A limitação primeira é, portanto, o consentimento popular, o princípio da legalidade, a regra básica de que sem a anuência da representação popular tal poder estatal não pode ser exercido.

3. Limitações ao Poder Financeiro: Proteção a Direitos Fundamentais, Conceito e Paradoxos

Os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana e, portanto, inalienáveis, imprescritíveis e preexistentes ao pacto constitucional.3 Todavia, não se pode perder de mira que alguns destes direitos fundamentais abrem espaço ao poder financeiro do Estado. Assim acontece com o direito à propriedade e o direito ao trabalho, que suportam a incidência do tributo. Ademais, a privacidade e a intimidade não são absolutas no que tange ao poder de fiscalizar e arrecadar tributos. Vê-se, portanto, que a tributação pode vir a vulnerar, ainda que de forma indireta, os direitos fundamentais.

Por isso, o objetivo final das limitações é manter resguardados os direitos fundamentais. Estas limitações, que se exteriorizam através dos princípios e imunidades, servem, em última análise, para proteger as liberdades individuais, opções fundamentais do Estado democrático.

Ricardo Lobo Torres apresenta esclarecedora lição sobre o poder financeiro e sua limitação, fazendo o imprescindível liame com os direitos fundamentais, mormente com a liberdade:

“O poder financeiro ou soberania financeira do Estado, pois, radica no próprio art. 5º da CF, ou seja, no direito de propriedade. A soberania financeira, que é do povo, transfere-se limitadamente ao Estado pelo contrato constitucional, permitindo-lhe tributar e gastar. Não é o Estado que se autolimita na Constituição, como querem os positivistas, senão que já se constitui limitadamente, no espaço aberto pelo consentimento. O tributo, por conseguinte, sendo embora o preço e a garantia da liberdade, já nasce limitado pela própria autolimitação da liberdade.”4

É interessante assinalar nesta altura do trabalho o conceito doutrinário de limitação ao poder, como também alguns paradoxos deste conceito, à luz do sistema constitucional hodierno.

Humberto Ávila ensina que as limitações ao poder de tributar são uma espécie das várias limitações estabelecidas ao ente estatal e que tais limitações se apresentam através de regras de competência, princípios, garantias e de direitos fundamentais.5

O erudito professor aponta, outrossim, para três paradoxos existentes nas limitações constitucionais ao poder de tributar. O primeiro consiste no fato de que as limitações instituem restrições ao poder estatal, porém precisam do seu reconhecimento para serem realizadas. Em segundo lugar, as limitações servem de oposição ao poder estatal, mas paradoxalmente servem para gerá-lo e de instrumento para sua participação. Em terceiro lugar, as limitações, que estabelecem limites, são paradoxalmente limitadas.6

Os paradoxos apresentados pelo ilustre autor servem, portanto, de base para o ponto nodal deste artigo. As limitações ao poder financeiro devem ser interpretadas dentro do contexto de proteção aos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil.

São limitações que restringem o poder estatal, mas necessitam de tal poder para a sua efetividade. As limitações formam o poder que irão limitar. E, por derradeiro, a questão mais próxima àquilo que se defende neste trabalho, as limitações que estabelecem limites são também limitadas.

Neste último aspecto tem-se nitidamente a questão da imunidade recíproca e a proteção da liberdade concorrencial, tema central deste estudo. As limitações ao poder servem, como visto, para dar proteção aos direitos fundamentais. A tributação, por vezes, afronta tais direitos, sendo que as limitações terminam por equilibrar a situação, dando proteção a valores caros ao Estado Democrático de Direito.

Os princípios da legalidade, anterioridade e irretroatividade protegem a segurança jurídica. A isonomia, a capacidade contributiva e o não confisco tutelam a justiça, a equidade. As imunidades, igualmente, protegem valores como o pacto federativo, a liberdade religiosa, a liberdade sindical, o pluripartidarismo, entre outros.

Sobre este fundamento da imunidade, insta trazer a lume a lição do douto professor Luís Eduardo Schoueri:

“Outra fundamentação que se poderá encontrar para as imunidades será a busca, por parte do constituinte, de algum valor que lhe seja tão caro, a ponto de justificar um tratamento desigual. Normalmente, tais valores são relacionados a liberdades e garantias fundamentais, assegurados constitucionalmente, como base do ordenamento. Tais liberdades e garantias, por serem o alicerce do ordenamento jurídico brasileiro, não podem ser modificados sequer por emenda constitucional, com se extrai do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.”7

Resta claro, pois, que as limitações do poder financeiro, especificamente a imunidade tributária, estipulam um sistema de desigualdade que tem por escopo a proteção de valores caros ao sistema democrático.

Contudo, não se pode perder de mira que estas limitações são também limitadas e que a limitação a tais limitações serve igualmente para proteger opções fundamentais claras do legislador constituinte. Assim, tanto as limitações ao poder financeiro do Estado quanto a imposição de limites a estas limitações colimam tutelar os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana, dentro da clara opção constitucional pelo Estado Democrático de Direito.

Parece paradoxal, como assinala Humberto Ávila nos parágrafos anteriores, mas a limitação às limitações do poder de tributar visa identicamente a proteção de direitos fundamentais do Estado brasileiro. O exemplo da imunidade recíproca dos entes estatais esbarrando no princípio da livre concorrência é paradigmático e será abordado com a devida atenção nos itens subsequentes.

4. A Imunidade Tributária e a Proteção das Liberdades: a Proteção à Liberdade Concorrencial

A ideia de imunidade tributária tem historicamente uma umbilical ligação com a garantia de direitos, mormente com as liberdades. Na Constituição americana há a expressa previsão de que nenhum Estado pode prejudicar os privilégios e imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos. Rui Barbosa, sob a inspiração americana, traz ao Brasil a noção de imunidade tributária, presente, pela primeira vez, na Constituição de 1891, ou seja, quando do advento da República.

Importa, neste tópico, salientar a posição de Ricardo Lobo Torres para quem não é imunidade toda vez que a Constituição diz que determinado tributo não incide, ou seja, não basta a não incidência constitucional para configurar uma imunidade. Para o afamado jurista, somente ocorreria a imunidade se houvesse a proteção das liberdades. Cumpre transcrever parte de suas judiciosas ponderações:

“As imunidades consistem na intributabilidade absoluta ditada pelas liberdades preexistentes. A imunidade fiscal erige o status negativus libertatis, tornando intocáveis pelo tributo ou pelo imposto certas pessoas e coisas; é um dos aspectos dos direitos da liberdade, ou uma sua qualidade, ou a sua exteriorização, ou o seu âmbito de validade.”8

Fernando Facury Scaff louva a construção teórica de Ricardo Lobo Torres, que firma um liame entre liberdade e imunidade, estabelecendo uma ponte entre direitos humanos e tributação. Apoiado em tal lição, assevera ser imune o que for uma expressão dos direitos de liberdade; tudo que extrapolar este escopo, de exercício de liberdades, não será mais do que uma desoneração levada a nível constitucional.9

Por tal posição doutrinária, não incidências constitucionais com utilidade meramente econômica, ou seja, com fim extrafiscal, não seriam efetivamente uma imunidade. Assim, por exemplo, a não incidência de IPI, ICMS e contribuições sociais e especiais na exportação (artigos 153, parágrafo 3º, III; 155, parágrafo 2º, X, “a” e 149, parágrafo 2º, I, da CF) não seriam tecnicamente imunidades e sim exonerações constitucionais, o que poderia, em tese, autorizar a sua revogação por emenda constitucional.

Com base nesta concepção teórica é que este artigo defende que a imunidade é ligada à liberdade e não pode, em hipótese alguma, ser utilizada para vulnerar tal direito fundamental. Não é possível que a imunidade seja usada contra a liberdade religiosa, sindical, partidária ou de livre expressão. Assim também não é possível que a imunidade, tutora das liberdades, seja manejada em contrariedade a fundamento básico da ordem constitucional econômica, qual seja, a livre iniciativa, eis que esta é a expressão da liberdade na seara da Constituição Econômica. No mesmo diapasão, não há como a imunidade afrontar o princípio básico da livre concorrência, haja vista que, uma vez mais, se estaria vergastando o sistema de liberdades esculpido no texto constitucional.

Com isso, vê-se nitidamente que a imunidade das empresas estatais não pode conduzi-las a ter um privilégio fiscal não extensivo ao setor privado (art. 173, parágrafo 2º, da CF), já que tal situação militaria contra as opções fundamentais do constituinte para a ordem constitucional econômica da República Federativa do Brasil. Eis, portanto, o fundamento de direito econômico indutor da opção presente no sistema tributário de não estender a imunidade ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, como se lê na cristalina redação do parágrafo 3º do artigo 150 da Lei Maior.

Se é verdade que a “ideia de imunidade traz consigo uma noção de proteção, de liberdade”,10 como ensina Schoueri, tal noção se mostra plenamente aplicável na proteção da liberdade concorrencial, princípio basilar da ordem constitucional econômica e espécie das liberdades constituídas que fundamentam e que constituem objetivos de nosso sistema constitucional.

5. A Imunidade Recíproca: Fundamento, Abrangência, Extensão a Empresas Estatais Prestadoras de Serviço Público

Objetivando resguardar o pacto federativo, o legislador constituinte inseriu no texto constitucional a chamada imunidade recíproca, nos termos do artigo 150, VI, “a”, onde se lê que é vedado instituir impostos sobre o patrimônio, renda e serviços uns dos outros.

Impende lembrar que se deve à Suprema Corte americana a construção da doutrina da imunidade recíproca. No caso McCulloch v. Maryland (1819), de que foi relator o Juiz Marshall, restou decidido ser vedada a incidência de impostos estaduais sobre o banco pertencente a União. O Brasil sofreu a influência do Direito americano, principalmente a partir da Constituição de 1891 e dos trabalhos de Rui Barbosa.11

Esta limitação ao poder de tributar visa, pois, garantir a autonomia das pessoas políticas, dando efetividade ao disposto no artigo 18 da Constituição. Tem como fundamento a proteção ao pacto federativo e, em última instância, à liberdade política, dentro do Estado Democrático de Direito, mormente no que tange ao sistema de separação vertical dos poderes.

Luiz Emygdio F. da Rosa Júnior assinala nitidamente que a imunidade recíproca, além de proteger o princípio federativo, tutela as liberdades, especialmente a liberdade política, imprescindível para a consecução da democracia:

“Tal regra visa a evitar que as unidades federais sejam contribuintes e tenham de pagar impostos umas às outras, impedindo-se também as pressões que as entidades federadas poderiam exercer de forma recíproca, prejudicando assim a própria unidade política, que é fundamental no regime federativo, não podendo tal princípio ser suprimido ou restringido pelo Poder Constituinte Derivado. Assim, tal imunidade tem por escopo exclusivamente a proteção da liberdade, porque se os mencionados impostos incidissem, inviabilizaria o próprio conceito de Federação.”12

Resta patente que tal imunidade serve para proteger importante aspecto das liberdades, a liberdade política, devendo a exegese ser no mesmo diapasão do que vem sendo indicado neste trabalho, ou seja, no de que a imunidade deve ser interpretada e aplicada no afã de conferir efetividade ao direito fundamental da liberdade, em qualquer de suas acepções.

Outro aspecto interessante é o de que a Constituição fala somente em imposto sobre patrimônio, renda e serviços, mas não nomina especificamente os impostos, como, por exemplo, IPTU, IR, ISS. Pela leitura apressada do parágrafo 2º do artigo 150 da Carta de 1988, poderia se visualizar que somente os impostos sobre patrimônio, renda e serviços estariam abrangidos pela imunidade em estudo.

Entretanto, tem-se entendido que a imunidade recíproca também se aplica quando um imposto, mesmo não sendo de patrimônio, agrida o patrimônio de outro ente político. Neste sentido, incisiva é a conclusão do professor Luís Eduardo Schoueri: “Daí parecer acertado afirmar que a imunidade recíproca estende-se a todos os impostos, qualquer que seja a hipótese tributária já que, sempre, ou o patrimônio, ou a renda, ou os serviços do ente imune serão afetados.”13

O exemplo mais corrente a respeito é a do IOF sobre operações dos Estados e dos Municípios. Historia Leandro Paulsen:

“O STF, em linhas gerais, segue a orientação no sentido de que a imunidade não é restrita aos impostos sobre o patrimônio, sobre a renda ou sobre os serviços, mas a toda a imposição tributária, a título de impostos, que possa comprometer o patrimônio, a renda e os serviços do ente imune. Vê-se revelada esta posição, e.g., nos julgados em que o STF reconhece a imunidade relativamente ao IPMF e ao IOF.”14

Ademais, impende observar que tal imunidade é extensiva as autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou delas decorrentes (artigo 150, parágrafo 2º, da CF). Não se pode olvidar também que a imunidade em tela não se aplica ao patrimônio, renda e serviços relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel (artigo 150, parágrafo 3º, da CF).

Dos dois dispositivos acima mencionados, observa-se nitidamente que a imunidade recíproca alcança autarquias e fundações públicas. Não abrange, em regra, empresas públicas e sociedades de economia mista. Além disso, é mister que o patrimônio, a renda e os serviços estejam ligados a sua finalidade essencial.

Acresce-se a isso o fato de que se o patrimônio, a renda e os serviços estiverem relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados também não cabe a imunidade, eis que tal benefício desequilibraria a concorrência a favor dos entes estatais, em manifesto prejuízo ao princípio da livre concorrência (artigo 170, IV, da CF) dentro da opção fundamental de nosso modelo econômico que é o da livre iniciativa (artigo 170, da CF).

O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente decidido que a imunidade recíproca somente é extensiva ao ente público que exerça serviço público e nunca àquele que esteja ligado à atividade econômica. Humberto Ávila sintetiza a questão, elencando os seguintes pressupostos para a aplicação da imunidade recíproca: (a) serviço público delegado; (b) a entidade que exerce o serviço é - em virtude de lei - um poder público; e (c) o serviço é prestado por um ente público que não persegue finalidade econômica.15

Interessante notar que o parágrafo 2º diz que a imunidade somente alcança as autarquias e fundações, o que excluiria as empresas públicas e as sociedades de economia mista. Ordinariamente, é assim mesmo. Entretanto, não se pode olvidar que o parágrafo 3º, complementando o anterior, aduz claramente que a imunidade recíproca não abrange o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas por normas aplicáveis a empreendimentos privados. Com isso, resta patente que a linha divisória é ser o serviço público típico ou um serviço ligado à finalidade econômica.

O essencial, portanto, é examinar se o serviço prestado tem caráter de serviço público, ou se é compatível com um negócio privado.16 Em igual sentido, valiosa é a lição de Luís Eduardo Schoueri, para quem “a linha divisora proposta pelo constituinte reside no momento em que o Estado - bem como suas autarquias e fundações - deixa de atuar no setor que lhe é próprio (domínio público), passando a atuar diretamente no setor da economia destinado aos empreendimentos privados (o “domínio econômico”).”17

Pelas abalizadas lições doutrinárias, como também pela posição do Excelso Supremo Tribunal Federal, observa-se que o ponto central a ser averiguado é a presença de um serviço público típico a autorizar a extensão da imunidade tributária, enquanto que a presença de atividade econômica desautoriza a aplicação da regra imunizante, uma vez que esbarra na ordem constitucional econômica, fundamentada na proteção do trabalho humano e na livre iniciativa, conferindo contorno ideológico cristalino à opção constitucional no campo do Direito Econômico.

Interessante também é outro argumento utilizado por Humberto Ávila: o de que os entes políticos e suas instrumentalidades que realizam serviço público típico não externam capacidade contributiva e, assim, não poderiam ser tributados.18

Uma vez mais se vê que a linha divisória é exatamente o serviço público de um lado, contrastando com a atividade econômica de outro. No serviço não há capacidade contributiva e, por conseguinte, não há tributação. Luís Eduardo Schoueri assinala, pois, que “não se poderia admitir que uma pessoa jurídica de Direito Público possuísse capacidade contributiva. Tudo o que ela arrecada já é voltado aos gastos da coletividade, descabendo, pois, cogitar de parcela que ‘sobra’ para atender a gastos imputados a outra pessoa de Direito Público.”19

O fundamento então se repousa não somente na seara da tributação, como também das finanças públicas, já que o arrecadado no serviço público se volta para os gastos com a própria coletividade, sendo a exação nitidamente tributária, na espécie taxa.

Já se ocorrer atividade econômica, o fundamento igualmente transborda do Direito Tributário e se apoia no Direito Econômico, onde não cabe vulneração à livre iniciativa e à livre concorrência, servindo a tarifa cobrada para incrementar a estrutura do ente estatal, fortalecendo a sua capacidade concorrencial em face dos entes privados num ambiente de mercado.

6. Da Natureza da Imunidade Recíproca: Subjetiva e/ou Objetiva!?

A imunidade recíproca no federalismo fiscal brasileiro encontra raízes, conforme antes visto, na federação norte-americana, “não obstante as dessemelhanças entre os respectivos federalismos, seja pelo caráter tridimensional brasileiro, seja pelo movimento pendular que temos vivido”.20

A compreensão histórica do movimento pendular do federalismo fiscal brasileiro - de centralização e descentralização financeira, de concentração financeira no ente federal e contemplação dos entes federados, enfim, de sobrepujança da União e mitigação dos Estados - oferece importantes ferramentas para o discernimento dos limites objetivos da imunidade recíproca.

O histórico das constituições brasileiras, desde a Carta de 1937, indica um processo de encurtamento do alcance da imunidade recíproca acompanhado pelo Supremo Tribunal Federal.21

A Constituição de 1988 restringe o alcance da imunidade recíproca ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados às finalidades essencialmente estatais.22 Na medida em que “desvirtuada a imunidade para atender finalidades diversas daquelas preceituadas, ainda que implicitamente pela Constituição Federal, haverá margem para a constatação de prática lesiva à concorrência”.23

Muito embora a imunidade recíproca seja citada praticamente pela unanimidade da doutrina como um exemplo clássico de imunidade subjetiva, importante se observar que há, por conseguinte, um critério objetivo no dispositivo constitucional: avaliação da exploração de atividade econômica.

A partir do dispositivo do artigo 150, parágrafo 3º, se constata que o próprio constituinte elegeu um critério de discrímem na concessão da imunidade tributária. Quando o ente público se encontrar a desempenhar serviço público em sentido estrito vigora a imunidade recíproca. No entanto, quando no desempenho de atividade econômica, “regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados”, a vedação ao poder de tributar da imunidade tributária não encontra aplicação.

Ricardo Lobo Torres sustenta que a imunidade recíproca classifica-se como subjetiva para, em seguida, registrar que “exige também, para o seu perfeito balizamento, que se tracem alguns limites objetivos”;24 o que é realizado pela própria Constituição.

Dado o texto constitucional haver combinado ambos os critérios na concessão da imunidade recíproca quanto à pessoa e ao objeto/atividade, ente público que desempenhe serviço público strictu sensu, é que tem-se a natureza mista da imunidade recíproca.

A douta 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em votos capitaneados pelo eminente Ministro Carlos Velloso, ao julgar o RE nº 407.099-RS, reconheceu natureza objetiva à imunidade recíproca, afirmando sua aplicação às empresas públicas, desde que sejam prestadoras de serviço público. Fez-se, por outras palavras, distinção entre a prestação de serviço público e o exercício de atividade econômica, inserindo-se aquela prestação de serviço público entre as situações imunes à tributação, ainda que o prestador do serviço seja empresa pública.

Impõe-se, então, examinar a premissa do raciocínio desenvolvido pelo ilustre Ministro Carlos Velloso, para se constatar que ela assume atuação híbrida, ora prestando serviço público, ora exercendo atividade econômica, vejamos:

7. O Caso da EBCT: Prestação de Serviço Público e Atividade Econômica 

A EBCT, nos termos do artigo 21, X, da Constituição Federal, desempenha o “serviço postal”. Examinando tal expressão, “serviço postal”, que era igualmente empregada no artigo 8º, XII, da Carta de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, Pontes de Miranda anotou que ela significa “posta, serviço de transporte de cartas e encomendas postais, entendendo-se como encomendas postais as que se equiparam às cartas”.25

Eventuais “encomendas postais”, ressalvou Pontes de Miranda, não teriam o mesmo tratamento jurídico das “cartas”, porque o transporte de cartas é que se constituiria em típico (ou verdadeiro) “serviço postal”, enquanto o transporte de “encomendas”, embora equiparável ao “serviço postal”, teria tratamento diverso, até porque não alcançado pelo “monopólio” da União:

“Isso não quer dizer que se vede, constitucionalmente, a particulares, ou às próprias entidades intra-estatais, manter serviços de entregas de objeto (não de cartas!). O cerne do conceito está nas cartas missivas: cartas, escritos, mensagens fechadas, instituem serviço postal, e tem esse de pertencer à União.”

Nessa perspectiva, a legislação federal pertinente, Lei nº 6.538, de 22 de junho de 1978, que “dispõe sobre os serviços postais”, afirma caber à empresa pública, ECT, “explorar o serviço postal e o serviço de telegrama”, “explorar atividades correlatas” e “exercer outras atividades afins, autorizadas pelo Ministério das Comunicações” (artigo 2º, parágrafo 1º). Percebe-se, logo à primeira vista, que a ECT não tem seu objeto limitado à execução de serviços postais, estendendo-se tal objeto para “atividades correlatas” e “atividades afins”.

Serviço postal, nos termos do artigo 7º da Lei nº 6.538, de 197826, abrange o transporte e a entrega de correspondência, valores e encomendas, definindo-se, no parágrafo 1º do artigo 7º, o que seriam os “objetos de correspondência”, no parágrafo 2º do artigo 7º, o que “constitui serviço postal relativo a valores” e, finalmente, no parágrafo 3º também do artigo 7º, o que “constitui serviço postal relativo a encomendas”.

A expressão serviço postal, na forma da Lei nº 6.538, de 1978, tem conteúdo amplo, serviço postal lato sensu, a abranger a recepção e remessa de (a) correspondência; (b) valores; e (c) encomendas.

Entretanto, a própria Lei nº 6.538, de 1978, cogita de serviço postal stricto sensu, ao definir as “atividades postais” que “são exploradas pela União, em regime de monopólio” (artigo 9º).

A lei distingue, em outras palavras, os serviços postais que são monopólio da União (artigo 9º, serviços postais stricto sensu) dos outros serviços postais (serviços postais lato sensu), também prestados pela ECT, mas que não se inserem no regime de monopólio. Confira-se:

“Art. 9º São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:

I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;

II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e expedição, para o exterior, de correspondência agrupada;

III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.”

Essas atividades relacionadas no artigo 9º da Lei nº 6.538, de 1978, é que, verdadeiramente, devem ser entendidas como serviços postais (em sentido estrito), distinguindo-se de toda uma série de outros serviços postais (em sentido amplo), também prestados pela ECT, os quais devem ser qualificados como atividades correlatas e atividades afins (artigo 2º, parágrafo 1º) que são exploradas no âmbito do domínio econômico em ambiente de mercado.

Ricardo Lobo Torres sentencia com propriedade: “serviço imune à tributação é o essencialmente público, que consiste na proteção dos direitos fundamentais, ou o paraestatal, de proteção aos direitos sociais”.27

Portanto, o serviço de entrega de encomendas é atividade econômica (serviço de transporte) e não serviço público (serviço postal stricto sensu). A entrega de encomendas, nesse contexto, enquadra-se perfeitamente na definição de serviço de transporte, não se constituindo em serviço postal em sentido estrito. Se a ECT também faz entrega de encomendas, não o faz porque se trate de atividade monopolizada (artigo 21, X, da Constituição Federal), mas porque se trata de atividade correlata ou atividade afim (Lei nº 6.538, de 1978), que assume nítida feição econômica, não se caracterizando como prestação de serviço público.

Do exposto, tem-se assim que as atividades correlatas e as atividades afins (artigo 2º, I, da Lei nº 6.538, de 1978), que não se submetem ao monopólio federal (artigo 9º da Lei nº 6.538, de 1978), são atividades econômicas, cujo regime fiscal deve ser o mesmo aplicado às empresas privadas, que também realizam transporte de encomendas, sob o risco de violação frontal ao princípio constitucional da livre concorrência, verdadeiro limite à limitação ao poder de tributar em que consiste a imunidade tributária recíproca, vejamos:

8. Livre Concorrência: Limite à Limitação ao Poder de tributar

A regra constitucional da imunidade recíproca encontra fundamento no princípio federativo que, por sua vez, tem como um de seus pressupostos a autonomia dos entes, não devendo haver, assim, tributação entre os mesmos; dado o poder de tributar envolver o poder de destruir.

Com vistas, assim, a manter a autonomia dos entes políticos, a Constituição Federal estabelece a regra da imunidade recíproca que, no entanto, encontra balizas indicadas pelo próprio constituinte; não só aquelas antes vistas na ordem tributária (artigo 150, parágrafo 3º), mas também, na ordem econômica, entre as quais a livre concorrência.

Luís Eduardo Schoueri leciona com propriedade:

“(...) quando o Estado atua no Domínio Econômico, submete-se ele ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive sob os aspectos tributários. Afinal, sua remuneração (preços públicos) se deu em ambiente de mercado e, neste, não há que se permitir qualquer privilégio, sob pena de se afastar o próprio mercado. Visou, o constituinte, com tal providência, assegurar a plena observância do Princípio da Livre-Concorrência, que ele mesmo consagrou (art. 170, IV).”28

A imunidade recíproca, conforme já visto, se presta a assegurar a autonomia dos entes políticos e suas entidades que desempenhem serviço público, a ponto de justificar o tratamento desigual frente aos demais contribuintes. Trata-se de uma prerrogativa conferida a algumas entidades, de forma a eximi-las da obrigação de arcar com o custeio do gasto público, sem que isso signifique que dele não aproveite afrontando outros princípios de igual estatura constitucional, diga-se: a livre concorrência.

As regras constitucionais que tratam das imunidades não podem ser entendidas de maneira absoluta, devendo haver um equilíbrio quando confrontadas com outros princípios fundamentais da Constituição Federal, especialmente o da livre concorrência, previsto nos artigos 170, IV e 173, que asseguram a proteção do mercado.

Misabel Abreu Machado Derzi reporta, com a didática que lhe é própria, as limitações à imunidade recíproca:

“(...) as modificações evolutivas da imunidade recíproca podem ser explicadas de acordo com as alterações por que passou o Estado Federal. Garantia adicional da liberdade e da democracia, o Estado Federal se compenetrou da igualdade, da necessidade de redução das grandes disparidades regionais e das metas intervencionistas que caracterizam o federalismo integrativo e cooperativo, trazendo limitações à imunidade recíproca: ela não se estende a particulares, nem deve benficiá-los, (...) igualmente se excluem da imunidade recíproca os serviços públicos concedidos e a atividade empresarial do Estado, na qual ele persegue o lucro e se submete às regras de direito privado, despindo-se do seu poder de império.”29

Indica Fernando Facury Scaff30 que o princípio da neutralidade concorrencial dos impostos é um consectário do princípio da isonomia fiscal.31 Ante essa constatação, impende compreender em que termos o princípio da livre concorrência se relaciona com o princípio da isonomia ou da igualdade tributária.

Para José Souto Maior Borges, que considera o princípio da igualdade como a maior limitação ao poder de tributar, a “igualdade não está apenas no texto da constituição; o princípio da igualdade é a Constituição”.32 A partir dessa premissa, torna-se evidente a relação do princípio da livre concorrência com o princípio da igualdade.

A extensão da imunidade recíproca às atividades econômicas das empresas públicas opera como fator de vantagem competitiva, o que implica violação ao princípio da igualdade tributária.

O Supremo Tribunal Federal já declarou sucessivas vezes inconstitucionais leis que veiculavam desonerações tributárias que não prescreviam um tratamento equivalente para contribuintes que se encontravam na mesma atividade econômica, o que terminava por ferir a liberdade econômica33 e a igualdade.

O Supremo Tribunal Federal em sucessivas vezes34 já julgou lides tributárias adotando como fundamento da decisão pela incidência tributária a afronta ao princípio da livre concorrência.

Em voto proferido em sede dos RREE nos 547.245 e 592.905, em que se discutiu a cobrança de ISS nas operações de leasing, o Ministro Joaquim Barbosa assevera: “(...) sempre que possível a tributação não deve afetar a alocação econômica de recursos. Isto é, operações idênticas ou muito semelhantes, com bens e serviços, devem gerar cargas tributárias muito próximas, independentemente da formação do negócio jurídico.”

Ao decidir acerca do alcance da imunidade recíproca às atividades quaisquer dos Correios (EBCT),35 o Ministro Joaquim Barbosa foi também peremptório ao afirmar que a regra imunitória cessa no momento em que a EBCT atua em domínio econômico;36 quando a desoneração tributária implicaria prejuízo à livre iniciativa e à concorrência.

Muito embora o julgamento ainda esteja em andamento, importante é constatar que a livre concorrência serve de limite às regras constitucionais de imunidade tributária, conforme já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.37

A partir do momento em que a EBCT ultrapassa a atuação inerente ao domínio público, invadindo a esfera reservada ao campo da livre iniciativa, é obrigatória sua sujeição ao princípio da livre concorrência, norteador da ordem econômica nacional. Vale ressaltar que a tributação não pode resultar no desequilíbrio da concorrência preexistente, conforme se extrai do princípio da neutralidade concorrencial - CF, artigo 146-A, o qual permite, inclusive, que o legislador estabeleça critérios que previnam que isto aconteça.

Ao mesmo tempo, o princípio da livre concorrência deve ser visto, nas palavras de Luís Eduardo Schoueri, como um limite à limitação ao poder de tributar. É dizer que não pode a EBCT se valer do seu privilégio para se colocar em uma situação de vantagem em relação aos demais agentes econômicos, que não dispõem do mesmo benefício. Schoueri, quando trata do imbricamento da imunidade tributária e da livre concorrência, esclarece:

“Assim, conclui-se que a imunidade recíproca encontra como limite o campo de atuação próprio do Estado (o setor público); quando a pessoa jurídica de direito público ingressa no Domínio Econômico, cessa a imunidade.

Lúcidas e eruditas, nesse sentido, as palavras do Ministro Aliomar Baleeiro, quando, investigando as origens da imunidade recíproca, também concluía por idêntica limitação:

O artigo 31, V, ‘a’ da Constituição de 1946, seguindo a construção da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos desde 1.819, no famoso acórdão Mc. Culloch vs. Maryland, determina que os meios de ação de um Governo, dentro da Federação, não sejam embaraçados pelos impostos de outro.

Aquele primeiro julgado, como é sabido, visava a proteger um Banco da União contra impostos estaduais.

Mas, depois, outros arestos estabeleceram a recíproca de que os serviços, bens e rendas dos Estados também não poderiam ser onerados por impostos federais (Buffington vs. Dav, 11 Wallace, de 1871, 113; Wardvs. Maryland, 12 Wallace, de 1870, 418; Bush vs. Commissioner, 300, US de 1937, 352 etc.).

Finalmente, distinguiuse o caso de o Estado exercitar atividade como government ou proprietary, isto é, se exerce função ou serviço público ou se explora negócio comercial, como uma empresa privada o faria. A imunidade ficaria restrita ao primeiro caso - government character, função governamental propriamente dita. Isso porque alguns Estados norteamericanos exploram fabricação de refrigerantes (New York vs. US, de 14.1.46, em 326 US 572, de 1946), bebidas alcoólicas (South Carolina vs. U.S., em 199, US, de 1905, 437), jogos de football (Allen vs. Regents of University of Georgia, 304 US, de 1938, 439) etc. Aí, a jurisprudência entendeu haver da parte dos Estados-membros, private business on proprietary character, com repercussão do tributo para consumidores. A imunidade enriqueceria a estes e seria neutra para os Estados. E, por isso, não havia cabimento da imunidade recíproca que, nos Estados Unidos, não está expressa em nenhum dispositivo constitucional. A base da teoria dos poderes implícitos resulta de construção pretoriana, que Rui Barbosa acolheu e inscreveu na Constituição de 1891, repetida, nessa parte, por todas as outras (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 68.450/SP, 1ª Turma, Relator Min. Aliomar Baleeiro, j. 04.12.1969).”

Percebe-se, assim, que a referência ao private business ou property character parece coincidir com o ingresso no domínio econômico.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há interessante precedente da também empresa pública da Caixa Econômica Federal, quando se perquiriu se haveria imposto sobre a venda de veículos por ela realizada. No mesmo sentido do entendimento acima, este excelso Supremo Tribunal Federal afastou a regra imunitória para as atividades alheias àquelas finalidades essenciais, vez que praticaria concorrência desleal.38

9. Considerações Finais

Do apresentado nos filiamos confortavelmente à afirmação de Alcides Jorge Costa, que com a perspicácia que lhe é própria já advertia décadas atrás

“que a extensão das imunidades recíprocas estaria a merecer uma revisão, uma vez que a presença do Poder Público, sobretudo da União, no domínio econômico tem crescido muito e apenas a exclusão das empresas públicas que exercem atividades não monopolizadas parece insuficiente para evitar certos efeitos perversos da imunidades recíproca”.39

Entre os efeitos perversos, destaca-se seguramente o prejuízo à livre concorrência quando admitida a fruição de imunidade tributária em ambiente de mercado. Quiçá os argumentos aqui expendidos sirvam de coro para postar um novo entendimento no Supremo Tribunal Federal no que respeita à imunidade dos Correios.

1 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10ª ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 4.

2 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário, doutrina, jurisprudência e legislação atualizada. 18ª ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p. 278.

3 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 55.

4 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., pp. 55-56.

5 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2006, p. 71.

6 ÁVILA, Humberto. Ob. cit, p. 72.

7 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 376.

8 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 57.

9 SCAFF, Fernando Facury. “Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos”. Interesse público. São Paulo, Notadez, 2005, p. 213.

10 SCHOUERI, Luís Eduardo. Ob. cit., p. 375.

11 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 63.

12 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio F. da. Ob. cit., p. 312.

13 SCHOUERI, Luís Eduardo. Ob. cit., p. 380.

14 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da ju­risprudência. 6ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado/Esmafe, 2004, p. 262.

15 ÁVILA, Humberto. Ob. cit., p. 219.

16 ÁVILA, Humberto. Ob. cit., p. 220.

17 SCHOUERI, Luís Eduardo. Ob. cit., p. 382.

18 ÁVILA, Humberto. Ob. cit., p. 221.

19 SCHOUERI, Luís Eduardo. Ob. cit., p. 379.

20 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Vol. 3. 3ª ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 229.

21 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 591. “A imunidade ou a isenção tributária do comprador não se estende ao produtor, contribuinte do Imposto sobre Produtos Industrializados.” Súmula nº 583. “Promitente comprador de imóvel residencial transcrito em nome de autarquia é contribuinte de Imposto Predial e Territorial Urbano.”

22 “As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, renda e aos serviços, relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.”

23 MAITTO. Rodrigo da Silveira. Tributação e concorrência. São Paulo, Quartier Latin/IBDT, 2011, p. 185.

24 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 237.

25 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1 de 1969. Tomo II. 2ª ed. São Paulo, RT, 1970, p. 36.

26 “Art. 7º Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento.”

27 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 240.

28 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 382.

29 DERZI, Misabel Abreu Machado. “Um retorno necessário a Aliomar Baleeiro: reflexões sobre os efeitos decorrentes da incidência de impostos e contribuições sobre os bens adquiridos pelos entes estatais”. In: AMARAL, Francisco Xavier (coord.). Imunidade tributária recíproca - Um resgate da doutrina de Baleeiro. Belo Horizonte, Idenc, 2008, p. 24.

30 SCAFF, Fernando Facury. “ICMS, guerra fiscal e concorrência na venda de serviços telefônicos pré-pagos”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 126. São Paulo, Dialética, 2006, p. 78.

31 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.”

32 BORGES, José do Souto Maior. Isenção tributária. 3ª ed. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 77.

33 “Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei estadual n. 356/97, arts. 1 e 2. Tratamento fiscal diferenciado ao transportes escolar vinculado à cooperativa do Município. Afronta ao princípio da igualdade e isonomia. Controle abstrato de constitucionalidade. Possibilidade. Cancelamento de multa e isenção do pagamento do IPVA. Matéria afeta à competência dos Estados e do Distrito Federal. Tratamento desigual a contribuintes que se encontram na mesma atividade econômica. Inconstitucionalidade. 1. Norma de efeitos concretos. Impossibilidade de conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade. Alegação improcedente. O fato de serem determináveis os destinatários da lei não significa, necessariamente, que se opera individualização suficiente para tê-la por norma de efeitos concretos. Preliminar rejeitada. 2. Lei Estadual 356/97. Cancelamento de multa e isenção do pagamento do IPVA. Matéria afeta à competência dos Estados e à do Distrito Federal. Benefício fiscal concedido exclusivamente àqueles filiados à Cooperativa de Transportes Escolares do Município de Macapá. Inconstitucionalidade. A Constituição Federal outorga aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores e para conceder isenção, mas, ao mesmo tempo, proíbe o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem na mesma situação econômica. Observância aos princípios da igualdade, da isonomia e da liberdade de associação. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.” (ADI nº 1.655, Relator Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 3.3.2004, DJ de 2.4.2004, pp. 8, Ement. Vol.-02146-01, pp. 156)

Cf., também, ADI nº 3.260, Relator Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 29.3.2007, DJe de 29.6.2007, pp. 21, Ement. Vol.-02282-03, pp. 518. Revista Dialética de Direito Tributário nº 144. São Paulo, Dialética, 2007, pp. 202-203. Revista Dialética de Direito Tributário nº 145. São Paulo, Dialética, 2007, p. 222. LEXSTF v. 29, nº 344, 2007, pp. 12-18)

34 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Questão Ordinária em Mandado de Segurança (QOMS) nº 24.159/DF, Relatora Min. Ellen Gracie. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) nº 74.034, 2ª Turma, Relator Min. Bilac Pinto, julgado em 6.11.1972. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.655-5/AP, Relator Min. Maurício Corrêa, julgado em 3.3.2004. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar (AC) nº 1.657-6/RJ, julgado em 31.8.2007.

35 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) nº 601.392/PR, Relator Min. Joa­quim Barbosa.

36 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo: “Dentro do domínio econômico, por outro lado, o princípio da livre concorrência atuará como vetor negativo à atuação da imunidade, ao qual se poderá contrapor o vetor capacidade contributiva, veiculado pela norma tributária arrecadadora (negativa) da imunidade.” (“Notas acerca da imunidade tributária: limites a uma limitação do poder de tributar”. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; e FERNANDES, Edison Carlos (orgs.). Tributação, justiça e liberdade. Curitiba, Juruá, 2005, p. 401)

37 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) nº 325.822/SP, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 18.12.2002.

38 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 74.034, 2ª Turma, Relator Min. Bilac Pinto, julgado em 6.11.1972.

39 COSTA, Alcides Jorge. “Algumas idéias sobre uma Reforma do Sistema Tributário brasileiro”. In: NOGUEIRA, Ruy Barbosa (coord.). Direito Tributário atual. Vol. 7/8. São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Tributário/Resenha Tributária, 1987/88, pp. 1.756-1.757.