Análise da Constitucionalidade do Artigo 191-A do Código Tributário Nacional: Continuidade da Empresa, Interesse Público e Justiça Distributiva
Pedro Vinícius Brito Eroles
Graduado em Direito pela USP e em Filosofia pela PUC/SP.
Resumo
O presente artigo tem como objeto a análise da constitucionalidade do artigo 191-A do Código Tributário Nacional, através das limitações constitucionais ao poder de tributar, do chamado “princípio de supremacia do interesse público” e da justiça distributiva. Dessa análise, serão inferidas algumas conclusões sobre a constitucionalidade do mencionado artigo.
Palavras-chave: recuperação de empresas, confisco, limitações constitucionais ao poder de tributar, supremacia do interesse público, Justiça Distributiva.
Abstract
The present article has as its object the analysis of the constitutionality of the article 191-A of the Brazilian Tax Code, by the constitutional limitations of the tax power, the so-called “principle of the supremacy of the public interest” and the distributive justice. From this analysis, will be inferred some conclusions about the constitutionality of the mentioned article.
Keywords: recovery of enterprises, confiscation, constitutional limitations to the tax power, supremacy of the public interest, Distributive Justice.
1. Introdução
Uma regra tributária que visasse somente conferir privilégios ao interesse arrecadatório do Fisco em detrimento dos contribuintes seria, sem necessidade de maiores análises, ilegítima e, por conseguinte, inaceitável no ordenamento jurídico. Entretanto, tais regras não são, e nem o poderiam ser, legitimadas explicitamente como meras concessoras de tais privilégios ao Poder Público: há necessidade de que, para que tenham eficácia e sejam aparentemente legítimas, haja todo um aparato argumentativo dando-lhes fundamento.
A construção dessa fundamentação não raro utiliza toda a gama de princípios constitucionais tributários, além de supostos princípios administrativos, como o de “supremacia do interesse público sobre o interesse particular”, de modo a conferir retoricamente respaldo constitucional a tais privilégios. Pois bem: é justamente esse aparato argumentativo, não raro obscuro, que será objeto de análise neste artigo, especificamente no que concerne à regra do artigo 191-A do Código Tributário Nacional, abaixo transcrito:
“Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação de prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei.”
Trata-se de regra que dispõe que a empresa tenha quitado todos os seus débitos tributários para que possa ter deferida a sua recuperação judicial, sob pena de falência. Como explica Luís Eduardo Schoueri, não se trata necessariamente do pagamento dos tributos, visto que tal exigência de pagamento pela empresa de todos os seus débitos tributários poderia tornar inviável a recuperação, mas de uma prova de sua quitação, ou seja, tal exigência poderia ser satisfeita com uma certidão positiva de débitos com efeito de negativa, através da suspensão da exigibilidade do crédito tributário ou do parcelamento1.
Qual seria o fundamento que poderia legitimar essa regra que garante que o recebimento ou a regularidade quanto aos créditos fiscais seja não só prioritário, mas também condição necessária para o deferimento da recuperação da empresa? Não obstante todas as limitações constitucionais ao poder de tributar, a consideração da existência de um suposto princípio constitucional de “supremacia do interesse público em face do interesse privado” acaba por tornar sem efeito qualquer análise de tais regras à luz das normas constitucionais tributárias.
No que se refere à regra do artigo 191-A, as decisões recentes relativas à nova Lei de Falências vêm sistematicamente afastando, em controle difuso de constitucionalidade, o privilégio do Fisco quanto ao recebimento ou à regularização de seus créditos. Apenas para fornecer um exemplo, em sentença que deferiu a recuperação judicial da Parmalat2, o juiz Alexandre Alves Lazarini afastou a condição prevista no artigo 191-A do Código Tributário Nacional, apresentando em sua sentença os argumentos de que a exigência de certidões negativas como pressuposto de admissibilidade da recuperação seria desproporcional, de que o descumprimento da exigência implicaria a falência da empresa, resultado não desejado pela lei, e de que tal regra feriria os princípios que regem o instituto da recuperação de empresas, bem como a própria Constituição Federal.
Entretanto, a fundamentação dada na sentença para o afastamento de tal regra se apresenta, a nosso ver, vaga e sem uma argumentação que nos pareça realmente consistente. Pode-se constatar que o magistrado considera tal regra inconstitucional, mas a fundamentação transparece muito mais uma percepção intuitiva de tal inconstitucionalidade do que um verdadeiro juízo analítico-racional a partir de um processo de interpretação da Constituição.
Isso, per se, já se apresenta como um problema, mas, dado o objetivo deste artigo, trata-se de um problema essencial e inafastável: se a crítica feita aqui é justamente sobre a forma obscura e retórica de fundamentação de regras concessoras de privilégios ao Estado, como a do artigo 191-A do Código Tributário Nacional, cabe-nos tentar realizar uma análise da legitimidade de tais regras através de uma argumentação consistente e racionalmente clara.
A afirmação do magistrado em sua sentença, relativa ao resultado desejado da lei, refere-se aos próprios objetivos que regem o instituto da recuperação de empresas, conforme disposto no artigo 47 da Lei nº 11.101/2005, abaixo transcrito:
“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
A doutrina se apresenta dividida quanto à legitimidade da garantia prevista no artigo 191-A do CTN. Para Aliomar Baleeiro3, Paulo de Barros Carvalho4, Regina Helena Costa5 e Luís Eduardo Schoueri6, a regra não apresentaria nenhum problema em relação a sua constitucionalidade.
Entretanto, outra parte da doutrina vê de forma menos benevolente a referida norma. Conforme afirma Leandro Paulsen, o artigo 191-A estabelece providência em favor do Poder Público, em prejuízo do contribuinte7 pois, tendo em vista que as empresas que buscam a recuperação judicial, em sua maioria, passam por dificuldades financeiras, a exigência da apresentação de quitação dos débitos tributários constituiria um ônus não respaldado pela ordem constitucional brasileira.
Nesse sentido, conclui Hugo de Brito Machado que, dentre os diversos credores da empresa que pleiteia a sua recuperação, o Estado é justamente aquele que teria, sem nenhuma possibilidade de dúvida, os mais fortes motivos para viabilizar a preservação da empresa e de sua função social, o que tornaria ilegítima a regra colocada pelo artigo 191-A8.
Também Hugo de Brito Machado Segundo entende ser a regra irrazoável, dada a dificuldade de obtenção da certidão, além do fato de que a própria lei de falências, em seu artigo 52, libera o contribuinte da emissão de certidões, tornando absurda a condição de apresentação prévia de uma certidão9.
Sacha Calmon Navarro Coêlho entende que a regra é impertinente e impeditiva da recuperação da empresa, fato pelo qual vem sendo afastada pelo Judiciário10.
Tendo em vista a divisão presente na doutrina quanto ao tema, este artigo pretende, partindo de uma análise dos dispositivos constitucionais limitadores do poder estatal de tributar, apresentar uma possibilidade de preenchimento do sentido de tais limitações no que concerne às empresas em crise, para fins de análise das possibilidades de legitimação constitucional da regra do artigo 191-A.
Primeiramente, serão abordadas as garantias da empresa à luz das limitações constitucionais ao poder de tributar, tendo em vista o próprio instituto da recuperação de empresas. Em seguida, será analisado o chamado “princípio de supremacia do interesse público” como fundamento da regra do artigo 191-A, concluindo com um breve apontamento sobre as relações entre justiça distributiva e legitimidade da garantia do Fisco conferida pelo artigo em comento. Finalmente, a partir das análises mencionadas, serão inferidas algumas conclusões sobre a constitucionalidade do artigo 191-A do Código Tributário Nacional.
2. As Limitações ao Poder de tributar e as Garantias da Empresa
Toda limitação ao poder do Estado por normas tributárias deve estar necessariamente em harmonia com a Constituição Federal. Entretanto, essa afirmação esconde a faceta mais complexa do problema, pois não se trata apenas de limitar ou não limitar, mas do grau de limitação constitucionalmente legítimo.
Visto que a lógica clássica ou aristotélica trabalha com conceitos que respeitam estritamente o princípio do terceiro excluído (A v ~A), a extensão possível e legítima de limitação não poderia ser construída num plano meramente lógico-abstrato. Tal problemática sobre as limitações já havia sido exposta por Herbert Hart, quando escreveu que a predicação de casos extremos é facilmente realizada, sendo que o real problema estava em se traçarem limites entre situações intermediárias ou situações-limite (o exemplo usado pelo filósofo de Oxford é o de se seria ou não careca um sujeito que tivesse apenas algumas mechas de cabelo)11.
A estruturação do Sistema Tributário Nacional encontra-se no Capítulo I do Título VI da Constituição Federal de 1988, abrangendo do artigo 145 ao artigo 156. Há cinco seções dividindo esses artigos: a Seção I, intitulada Princípios gerais (artigos 145 a 149), a Seção II intitulada Das limitações ao poder de tributar (artigos 150 a 152), a Seção III com o título de Dos impostos da União (artigos 153 e 154), a Seção IV denominada Dos impostos dos Estados e do Distrito Federal (artigo 155), e, por fim, a Seção V, intitulada Dos Impostos dos Municípios (artigo 156).
A Seção I estabelece os parâmetros para a atuação discricionária do Estado (as espécies de tributos que poderão ser instituídas pelos entes federativos, as matérias que deverão ser regidas por lei complementar, a competência exclusiva da União para a instituição de contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas etc). Visto que tais dispositivos visam delimitar a atuação do Estado, estabelecendo um campo de possibilidades constitucionalmente legítimas de atuação, não há dúvida de que se tratam de limitações ao poder do Estado para tributar. As Seções III, IV e V, como transparece em seus próprios títulos, dispõem sobre os tributos de competência dos respectivos entes federativos: por óbvio que a delimitação dessas competências entre os entes é também uma limitação ao poder do Estado para tributar.
Tendo isso em vista, a Seção II, intitulada Das limitações ao poder de tributar, trata, em nossa visão, de uma espécie peculiar de limitações ao poder do Estado. Os três artigos que compõem a Seção em análise (artigos 150 a 152) são constituídos pela expressão é vedado. Portanto, tais limitações não delineiam um campo de possibilidades para atuação estatal legítima, mas, sim, delimitam um campo de impossibilidade de atuação do Estado. Em outros termos: enquanto as demais limitações do Capítulo I delimitam um campo de atuação constitucionalmente legítimo, as limitações da Seção em análise delimitam um campo de atuação constitucionalmente ilegítimo. Portanto, tais limitações são um bom ponto de partida para a análise dos direitos constitucionais da empresa contribuinte em recuperação, visto que se tratam de restrições absolutas ao poder de tributar, e, portanto, a princípio não apresentariam o problema acima referido quanto à definição dos limites.
A partir dessa conclusão, passemos a analisar um dispositivo contido nessa Seção II de restrições absolutas ao poder de tributar, pertinente às garantias constitucionais da empresa contribuinte, qual seja, o do artigo 150, IV, que prevê que sem prejuízo de outras garantias do contribuinte, é vedado aos entes federativos utilizar tributo com efeito de confisco. Apesar de o aspecto formal do dispositivo apresentar uma restrição absoluta e, portanto, eliminar aparentemente o problema dos limites, seu aspecto material apresenta-se como igualmente problemático: o que seria a utilização de um tributo com efeito de confisco? Faz-se, para tanto, necessária a análise sistemática da Constituição.
3. A Empresa e o “Estatuto do Contribuinte”
A abertura para tal análise sistemática da Constituição se encontra no próprio texto do caput do artigo 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte (...). Daqui, uma outra conclusão, não tão óbvia, pode ser inferida: o sistema de limitações constitucionais ao poder estatal de tributar não se encontra reduzido aos dispositivos contidos nos artigos 145 a 156 da Constituição, como já concluíra Humberto Ávila12. Assim, retornemos ao nosso ponto de partida, qual seja, a vedação de utilização do tributo com efeito de confisco (artigo 150, IV).
Analisando o dispositivo pelo seu aspecto formal, podemos estabelecer que se trata de um teto, ou limite máximo, de possibilidade de tributação pelo Estado de um determinado contribuinte. Como escreve Roque Antonio Carrazza, tal aspecto se trata apenas de um mandamento para graduação dos tributos de modo a não incidirem sobre as próprias fontes de riqueza dos contribuintes13. Sobre o aspecto material, ficaria a questão sobre qual seria esse limite máximo.
Segundo Humberto Ávila, a norma é o resultado da interpretação do texto, não se confundindo com ele; ou seja, o texto é o ponto de partida, e a norma, o ponto de chegada do processo interpretativo14. O dispositivo do artigo 150, IV, da Constituição seria, portanto, apenas um ponto de partida para a construção de seu sentido, a qual deve ser feita a partir de uma abordagem da Carta Magna em seu conjunto.
A análise das garantias constitucionais da empresa de proteção contra o confisco (em face do Estado) torna imprescindível a análise dos dispositivos relacionados aos direitos constitucionais da empresa (garantidos pelo Estado). Tais direitos constitucionais da empresa são o direito de propriedade, atendida a sua função social (artigo 5º, XXII e XXIII, e artigo 170, II e III), o direito de liberdade econômica ou livre-iniciativa (artigo 170, caput) e o direito à livre concorrência (artigos 170, IV e 173, parágrafo 4º).
Visto que elencamos direitos relacionados à empresa garantidos pelo Estado (propriedade, função social, livre-iniciativa e livre concorrência) e um direito da empresa em face do Estado (a proteção contra a tributação confiscatória), o qual, como vimos, trata-se de uma vedação, ou seja, uma restrição absoluta de atuação do Estado ou, em outros termos, um campo onde não há possibilidade de atuação estatal constitucionalmente legítima, ao menos no plano formal podemos traçar a fronteira entre a confiscatoriedade e a não confiscatoriedade do efeito de um tributo incidente sobre uma empresa como sendo aquele que violar o seu direito de propriedade, de função social, de liberdade econômica ou de livre concorrência.
Tais conclusões parecem conferir maior nitidez à fronteira entre a confiscatoriedade e a não confiscatoriedade do efeito de um tributo incidente sobre uma empresa: retomando a ideia de que a vedação ao confisco funcionaria como um limite máximo de tributação constitucionalmente legítimo, esse limite estaria demarcado pela garantia dos direitos constitucionais da empresa acima apontados. A própria competência do Estado para instituir tributos, ao mesmo tempo em que garante direitos à empresa, explicita como a aquisição de meios para a concreção das garantias constitucionais não poderia, dada a unidade da Constituição, acabar por solapar essas mesmas garantias, sob o risco de o Estado perder a sua função social e seu caráter democrático (artigo 1º, artigo 3º, III, e artigo 6º da Constituição), apartando-se e sobrepondo-se à própria sociedade. Como coloca Humberto Ávila, justamente por que o Estado tem de preservar a liberdade e a propriedade, não poderá, por meio da tributação, restringir excessivamente esses direitos, pois, se o Estado está legitimado para tributar, o está justamente para o cumprimento das finalidades para as quais foi instituído15.
Entretanto, a rigor, a tributação necessariamente restringe a função social da empresa, sua liberdade econômica e a livre concorrência. Restringe sua função social, pois uma parte de seus lucros é direcionada ao Fisco, restringindo seus investimentos e, por conseguinte, seus efeitos sociais benéficos (criação de empregos, produção de bens e serviços etc.); restringe também sua liberdade econômica, dado que os tributos são compulsórios por definição16; por fim, também restringem a livre concorrência, posto que empresas menores sofrem mais com a carga tributária do que grandes empresas, além do que, na disputa comercial internacional, ocorre uma desvantagem para essa empresa tributada em relação a empresas de países com menor carga tributária. Outrossim, a tributação pode ter um efeito concentrador no mercado, principalmente em épocas de recessão, nas quais há a premência de cortar gastos, fazendo com que a carga tributária tenha um efeito catalisador de fusões17. Portanto, a mera restrição aos direitos constitucionais da empresa pela incidência de tributação não poderia caracterizar confisco, pois, caso contrário, chegar-se-ia à conclusão absurda de que qualquer tributação teria efeito confiscatório sobre as empresas.
Como abordar, então, o problema quanto ao grau de limitação dos direitos constitucionais garantidos pelo Estado à empresa (propriedade, função social, liberdade e livre concorrência) que seria não confiscatório? Na tentativa de delimitar os limites do confiscatório, Roque Antonio Carrazza escreve que a carga tributária confiscatória é aquela que ou dificulta sobremodo o desempenho da empresa ou a inviabiliza por completo18. Entretanto, tal definição, apesar de esclarecer casos extremos de carga tributária confiscatória, não traz maiores esclarecimentos sobre formas mais sutis de confisco, como aquelas que limitam ilegitimamente a livre-iniciativa ou as que trazem problemas concorrenciais a médio e longo prazo, por exemplo.
Aqui, portanto, chega-se ao limite de delimitação possível da fronteira entre o confiscatório e o não confiscatório por uma análise meramente formal ou lógico-abstrata dos dispositivos de vedação à tributação com efeito de confisco, direito de propriedade, função social, livre-iniciativa e livre concorrência. A partir deste ponto, para que se possa prosseguir na busca de uma delineação mais nítida dessa fronteira, será necessária uma abertura para uma análise material ou ontológico-concreta, a qual terá uma limitação óbvia pelas especificidades de cada caso particular, mas que determinará categorias para a construção pelo intérprete de um limite o mais possível harmônico com a Constituição.
Essa abertura se iniciará por uma abordagem de um segundo dispositivo pertinente aos direitos constitucionais da empresa em face ao poder de tributar do Estado, contido entre as restrições absolutas à atuação estatal (artigos 150 a 152 da Constituição), além de um outro dispositivo pertinente, mas contido entre aqueles que apenas delimitam um campo de atuação constitucionalmente legítimo para a atuação do Estado.
4. O Princípio da Igualdade Tributária e a Recuperação de Empresas
Chegando-se ao limite das possibilidades de uma análise formal dos direitos constitucionais da empresa contribuinte, faz-se necessária uma análise material. Nosso ponto de partida para isso será um dispositivo contido na Seção de restrições absolutas ao poder do Estado presente na Constituição Federal, o qual transcrevemos abaixo:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.”
Da leitura do dispositivo, constatamos que é vedado aos entes federativos tratar desigualmente contribuintes em situação equivalente. Aplicando essa vedação à análise feita até aqui sobre os direitos constitucionais da empresa contribuinte, teremos como conclusão que empresas que se encontrem em situações fático-jurídicas equivalentes não poderão ter limites diferentes quanto à restrição, decorrente dos efeitos da tributação, de seus direitos de propriedade, função social, liberdade econômica e livre concorrência. Em outros termos: os limites entre tributação confiscatória e não confiscatória deverá ser igual para tais empresas. O problema, entretanto, dado o objeto deste artigo, não é quanto ao tratamento desigual de empresas em situação equivalente, mas quanto à possibilidade de tratamento igual de empresas em situações fático-jurídicas não equivalentes.
À primeira vista, o problema poderia ser resolvido pelo próprio dispositivo acima analisado, pois, se é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, a contrario sensu, é também vedado instituir tratamento igual entre contribuintes que não se encontrem em situação equivalente.
Contudo, tal argumento a contrario sensu se trata de uma falácia, tendo função apenas retórica (pois uma consequência verdadeira pode resultar de um princípio falso, bem como duas hipóteses contrárias podem ter a mesma consequência)19, e de maneira alguma poderia servir de substrato para conclusões sobre o tratamento de empresas em situações não equivalentes.
Assumamos que a proposição “e” significa “empresas em situações fático-jurídicas equivalentes” e que a proposição “t” significa “tratamento igual pelo Estado”. Do dispositivo do artigo 150, II, da Constituição Federal, temos que e Õ t (leia-se: se e, então t, ou seja, se as empresas têm situações fático-jurídicas equivalentes, então têm - no caso, devem ter - tratamento igual pelo Estado). A inferência de que e Õ t implicaria ~eÕ ~t (se as empresas não têm situações fático-jurídicas equivalentes, então têm - no caso, devem ter - tratamento desigual pelo Estado), configura a falácia lógica denominada negação do antecedente, a qual consiste em confundir condição suficiente com condição necessária. Essa última falácia tem uma semelhança superficial com a forma de argumento válido se p Õ q, então ~q Õ ~p, denominado modus tollens20, o que confere tal força retórica ao argumento.
Pois bem: as empresas terem condições fático-jurídicas equivalentes é uma condição suficiente para que haja tratamento igual pelo Estado, mas não é condição necessária; ou seja, pela mera análise do dispositivo do artigo 150, II, da Constituição, temos que é possível o tratamento igual pelo Estado de empresas que se encontram em situações fático-jurídicas diferentes.
Tirada a conclusão de que o Estado possui uma restrição absoluta quanto à instituição de tratamento desigual de contribuintes em situações fático-jurídicas equivalentes, cabe agora analisar quais seriam as possíveis restrições do Estado em relação a contribuintes que se encontrem em situações fático-jurídicas não equivalentes, visto que não há nenhuma limitação absoluta (ou seja, contida entre os artigos 150 a 152 da Constituição Federal) para tal tratamento, e que o argumento a contrario sensu do artigo 150, II, é uma falácia.
Para isso, cabe analisar o disposto no parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição, abaixo transcrito:
“Art. 145, § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
O dispositivo destacado acima é fundamental para a análise dos direitos de contribuintes em situações não equivalentes, e, portanto, para o objeto deste artigo: nos casos de não equivalência fático-jurídica entre contribuintes, sempre que possível haverá uma graduação segundo suas capacidades econômicas. Tal parâmetro, por ser referência básica para se aferir o impacto da carga tributária sobre o contribuinte21, não poderia ser mais pertinente para a análise dos direitos constitucionais da empresa em recuperação.
A abertura feita pelo dispositivo do parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição para a análise das particularidades da situação de cada contribuinte, tendo como critério a capacidade econômica, traz um fator importante na delimitação de parâmetros para a configuração da fronteira entre tributação confiscatória e não confiscatória incidente sobre as empresas.
Em relação às limitações à restrição do direito de propriedade, função social e liberdade econômica da empresa, a graduação da tributação conforme a capacidade econômica de cada empresa contribuinte nos permite concluir que empresas que se encontrem em situações fático-jurídicas não equivalentes terão limitações quanto à restrição, decorrente dos efeitos da tributação, de seus direitos de propriedade, função social, liberdade econômica e livre concorrência proporcionais a suas respectivas capacidades econômicas.
Ou seja, o postulado de proporcionalidade deverá ser aqui aplicado numa relação entre o grau de limitação à restrição, pelos efeitos da tributação incidente sobre a empresa, dos direitos de propriedade, função social, liberdade econômica e livre concorrência e a capacidade econômica da empresa contribuinte. Essa relação fica patente pelos dispositivos constitucionais que expressamente asseguram um tratamento diferenciado a empresas de menor capacidade econômica22.
O exemplo dado acima, quanto às empresas de menor capacidade econômica, exemplifica bem a aplicação do postulado da proporcionalidade no que se refere às diferenças jurídicas entre empresas, mas é menos ilustrativo no que diz respeito aos aspectos fáticos. Por óbvio que não nos referimos aqui aos aspectos fáticos reconhecidos pela lei, mas justamente àqueles que não são por ela abrangidos, e que são essenciais para analisar tanto a proporcionalidade na sua aplicação quanto a sua própria legitimidade constitucional.
No que concerne à proporcionalidade, a restrição de direitos constitucionais de uma empresa pela aplicação de uma regra deve levar em conta sua situação fática de modo a verificar se a aplicação de tal regra fomenta ou atinge determinados objetivos constitucionalmente definidos, sem adentrar o campo da tributação confiscatória; quanto à legitimidade constitucional, os aspectos fáticos da empresa permitem averiguar se o próprio conteúdo da lei restringe em um grau injustificável os direitos de propriedade, função social, liberdade econômica e livre concorrência da empresa, tendo, por conseguinte, um efeito de confisco.
Humberto Ávila diferencia a igualdade formal (igualdade perante a lei) da igualdade material (igualdade na lei), estabelecendo que a primeira refere-se à aplicação uniforme da norma (derivada do artigo 5º, caput, “todos são iguais perante a lei...”) enquanto que a segunda se trata de não haver no conteúdo da norma nenhuma distinção arbitrária. Portanto, a capacidade econômica da empresa, também em seus aspectos fáticos, será considerada de modo a verificar a proporcionalidade na aplicação e a legitimidade do conteúdo de uma regra, de modo a que a igualdade tributária seja respeitada tanto em seu aspecto formal (igualdade perante a lei) quanto em seu aspecto material (igualdade na lei)23.
Decerto, não serão todos os aspectos fáticos que justificarão uma aplicação diferenciada de uma norma, ou mesmo a sua não aplicação pela ilegitimidade constitucional em vista do caso concreto: é necessário que a relação entre o aspecto fático e a análise da norma em face da igualdade tributária formal e material seja constitucionalmente pertinente. Como escreve Celso Antônio Bandeira de Mello, o vínculo de pertinência entre a diferença e o tratamento diferenciado devido a essa diferença deve ter respaldo no próprio sistema constitucional, sob o risco de lesão à isonomia24.
No caso das empresas, tal pertinência se dá quanto à necessidade de proteção dos direitos de propriedade, função social, liberdade econômica e livre concorrência. Contudo, no que diz respeito ao objetivo deste artigo, resta averiguar a relevância do aspecto fático da empresa que está pleiteando sua recuperação, no que concerne à sua importância na análise da fronteira entre o campo de atuação confiscatória e não confiscatória do Estado.
Retomando-se a conclusão à qual chegamos em relação às empresas em situações fático-jurídicas não equivalentes, qual seja, empresas que se encontrem em situações fático-jurídicas não equivalentes terão limitações quanto à restrição, decorrente dos efeitos da tributação, de seus direitos de propriedade, função social, liberdade econômica e livre concorrência, proporcionais a suas respectivas capacidades econômicas, e tendo-se em conta que, no caso de uma empresa que pleiteia sua recuperação judicial há, obviamente, uma situação fática não equivalente à de uma empresa que não está nessa condição, visto que, por definição25, sua capacidade econômica encontra-se diminuída, infere-se que a restrição aos direitos de propriedade, função social, liberdade econômica e livre concorrência de empresas que pleiteiam recuperação, pelo efeito de tributação, deve ser necessariamente reduzida, visto que a sua própria capacidade econômica já coloca em xeque a segurança de seus direitos constitucionalmente garantidos.
Nesse caso, a própria restrição causada pela diminuição da capacidade econômica da empresa deve ser compensada por uma atuação menor do Estado na limitação dos direitos constitucionais da empresa acima elencados através dos efeitos da tributação, de modo a que não haja confisco.
Desse modo, aplica-se adequadamente o postulado da proporcionalidade, restringindo-se direitos constitucionais de modo proporcional à menor capacidade econômica da empresa que pleiteia sua recuperação.
5. A “Supremacia do Interesse Público” e o Artigo 191-A do CTN
A análise do dispositivo que confere a garantia ao Fisco para recebimento ou regularização de seus créditos levanta a questão sobre quais seriam os princípios que supostamente legitimariam a constitucionalidade da regra do artigo 191-A do Código Tributário Nacional. Uma possível resposta para a questão dos princípios sobrejacentes à referida regra é a de que a legitimidade da referida norma adviria do assim chamado “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”.
Tido por Celso Antonio Bandeira de Mello como um verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público26, o assim chamado “princípio da supremacia do interesse público” estabelece uma regra de preferência que vem sendo utilizada para fundamentar diversas regras que preveem a indisponibilidade do interesse público a priori, decorrendo desse “princípio” uma posição privilegiada da Administração Pública nas relações com os particulares, não obstante todas as limitações constitucionais impostas àquela27.
No nosso entender, a regra do artigo 191-A do CTN é um bom exemplo da legitimidade conferida por esse “princípio de supremacia”: a preferência para o recebimento ou regularização dos créditos tributários no caso de uma empresa que pleiteia sua recuperação, em detrimento de todos os outros credores particulares, ilustra bem como o referido “princípio de supremacia” pode servir como fundamento para conferir um privilégio ao Estado, confundindo-o com o próprio interesse público entendido como “bem comum”.
Na verdade, o “bem comum” seria a harmonização entre o bem de cada indivíduo e o bem de todos, e a construção de um suposto “princípio da supremacia do interesse público” como mera regra de preferência da Administração Pública em detrimento dos particulares seria, tendo isso em vista, inaceitável28. Não obstante, poderíamos encontrar algum fundamento na Constituição brasileira de modo a respaldar a validade de tal “princípio de supremacia”?
A partir de uma análise da Constituição brasileira, constata-se que os interesses privados são extensamente protegidos, e que aquilo que representa o interesse da coletividade a partir de uma atuação do Estado não se contrapõe aos interesses constitucionalmente protegidos dos particulares, mas antes visa proteger tais interesses privados num âmbito considerado pela Constituição como de impossibilidade de garantia e efetivação pelos particulares.
Por meio de diversas normas (artigos 1 a 17, 145, 150 e 170, entre outros), a Carta Magna de 1988 protege de tal forma a dignidade humana, a liberdade, a cidadania, a segurança e a propriedade privada, resguardando a esfera individual contra o Estado e através da atuação do Estado que, se fosse criada uma regra de prevalência como “princípio de supremacia”, essa deveria ser em favor dos interesses privados, e não dos públicos29.
No que concerne à regra do artigo 191-A do Código Tributário Nacional, a restrição que faz a direitos constitucionalmente garantidos, como analisado acima, não poderia ser legitimada a priori por um suposto “princípio de supremacia do interesse público”.
Em primeiro lugar, tal “princípio de supremacia”, como brevemente analisado acima, não encontra respaldo na Carta Magna brasileira. Em seu estudo sobre o referido “princípio”, conclui Humberto Ávila que ele constitui um dogma sem qualquer referibilidade à Constituição de 1988, não encontrando qualquer fundamento de validade em nossa ordem constitucional30.
Em segundo lugar, o interesse público representado pela atuação do Estado através dos recursos provenientes de tributos não se contrapõe a interesses particulares como os de livre-iniciativa e propriedade, mas antes os pressupõe. Esse fator é fundamental para o fim de melhor delinear os direitos constitucionais da empresa em face do Estado: no caso da regra em análise, o óbice à recuperação da empresa criado por tal norma para recebimento dos tributos pelo Fisco não se afigura como uma contraposição do interesse público representado pelo Fisco ao interesse privado da continuidade da empresa, pois a tributação não é simplesmente um crédito do Estado, mas, sim, uma parcela do patrimônio da empresa que o Estado é constitucionalmente legitimado a receber, de modo a cumprir funções a ele delegadas pelos próprios particulares. Colocando de forma alegórica, a regra de preferência do artigo 191-A do Código Tributário Nacional seria o caso de se serrar o galho no qual se está sentado.
Apenas uma separação entre Estado e particulares a partir de uma distinção entre “interesse público” e “interesse privado”, feita não como delimitação de campos hermenêuticos próprios, mas abstratamente, a fim de criar uma separação entre o interesse da Administração Pública e o interesse dos particulares, e a posterior configuração de um princípio de supremacia a priori daquele “interesse público” sobre esse “interesse privado”, poderia permitir uma configuração da natureza de normas de direito público tendo como base essa contraposição, a qual não é clara a ponto de permitir sua aplicação de tal forma, como regra de preferência num plano de conflito abstrato31.
Essa separação de maneira alguma é feita em nossa Constituição, na qual interesses públicos e interesses privados encontram-se mutuamente imbricados na atividade estatal, visto que elementos de interesse privado estão incluídos nos próprios fins do Estado. Não há que se confundir “interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal”, o que não colocamos em disputa aqui, com “supremacia do interesse público sobre o particular”, o qual não se justifica em nossa ordem constitucional, visto que os “interesses privados” e os “interesses públicos” não estão em contraposição de modo a justificar um “princípio de supremacia” destes sobre aqueles 32.
Conclui-se assim a impossibilidade de se fundamentar constitucionalmente a regra do artigo 191-A do Código Tributário Nacional a partir do chamado “princípio de supremacia do interesse público”. Partimos agora para o ponto final deste artigo, concernente a um esboço sobre a própria noção de justiça na análise da regra do artigo 191-A do Código Tributário Nacional.
6. Justiça Distributiva e o Artigo 191-A do CTN
A proporcionalidade aplicada na análise da regra do artigo 191-A, conforme a relevância dada pela Constituição a determinados bens jurídicos, não se trata, ensina Humberto Ávila, de um princípio ou de uma regra. Propõe o jusfilósofo gaúcho que o dever de proporcionalidade seria um postulado normativo aplicativo, impondo uma condição formal (ou estrutural) de conhecimento para aplicação de outras normas. Não se trataria de condição necessária no sentido de, em sua ausência, impossibilitar a aplicação do Direito, mas no sentido de que, em sua ausência, ficaria impossibilitada a devida aplicação do Direito, de modo a realizar integralmente os bens juridicamente resguardados33.
A proporcionalidade, compreendida também como componente sobre o qual a criação do Direito se apoia para aproximar-se da Justiça, pode ser vislumbrada na própria lei de falências. Observa John Finnis que a lei de falências traz em si um exemplo de justiça distributiva, conforme a definição aristotélica da expressão, ou seja, a de proporcionalidade como razão geométrica de quinhões atribuídos a cada pessoa (no sentido de que uma pessoa em determinada condição A receba um quinhão B, e uma outra pessoa numa condição C receba um quinhão D, de modo que A:C = B:D), no que Aristóteles também denomina de igualdade geométrica ou proporcionalidade, entendendo o proporcional como o próprio justo34.
Analisa Finnis que a Lei de Falências usa mais do que um critério de justiça distributiva; primeiro, ela reconhece que o falido deve ser protegido de proscrição, escravidão ou indigência; além disso, a lei também reconhece uma necessidade semelhante à daqueles que eram, presumidamente, dependentes do falido para seu sustento: por isso, os créditos a serem satisfeitos de modo preferencial pela divisão da massa falida são os salários de empregados e trabalhadores. Abaixo desses, mas acima de todos os outros, a lei dá preferência aos créditos que não estão fundados em negócios feitos com o falido (como os acidentes de trabalho e os tributos). No que tange aos credores ordinários (que não têm nenhuma garantia real, como hipoteca, penhor etc.), não recebem nenhum privilégio da lei, sendo os débitos pagos pari passu, ou seja, cada um recebe do restante, depois do pagamento dos credores preferenciais, a mesma porcentagem do crédito que lhe é devido, sendo que, no caso de o fundo ser insuficiente, o recebido de cada um diminui na mesma proporção. Portanto, ficam claros na lei de falências os critérios de proporcionalidade presentes em sua própria estrutura, conferindo-lhe uma legitimação racional conforme parâmetros de Justiça35.
Essa análise apresentada por Finnis poderia ser também estendida à situação dos credores da empresa que pleiteia sua recuperação judicial. No caso, a situação de cada credor deve ser analisada de acordo com o devido tratamento diferenciado que lhe cabe, conforme legitimado na própria ordem constitucional. Assim, a regra do artigo 191-A do Código Tributário Nacional afigura-se também como injusta, por ser desproporcional (visto que o Estado não tem respaldo constitucional para um tratamento privilegiado no recebimento de seus créditos no caso de empresa que pleiteia sua recuperação).
Essa justiça distributiva, no que concerne aos direitos dos contribuintes, deve ser aplicada como um parâmetro decisivo de modo a proporcionar uma visão mais clara, como no caso da regra do artigo 191-A do Código Tributário Nacional, do que é constitucionalmente legítimo e do que é um mero “privilégio odioso”.
7. Conclusões
Pretendeu-se com este artigo argumentar pela inconstitucionalidade do artigo 191-A do Código Tributário Nacional, pela ilegitimidade em se conferir um tratamento preferencial ao Fisco no recebimento ou na regularização de seus créditos em face da empresa em dificuldades econômico-financeiras. Nesse sentido, cabe mencionar aqui Thomas Woods, ao escrever que empresas privadas, por maiores e mais poderosas que sejam, podem ir à falência, mas não o Estado36. Não seria plausível que o Fisco tivesse uma garantia que se sobrepusesse ao próprio interesse de recuperação da empresa, dados todos os riscos a que está sujeita essa, em contraposição ao reduzido risco a que está sujeito o próprio aparelho estatal (não obstante o fato de não ser raro o argumento usado pelo Fisco de uma potencial “quebra do Estado” pela diminuição da arrecadação).
Tal conclusão deflui da própria função social exercida pela empresa: fornecimento de bens e serviços, criação de empregos, pagamento de tributos etc. Absolutamente todos esses papéis beneficiam o Estado, direta (pagamento de tributos) ou indiretamente (criação de empregos, geração e circulação de bens e serviços). Ou seja: o próprio Fisco, com o afastamento da regra do artigo 191-A, teria apenas um interesse imediato não atendido, qual seja, o de recebimento ou regularização dos débitos tributários, mas otimizaria a preservação de um interesse seu de longo prazo, qual seja, o recebimento contínuo de tributos da empresa caso ela se recupere e permaneça em atividade.
A livre iniciativa de os credores aprovarem a recuperação da empresa não pode ser obstada pela condição imposta pelo Estado prevista no artigo 191-A do Código Tributário Nacional. A nova Lei de Falências, que colocou os credores numa posição muito mais favorável do que o antigo Decreto-lei nº 7.661/1945, no qual o juiz poderia aprovar ou reprovar a concordata independentemente da concordância ou não dos credores, trouxe uma evolução à legislação, dando maior liberdade à iniciativa privada para regular seus próprios negócios, além de conferir maior liberdade quanto à novação dos créditos. Não se coaduna com as características da nova Lei de Falências, originada sob a égide da nova Constituição, uma preferência ao Fisco que restrinja a liberdade econômica dos agentes privados a priori, em detrimento do próprio objetivo estabelecido no artigo 47 da Lei nº 11.101/2005 de otimização das possibilidades de continuidade da empresa e do consequente exercício de sua função social.
1 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 712.
2 Processo 000.05.068.090-0, 1ª Vara de Recuperação e Falência de Empresas de São Paulo.
3 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro. Atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 983.
4 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 614.
5 COSTA, Regina Helena.Curso de Direito Tributário e Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 305-306.
6 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 712.
7 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 1.211.
8 MACHADO, Hugo de Brito. “Dívida tributária e recuperação judicial da empresa”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 120. São Paulo: Dialética, setembro de 2005, p. 69. Apud PAULSEN, Leandro. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 1.212.
9 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Código Tributário Nacional - Anotações à Constituição, ao Código Tributário Nacional e às Leis Complementares 87/1996 e 116/2003. São Paulo: Atlas, 2009, p. 388.
10 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. Rio de Janeiro, Forense, 2009, pp. 812-813.
11 HART, Herbert Lionel Aldophus. The concept of law. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 4.
12 ÁVILA, Humberto. “Estatuto do contribuinte: conteúdo e alcance”. Revista eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE) nº 12. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, novembro/dezembro/janeiro de 2008, p. 3.
13 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 108.
14 ÁVILA, Humberto. “Estatuto do contribuinte: conteúdo e alcance”. Ob. cit., p. 2.
15 ÁVILA, Humberto. “Estatuto do contribuinte: conteúdo e alcance”. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE) nº 12. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, novembro/dezembro/janeiro de 2008, p. 10.
16 Código Tributário Nacional, art. 3º: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória (...).”
17 Instituto Ludwig von Mises - Brasil. “Como os impostos estimulam a concentração do mercado”. Disponível em http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=672.
18 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 108.
19 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2007, p. 352.
20 COPI, Irving. Introdução à lógica. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1981, p. 248.
21 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 181.
22 Como expresso no artigo 146, III, “d”, e no artigo 170, IX, da Constituição Federal.
23 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 74-75.
24 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 42.
25 Art. 47 da Lei 11.101/2005: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação de crise econômico-financeira do devedor (...).” (Destaque nosso).
26 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 29.
27 ÁVILA, Humberto. “Repensando o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o particular’”. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE) nº 11. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, setembro/outubro/novembro de 2007. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp, pp. 1-2.
28 ÁVILA, Humberto. “Repensando o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o particular’”. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE) nº 11. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, setembro/outubro/novembro de 2007. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp, p. 3.
29 ÁVILA, Humberto. “Repensando o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o particular’”. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE) nº 11. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, setembro/outubro/novembro de 2007. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp, p. 11.
30 ÁVILA, Humberto. “Repensando o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o particular’”. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE) nº 11. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, setembro/outubro/novembro de 2007. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp, p. 21.
31 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “Interesse público”. Texto publicado em 15 de janeiro de 2003. Fonte: http://www.prt2.gov.br/revl.shtml, p. 9.
32 ÁVILA, Humberto. “Repensando o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o particular’”. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE) nº 11. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, setembro/outubro/novembro de 2007. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp, pp. 13-14.
33 ÁVILA, Humberto. “A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade”. Revista diálogo jurídico nº 4. Vol. I. Salvador: CAJ - Centro de Atualização Jurídica, julho de 2001. Disponível em www.direitopublico.com.br, p. 25.
34 Aristóteles, Ética a Nicômacos. Livro V. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 2001, pp. 96-97.
35 FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila Mendes. São Leopoldo: Unisinos, 2006, pp. 186-187.
36 WOODS, Thomas. “É imoral e anti-humano ser contra o lucro e a livre iniciativa.” Artigo publicado em www.mises.org.br, em 16 de janeiro de 2012.