Juros sobre o Capital Próprio - Momento de Dedução da Despesa

Ricardo Mariz de Oliveira

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário - IBDT.

Resumo

O artigo se propõe a tratar do tema sob os vários aspectos envolvidos, a partir do conceito de despesa incorrida. Ao determinar o período-base competente, não apenas se pode tomar a dedução tributária no momento correto, mas também determinar os limites legalmente admitidos para a dedução. As conclusões atingidas são importantes também para a solução de controvérsias nos casos em que a remuneração do capital próprio, paga num período-base, abrange lapso de tempo anterior ao seu início.

Palavras-chave: regime de competência, despesa incorrida, renúncia.

Abstract

This article aims to deal with several aspects regarding the payment and fiscal deduction of interests on the capital, starting with the concept of incurred expense. After determining the tax period which is deemed to be the competent one, it is possible to deduct the expense for tax purpose at the proper moment, as well as to determine the limitation of the value which is legally allowed do be deducted. Such conclusions are also important to settle disputes about cases in which the interest is paid during a certain tax period but is calculated over a length of time prior to such a period.

Keywords: accrual basis, incurred expense, waiver.

I - Introdução

A dedução das despesas a título de juros sobre o capital social, perante o lucro tributável pelo Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro (CSL), está disciplinada pelo art. 9º da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, que também trata das consequências tributárias para os beneficiários desse tipo de renda.

Não se analisará aqui toda a extensão das regras dessa disciplina, certamente já do conhecimento geral, mas apenas o momento em que tais despesas são consideradas dedutíveis, para o que será preciso trazer à consideração apenas algumas partes da respectiva norma legal.

Através da perfeita determinação daquele ponto essencial - o momento de incorrimento na despesa - se obtém a resposta para inúmeras indagações, as quais envolvem deduções antecipadas, limites de dedução, pagamentos ditos “acumulados” e outras questões.

Isto tem se apresentado com grande importância na vida econômica das pessoas jurídicas, principalmente porque, em inúmeros autos de infração, a fiscalização da Receita Federal do Brasil tem sustentado que a despesa é incorrida ano a ano, como toda e qualquer despesa financeira, motivo pelo qual precisaria ser deduzida em cada ano, porém com o agravante de, caso não haja dedução anual, haver a perda do direito de tomá-la em anos futuros.

Neste sentido, partindo da premissa de que a dedução é uma faculdade outorgada pela lei ao contribuinte, a fiscalização alude, por exemplo, à deliberação de pagamento dos juros “no devido tempo”, sob pena de “renúncia” ou de “preclusão”, sendo esta inclusive acrescida de adjetivos, ou seja, haveria “preclusão terminativa” ou “preclusão consumativa” caso não houvesse o exercício da faculdade em cada período-base fiscal.

Por outro lado, nesses conflitos também entram em discussão os limites da dedução, que a lei fixa em metade do lucro líquido antes da dedução da própria despesa, ou metade dos lucros acumulados e reservas de lucro, dos dois valores o maior. Questiona-se, então, se tais limites devem ser apurados no período-base do pagamento dos juros ou nos vários períodos a que a remuneração se refere, ou seja, naqueles sobre cujos patrimônios líquidos se aplicam as correspondentes TJLP.

Todas estas questões são sobejamente conhecidas, de modo que, sem necessidade de adentrar em detalhes, podemos passar ao trato da matéria, obviamente numa visão teórica e geral, sem ser dirigida a qualquer caso concreto e particular.

Façamo-lo passo a passo, passando a referir aos juros sobre o capital próprio simplesmente como JCP.

II - A Norma da Lei nº 9.249 perante o Regime de Competência em Tese e Aplicado aos Juros sobre o Capital Próprio

Como dito, a disciplina legal dos JCP está contida no art. 9º da Lei nº 9.249, do qual impende considerar suas partes que interferem diretamente no tema a ser abordado, que são as seguintes:

“Art. 9º A pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo - TJLP.

Parágrafo 1º O efetivo pagamento ou crédito dos juros fica condicionado à existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados.

(...)

Parágrafo 7º O valor dos juros pagos ou creditados pela pessoa jurídica, a título de remuneração do capital próprio, poderá ser imputado ao valor dos dividendos de que trata o art. 202 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sem prejuízo do disposto no parágrafo 2º.

Parágrafo 8º Para os fins de cálculo da remuneração prevista neste artigo, não será considerado o valor de reserva de reavaliação de bens ou direitos da pessoa jurídica, exceto se esta for adicionada na determinação da base de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido.”

Uma leitura analítica desse dispositivo legal, através da qual se inicia o processo da respectiva interpretação, demonstra que a dedutibilidade da remuneração a título de JCP depende:

- de haver pagamento ou crédito individualizado;

- de ser calculado com base na TJLP do espaço temporal de manutenção, na pessoa jurídica, do capital próprio a ser remunerado, ou seja, aplicada a taxa sobre o respectivo patrimônio líquido, proporcionalmente aos respectivos dias, ou seja, “pro rata die” para mais ou para menos, desconsiderada apenas a reserva de reavaliação ainda não tributada;1

- de ser obedecido o limite de 50% do lucro líquido do período em que houver o pagamento ou o crédito individualizado, ou dos lucros acumulados e das reservas de lucros de períodos anteriores.

Os embates fiscais em torno de casos nos quais o pagamento ou crédito individualizado de JCP, feito num período-base, abrange juros relativos a valores de patrimônio líquido existentes antes dele e a TJLP de períodos de tempo também anteriores, deve-se a que a Instrução Normativa SRF nº 11/1996 alude à observância do regime de competência.2

Embora a instrução normativa diga isto, pura e simplesmente, e nada mais, as autoridades fiscais têm subtraído das suas palavras as conclusões acima mencionadas, dando-se, por isso, início a inúmeras contendas.

Sendo assim, impõe-se começar compreendendo adequadamente o que é o chamado “regime de competência” em sua conceituação teórica genérica, para depois irmos ao mesmo conceito à vista especificamente da norma contida no art. 9º da Lei nº 9.249.

A expressão “regime de competência”, há muito adotada nas práticas contábeis, foi trazida para o Direito positivo brasileiro através da reforma legislativa de 1976/1977 (Lei nº 6.404, de 27 de dezembro de 1976, art. 177, e Decreto-lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, art. 6º e outros), e é entendida como significando o sistema de apropriação de mutações positivas e negativas, ao patrimônio de determinada empresa, segundo a aquisição dos respectivos direitos (quanto às receitas e aos rendimentos) ou o incorrimento nas respectivas obrigações (quanto a custos, despesas e perdas).

Por conseguinte, o regime de competência contrapõe-se ao “regime de caixa”, em que as mesmas mutações somente são reconhecidas quando recebidas ou pagas.

Claramente, o regime de competência é mais perfeito do que o de caixa, eis que o patrimônio não se constitui apenas pelo dinheiro detido (refletido nas contas caixa e bancos), mas, sim, pela totalidade das relações jurídicas do respectivo titular, atributivas dos seus direitos e obrigações com conteúdo econômico.3

Por isso mesmo, receitas a receber ou despesas a pagar, que no regime de caixa inexistiriam, são mutações patrimoniais reconhecidas no regime de competência.4

Neste momento, interessa-nos entender o regime de competência exclusivamente quanto às despesas, embora, como iremos constatar, o que for visto e dito quanto a elas terá implicação direta na contraparte da pessoa jurídica que nelas incorrer, portanto, naquela que receberá os JCP.

Pois bem, há um antigo pronunciamento fazendário que, por sua precisão e concisão, lança luzes muito claras neste particular aspecto do regime de competência.

Trata-se do Parecer Normativo CST nº 58/1977, que sobrevive até hoje e, por seus predicados, é constantemente adotado na jurisprudência administrativa. A autoria desse ato normativo é do respeitado Auditor-fiscal e Conselheiro (inclusive Presidente do 1º Conselho de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais), Professor Urgel Pereira Lopes, que, a propósito, disse o seguinte:

“4.3. Finalmente, regime de competência costuma ser definido, em linhas gerais, como aquele em que as receitas ou despesas são computadas em função do momento em que nasce o direito ao rendimento ou a obrigação de pagar a despesa.

5. A primeira questão a examinar é a abrangência do que se entende por despesas pagas ou incorridas (art. 162, parágrafo 1º, do, RIR/75), em cotejo com o momento em que nasce a obrigação de pagar a despesa, relativo ao regime de competência referido no item anterior.[5]

6. Temos por assente que a obrigação de pagar determinada despesa (enquadrável como operacional) nasce quando, em face da relação jurídica que lhe deu causa, já se verificaram todos os pressupostos materiais que a tornam incondicional, vale dizer, exigível independentemente de qualquer prestação por parte do respectivo credor. Invariavelmente, tal despesa tem seu valor determinado ou facilmente quantificável. Este tipo de despesa guarda correspondência com o conceito de despesa consumida no mesmo exercício social, perfilhado por alguns compêndios de contabilidade.

7. Tais despesas, se pagas no próprio exercício em que nascerem as respectivas obrigações, são tranquilamente computáveis nesse mesmo exercício, e somente nele. São as despesas pagas, a que se refere o citado parágrafo 1º do artigo 162 do RIR/75. Despesas incorridas, de acordo com o mesmo dispositivo legal, e obrigatoriamente computadas como as pagas, são aquelas que, embora nascida a obrigação correspondente, o momento ajustado para pagá-Ias, ou seu vencimento, ou outra circunstância qualquer, determinam que o respectivo pagamento venha a ocorrer em exercício subseqüente.” (Destaques do original)

Certamente que tais afirmações são suficientes para se prosseguir, mas, antes, convém trazer à baila outro preciso pronunciamento da Administração Tributária, dado que ele se imbrica com a questão aqui tratada.

Este outro é o Parecer Normativo CST nº 110/1971, no qual se lê:

“2. Permite-se deduzir do lucro das pessoas jurídicas, para efeito do Imposto de Renda, as despesas pagas ou incorridas no ano-base da declaração de rendimentos, entendendo-se por incorridas as que embora realizadas e quantificadas não tenham sido pagas.

3. Assim, determinada despesa, originada de uma obrigação contratual ou da contraprestação de um serviço, porém, perfeitamente identificada, gera um passivo exigível enquanto não for paga e, logicamente, dedutível do lucro tributável.

4. Outra coisa será estimar-se um gasto, sem identificação e pretender-se onerar a conta de resultado, sem mesmo conhecer sua quantificação definitiva, mediante a constituição de uma reserva, ainda que sob a denominação de provisão.” (Destaques do original)

Em suma, no regime de competência, a despesa compete ao período-base em que nasce, em caráter definitivo e incondicional, a obrigação que lhe dá origem, segundo a norma jurídica (legal ou contratual) que a rege, embora ela não tenha sido necessariamente paga no mesmo período.

Outrossim, por se tratar de obrigação, esta necessariamente é contrapartida de um direito de outrem, motivo pelo qual este há que estar identificado, assim como o valor da obrigação deve estar determinado.

De posse destas noções gerais, é possível adentrar na perquirição do momento correto para a dedução da despesa com JCP e dos seus outros aspectos, destacando-se de pronto que as “despesas são computadas em função do momento em que nasce o direito ao rendimento ou a obrigação de pagar a despesa”, nos termos do retrotranscrito Parecer Normativo CST nº 58/1977. Também é necessário notar que a essência desse conceito está subjacente ao Parecer Normativo CST nº 110/1971, assim como consta de muitos outros atos fazendários e da jurisprudência.

Claro que as palavras destacadas no parágrafo precedente não são relevantes por terem sido ditas pelo parecerista oficial, mas, também, porque refletem o conceito inequivocamente correto, segundo a melhor doutrina e a própria lei.

Isto é assim porque nenhuma obrigação nasce do nada, mas, sim, de alguma relação jurídica que imponha a uma das partes o respectivo dever, e outorgue à contraparte o correspectivo direito.

Ora, no Estado de Direito, qualquer obrigação somente deriva da lei ou do contrato que rege a relação jurídica de cuja causa a obrigação seja consequência, assim como se dá com o correspondente direito.

Como se sabe, a causa do ato ou negócio jurídico (“causa substancial”, “causa jurídica”, “causa típica” ou “causa de atribuição patrimonial”, conforme a preferência verbal de cada autor) corresponde à função que ele desempenha no ordenamento jurídico, segundo a disciplina que a lei lhe outorga, ou seja, é a função (“função prática”, na dicção do Ministro Moreira Alves6) assegurada pela lei para a realização de atos da vida negocial, confundindo-se, destarte, com o conjunto da prestação e da contraprestação de cada negócio jurídico (ou do ato jurídico em sentido estrito, quando regido pela lei, e não por contrato), e, por conseguinte, com o efeito que ele produz.7

Quanto aos JCP, sua causa ou função é a remuneração dos sócios ou acionistas da pessoa jurídica em razão do capital que a ela aportaram e dos lucros e reservas que poderiam ter recebido,8 mas consentiram que ficassem retidos no patrimônio da empresa para, tanto quanto o capital social, serem empregados nas suas atividades econômicas.

Porém, como qualquer outro direito ou qualquer outra obrigação, o seu surgimento, quer dizer, o nascimento do direito de receber e da obrigação de pagar, depende de haver uma relação jurídica que os institua, e, portanto, necessariamente, da norma jurídica que reja essa relação.

“In casu”, a norma jurídica está contida no art. 9º da Lei nº 9.249, tendo vindo ao ordenamento para permitir esse tipo de remuneração aos sócios ou acionistas, em adição ao direito que é ínsito ao contrato de sociedade, que é o direito à participação nos lucros. Além disso, o art. 9º ao mesmo tempo prescreve o respectivo tratamento tributário.9

A nova remuneração, entretanto, não se constitui num direito originário da relação societária, inatingível em qualquer grau de consideração.

Este é um ponto da maior importância, pois há um direito imanente ao contrato de sociedade,10 direito que não pode ser negado pelo estatuto ou contrato social - o direito ao lucro -, por ser parte inerente ao próprio tipo contratual (à sua causa), embora seja passível de regulação interna quanto aos níveis possíveis de retenção de lucros na sociedade e de distribuição aos sócios. Nas sociedades por ações isto também é assim, ressalvado o dividendo mínimo obrigatório, que deve ser objeto de porcentual prefixado no estatuto, mas que, na omissão deste, é estabelecido pela lei.

Diferentemente, os JCP estão previstos na norma da lei, mas não há obrigatoriedade legal da sua distribuição, nem um mínimo legal a ser pago em cada exercício social, o que importa em dizer que somente há direito a ele, para os sócios ou acionistas, se houver previsão estatutária neste sentido.

Mais ainda, se houver previsão estatutária, há liberdade total para a respectiva disposição fixar a periodicidade de pagamento, a obrigatoriedade ou não do pagamento em cada exercício social ou período intermediário, e quaisquer outros termos ou condições. E, no extremo de o estatuto ou contrato social ser omisso, a liberdade é exercida por órgão diretivo da sociedade, “ad referendum” dos sócios ou acionistas.

Realmente, a lei não dispôs em contrário, limitando-se a permitir o pagamento de JCP como remuneração que deve ser calculada com base na TJLP aplicada sobre o capital próprio “pro rata die”, e a limitar a sua dedução fiscal à metade do lucro líquido do período-base ou dos lucros acumulados e reservas de lucros, além de autorizar imputá-los ao dividendo mínimo.

Na prática, é mais comum a existência de mera previsão estatutária de pagamento de JCP segundo deliberação deste ou daquele órgão diretivo, significando que os juros dependem de haver a deliberação.

Neste cenário legislativo e de prática geral, a obrigação de pagar JCP, e, portanto, o correspondente direito dos sócios ou acionistas, pode (deve) ser decomposta da seguinte maneira:

- sua fonte remota é a norma legal do art. 9º da Lei nº 9.249, que autoriza e regula as possíveis relações jurídicas a serem estabelecidas com a função de remunerar sócios ou acionistas pelo capital social, lucros acumulados e reservas mantidas na empresa (exceto a de reavaliação não realizada);

- sua fonte mediata é a norma estatutária que permite aos órgãos diretivos efetuar o pagamento dos juros, sem prefixar tempo, valores, termos ou condições;

- sua fonte imediata é a deliberação do órgão interno competente, que autoriza a distribuição de JCP e estabelece valores e demais condições do respectivo pagamento.

Antes dessa deliberação, não há JCP devidos. No momento em que a deliberação for tomada, e somente nele, isto é, somente a partir desse momento, há direito dos sócios ou acionistas aos JCP e, portanto, há obrigação da sociedade de pagá-los.

Antes não há obrigação, porque não há relação jurídica que a tenha estabelecido, quando muito havendo uma possível expectativa de direito dos acionistas, mas não direito que já tenham adquirido e que possam exercer.

Relembremo-nos de que o Código Civil de 1916 dizia o seguinte:

“Art. 74. Na aquisição dos direitos se observarão as seguintes regras:

(...)

III - Dizem-se atuais os direitos completamente adquiridos, e futuros os cuja aquisição não se acabou de operar.

Parágrafo único. Chama-se deferido o direito futuro, quando sua aquisição pende somente do arbítrio do sujeito; não deferido, quando se subordina a fatos ou condições falíveis.”

Aplicando-se as noções desse dispositivo legal aos JCP, verifica-se que, antes da deliberação para seu pagamento, o direito não está completamente adquirido porque não é atual, dada sua aquisição depender do fato falível de haver (ou não) a deliberação societária de distribuí-los. Nestas circunstâncias, o máximo que se pode dizer é que se trata de direito futuro não deferido, somente vindo a ser direito adquirido com a decisão do órgão societário, de pagamento dos JCP. Porém, a rigor nem há direito futuro, pois seu possível sujeito poderá ser outra pessoa, caso um sócio ou acionista atual deixe de participar do capital social antes da deliberação do pagamento dos juros.11

Essa disposição do Código Civil de 1916 não foi mantida na atual lei civil porque sua função era meramente explicitadora, dado que outras regras, mais específicas, dispunham concreta e normativamente sobre a matéria, assim como ocorre atualmente. Por esta razão, as noções explicativas que estavam contidas no art. 74 ainda podem ser adotadas para se interpretar qualquer situação de aquisição de direito e da correspondente obrigação, pois têm a ver com a definitiva constituição dos mesmos segundo a respectiva norma reguladora, seja esta legal ou contratual.

Ademais, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ainda determina, no parágrafo 2º do seu art. 6º, que “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição inalterável, a arbítrio de outrem”.

Entre as normas mais específicas e concretas, acima aludidas, as quais estão em sintonia com a Lei de Introdução, está aquela que prevê a aquisição do direito a termo, ou seja, o direito cuja aquisição já acabou de se operar em definitivo, porque não mais pendente de condição suspensiva ou de evento futuro e incerto, mas tem prazo para começo de exercício.12

Disso tudo exsurgem dois aspectos.

O primeiro é que não há direito adquirido antes de haver a deliberação autorizadora do pagamento, isto é, somente a partir da deliberação o direito estará adquirido definitivamente, ainda que a deliberação estabeleça uma data para a realização do pagamento. Neste caso, já desde a tomada da decisão passa a haver direito adquirido, embora a termo.

O segundo aspecto gira exatamente em torno do pagamento, dado que dificilmente ele se efetiva na mesma data em que tiver sido autorizado, pois:

- a deliberação pode prescrever uma data futura a partir da qual os pagamentos devam começar a ser feitos, caso em que o direito está adquirido incondicionalmente, mas subordinado a termo, portanto, somente podendo ser exercido a partir dessa data; ou

- a deliberação pode ser silente sobre data de pagamento, caso em que o direito está adquirido e é exercível imediatamente, mas, mesmo neste caso, razões práticas normalmente fazem com que o pagamento ocorra posteriormente.

Em qualquer desses casos, a despesa já está incorrida pela pessoa jurídica desde a data da deliberação, pois a respectiva obrigação já foi definitiva e incondicionalmente constituída.

Porém, para efeito de dedução fiscal esta circunstância não é suficiente. Pode parecer que esta afirmação seja contraditória com tudo quanto já foi dito em relação ao regime de competência, mas ela tem uma razão que a explica.

Realmente, apesar de a obrigação já ter sido constituída desde a deliberação, o parágrafo 1º do art. 9º da Lei nº 9.249 somente permite a dedução fiscal a partir do momento em que ela for cumprida no âmbito do direito privado mediante a efetivação do pagamento ou do crédito em conta individualizada do sócio ou acionista.

Isto se explica porque o regime de competência se constitui na regra geral acima descrita, mas nosso sistema legal relativo ao IRPJ e à CSL contém várias regras relacionadas à dedutibilidade de determinadas despesas ou custos, as quais estão inseridas no ordenamento jurídico a par da regra geral do regime de competência, sendo que algumas delas excepcionam, condicionam ou complementam tal norma geral.

Assim, ao lado das regras que existem para declarar a indedutibilidade de determinadas despesas ou custos, ou para limitar o valor dedutível, ou para condicionar a dedução a esta ou àquela circunstância, há outras que, excepcionalmente, estabelecem o momento da dedução em momento distinto daquele em que o encargo já esteja incorrido.

Além de haver inúmeros casos concretos desse tipo de normas, a própria definição legal de lucro real já alude implicitamente a elas, ao dizer que o “lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária” (Decreto-lei nº 1.598, art. 6º, e norma correspondente quanto à CSL, que é o art. 2º da Lei nº 7.689, de 15 de dezembro de 1988). As prescrições ou autorizações da legislação tributária, a que o dispositivo se refere, compõem o mencionado conjunto de normas específicas e particulares.

E o último dos ajustes acima mencionados - momento de dedução da despesa não coincidente com o do incorrimento na obrigação - inclusive está expressamente referido no parágrafo 4º do mesmo art. 6º do Decreto-lei nº 1.598, quando determina que “os valores que, por competirem a outro período-base, forem, para efeito de determinação do lucro real, adicionados ao lucro líquido do exercício, ou dele excluídos, serão, na determinação do lucro real do período competente, excluídos do lucro líquido ou a ele adicionados, respectivamente”.

Neste passo, entre as circunstâncias que ditam a tributação ou a dedução excepcionalmente feita fora do período-base que seria competente segundo a regra geral, pode estar o recebimento da receita ou o pagamento da despesa.

Pois bem, a dedutibilidade dos JCP depende dos seguintes dois eventos:

- primeiramente, depende de haver deliberação societária de pagamento, a qual institui a obrigação e a torna incorrida (regra geral para determinação da despesa incorrida); e,

- cumulativamente, depende de haver o pagamento ou crédito individualizado (regra específica aplicável aos JCP).

Deste conjunto normativo decorre mais uma consequência importante, que precisa ser levada em conta.

A norma legal da dedução apenas quando da efetivação do pagamento ou crédito individualizado acaba por determinar qual seja o período-base competente para receber a dedução da despesa, porque, sem uma destas circunstâncias, a despesa não é dedutível.

Destarte, se, por razões gerenciais, a direção da pessoa jurídica pretender considerar ano a ano (ou exercício social a exercício social) os JCP possíveis de serem pagos em cada um, mesmo que não haja deliberação de os pagar dentro desse lapso de tempo ou ao seu final, e decidir levar o respectivo encargo à despesa do período, independentemente de discutir aqui a normalidade desse procedimento sob o ponto de vista contábil,13 com certeza podemos afirmar que a despesa reconhecida contabilmente não será dedutível do lucro real do mesmo período-base, nem da base de cálculo da CSL, por ainda faltarem os requisitos da deliberação e do pagamento ou crédito individualizado.

O que ocorrerá com essa despesa está nitidamente delineado na (determinado pela) legislação tributária.

Realmente, segundo a norma do art. 9º da Lei nº 9.249, em combinação com o art. 13, inciso I, no momento da tomada da despesa na contabilidade a despesa terá que ser considerada como mera provisão indedutível,14 e será adicionada ao lucro líquido do período para apuração do lucro tributável respectivo, segundo o que dispõe o parágrafo 4º do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598.

Recuperando neste instante os conceitos dos Pareceres Normativos CST nos 110/1971 e 58/1977, quando do débito da despesa ao resultado a despesa não será dedutível por não ter nascido a obrigação de pagá-la, dada a inexistência de deliberação neste sentido, e também em virtude de a obrigação ainda não estar individualizada, inclusive quanto aos seus credores, nem de estar quantificada definitivamente, eis que o seu “quantum” dependerá da deliberação futura e dos limites a serem verificados na época do pagamento ou crédito individualizado. Por isto, nada mais será do que uma provisão indedutível.

Depois, no momento em que houver a deliberação e ocorrer o pagamento ou crédito individualizado, ou seja, quando houver uma deliberação societária que o determine e ele for efetivado, dar-se-á a possibilidade da dedução fiscal, por exclusão do lucro líquido desse período, a teor do mesmo parágrafo 4º. Isto será assim porque, nesse momento, o pagamento ou crédito individualizado, que extinguirá uma obrigação já existente, será feito a débito da provisão e não do lucro líquido desse período.

A consequência, portanto, da norma jurídica expressa no art. 9º da Lei nº 9.249 não é apenas a de condicionar a dedução fiscal ao pagamento ou crédito individualizado dos JCP, mas também a de estabelecer a regra pela qual se determina o período-base (ou o exercício, se se preferir) competente para a dedução da respectiva despesa.

Em conclusão, o período-base competente para a dedução da despesa de JCP é aquele em que, tendo havido a deliberação de pagamento, este ocorra efetivamente, ou seja feito crédito individual da obrigação de pagar.15

Isto também significa que os JCP calculados com base nos elementos de um período-base (PL, TJLP, lucros acumulados, reservas de lucro e lucro líquido), se deduzidos nesse período sem que nele tenha havido pagamento ou crédito individualizado, terão a dedução legitimamente glosada pelo Fisco.

Nesta situação, a despesa cairia na conceituação de provisão indedutível, dada pelo Parecer Normativo CST nº 110/1971 e corroborada pelo Parecer Normativo CST nº 58/1977, isto porque ainda não teria ocorrido o nascimento da obrigação.

Realmente, nesta situação, (1) inexiste previsão estatutária ou deliberação para distribuição de JCP, (2) o seu valor dependeria de futura decisão de distribuí-los, (3) o limite de dedutibilidade estaria dependente dos lucros acumulados e do lucro líquido do período em que, no futuro, viessem a ocorrer a deliberação e o pagamento ou crédito individualizado, e (4) somente após a deliberação os credores da obrigação estariam identificados e, portanto, somente então, alternativamente ao pagamento, poderia haver créditos individualizados dos JCP a pagar.

Pelo exposto, se a pessoa jurídica pretendesse deduzir os juros ano a ano nestas circunstâncias, estaria sujeita à correta glosa fiscal.

Foi dito acima que, na hipótese teórica de a empresa querer reconhecer contabilmente os encargos de JCP em cada exercício social, mesmo sem ter havido deliberação de pagamento, o débito seria indedutível independentemente da sua regularidade perante as normas contábeis.

Entretanto, é momento de voltar ao assunto com mais uma consideração, que, embora tenha em mente procedimentos contábeis, também diz respeito ao próprio regime de competência e, portanto, se aplica por igual ao tratamento tributário.

Além disso, ela é de suma importância porque distingue nitidamente as hipóteses usuais de juros, nas quais eles são dedutíveis pelo simples decurso do tempo, da hipótese dos juros a que se refere o art. 9º da Lei nº 9.249, que trata de juros revestidos de outras características.

Com razão, em condições normais de um contrato ou de uma obrigação legal que estabeleça juros sobre uma dívida, isto é, quando os juros fluem sem subordinação a qualquer condição, os juros são incorridos diariamente pela simples passagem do tempo e independentemente de qualquer ação do credor, segundo o brocardo latino “dies interpelat pro homine”. Destarte, a despesa compete ao período de tempo decorrido em cada período de apuração contábil.

Porém, nem sempre é assim, pois o princípio da competência dos exercícios requer mais cuidados, como explicou o Professor Eliseu Martins em trecho doutrinário oportunamente transcrito no Acórdão nº 107-06012, de 12 de julho de 2000 (1º Conselho, 7ª Câmara), que o adotou como razão de decidir, “in verbis”:

“Eliseu Martins, mestre dos mestres na arte da Contabilidade, em estudo absolutamente aplicável ao caso em questão, tratando do Regime de Competência das Instituições Financeiras, escreveu:

‘Regime de competência não é apropriação, pura e simples, das receitas financeiras por decorrência do tempo. Exige-se o cumprimento de todas as condicionantes que a teoria contábil nos impõe, e entre elas, a do alto grau de certeza de recebimento. Nos casos de operações com clientes com dificuldade de pagamento, deve-se cessar a apropriação de receita financeira ‘pro rata tempore’, deixando-se para reconhecê-
la, prudentemente, apenas no efetivo recebimento’. (Boletim Temática Contábil, 1990, nº 36, IOB Informações Objetivas).

Noutro, estudo, em artigo denominado ‘Ponderações sobre a provisão para créditos de liquidação duvidosa em instituições financeiras’, por tudo e em tudo aplicável ao caso em questão, anotou Eliseu Martins:

‘afinal, receita financeira apropriada por regime de competência só tem sentido econômico e contábil quando é muito alto o nível de segurança de seu recebimento’ (Informativo Dinâmico IOB nº 474, 1996).”

Destarte, esta é a regra contábil e fiscal para situações diferentes de um mútuo puro e simples, inclusive em situações como a aventada neste artigo, de reconhecimento de JCP antes de estarem incorridos por não haver previsão legal ou estatutária do seu pagamento, nem deliberação para a efetivação deste.

Neste caso, a despesa não é incorrida dia a dia do período de tempo que lhe dá base de cálculo (TJLP sobre PL do período), pois depende de um evento futuro e incerto. Neste caso, o direito somente estará completamente adquirido, e a obrigação constituída definitiva e incondicionalmente, quando houver deliberação de pagamento.

E, para efeitos fiscais, ainda se adiciona o condicionamento legal de haver o pagamento ou crédito individualizado. Deste modo, se a despesa for contabilizada após a deliberação, mas antes de haver o pagamento ou crédito individualizado, será corretamente considerada como incorrida para efeitos societários e contábeis, mas ainda será fiscalmente indedutível, mesmo tendo havido deliberação.

Em outras palavras, a descrição da hipótese de incidência da norma legal que autoriza a dedução fiscal dos JCP engloba o pagamento ou crédito individualizado dos mesmos, de tal arte que este evento (um deles) é parte do antecedente da norma legal, não apenas para determinar o momento da dedução, como também para estabelecer que a dedução será legalmente admitida somente se, e quando, ele ocorrer.

Portanto, antes do período-base em que houver a deliberação de pagar os JCP, qualquer débito dos mesmos ao resultado será representativo de um direito meramente potencial dos sócios ou acionistas, ou melhor, de uma simples expectativa de direito, que, na posição da pessoa jurídica devedora, representará provisão fiscalmente indedutível.

Vale considerar mais uma vez a disposição legal: “a pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio (...)”.

Nota-se nitidamente que o pagamento ou crédito individualizado integra a hipótese legal cuja efetiva ocorrência fática, em sua integralidade, portanto, também havendo pagamento ou crédito individualizado (somente se e quando ocorrer), desencadeia a incidência da parte dispositiva da respectiva norma, ou seja, a possibilidade de dedução do lucro tributável.

E não se observa a existência de qualquer outra condicionante para a dedução, além daquelas que o próprio “caput” do art. 9º e o seu parágrafo 1º estabelecem quanto ao cálculo dos JCP e ao seu limite de dedutibilidade.

Não se localiza, inclusive, qualquer determinação de prazo para pagamento ou crédito individualizado, ou de época em que ele deva ser feito, o que completa a liberdade legal para haver ou não pagamento de juros aos sócios ou acionistas, ou de quando pagá-los ou creditá-los.

Não é preciso dizer que a completude da norma está nela mesma, não sendo possível ao intérprete ou ao aplicador da lei acrescentar condições ou requisitos que nela não estejam previstos.16

Em conclusão de tudo, o período-base competente para a dedução fiscal da despesa de JCP é aquele em que houver o seu pagamento ou crédito individualizado, após estar constituída a obrigação através de deliberação do órgão societário detentor do poder de decidir sobre a matéria.

Por este motivo, é equivocado qualquer entendimento que proclame que a despesa competiria a cada ano sobre o qual os JCP sejam calculados mediante a aplicação da TJLP do mesmo sobre o respectivo patrimônio líquido. Nem poderia ser assim, porque a condicionante da dedução - pagamento ou crédito individualizado - seria de cumprimento impossível, eis que a cada ano não se sabe que pessoas irão no futuro receber o pagamento, ou a que pessoas deverão ser feitos no futuro os créditos individualizados (veja-se a nota (12) retro).

Do mesmo modo, é equivocada qualquer intelecção da norma que afirme ser obrigatório o pagamento dessa despesa em cada ano, ou que a dedução fiscal estaria condicionada ao pagamento no próprio ano a que os juros se refiram quanto ao seu cálculo (TJLP x PL, ambos do ano).

Em suma:

- a despesa somente nasce se estiver juridicamente constituída, o que, quando não houver previsão estatutária de obrigatória distribuição de JCP, somente ocorre quando houver deliberação do órgão competente;

- ademais, a despesa somente é dedutível se houver o pagamento ou crédito individualizado dos JCP, e somente é dedutível no período-base em que ocorrer um destes eventos, o qual, portanto, é o período-base competente.

Observe-se que a fixação do período-base competente para fins tributários, naquele em que houver o pagamento ou crédito individualizado, acarreta a consequência de que a menção, na norma legal, aos limites de 50% dos lucros acumulados ou reservas de lucros e 50% do lucro líquido, implica necessariamente que tais parâmetros são estabelecidos em relação ao próprio período-base na qual a despesa será deduzida.

Nem haveria razão lógica ou sistemática para ser diferente. Não por outra razão o Ato Declaratório Normativo Cosit nº 13/1996, declara que “o limite, para dedutibilidade, como despesa financeira, do valor dos juros (...) a título de remuneração do capital próprio, será de cinqüenta por cento do lucro líquido correspondente ao período-base do seu pagamento ou crédito, (...) ou dos saldos de lucros acumulados de períodos anteriores, o que for maior” (Destaques acrescentados).

Ademais, a possível dedução dos JCP, do montante do dividendo mínimo obrigatório a pagar em determinado exercício social, também revela que toda a estrutura de limitação está fincada no período em que ocorre o pagamento ou crédito individualizado.

III - A Instrução Normativa SRF nº 11/1996 e a Intelecção do seu Art. 29

No início deste artigo foi mencionado que setores fiscais adotam entendimento contrário ao acima exposto com base no art. 29 da Instrução Normativa SRF nº 11/1996, afirmando que a despesa competiria a cada ano, de tal modo que, não havendo pagamento ou crédito individualizado nesse ano, a despesa seria indedutível se o pagamento ou o crédito ocorresse depois dele.

Há quem enfrente esta discussão alegando que a instrução normativa seria ilegal, mas, a rigor, tal ilegalidade somente existiria se ela dissesse o que a fiscalização tem proclamado que ela diz.

Todavia, isto não é verdade, conforme se pode ver sem dificuldade.

Porém, antes de qualquer afirmação ou conclusão a este respeito, é preciso atentar para a redação da disposição normativa, e entender o que ela declara sem divergência com o conteúdo da sua própria declaração.

Pois bem, reza o “caput” do artigo:

“Art. 29. Para efeito de apuração do lucro real, observado o regime de competência, poderão ser deduzidos os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo - TJLP.”

Não se nota qualquer motivo para afirmar a ilegalidade da disposição normativa, nem para fundamentar a pretensão de que ela estabeleça que o período-
base competente seria aquele a que o cálculo dos JCP se refira (o período de manutenção do capital a remunerar), ou, ainda, para que o não pagamento ou crédito individualizado deles no mesmo período impediria a dedução posterior.

Na verdade, a instrução fiscal limita-se a repetir a norma legal e a acrescentar que seja “observado o regime de competência”.

Entretanto, não há qualquer palavra quanto à definição do que seja regime de competência, ou sobre qual seja o regime competente, porque isto depende de cada caso, isto é, do momento em que cada obrigação vai nascer concretamente segundo as normas estatutárias de cada pessoa jurídica, inclusive tendo-se presente que a lei também não obriga o pagamento anual ou em qualquer outro lapso temporal.

Precisar-se-ia de muita liberdade exegética para dizer que a alusão ao regime de competência traria automaticamente a ideia de que o período competente seria o da apuração do valor da remuneração, e não o do pagamento ou crédito individualizado, porque, para tanto, a instrução normativa teria que ter sido explícita e específica, e não se limitado a fazer mera e genérica referência ao regime de competência. Ademais, se assim tivesse feito, teria corrido o risco de extravasar o limite da legalidade, pois iria chocar-se frontalmente com o art. 9º da Lei nº 9.249 e com as demais normas legais já referidas.

É claro que a instrução normativa, na sua função explicitadora e esclarecedora dos órgãos fiscais, poderia ter descido ao detalhe de abordar as múltiplas hipóteses possíveis e expor o entendimento fazendário sobre o tratamento que cada uma teria perante o regime de competência, mas isto exigiria uma sucessão de regras muito mais extensas e detalhadas do que simplesmente a mensagem contida nas palavras “observado o regime de competência”.

Por isso mesmo, é equivocada a pretensão de retirar destas simples palavras a conclusão de que elas ditariam qual seria o período competente em todos os casos, independentemente do nascimento da obrigação, e que, além disso, vedasse a dedução posterior.

Neste particular, é oportuno recordar a advertência doutrinária:

“Atente-se para a advertência de Carlos Maximiliano, isto ao dosar-se a carga construtiva, cuja existência, em toda interpretação, não pode ser negada: ‘Cumpre evitar não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos’ Hermenêutica e Aplicação do Direito - Editora Globo, Porto Alegre - segunda edição, 1933 - página 118.”

Esta passagem foi extraída do Recurso Extraordinário nº 166.772-9-RS, julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 12 de maio de 1994, a despeito de a Corte ter reconhecido que o intérprete não é passivo, pois tem uma atitude construtiva na interpretação.17 Neste aspecto, disse o julgado:

“Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional em vigor. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No exercício gratificante da arte de interpretar, descabe ‘inserir na regra de direito o próprio juízo - por mais sensato que seja - sobre a finalidade que ‘conviria’ fosse por ela perseguida’- Celso Antonio Bandeira de Mello - em parecer inédito.”

Transposto o dito pelo tribunal e pela doutrina para o assunto aqui em análise, não se pode inserir no art. 29 da Instrução Normativa SRF nº 11/1996 qualquer ideia de que ele fixe o período-base competente no lapso de tempo a que o cálculo dos JCP se refira, até porque tal imaginária fixação estaria em total desacordo com toda a sistemática legal que disciplina o chamado, e meramente referido no art. 29, “regime de competência”.

Mais impossível ainda, em boa interpretação sistemática, seria afirmar que, da mera referência ao regime de competência, decorreria a impossibilidade de deduzir os JCP se pagos após o período-base a que eles competiriam, segundo tal interpretação equivocada.

Realmente, uma tal afirmação não conseguiria se sustentar ante a norma legal que regula a inobservância do regime de competência, a qual, como regra, não impede a dedução postergada, e, como exceção ou, mais propriamente, como disposição complementar da regra geral, prescreve as consequências da dedução postergada nas circunstâncias que descreve.

Esse comando normativo consta dos parágrafos 5º a 7º do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598, que tratam da inexatidão quanto à despesas e a quaisquer outros elementos formadores da base de cálculo do imposto, e não impedem a dedução em período que seja posterior ao competente.18

Segundo a regra legal, a despesa que compita a um período-base pode ser deduzida em outro posterior, porém observadas possíveis ingerências da postergação no valor do imposto que seria devido se o regime tivesse sido cumprido, tais como eventuais alterações de alíquotas ou influência na compensação de prejuízos fiscais.

Portanto, se o autor do art. 29 da Instrução Normativa SRF nº 21/1996 tivesse pretendido impedir qualquer dedução a destempo, contrariando a norma legal contida nos referidos dispositivos do Decreto-lei nº 1.598, teria tido a audácia de tornar ilegal a prescrição que estaria introduzindo, em atitude frontalmente contrária ao princípio constitucional da legalidade e aos limites dos atos de legislação complementar.

Todavia, não é de se crer que o autor do art. 29 tenha tido essa pretensão, a qual se apresenta tão somente nas indevidas interpretações desse artigo, ou na sua aplicação, quando pretendem estender o significado da simples alusão ao regime de competência. Pode ser ousadia ou fantasia de intérprete (Maximiliano), ou simples engano do intérprete ou aplicador, mas não da instrução normativa.

Deste modo, a conclusão final que se pode extrair dos parágrafos 5º a 7º do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598 é a seguinte: ainda que a despesa de JCP competisse a cada ano do período de tempo sobre o qual eles foram calculados, ainda assim a dedução no momento do seu pagamento ou crédito individualizado seria possível em caráter pleno, ou o seria em caráter limitado às consequências das restrições neles determinadas, neste caso somente quando existentes as circunstâncias fáticas neles descritas.

Ademais, ainda haveria necessidade do pagamento ou crédito individualizado, o qual a lei seguramente coloca como o fato determinador do período-base competente para a dedução fiscal das despesas com JCP.

Nesta toada, o acréscimo da expressão “observado o regime de competência”, contida no art. 29 em adendo ao que se encontra dito no art. 9º da lei, pode parecer supérfluo ou inútil.

Porém, é possível afirmar que, em interpretação da instrução normativa conforme à lei, sua utilidade reside na advertência ao aplicador da norma legal, de que em cada caso o regime de competência determinará a dedução no momento apropriado. Assim, não se deve descartar a possibilidade de que a alusão à observância do regime de competência tenha sido incluída na redação da instrução fazendária exatamente porque seu autor teve a percepção de que as variáveis seriam muitas, tais como haver ou não norma estatutária, ou haver norma estatutária para pagamento obrigatório em determinado período ou subordinado à futura deliberação etc.

O que não é possível, definitivamente, é atribuir à advertência da necessidade de observância do regime de competência qualquer sentido que, paradoxalmente, contrarie o próprio regime de competência em sua generalidade e, também, em particular, o período-competente segundo o art. 9º da Lei nº 9.249. E, ademais, que chegaria ao extremo de também violar os parágrafos do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598.

Neste sentido, e em estrita observância da lei, conclui-se que o sentido do art. 9º é de que o patrimônio líquido (capital próprio) pode produzir remuneração a título de juros aos sócios ou acionistas, mediante a aplicação da TJLP sobre o capital, lucros e reservas mantidos na sociedade, de modo proporcional (“pro rata” diariamente), de tal arte que a remuneração deve alcançar todo o tempo de permanência daqueles fundos em poder da empresa (exceto a de reavaliação, por força da disposição expressa do parágrafo 8º).

Sendo assim, não se pode confundir (1) o tempo de apuração do valor da remuneração, que é amplo na lei em virtude de ausência de norma limitadora, com (2) o período-base competente para a dedução, que é aquele em que se dá o pagamento ou crédito individualizado dos JCP, eis que a norma expressamente condiciona a dedução da despesa ao seu pagamento ou crédito em contas individuais.

Em outras palavras, não se pode deixar de notar que:

- há um tempo relacionado à remuneração, que é o tempo de existência e permanência “pro rata” do patrimônio líquido em poder da pessoa jurídica;

- há um momento no tempo em que a despesa se torna incorrida, que é aquele em que, por força de norma estatutária ou de decisão societária, nasce a obrigação de pagar JCP;

- há um momento a partir do qual a despesa é dedutível, que é o do efetivo pagamento ou crédito individualizado, o qual pode até ser posterior ao do incorrimento da despesa.

Bem entendida essa tripartição, pouca dúvida resta quanto à distinção lógica e à possível distinção factual entre o tempo da remuneração, o momento do incorrimento na obrigação e o momento da dedutibilidade da despesa.

Não bastasse, no parágrafo 1º do art. 9º também se encontra uma evidência, ainda que secundária, de que a lei não veda pagar hoje JCP calculados sobre período de tempo anterior ao presente período-base.

Esta evidência está na consideração dos lucros acumulados e reservas de lucros como possível base de cálculo do limite dos JCP no período-base presente. Se é possível tomá-los como limite, é porque também é possível tomar o PL dos períodos em que eles foram formados para calcular o valor a ser pago. Não fosse assim, ou seja, fossem os JCP vinculados em seu cálculo exclusivamente ao presente período-base, a lei teria limitado o seu valor apenas à metade do lucro líquido deste período.

Vale dizer que em alguns processos tem sido invocado, como justificação para entendimento contrário, o “princípio” da independência e autonomia dos exercícios, pretendendo-se estabelecer uma “amarração” do período-base da dedução com o de apuração da remuneração a título de JCP, bem como a impossibilidade de dedução em período-base posterior.

Porém, não é assim; ainda que exista autonomia e independência de cada exercício financeiro em relação aos demais, e seja isto que permite à lei vigente em cada um regular livremente, observado o princípio da anterioridade, a obrigação tributária relativa a cada período-base, bem como por isso mesmo os períodos-base de apuração da obrigação tributária, são autônomos e independentes.

Ocorre que nada disso tem algo a ver com a questão sob análise, que diz respeito a qual período-base pertence a dedução da despesa com JCP e como estes devem ser calculados e limitados, a começar porque o aludido princípio não tem a amplitude que precisaria ter para justificar a conclusão a que a se pretende chegar através dele.

Além disso, e na verdade, a importância da autonomia e da independência dos exercícios, no que diz respeito à dedução de despesas, perdeu muito da sua importância a partir do exercício financeiro de 1978, com a entrada em vigor do Decreto-lei nº 1.598.

É que, até então, a despesa que competisse a um exercício financeiro não poderia ser deduzida em outro, ainda que posterior, qualquer que fosse o motivo para a sua não dedução no exercício competente.

Em virtude disso, a autonomia e a independência dos exercícios convertiam-se em estanqueidade dos mesmos.

Todavia, o Decreto-lei nº 1.598 veio alterar radicalmente o sistema até então existente, pois, a despeito de prestigiar o regime de competência, e de fazê-lo com rigor ao tratar, com mais detalhes do que o direito anterior, da sua configuração, exatidão e inexatidões, inclusive das consequências destas, também passou a permitir as deduções extemporâneas.

Assim sendo, carece de adequado suporte na lei vigente invocar independência e autonomia de exercícios para dizer que JCP não podem ser calculados sobre períodos de tempo anteriores ao período-base em que são pagos e deduzidos, no mínimo por contrariar frontalmente os parágrafos 5º a 7º do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598, porém por contrariar também todo o sistema normativo.

IV - Exercício de Faculdade, Renúncia e Decadência

Em consequência do exposto no capítulo precedente, não é correto falar em deliberação ou pagamento dos JCP “no devido tempo”, sob pena de “renúncia” ou de “preclusão por decurso do prazo devido”, como falam muitos agentes fiscais depois de observarem que a lei não obriga à dedução dos JCP, mas outorga a faculdade de tomá-la.

Dizem que, não exercida a faculdade no devido tempo, haveria renúncia do direito correspondente a ela, e preclusão pelo decurso do seu prazo de exercício.

Mas, que tempo e que prazo são estes? Concedidos por quem e onde? Claro que não estão no art. 9º da Lei nº 9.249, que não fixa prazo para o exercício do direito nem declara preclusão se não observado esse prazo.

Portanto, o não pagamento ou crédito individualizado num determinado período não importa em impossibilidade de que a remuneração relativa a esse mesmo período venha a ser deduzida no futuro, quando paga ou creditada individualmente, pois:

- por um lado, a lei não determina haver preclusão; e

- por outro lado, não há renúncia por qualquer sujeito de direito.

A rigor, a própria palavra “preclusão” não tem sido bem empregada, pois se trata de termo precipuamente referido à preclusão processual, no sentido de que um ato do processo deve ser exercido num devido tempo, sob pena de não poder vir a sê-lo posteriormente.

Porém, o fundamental é que a preclusão depende de norma legal que a estipule, a qual não é encontrada no art. 9º da Lei nº 9.249 ou em qualquer outro lugar do ordenamento em vigor.

Do mesmo modo, a renúncia tem que ser manifestada expressamente pelo titular de um direito que não queira exercê-lo agora e no futuro. Admite-se que a renúncia possa ser tácita ou presumida em decorrência da simples omissão da prática de um ato pelo qual se exerceria o direito, mas ela somente é admissível quando cominada pela lei,19 como é o caso dos dividendos declarados mas não reclamados pelo acionista no prazo previsto estatutariamente.

Ora, isto não ocorre com o art. 9º da Lei nº 9.249, nem geralmente há previsão estatutária de que os JCP devam ser pagos em cada exercício social e de que, caso não pagos, ou pagos e não recebidos em determinado período de tempo, eles caducarão em favor da sociedade.

Portanto, não há renúncia, sequer tácita ou por omissão.

Ademais, em tese seria possível renúncia se já houvesse o direito aos JCP e algum sócio ou acionista não os quisesse receber, mas isto somente poderia ocorrer a partir da existência do direito pela ocorrência da decisão da pessoa jurídica de pagá-los, quando haverá titulares de direito que possam renunciar a ele. Antes não há direito a ser renunciado, mas mera faculdade da pessoa jurídica pagar ou não pagar JCP, situação em que nenhum sócio ou acionista sabe se virá a ter direito no futuro (até porque, quando da deliberação de pagamento, poderá não ser mais integrante do quadro social), sendo descabido falar em renúncia a algo tão distante de poder eventualmente vir a existir.

Nem há que se falar em renúncia do direito de deduzir a despesa antes de ter ocorrido o pagamento ou crédito individualizado, pois sem este não há o direito à dedução.

Portanto, se não há renúncia ao direito de receber JCP, muito menos há renúncia à dedução fiscal.

E, mesmo que tivesse ocorrido o pagamento ou crédito individualizado dos JCP e a não dedução da respectiva despesa, esta ainda poderia ocorrer posteriormente nos termos dos parágrafos do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598, assim como também caberia a repetição do indébito relativa ao tributo pago a maior pela falta de dedução.

Três obstáculos legais se opõem à infundada pretensão fiscal de não permitir a dedução após o período a que a remuneração do capital próprio se refere quanto ao seu cálculo, sendo que dois já foram mencionados inúmeras vezes, quais sejam: (1) o art. 9º da Lei nº 9.249 não prefixa prazo para pagamento, e (2) mesmo que o tivesse feito, a dedução posterior seria admitida nos termos dos parágrafos 5º a 7º do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598.

Porém, o terceiro ponto é mais contundente nesta questão da “preclusão” que, na verdade, é de decadência de direito.

Realmente, há norma legal expressa sobre a decadência de todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Pública, e essa norma está no antigo Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, o qual continua em vigor e tem força de lei.

O art. 1º desse diploma legal reza:

“Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.”

Como a redação do dispositivo adotou o verbo “prescrever”, que se distingue de “decair”, já muito se discutiu sobre o sentido da norma, mas atualmente há entendimento estratificado de que ela trata tanto da prescrição das ações contra os poderes públicos quanto da decadência dos direitos contra eles.

Não há muita dificuldade nesta conclusão, primeiramente porque o debate se trava no âmbito literal da palavra “prescrever”, quando se sabe que a melhor interpretação jurídica não se restringe à interpretação meramente gramatical, principalmente de uma palavra isolada do contexto da norma em que está inserida, e também do restante do ordenamento jurídico.

Em segundo lugar, o próprio art. 1º alude tanto a “qualquer direito” quanto à “ação”, portanto, colocando decadência daquele e prescrição desta sob a mesma norma, ainda que melhor teria sido distinguir as duas situações com termos jurídicos precisos, ao invés de resumir as duas hipóteses sob o verbo “prescrever”.

De qualquer modo, a jurisprudência e o próprio Fisco federal vêm aplicando pacificamente o Decreto nº 20.910 em inúmeros casos dentro da seara tributária, e quanto a direitos substantivos do contribuinte, declarando-os expirados apenas após o decurso do prazo de cinco anos previsto nesse diploma legal.

Assim, tomando como base a norma do art. 1º do diploma legal regulador da decadência dos direitos contra a Fazenda Pública, que coloca o termo inicial do prazo de cinco anos na “data do ato ou fato do qual se originarem” esses direitos, no caso concreto do art. 9º da Lei nº 9.249 a rigor não há decadência do direito de dedução da despesa de JCP antes de se esta ter-se tornado obrigatória e de ter sido paga ou creditada individualizadamente, situando-se o termo inicial do prazo decadencial na data de encerramento do período-base em que a dedução poderia ter sido tomada em virtude da ocorrência do pagamento ou do crédito individualizado dos juros.

Antes de encerrar, vale formular um paralelo entre o regime de dedução de JCP e o de dedução fiscal das depreciações.

Este paralelo não necessário para a solução da questão relativa aos JCP, mas é possível e interessante, porque a depreciação de bens do ativo imobilizado expressa a perda decorrente do desgaste desses bens ao longo do tempo tanto quanto os JCP remuneram o capital próprio ao longo do tempo. Além disso, a depreciação também é facultativa, pois pode ser deduzida ou não, total ou parcialmente, e, tanto quanto os JCP, tem limites periódicos de valor máximo dedutível.

Recorde-se o que diz a Lei nº 4.506, em seu dispositivo hoje refletido no art. 305 do RIR/1999:

“Art. 57. Poderá ser computada como custo ou encargo, em cada exercício, a importância correspondente à diminuição do valor dos bens do ativo resultante do desgaste pelo uso, ação da natureza e obsolescência normal.”

Ou seja, tal como a despesa com JCP, a lei fiscal admite (não obriga) - “poderá ser computada” - a dedução da depreciação pelo decorrer dos períodos-base, um após o outro, e, tal como com os juros, a dedução é tomada “em cada exercício”.

Isto, contudo, tal como ocorre com os JCP, não impede que o não exercício do direito de dedução num período seja retomado em período futuro.

Realmente, diz o Parecer Normativo CST nº 79/1976, com todas as letras, inclusive espancando a ocorrência de renúncia:

“Respeitados os limites, mínimo de tempo e máximo de taxas, a pessoa jurídica tem a faculdade de computar ou não a depreciação dos bens do ativo em qualquer percentual. A omissão, ou uso de taxas normais ou inferiores, em um ou mais exercício, não pressupõe renúncia do direito à utilização de taxas de depreciação acelerada, quando for o caso.” (Destaques acrescentados)

A partir desse parecer, desapareceu qualquer controvérsia quanto a que a não dedução, no todo ou em parte, da depreciação admitida num período-base não impede que o valor não depreciado nesse período venha a ser deduzido em outro posterior.20

Neste sentido, prossegue o parecer fiscal:

“2. A depreciação dos bens do ativo é uma faculdade, não uma obrigação, conforme se depreende da análise literal dos dispositivos do Regulamento do Imposto de Renda que tratam da matéria: art. 193, § 2º (normal), § 3º (por turno de trabalhos), §§ 4º e 5º (uso em condições anormais), e 194 e parágrafos (por incentivo fiscal). Essa afirmativa é fundada nos vocábulos ‘poderá’ e ‘poderão’, insertos no início dos artigos citados. Assim, não há obrigatoriedade de se efetuar a depreciação em todos os exercícios financeiros de atividade da empresa. A legislação tributária fixa percentuais máximos e períodos mínimos de depreciação, não proibindo a empresa de apropriar quotas inferiores às permitidas, ou mesmo deixar de depreciar.

3. Além disso, como a incidência do imposto de renda é baseada em espaços de tempo perfeitamente delimitados, (art. 127, ‘caput’, § 1º do art. 135 e 221 ‘caput’ do RIR/75), é de se admitir que a opção por qualquer das formas de depreciação seja efetuada em cada um dos exercícios. Logo, a empresa poderá utilizar-se ora da depreciação normal, ora da depreciação acelerada, se a esta tiver direito.

4. Porém, se a empresa adotar qualquer taxa de depreciação inferior à permitida, as importâncias não apropriadas não poderão ser recuperadas posteriormente através da utilização de taxas superiores às máximas anualmente permitidas para cada exercício e para cada bem em especial.”

A jurisprudência seguiu neste mesmo sentido, como ocorreu, por exemplo, com o Acórdão nº 101-94975, de 18 de maio de 2005, da 1ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes. Esse julgado afirma que o direito à depreciação pressupõe o exercício de uma opção, embora sujeita aos requisitos legais, “de tal sorte que as importâncias não apropriadas num determinado exercício não poderão ser apropriadas em percentual maior que o permitido em outro período como forma de recuperar a depreciação feita a menor”. E arremata: “Entretanto, permanece o direito do contribuinte de exercer nos anos subseqüentes a quota de depreciação não utilizada nos períodos pretéritos.”

Para citar mais um caso, o Acórdão nº 101-95022, de 15 de junho de 2005, manifestou igual entendimento, inclusive fazendo referência ao Parecer Normativo CST nº 79/1976 e também ao Parecer Normativo CST nº 57/1979, este para ressalvar os parágrafos do art. 6º do Decreto-lei nº 1.598, quando aplicáveis.

A alusão a este último parecer normativo é interessante não apenas pelo aspecto da possibilidade de postergar a dedução, mas também porque ele reflete aquela mudança de preceito que foi mencionada anteriormente quanto à competência, a autonomia e a independência dos exercícios, mudança que o Decreto-lei nº 1.598 introduziu em relação à legislação passada. Quanto a isto, diz o parecer:

“Após a vigência do Decreto-lei 1.598, de 26 de setembro de 1977, a inobservância do regime de competência na escrituração de receita, dedução ou reconhecimento de lucro, só tem relevância, para fins do imposto sobre a renda, quando dela resulte prejuízo para o Fisco, traduzindo em redução ou postergação de pagamento de imposto.”

Note-se, ademais, que, igualmente ao que ocorre com os JCP, a dedução da depreciação é permitida posteriormente ao período em que poderia ter sido tomada, mas não é tolerado que o montante a ser deduzido nesse período posterior exceda a taxa máxima a ele correspondente. Pois é exatamente o que ocorre quando os JCP sobre o patrimônio líquido de um período-base venham a ser deduzidos somente em período posterior, quando pagos ou creditados individualizadamente, caso em que o limite de dedutibilidade é a metade do seu lucro líquido ou a metade dos lucros acumulados e reservas de lucros nele existentes.

V - Conclusão

Tendo em vista todos os fundamentos apresentados, conclui-se que:

- a lei permite a remuneração do capital próprio a título de JCP, sem delimitar o tempo e o prazo para cálculo da mesma;

- a lei permite a dedução dessa remuneração somente quando incorrida a despesa, mediante deliberação do órgão societário competente;

- além disso, a lei somente permite a dedução da despesa se ela tiver sido efetivamente paga ou creditada em contas individualizadas dos sócios ou acionistas, mas não determina qualquer momento ou periodicidade para a efetivação do pagamento ou crédito individualizado, assim como para o respectivo cálculo;

- destarte, o período-base competente para a dedução da despesa é aquele em que, já tendo havido deliberação de pagamento, este tenha efetivamente ocorrido, ou tenha sido substituído por créditos individualizados;

- a dedução da despesa é limitada a 50% do lucro líquido do período-base competente, isto é, daquele em que ocorrer o pagamento ou crédito individualizado, ou a 50% dos lucros acumulados e reservas de lucro nele existentes;

- não há confusão nem identidade entre o tempo de manutenção do capital próprio a ser remunerado, e o momento no tempo em que o pagamento ou crédito individualizado possa ocorrer e a dedução possa ser tomada;

- por isso, é possível pagar ou creditar a remuneração num período e calcular o seu montante com base na TJLP aplicada sobre o patrimônio líquido (capital próprio) de anos anteriores, e a dedução, no período em que ocorrer o pagamento ou crédito individualizado, será possível até os limites de lucro líquido ou de lucros acumulados e reservas de lucro deste período.

1 Também deve ser desconsiderada, nas mesmas circunstâncias, a conta de ajustes de avaliação patrimonial.

2 Algumas vezes também é feita menção ao art. 4º da Instrução Normativa SRF nº 41/1998, o qual, contudo, não trata de despesa, pois diz: “Art. 4º Na hipótese de beneficiário pessoa jurídica o valor dos juros creditados ou pagos deve ser escriturado como receita, observado o regime de competência dos exercícios.”

3 Neste sentido, veja-se o art. 57 do Código Civil de 1916 e a interpretação que a doutrina lhe atribuía, em combinação com o art. 91 do atual código (“Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”), e se considere a descrição pormenorizada do patrimônio empresarial contida nos art. 182, 183 e 184 da Lei nº 6.404 (OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda, Quartier Latin, São Paulo, 2008, Capítulo I).

4 Neste sentido, veja-se o parágrafo 1º do art. 187 da Lei nº 6.404.

5 O art. 162 do RIR/1975 corresponde ao art. 299 do RIR/1999, por ter fundamento legal no art. 47 da Lei nº 4.506.

6 ALVES, José Carlos Moreira. “As figuras correlatas da elisão fiscal”. Revista Fórum de Direito Tributário nº 1, Fórum, Belo Horizonte, 2003, p. 11; idem, na palestra inaugural do XVIII Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária, publicada no livro Pesquisas Tributárias - Nova Série - 10, coedição do Centro de Extensão Universitária e da RT, São Paulo, 2004, p. 13.

7 No Código Civil encontramos a expressão “fim econômico ou social”, no art. 187, e “função social do contrato”, no art. 421, ambas significando a causa do negócio. No mesmo sentido é a expressão “substância” do negócio jurídico, adotada nos art. 167 e 173.

8 Esta função também se estende às reservas de capital, porque representam contribuições para o patrimônio empresarial, tanto quanto o capital social.

9 Embora haja respeitáveis opiniões em contrário, a norma do art. 9º não é apenas de natureza tributária, no sentido de que seu objeto é o tratamento fiscal aos JCP, impressão esta que deflui da parte inicial da redação do seu “caput”. A despeito disso, a totalidade da norma, contida no “caput” e nos parágrafos, também tem por objeto as relações societárias. De mais a mais, como o direito positivo é uno, a divisão em normas tributárias e normas de direito privado é didática, caracterizando-se umas e outras pelos respectivos objetos, e nada impedindo que uma única disposição legal contenha norma de direito privado e norma de Direito Tributário, tal como ocorre com o art. 9º em análise.

10 “Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.”

11 Esta constatação é reforçada pela exigência, para que a despesa seja dedutível, de que haja pagamento ou crédito individualizado, dado que somente é possível pagar se houver um credor conhecido e capaz de receber o pagamento e passar a respectiva quitação, do mesmo modo que somente se pode fazer um crédito individualizado a determinada pessoa se ela estiver identificada.

12 Código Civil: “Art. 131. O termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito”, correspondente ao art. 123 do Código de 1916.

13 Não obstante, vale lembrar o que diz o CPC nº 15 no item 18: “18. As demonstrações contábeis tratam da posição financeira da entidade no fim do seu período de divulgação e não da sua possível posição no futuro. Por isso, nenhuma provisão é reconhecida para despesas que necessitam ser incorridas para operar no futuro. Os únicos passivos reconhecidos no balanço da entidade são os que já existem na data do balanço.” E também o item 20: “20. Uma obrigação envolve sempre outra parte a quem se deve a obrigação. Não é necessário, porém, saber a identidade da parte a quem se deve a obrigação - na verdade, a obrigação pode ser ao público em geral. Em virtude de obrigação envolver sempre compromisso com outra parte, isso implica que a decisão da diretoria ou do conselho de administração não dá origem a uma obrigação não formalizada na data do balanço, a menos que a decisão tenha sido comunicada antes daquela data aos afetados por ela de forma suficientemente específica para suscitar neles uma expectativa válida de que a entidade cumprirá as suas responsabilidades.”

14 Lei nº 9.249: “Art. 13. Para efeito de apuração do lucro real e da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido, são vedadas as seguintes deduções, independentemente do disposto no art. 47 da Lei n. 4.506, de 30 de novembro de 1964: I - de qualquer provisão, exceto as constituídas para o pagamento de férias de empregados e de décimo-terceiro salário, a de que trata o art. 43 da Lei n. 8.981, de 20 de janeiro de 1995, com as alterações da Lei n. 9.065, de 20 de junho de 1995, e as provisões técnicas das companhias de seguro e de capitalização, bem como das entidades de previdência privada, cuja constituição é exigida pela legislação especial a elas aplicável.”

15 Esta é a regra a ser aplicada na generalidade dos casos de pagamento de JCP, e supondo o pagamento dentro do próprio período-base. Todavia, como o crédito individualizado é alternativa da condição de pagamento, pode ocorrer crédito em contas a pagar num período-base e pagamento em outro (por exemplo, quando o reconhecimento da despesa se dá no encerramento do exercício social). Neste caso, inclusive, há correlação entre o débito da despesa e os limites de lucro líquido e lucros acumulados e reservas de lucro desse período.

16 Basta mencionar o seguinte emblemático trecho da lavra do falecido Conselheiro Carlos Alberto Gonçalves Nunes, membro destacado do 1º Conselho de Contribuintes e da Câmara Superior durante décadas, no Acórdão nº CSRF/01-0571, de 20 de setembro de 1985, que se referiu à seguinte passagem do seu voto quando relatou o Recurso nº 89.103 perante a 1ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes: “Por outro lado, quando a lei fiscal restringe os efeitos de benefícios concedidos, o faz de modo expresso e, na espécie, isso não aconteceu, e, assim, não se pode estabelecer a restrição pretendida pela autoridade fiscal. A lei tributária é necessária e suficiente à outorga de isenção; necessária na medida em que somente ela poderá conceder o benefício e estabelecer as condições para o seu exercício, e, suficiente, porque nenhum outro pressuposto ou limitação de qualquer espécie poderá ser adicionado pela autoridade administrativa, à sombra dela. (...) De há muito nos ensinaram os mestres da exegese que, onde a lei não distingue, restringe ou condiciona, ao intérprete é vedado fazê-lo, sob pena de o hermeneuta assumir o papel do legislador e assim estabelecer novas regras jurídicas, sem competência para tal.” (Destaque aposto)

17 A este propósito, Marco Aurélio Greco afirma: “Em outras palavras, as considerações até aqui feitas levam à conclusão de que o intérprete tem papel positivo na construção do significado da lei (não é mero espectador), sua função é mais ampla. Mas, este papel positivo e o poder de que está investido não é absoluto e ilimitado, pois, se o fosse, cairíamos num subjetivismo puro, incompatível com o mínimo de previsibilidade das conseqüências legais, desnaturando a lei que deixaria de ser uma pauta de conduta, para ser um simples pretexto para a tomada de certa decisão e imposição de certo significado.” (“Cofins na venda de imóveis”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 51, Dialética, São Paulo, 1999, p. 125)

18 “Parágrafo 5º A inexatidão quanto ao período-base de escrituração de receita, rendimento, custo ou dedução, ou do reconhecimento de lucro, somente constitui fundamento para lançamento de imposto, diferença de imposto, correção monetária ou multa, se dela resultar: a) a postergação do pagamento do imposto para exercício posterior ao em que seria devido; ou b) a redução indevida do lucro real em qualquer período-base. Parágrafo 6º O lançamento de diferença de imposto com fundamento em inexatidão quanto ao período-base de competência de receitas, rendimentos ou deduções será feito pelo valor líquido, depois de compensada a diminuição do imposto lançado em outro período-base a que o contribuinte tiver direito em decorrência da aplicação do disposto no parágrafo 4º. Parágrafo 7º O disposto nos parágrafos 4º e 6º não exclui a cobrança de correção monetária e juros de mora pelo prazo em que tiver ocorrido postergação de pagamento do imposto em virtude de inexatidão quanto ao período de competência.”

19 O Código Civil rege inúmeras hipóteses.

20 E note-se que esse parecer normativo é anterior ao Decreto-lei nº 1.598, portanto, emitido quando ainda vigia a estanqueidade dos exercícios referida anteriormente. Mesmo assim, por se tratar de dedução facultativa, o parecer não considerou haver renúncia e corretamente declarou a possibilidade de dedução posterior.