Algumas Notas sobre o Imposto sobre Serviços1

Alcides Jorge Costa

Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Resumo

Este artigo destaca e analisa o tema da história do Imposto sobre Serviços.

Palavras-chave: Direito Tributário, imposto sobre serviços, história da tributação no Brasil.

Abstract

This article highlights and analyses the subject of the history of Brazilian VAT over services (ISS).

Keywords: Tax Law, VAT over services, tax history in Brazil.

1. Entre os impostos que competia aos Municípios cobrar, destacava-se o de Indústrias e Profissões (artigo 29 da Constituição Federal de 1946). Tratava-se de imposto conhecido por esse nome que, na Constituição de 1934, era atribuído aos Estados e que, dada a imprecisão de sua denominação, prestava-se a um conteúdo diversificado, como tinha de fato. De modo geral, tributavam-se serviços, mas também estabelecimentos comerciais e industriais, caso em que a base de cálculo era a receita bruta do estabelecimento tributado.

2. Imposto antiquado, Bernardo Ribeiro de Moraes, que trata do assunto com proficiência, afirma que este tributo foi criado pelo Alvará de 20 de outubro de 1812, com a finalidade de obter fundos para a cobertura das obrigações do Erário Real como acionista do Banco do Brasil (Teoria e prática do Imposto de Indústrias e Profissões. Tomo I. Max Limonad, São Paulo, s/d, p. 15-16).

A reforma do sistema tributário empreendida em 1965, e que se consubstanciou na Emenda nº 18 à Constituição de 1946, decidiu eliminar o imposto de indústrias e profissões. Esta EC nº 18/1965 atribuiu aos Municípios um ICMS a ser cobrado com base na legislação estadual respectiva e a uma alíquota não superior a 30% da alíquota do ICMS estadual, cabendo lembrar que nos termos da mesma emenda constitucional, a alíquota deste devia ser uniforme para todas as mercadorias. A mesma EC nº 18/1965 atribuía ainda aos Municípios competência para cobrar o imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência tributária da União e dos Estados, acrescentando no parágrafo único ao artigo 15 que “Lei complementar estabelecerá critérios para distinguir as atividades a que se refere este artigo das previstas no artigo 12”. Este artigo 12 era o que cuidava do ICM.

3. O imposto municipal sobre circulação de mercadorias foi revogado mesmo antes de entrar em vigor o novo sistema tributário nacional, o que ocorreu em 1º de janeiro de 1967. De fato, o Ato Complementar nº 31, de 28 de dezembro de 1966, dispôs em seu artigo 10:

“O presente Ato Complementar entrará em vigor na data da sua publicação, ficando revogados os artigos 59 a 62 da lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, e demais disposições em contrário.”

Interessante notar que o imposto municipal sobre circulação de mercadorias constava da EC nº 18 à Constituição de 1946 e, consequentemente, foi incluído na Lei nº 5.172/1966. O Ato Complementar nº 31/1966, acima citado, revogou dispositivos da Lei nº 5.172/1966 (CTN), mas não da EC nº 18/1965. Entretanto, para todos os efeitos, considerou-se revogado o imposto municipal sobre circulação de mercadorias, sem jamais ter sido invocada a prevalência do texto constitucional. De resto, esta invocação não teria consequência prática, dado que, em 24 de janeiro de 1967, foi promulgada nova constituição que encampou a EC nº 18/1965 com as alterações já ocorridas.

4. Mas voltemos ao ISS. Como a EC nº 18/1965 suprimiu o imposto de indústrias e profissões e, portanto, uma boa fonte de receita para os Municípios, era imperioso dar a estes uma nova fonte de receita. E assim foi-lhes atribuído o ISS.

A EC nº 18/1965 falava em imposto municipal sobre circulação de mercadorias, e sua revogação no texto da Lei nº 5.172/1966, por via de ato complementar, não teve consequências práticas porque, logo a seguir, ou seja, em 24 de março de 1967, foi promulgada nova Constituição que, nos termos de seu artigo 15, entraria em vigor, como entrou, em 15 de março de 1967. Mas, via atos complementares, entre os quais o de nº 36/1967 que deu à Lei nº 5.172/1966 o nome de Código Tributário Nacional, o CTN já se havia adequado à nova Constituição.

A Emenda Constitucional nº 18/1965 dispunha em seu artigo 15:

“Compete aos Municípios o imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência tributária da União e dos Estados.

Parágrafo único. Lei complementar estabelecerá critérios para distinguir as atividades a que se refere este artigo das previstas no art. 12.”

O artigo 12 tratava do imposto sobre circulação de mercadorias.

5. O CTN, por seu turno, tratou do ISS em seu artigo 71, a seguir transcrito, já introduzidas as alterações determinadas pelo Ato Complementar nº 34, de 31 de janeiro de 1967, e pelo Ato Complementar nº 35, de 28 de fevereiro de 1967:

“Art. 71 - O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço que não configure, por si só, fato gerador de imposto da competência da União ou dos Estados.

§ 1º Para os efeitos deste artigo, considera-se serviço:

I - o fornecimento de trabalho, com ou sem utilização de máquinas, ferramentas ou veículos, a usuários ou consumidores finais;

II - a locação de bens imóveis (O Ato Complementar nº 27, de 8-12-66, substituiu a palavra ‘imóveis’ por ‘móveis’);

III - a locação de espaço em bens imóveis, a título de hospedagem ou para guarda de bens de qualquer natureza.

§ 2º As atividades a que se refere o parágrafo anterior quando acompanhadas do fornecimento de mercadorias, serão consideradas de caráter misto para efeito de aplicação do disposto no § 4º do art. 53, salvo se a prestação do serviço constituir o seu objeto essencial e contribuir com mais de 75% (setenta e cinco por cento) da receita média mensal da atividade.

Art. 72 - A base de cálculo do imposto é o preço do serviço salvo:

I - quando se trate de prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, caso em que o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço e outros fatores pertinentes, não compreendida nestes a renda proveniente da remuneração do próprio trabalho;

II - quando a prestação do serviço tenha como parte integrante operação sujeita ao imposto de que trata o art. 52 (ICM), caso em que este imposto será calculado sobre 50% (cinquenta por cento) do valor total da operação.”

6. Mas a evolução não havia chegado ao fim. Sobrevieram outras alterações pelos Atos Complementares nº 35, de 28 de fevereiro de 1967, e nº 36, de 13 de março de 1967. Estas alterações via Atos Complementares foram feitas já em plena vigência de novo sistema tributário. Por fim, o artigo 71 do CTN tinha a seguinte redação:

“Art. 71. O imposto de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço que não configure, por si só. Fato gerador de imposto de competência da União ou dos Estados.

§ 1º Para os efeitos deste artigo considera-se serviço:

I - locação de bens móveis;

II - locação de espaço em bens imóveis, a título de hospedagem ou para guarda de bens de qualquer natureza;

III - jogos e diversões públicas;

IV - beneficiamento, confecção, lavagem, tingimento, galvanoplastia, reparo, conserto, restauração, acondicionamento, recondicionamento e operações similares, quando relacionadas com mercadorias não destinadas a produção industrial ou á comercialização;

V - execução, por administração ou empreitada, de obras hidráulicas ou de construção civil, excluídas as contratadas com a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, autarquias e empresas concessionárias de serviços públicos, assim como as respectivas subempreitadas.

VI - demais formas de fornecimento de trabalho, com ou sem utilização de máquinas, ferramentas ou veículos.

§ 2º Os serviços a que se refere o inciso IV do parágrafo anterior, quando acompanhados do fornecimento de mercadorias, serão considerados de caráter misto, para efeito de aplicação do disposto no § 3º do art. 53, salvo se a prestação de serviço constituir seu objeto essencial e construir com mais de 75% (setenta e cinco por cento) da receita média mensal da atividade.”

Como se verifica, instituído o ISS pela Emenda nº 18/1965 à Constituição de 1946, houve, de início, uma definição conceitual de serviço. Desde logo, ficou evidente que uma definição desta ordem prestava-se a vários despautérios, que não é difícil imaginar, dada a existência de mais de 5.000 municípios. Logo, por via de Atos Complementares, houve uma especificação de serviços tributáveis, sem prejuízo de uma cláusula geral, a saber: “demais formas de fornecimento de trabalho, com ou sem utilização de máquinas, ferramentas ou veículos”.

Além das dificuldades naturais da formulação conceitual do que seja serviços, existia outra, resultante da imbricação do ISS e do ICM, agora ICMS. Aliás, a aplicação do CTN apresentava problemas diversos no campo destes dois impostos. Assim, em 1968, o governo nomeou uma comissão à qual deu a tarefa de rever o CTN no que dizia respeito ao ICM e ao ISS. Aquela altura, já estava em vigor a Constituição de 1967, cujo artigo 25 dava aos Municípios competência para decretar imposto sobre “Serviços de qualquer natureza não compreendidas na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar”. Dos trabalhos desta comissão resultou um projeto que, entregue, foi convertido no Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, num dos recessos a que o Congresso Nacional foi submetido no período da ditadura militar. O STF, em decisão de Tribunal Pleno, no Recurso Extraordinário nº 76.723/SP, relator o Ministro Aliomar Baleeiro, decidiu que o Decreto-lei nº 406/1968 era, materialmente, lei complementar que estatuía normas gerais de Direito Financeiro a que os Estados deviam obediência. A ementa desse acórdão foi publicada no Diário da Justiça da União, de 29 de novembro de 1974, página 8.995.

Como a Constituição de 1967 falava em serviços de qualquer natureza definidos em lei complementar, os redatores do que veio a ser o Decreto-lei nº 406/1968 decidiram que essa definição não devia ser conceitual, porque este tipo de definição já tinha provado não ser adequado. Assim, foi adotado o tipo de definição chamada enunciativa, ou seja, aquela que enumera o que se contém na coisa definida. Este tipo de definição é utilizado nas legislações civil e comercial. O Código Civil, por exemplo, não define conceitualmente o que são pessoas jurídicas, mas as enumera: as de direito público interno no artigo 41, as de direito público externo no artigo 42 e as de direito privado, no artigo 44, este com a alteração que lhe introduziu a Lei nº 10.825/2003. O Código Civil anterior usava da mesma técnica.

E assim chegou-se à lista de serviços do Decreto-lei nº 406/1968, que também estabeleceu outras regras pertinentes a este tributo. De início, houve discussões sobre a natureza da lista de serviços, se exemplificativa, se taxativa. A taxatividade da lista prevaleceu e nem poderia ser de outra forma. Lista exemplificativa era como lista inexistente e não é difícil imaginar o que aconteceria em diversos municípios num país que tem mais de 5.000.

Além da lista, o Decreto-lei nº 406/1968 estabeleceu limites precisos entre o ICM e o ISS. Assim:

a) Serviços incluídos na lista ficavam sujeitos só ao ISS, ainda que sua prestação envolvesse o fornecimento de mercadorias.

b) Serviços não incluídos na lista, cuja prestação envolvesse fornecimento de mercadorias, ficavam sujeitos ao ICM.

c) A dedução lógica era que serviços não incluídos na lista e cuja prestação não envolvesse fornecimento de mercadorias, não ficavam sujeitos nem ao ISS nem ao ICM.

Além disso, ficou estabelecido que o local da prestação do serviço era o do estabelecimento prestador, excetuado o serviço de construção civil, caso em que se considerava local da prestação do serviço o da construção.

A lista de serviços prevista no Decreto-lei nº 406/1968 foi substituída por outra lista, conforme dispôs o Decreto-lei nº 834, de 8 de setembro de 1969. Este mesmo Decreto-lei nº 834/1969 introduziu outras pequenas alterações no texto do Decreto-lei nº 406/1968, que não vem ao caso mencionar em pormenor, dado que não estão mais em vigor. É preciso citar, ainda neste histórico, o Decreto-lei nº 932, de 10 de outubro de 1969; desnecessário referir-lhe os pormenores por não se mais estar em vigor.

A lista aprovada pelo Decreto-lei nº 834/1969 ficou em vigor por 18 anos e alguns meses, até ser substituída pela que foi aprovada pela Lei Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987.

Neste breve histórico, resta referir a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, que é a que está em vigor. É curioso notar que esta lei resultou de um projeto do então senador Fernando Henrique Cardoso, cujo curso no senado consumiu alguns anos. Aprovado, foi remetido à Câmara dos Deputados. Depois de outro curso longo e já ao fim do ano legislativo de 2002, chegou à votação em plenário. O projeto elaborado pelas Prefeituras das Capitais foi apresentado como emenda substantiva, que foi aprovada. Devolvido ao Senado, este só podia ou aceitar o projeto substitutivo ou rejeitá-lo em bloco ou em algum dispositivo. O Senado só não aceitou a incidência do ISS sobre direitos autorais. Com apenas esta rejeição, o projeto foi aprovado pelo Senado e remetido à sanção do Presidente da República, que o sancionou com oito vetos.

Essa a história legislativa do ISS, desde sua instituição até os dias atuais. O que deduzir dessa história?

Em primeiro lugar, pode-se perguntar o que é “serviço de qualquer natureza”. De modo geral, tem-se assimilado a noção de serviço ao contrato de prestação de serviços regulado pelo artigos 593 e seguintes do Código Civil. Entretanto, não é fora de propósito perguntar se a noção de “serviços de qualquer natureza” se restringe a isto ou se, partindo da constatação de que setor de serviços é o que mais cresce e que, de acordo com a Organização Mundial do Comércio, representa 60% da produção global, 30% da geração de empregos e 20% do comércio global (dados extraídos de artigo de Paula Santos de Abreu, publicado na Revista do Programa de Mestrado em Direito da UniCeub vol. 2, nº 2. Brasília, julho/dezembro de 2005, p. 502-526), seria razoável deixar boa parte deste setor fora de qualquer tributação, por limitá-lo ao contrato de prestação de serviços previsto no Código Civil ou, pelo contrário, dar outro entendimento à expressão “serviço de qualquer natureza”.

A propósito, lembro que já existe acordo sobre serviços no seio da OMC. Refiro-me ao Gats - General Agreenment on Trade in Services. Existe mesmo uma lista de classificação setorial de serviços da OMC, que poderia ser aproveitado para este fim. É claro que não estou sugerindo mera transcrição dessa lista. É necessário adequá-la à partilha constitucional das fontes de receita entre União, Estados e Municípios, uma vez que, para diversos serviços constantes da lista da OMC, já há impostos específicos. Por outro lado, é preciso pensar que o Brasil tem mais de 5.000 municípios e que a adoção pura e simples da lista da OMC daria margem a grandes despautérios nas leis municipais.

Em segundo lugar, a Constituição Federal fala em serviços de qualquer natureza definidos em lei complementar, o que não impede a existência de uma lista de serviços tributáveis. Na verdade, quando a Constituição mencionava serviços definidos em lei complementar não quer dizer que haja uma definição conceitual de serviços. Como já foi dito, existem outros tipos de definição, como a enunciativa. Neste tipo, é enumerado tudo o que se contém no objeto da definição. Como exemplo deste tipo de definição já mencionei os artigos 41, 42 e 44 do Código Civil, que enumeram as pessoas jurídicas que existem (de direito público interno, de direito público externo e de direito privado, respectivamente), sem conceituar o que é pessoa jurídica. Da mesma forma, o Código Civil enumera quais são os bens considerados imóveis, sem conceituá-los. Por isso, a forma de definição adotada pela lei complementar nada tem de estranho.

Em terceiro lugar, a lista é taxativa e não exemplificativa, segundo já decidiu o STF. O caráter exemplificativo da lista foi definido pelos que pregavam que a autonomia do Município seria ofendida se a lista fosse taxativa. Entretanto, a autonomia é a que resulta da Constituição e não simplesmente do artigo. Isto para não esquecer o brocardo que o Direito romano nos legou: “Incivile est, nisi tota lege perspecta, uma aliqua partícula ejus judicare vel respondere.”

São estas as observações que, de maneira breve, faço a propósito do ISS.

1 Artigo publicado originariamente na Revista do Advogado da AASP nº 118, ano XXXII, dezembro de 2012.