Ágio: Idêntica Regulamentação para Efeitos Contábil e Tributário

Edison Carlos Fernandes

Doutor em Direito pela PUC/SP. Professor da Direito GV (GVLaw). Cocoordenador do Grupo de Estudos sobre Direito e Contabilidade - Gedec da Direito GV. Advogado.

Resumo

Este artigo pretende demonstrar que não há diferença entre as normas contábeis e as normas fiscais sobre o ágio. Nesse sentido, o ágio apurado em uma combinação de negócios não está inserido no Regime Tributário de Transição - RTT. A única diferença é a divulgação das razões econômicas desse ágio.

Palavras-chave: ágio, Regime Tributário de Transição, RTT, combinação de negócios, investimento, participação societária.

Abstract

This article intends to demonstrate that there is no difference between the accounting rules and the tax rules about goodwill. In this sense, the goodwill calculated in a business combination is not inserted in the Temporary Taxation Regime - RTT. The only one difference is the disclosure of the economic reasons of this goodwill.

Keywords: goodwill, Temporary Taxation Regime, RTT, business combination, investment, equity.

1. Introdução

Desde a edição da Lei nº 11.638, de 2007, que estabeleceu as bases para a adoção dos International Financial Reporting Standards - IFRS como marco regulatório contábil brasileiro, o ágio de investimento, especialmente no que concerne ao aproveitamento do seu benefício tributário, tem sido matéria bastante discutida. Alguns acontecimentos movimentaram ainda mais essa discussão, como os casos do aumento da fiscalização por parte da Secretaria da Receita Federal do Brasil - RFB, da instituição do Regime Tributário de Transição - RTT, pela Medida Provisória nº 449, convertida na Lei nº 11.941, de 2009, e na edição do Pronunciamento Contábil do Comitê de Pronunciamentos Contábeis - CPC nº 15 - Combinação de Negócios. Espera-se ansiosamente a lei que colocará fim ao RTT para verificar qual será a forma de tratamento tributário do ágio de investimento.

Exemplo marcante dessa relevância foi a decisão da empresa Perdigão (atual BRF), em 2008, no sentido de proceder à baixa integral do ágio referente a duas empresas adquiridas, visando à manutenção do aproveitamento dos benefícios tributários1. O lançamento contábil foi analisado pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM, que, por meio do Ofício/CVM/SEP/GEA-2/nº 020/2009, determinou a reversão da baixa do ágio recompondo o valor do ativo. Esse é somente um exemplo prático da relação conflituosa entre o “ágio contábil” e o “ágio tributário”.

Acontece que uma análise mais prudente dessa questão aponta para o fato de que não há distinção entre a atual regulamentação contábil do ágio, trazida pelo mencionado CPC 15, e a sua regulamentação tributária estabelecida em 1997. Com isso, é lícito, inclusive, afirmar que a Lei nº 9.532, de 1997, antecipou em mais de dez anos a adoção dos IFRS nessa matéria. É isso que este texto pretende demonstrar, concluindo que o aproveitamento tributário do ágio não está incluído entre os ajustes que devem ser promovidos em razão do Regime Tributário de Transição - RTT.

2. Atual Regulamentação Contábil do Ágio

Para a adequada compreensão da atual regulamentação contábil do ágio de investimento, convém que seja analisado o Pronunciamento Contábil CPC 15 - Combinação de Negócios. Segundo essa norma contábil, a partir da data de aquisição, a empresa adquirente deve reconhecer, separadamente do ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill), os ativos identificáveis adquiridos, os passivos assumidos e quaisquer participações de não controladores na adquirida. Além disso, a aplicação do princípio e as condições de reconhecimento pela empresa adquirente podem resultar no reconhecimento de alguns ativos e passivos que não tenham sido anteriormente reconhecidos como tais nas demonstrações contábeis da adquirida. Por exemplo, a empresa adquirente deve reconhecer os ativos intangíveis identificáveis adquiridos, como uma marca ou uma patente ou um relacionamento com clientes, os quais não foram reconhecidos como ativos nas demonstrações contábeis da adquirida por terem sido desenvolvidos internamente e os respectivos custos terem sido registrados como despesa. Finalmente, a empresa adquirente deve mensurar os ativos identificáveis adquiridos e os passivos assumidos pelos respectivos valores justos da data da aquisição.

De acordo os dispositivos normativos, a composição do preço pago pela participação societária, para fins de registro e avaliação da conta contábil “investimento” e do respectivo ágio, deve obedecer à seguinte ordem:

- A título de investimento:

a) Ativos e passivos que tenham sido anteriormente reconhecidos como tais nas demonstrações contábeis da adquirida, avaliados a valor justo, o que resultaria no reconhecimento da mais-valia de ativos.

b) Ativos e passivos que não tenham sido anteriormente reconhecidos como tais nas demonstrações contábeis da adquirida, avaliados a valor justo, o que resultaria no reconhecimento de intangíveis não registrados originalmente nas demonstrações contábeis.

- A título do ágio de investimento: o valor da diferença entre o preço da aquisição e o valor registrado a título de investimento.

Abrindo mão de um exemplo numérico hipotético, tem-se o seguinte (cifras em R$ mil):

a) A empresa ABC S.A. adquire a integralidade das ações da empresa MNO S.A., pelo valor de R$ 26.000.

b) Os balanços patrimoniais das empresas adquirente (ABC S.A.) e adquirida (MNO S.A.) estão reproduzidos abaixo:

ABC S.A.

Caixa: $ 30.000

Debêntures: $ 19.500

Créditos: $ 4.500

 

Imobilizado: $ 3.000

Patrimônio líquido: $ 18.000

MNO S.A.

Caixa: $ 2.000

Fornecedores: $ 6.000

Créditos: $ 4.500

Empréstimo: $ 2.500

Imobilizado: $ 12.000

Patrimônio líquido: $ 10.000

c) Para efeito do negócio, os administradores da empresa adquirente (ABC S.A.) realizam uma avaliação dos ativos e passivos da empresa adquirida (MNO S.A.), chegando a estas conclusões:

- em razão da avaliação a valor justo, o ativo imobilizado resulta em R$ 16.000;

- são identificadas marcas não registradas nas demonstrações contábeis no valor de R$ 5.000.

d) Com base nessas informações, a avaliação do investimento adquirido é assim calculada:

- Acervo líquido adquirido: R$ 19.000

i. Caixa: R$ 2.000

ii. Créditos: R$ 4.500

iii. Imobilizado: R$ 16.000

iv. Intangíveis: R$ 5.000

v. Fornecedores: (R$ 6.000)

vi. Empréstimos: (R$ 2.500)

- Diferença com relação ao preço do negócio: R$ 7.000

(R$ 26.000 - R$ 19.000)

e) Lançamento contábil na empresa ABC S.A. (adquirente):

- C - Caixa/Bancos: R$ 26.000, em razão do pagamento efetuado;

- D - Investimento: R$ 19.000, conforme o montante do acervo líquido adquirido;

- D - Ágio: R$ 7.000, justificado pela expectativa de rentabilidade futura.

ABC S.A.

Caixa: $ 4.000

Debêntures: $ 19.500

Créditos: $ 4.500

 

Imobilizado: $ 3.000

 

Investimento: $ 19.000

Patrimônio líquido: $ 18.000

Ágio (goodwill): $ 7.000

 

Imaginando, agora, que, após a aquisição da totalidade da participação societária, a empresa adquirida (MNO S.A.) seja incorporada pela empresa adquirente (ABC S.A.), as demonstrações contábeis desta última empresa (incorporadora) seria divulgada como se apresenta (ativos e passivos da ABC S.A. somados com ativos e passivos, avaliados a valor justo, da MNO S.A.):

ABC S.A.

Caixa: $ 6.000

Debêntures: $ 19.500

Créditos: $ 9.000

Fornecedores: $ 6.000

Imobilizado: $ 19.000

Empréstimo: $ 2.500

Intangível: $ 5.000

Patrimônio líquido: $ 18.000

Ágio (goodwill): $ 7.000

 

Esse é o quadro final da operação de aquisição de participação societária e posterior incorporação, considerando a norma contábil em vigor, que toma por base os IFRS. Passa-se, então, à análise da regulamentação tributária em vigor, visando, ao final, realizar uma comparação entre as duas modalidades.

3. Regulamentação Tributária do Ágio (ou Antiga Regulamentação Contábil)

Apesar de a Lei nº 6.404, de 1976, ter sido, à época, uma verdadeira “revolução” na legislação contábil, ela não tratou do ágio de investimento, muito embora tenha disciplinado, já no texto original, o método de equivalência patrimonial. Coube, então, ao Decreto-lei nº 1.598, de 1977, disciplinar essa matéria, tendo feito em dois sentidos: em um, a necessidade de informação segregada do valor do investimento e do valor do ágio; em outro, requerendo que fosse identificado o fundamento econômico do ágio, devendo ser um dentre os seguintes:

a) valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada superior ou inferior ao custo registrado na sua contabilidade;

b) valor de rentabilidade da coligada ou controlada, com base em previsão dos resultados nos exercícios futuros;

c) fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas.

Para os dois primeiros fundamentos, a empresa adquirente deve tomar como base documentação suporte que demonstre os valores apurados, que deverá ser mantida em arquivo para comprovar a escrituração contábil do investimento e do ágio.

Como se percebe, a lei tributária, ao regulamentar o lançamento do ágio, inclusive para fins societários (contábeis), previu a indicação do fundamento econômico do ágio. Além disso, para os casos da mais-valia de ativos e da rentabilidade futura, deveria o contribuinte comprovar os valores atribuídos a cada um desses fundamentos. Apesar dessa exigência, não estava muito clara a serventia da indicação do fundamento econômico do ágio, o que viria a ser utilizado 20 anos depois.

Foi na Lei nº 9.532, de 1997, com a redação atual, estabelecido o tratamento tributário de cada uma das razões que justificaram o ágio de investimento. Após o processo de incorporação da empresa adquirida, a empresa adquirente (investidora) deve desmembrar o valor referente ao ágio da seguinte forma:

a) valor de mercado de bens do ativo: agregar ao valor dos respectivos ativos, atribuindo-os novos valores e alterando a depreciação correspondente, cuja dedutibilidade é aceita pela legislação;

b) valor de rentabilidade futura: permanecerá em uma conta à parte do ativo, podendo esse valor ser dedutível na apuração dos tributos sobre o lucro (IRPJ/CSLL) em, no mínimo, cinco anos;

c) fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas: o valor deve ser lançado em uma conta específica do ativo permanente, e não gera despesa dedutível para os tributos sobre o lucro (IRPJ/CSLL).

Valendo-se do mesmo exemplo numérico hipotético anterior, inclusive com relação às estimativas e avaliação dos ativos, tem-se o seguinte (cifras em R$ mil):

a) Com base nas informações anteriores, no âmbito da regulamentação tributária, a avaliação do investimento adquirido é assim calculada:

- Patrimônio líquido registrado pelo valor contábil da empresa adquirida (MNO S.A.): R$ 10.000

- Diferença com relação ao preço do negócio: R$ 16.000

(R$ 26.000 – R$ 10.000)

b) Lançamento contábil na empresa ABC S.A. (adquirente):

- C - Caixa/Bancos: R$ 26.000, em razão do pagamento efetuado;

- D - Investimento: R$ 10.000, conforme o patrimônio líquido em valores contábeis da investida (não há avaliação a valor justo);

- D - Ágio: R$ 16.000.

ABC S.A.

Caixa: $ 4.000

Debêntures: $ 19.500

Créditos: $ 4.500

 

Imobilizado: $ 3.000

 

Investimento: $ 10.000

Patrimônio líquido: $ 18.000

Ágio (goodwill): $ 16.000

 

Seguindo no exemplo, suponha-se que a empresa adquirida (MNO S.A.) seja incorporada pela empresa adquirente (ABC S.A.); nessa situação, as demonstrações contábeis desta última empresa (incorporadora) seria divulgada como se apresenta (ativos e passivos da ABC S.A. somados com ativos e passivos da MNO S.A., procedendo-se à apropriação do ágio por seu fundamento econômico, nos termos do artigo 8º da Lei nº 9.532, de 1997):

ABC S.A.

Caixa: $ 6.000

Debêntures: $ 19.500

Créditos: $ 9.000

Fornecedores: $ 6.000

Imobilizado: $ 19.000

Empréstimo: $ 2.500

Intangível: $ 5.000

Patrimônio líquido: $ 18.000

Ágio (goodwill): $ 7.000

 

Note-se que, muito embora a constituição do ágio de investimento, no momento da aquisição da participação societária, seja diferente na regulamentação contábil e na regulamentação tributária, quando da incorporação da empresa adquirida os valores dos ativos (imobilizado e intangível) se identificam. Veja-se o quadro comparativo abaixo:23

Descrição

Legislação contábil

Legislação tributária

Momento

Antes da incorporação

Depois da incorporação

Antes da incorporação

Depois da incorporação

Investimento2

19.000

 

10.000

 

Ágio

7.000

7.000

16.000

7.000

Imobilizado3

12.000

16.000

12.000

16.000

Intangível

- 0 -

5.000

- 0 -

5.000

De acordo com o apresentado de maneira comparativa, não há diferença de valor entre a regulamentação contábil, com base nos IFRS, e a regulamentação tributária. É lícito concluir-se, então, no sentido de que não há distinção entre a regulamentação contábil atual e a regulamentação tributária ainda em vigor. Em sendo assim, a questão do ágio de investimento não está no âmbito da neutralidade exigida pelo Regime Tributário de Transição - RTT; em outras palavras: o ágio não está abrangido pelo RTT, não sendo necessário qualquer ajuste a esse título.

A alteração significativa trazida pela adoção dos IFRS pelas empresas brasileiras reside na evidenciação. Conquanto as normas contábeis não determinem o tratamento tributário do ágio - o que nem poderia acontecer -, é certo que o procedimento adotado na contabilidade demonstra (evidencia) o fundamento econômico desse conceito. A indicação das justificativas do ágio, requerida pelo artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598, de 1977, é cumprida pelo seu lançamento contábil.

4. Parcela do Ágio Abrangida pelo Regime Tributário de Transição - RTT

Apesar de, em linhas gerais, a questão da avaliação de investimento e, por decorrência, do ágio, não estar abrangida no Regime Tributário de Transição - RTT, nos termos acima apresentados, essa situação ganhou uma particularidade com a Instrução Normativa RFB nº 1.397, de 16 de setembro de 2013. De acordo com a mencionada norma complementar da Secretaria da Receita Federal do Brasil, por ocasião da elaboração das demonstrações financeiras, a empresa investidora deverá avaliar o investimento pelo valor de patrimônio líquido da coligada ou controlada, determinado conforme métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007, para tanto, a empresa controlada e coligada deverá fornecer àquela empresa as informações necessárias à avaliação requerida.

De acordo com essas regras, a avaliação de investimento deve ser feita de modo a expurgar das demonstrações contábeis da investida (controlada ou coligada) os lançamentos efetuados com base nos IFRS, retornando às normas contábeis em vigor no dia 31 de dezembro de 2007. Esse procedimento impactará a composição do patrimônio líquido da investida (controlada ou coligada), que é referência para a determinação do ágio. Com isso, o ágio registrado na investidora terá, ao menos, uma parcela submetida ao RTT.

Supondo que a empresa investida (controlada ou coligada) não tenha qualquer lançamento contábil divergente, se consideradas a adoção dos IFRS e a legislação contábil vigente em 2007, então, o ágio de investimento será apurado com base no patrimônio líquido a valor histórico - isto é, não avaliado a valor justo. Essa parcela não está abrangida pelo RTT. Por outro lado, qualquer divergência será tratada como ajuste de RTT, para se estabelecer o patrimônio líquido de acordo com as normas contábeis de 2007, o que implica, ao menos em parte, um ajuste de RTT no montante do ágio.

Retome-se o exemplo que vem sendo utilizado e considere-se, a título de hipótese, exclusivamente a diferença na taxa de depreciação do imobilizado. Graficamente, pode-se demonstrar como segue:

ABC S.A.

Caixa: $ 30.000

Debêntures: $ 19.500

Créditos: $ 4.500

 

Imobilizado: $ 3.000

Patrimônio líquido: $ 18.000

MNO S.A.

Caixa: $ 2.000

Fornecedores: $ 6.000

Créditos: $ 4.500

Empréstimo: $ 2.500

Imobilizado: $ 12.000

Patrimônio líquido: $ 10.000

Considerando a legislação contábil vigente em 31 de dezembro de 2007 - depreciação maior com consequente redução do lucro acumulado, reconhecido no patrimônio líquido:

MNO S.A.

Caixa: $ 2.000

Fornecedores: $ 6.000

Créditos: $ 4.500

Empréstimo: $ 2.500

Imobilizado: $ 10.500

Patrimônio líquido: $ 8.500

Após a aquisição do investimento (por R$ 26 milhões), a empresa ABC S.A. teria a composição do seu balanço patrimonial, para efeitos tributários, da seguinte forma:

ABC S.A.

Caixa: $ 4.000

Debêntures: $ 19.500

Créditos: $ 4.500

 

Imobilizado: $ 3.000

 

Intangível: $ 8.500

Patrimônio líquido: $ 18.000

Ágio (goodwill): $ 17.500

 

Verifica-se, assim, que a redução do patrimônio líquido provocada na empresa investida, por motivo do estorno dos lançamentos de IFRS, em obediência ao RTT, causou um aumento proporcional no valor do ágio registrado na investidora.

5. Identificação de Ativos e Passivos Abrangidos pelo Negócio

Considerando que a única distinção entre a regulamentação contábil e a regulamentação tributária do ágio de investimento reside na evidenciação dos seus fundamentos econômicos, faz-se necessário discorrer sobre a avaliação de ativos e passivos a valor justo, no âmbito da combinação de negócios (reestruturação societária). Inicialmente, devem ser identificados os ativos adquiridos e os passivos assumidos em decorrência da operação realizada. Para fins de reconhecimento, como parte da aplicação do método de aquisição, os ativos identificáveis adquiridos e os passivos assumidos devem fazer parte do que a empresa adquirente e a empresa adquirida (ou seus ex-proprietários) trocam na operação de combinação de negócios, em vez de serem resultado de operações separadas.

Analisado os termos efetivos do negócio, adquirente e adquirida podem ter relacionamento ou acordo contratual prévio antes do início das negociações para a combinação de negócios, ou ainda podem fazer acordos, durante as negociações, que são distintos da combinação de negócios. Em qualquer dessas situações, a empresa adquirente deve identificar todos os valores que não fazem parte do que adquirente e adquirida (ou seus ex-proprietários) trocaram para efetivar a combinação de negócios, ou seja, valores que não fazem parte da troca para obtenção do controle da adquirida. A empresa adquirente deve reconhecer como parte da aplicação do método de aquisição somente a contraprestação transferida pelo controle da adquirida e os ativos adquiridos e os passivos assumidos na obtenção do controle da adquirida. Em complemento, uma operação realizada pela empresa adquirente ou em seu nome, ou ainda uma operação realizada primordialmente em benefício da empresa adquirente ou da entidade combinada, e não em benefício da adquirida (ou de seus ex-proprietários) antes da combinação, provavelmente é uma operação separada.

Em conformidade com as normas contábeis, os bens, os direitos e as dívidas objeto da reestruturação societária devem ser adequadamente identificados e avaliados. A contrario sensu, aquilo que, apesar de estar registrado nas demonstrações contábeis da adquirida, não será transferido ao novo controlador deverá ficar de fora de qualquer avaliação. Com isso, é lícito concluir que pode acontecer, por exemplo, de um ativo imobilizado ser negociado pelo seu valor contábil, e não a valor justo, ou do que seria um ativo intangível continuar a não ser reconhecido contabilmente após a operação.

Nesse sentido, Alfred M. King4 explica, de maneira bastante clara, que em uma combinação de negócios, os avaliadores devem lidar com a economia real da transação específica; o que o comprador adquiriu? Por que ele pagou esse preço específico? Isso decorre do fato de que compradores diferentes interessados no mesmo negócio podem ter alocações muito distintas do mesmo preço de compra.

Sobre o objeto do negócio, Sérgio de Iudícibus e outros5 ainda ensinam que em uma combinação de negócios, podem ser adquiridos ativos que o adquirente não pretende utilizar no futuro; independentemente das razões para tanto, o adquirente deve mensurar tal ativo pelo seu respectivo valor justo, de acordo com o uso por outros participantes do mercado. Essa exigência, por outro lado, deve ser temperada com as normas referentes à avaliação a valor justo, pois, pode ocorrer de o ativo, ainda que identificado, não ser mensurado no âmbito da combinação de negócios. Assim, é preciso que se verifique o método de avaliação adotado.

A esse respeito, o Pronunciamento Contábil CPC 46 - Mensuração a Valor Justo. De acordo com esse pronunciamento, a entidade deve utilizar técnicas de avaliação que sejam apropriadas nas circunstâncias e para as quais haja dados suficientes disponíveis para mensurar o valor justo, maximizando o uso de dados observáveis relevantes e minimizando o uso de dados não observáveis. Isso porque o objetivo de utilizar uma técnica de avaliação é estimar o preço pelo qual uma transação não forçada para a venda do ativo ou para a transferência do passivo ocorreria entre participantes do mercado na data de mensuração nas condições atuais de mercado. Três técnicas de avaliação amplamente utilizadas são:

a) abordagem de mercado,

b) abordagem de custo e

c) abordagem de receita.

Há, na norma contábil, ainda, a advertência de que a administração da empresa adquirente deve utilizar técnicas de avaliação consistentes com uma ou mais dessas abordagens para mensurar o valor justo. Nesse sentido, a Comissão de Valores Mobiliários - CVM, por tratar somente desta técnica de avaliação, acabou por reconhecer, no documento da Audiência Pública SDM nº 004/20136, que o mercado utiliza preponderantemente a abordagem de receita, por meio do método do fluxo de caixa descontado ou pelo método de múltiplo do resultado ou do faturamento. Acontece que, em sendo aplicado esse método ao caso de ativo que o adquirente não pretende utilizar, o seu valor tenderá a zero, haja vista que, provavelmente, esse ativo não será fonte de geração de caixa, o que é muito comum nos casos de imobilizado e intangível descontinuados após a reestruturação societária.

A tendência ao valor zero do ativo que não interessa ao adquirente encontra respaldo, inclusive, no Pronunciamento Técnico CPC 15 - Combinação de Negócios. A empresa adquirente não deve levar a efeito uma avaliação separada de ajustes para perdas, na data da aquisição, para ativos adquiridos em uma combinação de negócios que são mensurados ao valor justo na data da aquisição, em decorrência de os efeitos das incertezas acerca dos fluxos de caixa futuros já estarem incluídos no valor justo mensurado. Por exemplo, em razão da norma exigir que a empresa adquirente mensure os recebíveis adquiridos, incluindo os empréstimos, ao seu valor justo na data da aquisição, a empresa adquirente não deve levar a efeito uma avaliação separada de ajustes para perdas para fluxos de caixa contratuais que sejam considerados incobráveis naquela data.

Em síntese, o que se está alegando é: muito embora tanto a norma contábil quanto a norma tributária exijam a indicação dos fundamentos do ágio, sendo que a primeira chega a estabelecer a ordem para a avaliação dos ativos, o contrato do negócio determinará quais são os ativos envolvidos, conduzindo a forma de sua avaliação. Com isso, é possível que a integralidade do valor do ágio seja atribuída à rentabilidade futura, dependendo do que foi adquirido e em que condições. As demonstrações contábeis servirão para evidenciar a motivação do ágio.

6. Dois Exemplos Concretos

Para ficar clara a exposição das conclusões deste texto, convém a análise de dois exemplos concretos de operação de reestruturação societária.

O primeiro deles trata do caso Itaú-Unibanco. No relatório anual da empresa, em 20087, ano da operação entre os dois bancos, foi feita referência à marca Unibanco da seguinte forma:

“O Unibanco é a nona marca mais valiosa da América Latina, avaliada em R$ 4,77 bilhões pela Interbrand, com valorização de 640%, nos últimos quatro anos, segundo critérios estabelecidos por essa empresa. O aumento na geração de margem operacional, a atuação do Instituto Unibanco - com foco na inclusão dos jovens no mercado de trabalho - e a política cultural do banco contribuíram para esse resultado.”

Apesar dessa referência expressa, em momento algum a marca Unibanco figurou no ativo intangível da empresa que surgiu dessa união de instituições financeiras. Pouco tempo depois, foi possível confirmar o motivo dessa ausência: para fins comerciais, a marca Unibanco foi abandonada. Dessa forma, essa marca (ativo intangível) não gerou e nem era intenção que gerasse fluxo de caixa depois da operação de reestruturação societária.

Outro exemplo se refere à constituição da BRFoods, em 2009. Apesar de não haver qualquer referência ao valor dos intangíveis adquiridos por ocasião da união das empresas Perdigão e Sadia, o balanço patrimonial da empresa resultante, neste mesmo ano, assim esclarece:

“O nome da BRF se desdobra e agrega valor e confiabilidade a diversas marcas, dentre as principais destacam-se: Batavo, Claybon, Chester®, Confiança, Delicata, Doriana, Elegê, Fazenda, Nabrasa, Perdigão, Perdix, além de marcas licenciada como Turma da Mônica. A subsidiária Sadia tem como principais, as seguintes marcas: Fiesta, Hot Pocket, Miss Daisy, Nuggets, Qualy, Rezende, Sadia, Speciale Sadia, Texas e Wilson.”

Nesse balanço patrimonial (nota explicativa 1b)8, a composição do ágio é apresentada sem qualquer referência às marcas. Já nas demonstrações financeiras de 2012, parece haver uma correção das informações anteriores, porque a nota explicativa 16.3 dá conta de que o valor do ágio é composto, em parte, pelo valor das marcas “adquiridas” da empresa Sadia9. Portanto, o referido ágio de investimento não teve como fundamento tão somente a mais-valia de ativos e a rentabilidade futura.

7. Conclusões

O que se pretendeu argumentar e demonstrar no presente texto foi o quanto segue:

1. Não há distinção entre a regulamentação do ágio para efeito contábil e para efeito tributário.

2. Se alguma diferença há, ela reside no grau de evidenciação dos fundamentos econômicos do ágio de investimento.

3. Embora a norma contábil não vincule o tratamento tributário, as razões do ágio de investimento apontadas nas demonstrações financeiras servem para indicar esse tratamento tributário.

4. É certo que as normas contábeis estabelecem uma ordem a ser seguida na avaliação dos ativos a valor justo; porém, é possível que, seguindo essa ordem, não se atribua qualquer valor aos ativos imobilizados ou aos ativos intangíveis, o que será determinado pelas condições concretas do negócio realizado.

1 Conforme especulação noticiada pela imprensa especializada - conferir matéria “CVM determina que Perdigão reverta baixa de ágio da Eleva”. Valor Econômico, São Paulo, 23 de janeiro de 2009.

2 O valor do investimento na adquirente (investidora) é anulado com o valor do patrimônio líquido da adquirida (investida), no momento da incorporação.

3 Para efeito de comparação, o valor do imobilizado considerou tão somente o registro contábil da empresa adquirida.

4 Cf. KING, Alfred M. “Conceito de valor justo”. In: CATTY, James P. IFRS - guia de aplicação do valor justo. Porto Alegre: Bookman, 2013, p. 14.

5 Cf. IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; GELBCKE, Ernesto Rubens; e SANTOS, Ariovaldo dos. Manual de contabilidade societária. São Paulo: Atlas, 2010, p. 420.

6 Proposta de alteração da Instrução CVM nº 319, que trata de cisão, fusão, incorporação e incorporação de ações.

7 Cf. p. 21. Disponível em http://ww13.itau.com.br/PortalRI/HTML/port/download/demon/rs_itau_unibanco_completo2008.pdf. Acesso em 26 de setembro de 2013.

8 Cf. p. 15. Disponível em http://www.brasilfoods.com/ri/siteri/web/arquivos/DF_2009.pdf. Acesso em 26 de setembro de 2013.

9 Cf. p. 89. Disponível em http://www.brasilfoods.com/ri/siteri/web/arquivos/Nes_dfp_dezembro_2012.pdf. Acesso em 26 de setembro de 2013.