A Qualificação dos Rendimentos Provenientes de Instrumentos Financeiros Híbridos nos Acordos Internacionais de Bitributação

Ramon Tomazela Santos

Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Professor assistente no curso de especialização do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Advogado em São Paulo.

Resumo

O presente artigo analisa a qualificação da remuneração proveniente de instrumentos financeiros híbridos nos acordos internacionais de bitributação baseados na Convenção Modelo da OCDE.

Palavras-chave: tributação internacional, qualificação, instrumentos financeiros híbridos, acordos internacionais de bitributação.

Abstract

This paper analyzes the tax qualification of the remuneration derived from hybrid financial instruments under double tax treaties based on the OECD Model Convention.

Keywords: international taxation, qualification, hybrid financial instruments, double tax treaties.

1. Introdução

A integração sistêmica das atividades econômicas, financeiras e comerciais promoveu significativas alterações nas operações internacionais de financiamento corporativo. A nova realidade econômica mundial, marcada pelo constante aumento dos investimentos estrangeiros nos países em desenvolvimento, impôs aos Estados o desafio de adaptarem os seus sistemas tributários a uma sociedade dinâmica e globalizada1.

A transnacionalização dos fatores de produção proporcionou que as sociedades empresárias adotassem novas formas de estruturação de seus negócios, com a distribuição de suas ramificações ao redor do planeta, por meio de filiais, sucursais, agências, sociedades coligadas ou controladas e estabelecimentos permanentes. Esse novo cenário econômico permitiu que as sociedades transnacionais passassem a utilizar diferentes estruturas financeiras para o custeio de suas atividades econômicas.

Neste cenário, Jakob Bundgaard relembra que o mercado financeiro internacional mudou radicalmente nos últimos 30 anos, com o desenvolvimento de um vasto número de produtos financeiros destinados às sociedades empresárias e às instituições financeiras2. Com enfoque na dinâmica do mercado, David B. Hariton comenta que as principais alterações nas políticas de financiamento corporativo tiveram início na década de 80, por meio de um processo de desenvolvimento chamado de mutação dos produtos financeiros (“mutation of financial products”)3.

Logo, com o aumento da competitividade entre as empresas transnacionais, os sócios ou acionistas passaram a buscar novos produtos para o financiamento de suas atividades, que pudessem lhes proporcionar resultados mais eficientes no gerenciamento da carga tributária, como forma de contribuir para o desenvolvimento da atividade econômica e a maximização dos lucros empresariais.

Assim, para atender às novas necessidades do mercado, as pessoas jurídicas passaram a estruturar as suas operações de financiamento corporativo mediante a utilização de instrumentos financeiros dotados de características híbridas.

Em termos gerais, os instrumentos financeiros híbridos correspondem a atos ou negócios jurídicos, institutos jurídicos ou operações estruturadas de financiamento corporativo que conjugam direitos ou obrigações com características típicas de capital próprio (investimento) e capital de terceiros (dívida). A essência da operação realizada com tais instrumentos pode ser consistente com mais de uma categoria jurídica, o que traz à tona as questões acerca da sua correta qualificação perante o direito positivo. O reconhecimento da autonomia privada e da liberdade contratual permite que a circulação econômica seja realizada por meio de operações formatadas de acordo com a conveniência das partes, dificultando a sua subsunção a determinado tipo legal, para a determinação da sua disciplina jurídica.

Sob o enfoque do direito tributário interno, o problema surge porque o legislador pode optar por vincular a hipótese abstrata da norma jurídica de incidência tributária a determinado negócio jurídico, que passa a constituir elemento indispensável para que esteja completa a situação jurídica descrita na lei como necessária e suficiente à ocorrência do fato gerador. Por igual forma, o legislador pode optar por uma descrição legal mais abrangente, capaz de alcançar qualquer ato ou negócio jurídico que ocasione determinado efeito. Em suma, o legislador tributário pode apenas disciplinar a tributação a partir da qualificação atribuída por outros ramos do Direito, por meio da incorporação de um conceito preexistente sem definição privilegiada4, assim como pode conceber conceitos jurídicos autônomos, desvinculados dos demais ramos da área jurídica5. Embora essa não seja a única possibilidade, a controvérsia relativa à qualificação jurídica dos instrumentos financeiros híbridos geralmente ocorre quando o legislador tributário decide vincular a incidência tributária às categorias preexistentes no direito privado, superpondo as suas regras às normas dos demais setores jurídicos.

Em virtude de sua ampla flexibilidade, os instrumentos financeiros híbridos são frequentemente utilizados para amoldar as operações internacionais de financiamento às normas jurídicas de diferentes jurisdições. As fórmulas maleáveis empregadas nas operações com tais instrumentos financeiros permitem a adaptação de sua estrutura a qualquer circunstância concreta, em conformidade com os interesses dos investidores, assim como com os anseios das sociedades que carecem de capital6.

Além disso, as partes frequentemente utilizam operações estruturadas com o uso de instrumentos financeiros híbridos para usufruírem dos benefícios concedidos pelos Estados por intermédio dos acordos internacionais de bitributação. No âmbito internacional, essas operações podem ser utilizadas, inclusive, como mecanismo de planejamento tributário, principalmente por meio de prática conhecida como rule shopping, por meio da qual um sujeito indicado no âmbito subjetivo do acordo internacional procura ampliar os seus benefícios fiscais, mediante a celebração de negócios jurídicos que permitam a escolha da qualificação mais favorável7.

Por outro lado, não se pode deixar de mencionar que os instrumentos financeiros híbridos são comumente apontados pelos agentes do mercado como um dos mecanismos responsáveis pelo desenvolvimento da recente crise financeira internacional, devido a sua particular habilidade para a ocultação de riscos nas demonstrações financeiras das pessoas jurídicas8. Por isso, o uso de instrumentos exóticos deve ser objeto de regulamentação mais rígida por parte do Estado nos próximos anos, o que corrobora a importância do estudo do tema na área acadêmica.

A relevância do estudo dos instrumentos financeiros híbridos reside no fato de que a maior parte dos sistemas jurídicos confere tratamento tributário distinto aos dividendos pagos em remuneração aos recursos empregados pelo sócio no financiamento da pessoa jurídica (aumento de capital social) e aos juros destinados a recompensar os recursos de terceiros (empréstimos e financiamentos corporativos)9.

No Direito brasileiro, a doutrina tributária, salvo raras exceções10, tem dispensado pouca atenção à tributação dos instrumentos financeiros híbridos. Essa carência de trabalhos doutrinários a respeito do tema nos motivou a escrever o presente artigo, com o objetivo de contribuir para o debate a respeito da qualificação dos rendimentos provenientes de instrumentos financeiros híbridos nos acordos internacionais de bitributação baseados na Convenção Modelo da OCDE.

2. Fundamentos Teóricos

O cerne da discussão acerca dos instrumentos financeiros híbridos repousa na distinção entre o capital próprio (equity) e o capital de terceiros (debt).

A atribuição de tratamento tributário distinto ao capital próprio (investimento) e ao capital de terceiros (endividamento) constitui um dos maiores obstáculos atuais à simplificação tributária, dando ensejo ao aproveitamento de vantagens ou à imposição de desvantagens tributárias, a depender da estrutura de financiamento adotada pela pessoa jurídica e por seus sócios ou acionistas.

Ademais, o tratamento tributário diferenciado conferido ao investimento (capital próprio) e ao endividamento pode transgredir o princípio da equidade em matéria tributária, sem que haja um critério de discrímem adequado, razoável e proporcional em sentido estrito para a sua justificação11. Ainda, pode-se aventar que a política de distinção entre o capital próprio e o capital de terceiros interfere na livre atuação das forças do mercado (free play of market forces), na neutralidade tributária e na regulação econômica, principalmente nas áreas societária e bancária12.

Em consequência, a doutrina internacional tem defendido o fim da distinção, para fins tributários, entre o capital próprio e o capital de terceiros13.

Para evitar os inconvenientes indicados acima, inúmeros países têm adotado soluções que reduzem as diferenças existentes no tratamento tributário do capital próprio e do capital de terceiros, por meio da adoção das seguintes soluções: (i) permitir a dedução de despesas relativas à remuneração paga aos sócios ou acionistas; ou (ii) revogar ou limitar as regras que permitem a dedução das despesas com juros.

Atentos à controvérsia acima, Robin Boadway e Neil Bruce idealizaram um modelo teórico que previa a dedução de um valor nocional único tanto para fins de capital próprio, quanto para fins de endividamento. Esse modelo previa um pagamento presumido de remuneração pelo investimento em participação societária, assim como vedava a dedução, para fins de apuração do imposto de renda da pessoa jurídica, de juros contratuais que excedessem ao limite estabelecido em lei14.

Outra proposta teórica interessante foi apresentada por Amir C. Chenchinski e Reuven S. Avi-Yonah, com o método da dedução dos dividendos. Neste caso, os dividendos efetivamente pagos pela pessoa jurídica aos seus sócios são considerados dedutíveis para fins de determinação da base de cálculo do imposto de renda15. Porém, a proposta apresentada pelos autores não está imune a criticas, eis que a dedução apenas no momento da distribuição dos dividendos pode estimular a pessoa jurídica a reter os lucros, a fim de que a despesa seja considerada dedutível em situação mais conveniente (i.e., manipulação do aspecto temporal da dedução da despesa). Além disso, como a distinção entre juros e dividendos permanece intacta, parece-nos que a solução apresentada por Chenchinski e Avi-Yonah não resolve o problema da qualificação dos instrumentos financeiros híbridos nos acordos de bitributação.

Críticas à parte, cabe anotar que o Brasil e a Bélgica seguiram caminho semelhante ao indicado no item (i) acima, mas com certa inovação16. No Brasil, a Lei nº 9.249/1995 instituiu a figura dos juros sobre o capital próprio (JCP), que permite que a pessoa jurídica pague uma remuneração aos seus sócios ou acionistas com base na variação da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), com a possibilidade de dedução das respectivas despesas para fins de apuração do lucro real e da base de cálculo da CSLL. Igualmente, a Bélgica instituiu, a partir de janeiro de 2006, o instituto do “déduction d’intérêt notionnel”, também conhecido como “déduction pour le capital à risque”. A partir de 2011, Liechtenstein e Itália passaram a adotar mecanismos semelhantes17.

Sem dúvida, a solução adotada por tais países é criativa e ajuda a mitigar os efeitos da distinção entre debt e equity, em consonância com a doutrina internacional. Com enfoque no JCP, o professor Luís Eduardo Schoueri pondera que “enquanto alhures se conferia aos juros a indedutibilidade própria de dividendos, o Brasil inovava, permitindo que se deduzissem os juros sobre o capital próprio, equiparando-os, portanto, ao tratamento tributário de juros propriamente ditos”18.

Ademais, cabe ponderar que o item (ii) acima, ao vedar a dedução das despesas com juros, poderia trazer consequências nocivas para o desenvolvimento econômico, pois implicaria o aumento do custo de capital e prejudicaria a competitividade internacional das pessoas jurídicas domiciliadas no país. Assim, merece aplausos a iniciativa do legislador pátrio de instituir o JCP.

A despeito das alternativas apresentadas acima, Wolfgang Schön considera que o cenário ideal, de lege ferenda, envolve o fim da distinção entre debt e equity para efeito de tributação da renda. Segundo o autor, o conceito de renda de Schanz-Haig-Simons (SHS), que pode ser considerado o ideal sob o ponto de vista da capacidade contributiva, não exige uma clara distinção entre debt e equity19. Ao contrário, Schön advoga, com inteira propriedade, que a aludida distinção decorre de uma opção feita pelo legislador ao consagrar o princípio da realização da renda20.

Para o autor, o princípio da realização da renda conduz a um problema sistemático na hipótese em que o contribuinte (pessoa física) detém participação societária em uma pessoa jurídica. Como o princípio da realização da renda impede que os aumentos no valor de sua participação tributária sejam tributados em tempo real21, os acréscimos patrimoniais gerados pelo investimento apenas são tributados no momento de sua distribuição aos sócios ou no momento da alienação do investimento no mercado, por meio da apuração de ganho de capital. Em termos de política fiscal, esse tratamento pode estimular a acumulação de lucros não tributados no nível da sociedade, como forma de postergar o pagamento do imposto de renda.

Assim, para contrabalançar o princípio da realização da renda, o legislador tributário acabou optando pela criação do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, com o objetivo de tributar os lucros auferidos com a atividade empresarial no âmbito da própria sociedade, independentemente de sua distribuição para os sócios ou acionistas. Para atingir a mesma finalidade, o legislador tributário ainda criou, para alcançar certas situações, a figura da transparência fiscal, por meio da qual, em determinadas circunstâncias, os lucros empresariais são atribuídos diretamente aos sócios, independentemente da personalidade jurídica da sociedade empresária.

Com a criação do imposto de renda da pessoa jurídica22, o legislador tributário passou a buscar mecanismos para eliminar a bitributação econômica (métodos de integração)23 do lucro empresarial (tanto na pessoa jurídica, quanto na pessoa física), o que poderia desestimular a constituição de empresas, que contribuem para a geração de empregos e para o desenvolvimento social24.

Como consequência da criação dos métodos de integração, o legislador tributário acabou conferindo tratamento tributário distinto aos sócios e acionistas. Isso porque, como o imposto sobre a renda das pessoas jurídicas alcança apenas os lucros atribuíveis aos seus sócios e acionistas, o legislador tributário manteve incólumes as demais regras tributárias aplicáveis aos rendimentos auferidos por credores. Observe-se que idêntico raciocínio pode ser estendido às leis tributárias que instituíram os mecanismos de transparência fiscal. Afinal, como os lucros auferidos pela sociedade são atribuídos diretamente aos sócios, o legislador tributário viu-se forçado a estabelecer critérios para identificá-los, o que o conduziu à distinção entre debt e equity.

A relevância da distinção entre debt e equity também produz efeitos no âmbito internacional, na medida em que a sua qualificação nos acordos internacionais de bitributação pode influenciar a distribuição de competências e a alocação de receitas entre os Estados nas operações internacionais.

Como se pode antever a partir da breve exposição acima, a solução para a celeuma atinente à tributação dos instrumentos financeiros híbridos passa por problemas como a criação do imposto de renda da pessoa jurídica, o princípio da realização da renda, os métodos de integração, a tributação dos ganhos de capital, entre inúmeros outros aspectos teóricos que fundamentam o imposto sobre a renda.

Segundo Jakob Bundgaard, a dificuldade de definição do tratamento jurídico tributário dos instrumentos financeiros híbridos decorre do fato de que eles contêm características econômicas que são inconsistentes, no todo ou em parte, com a classificação atribuída pela sua forma jurídica. Por igual forma, os instrumentos financeiros híbridos podem possuir características que são consistentes com mais de uma classificação jurídica, na mesma ou em diferentes jurisdições, assim como características que não são claramente consistentes com qualquer instituto jurídico25.

É verdade que, sob o ponto de vista teórico, os dividendos e os juros possuem certas características típicas. Como exemplo, confira-se a tabela abaixo26:

Dividendos

Juros

São rendimentos pagos de forma variável ou fixa conforme a deliberação da assembléia geral.

São rendimentos pagos em quantia fixa ou percentual fixo.

São rendimentos juridicamente incertos quanto à possibilidade de atribuição e pagamento (existência da renda), uma vez que dependem da existência de lucros sociais ou reservas de capital.

São rendimentos juridicamente certos quanto à possibilidade de atribuição de pagamento (existência de renda), independendo de qualquer outro fator aleatório, como a existência de lucros ou reserva de lucros.

Decorrem de uma operação de participação societária.

Decorrem de uma operação de crédito.

Ainda que existam reservas de capital previamente ao lançamento das ações ou em data posterior à emissão, o pagamento de dividendos ao acionista será incerto, uma vez que os prejuízos acumulados poderão consumir as respectivas reservas.

Independem de qualquer outro fator aleatório.

Ocorre que, conforme visto acima, o direito privado oferece certa flexibilidade na formatação de seus institutos. Para ilustrar o raciocínio, cabe mencionar algumas características que contribuem para a inexistência de limites rígidos entre o capital próprio e o capital de terceiros: as ações preferenciais podem prever o pagamento de dividendos fixos; as ações preferenciais podem ser emitidas com, ou sem, a outorga do exercício do direito de voto ao seu titular; as ações preferenciais podem prever privilégios de resgate, inclusive no caso de a pessoa jurídica emissora vir a tornar-se insolvente; as sociedades anônimas podem emitir títulos conversíveis em ações; os contratos de mútuo podem atrelar ou condicionar o pagamento de juros aos lucros futuros do mutuário, com base no princípio da autonomia da vontade.

Para demonstrar a flexibilidade dos institutos, relembre-se que as ações preferenciais diferenciam-se das ações ordinárias pela existência dos privilégios previstos no artigo 17 da Lei nº 6.404/1976, a saber: (i) prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo; prioridade no reembolso do capital, com ou sem prêmio; ou (iii) acumulação das preferências e vantagens mencionadas nos itens (i) e (ii) acima27.

Em alentado estudo, Wolfgang Schön explica que as inúmeras opções conferidas aos instrumentos financeiros híbridos não somente contribuem para aumentar a complexidade dos sistemas tributários, como também prejudicam a coordenação fiscal internacional. O autor relembra que mesmo a aplicação de acordos internacionais não impede o surgimento de conflitos de qualificação entre o Estado do devedor e o Estado do credor, o que pode levar tanto à dupla tributação, quanto à dupla não tributação28.

É o que passamos a examinar a seguir.

3. Os Conflitos de Qualificação

A maior parte dos problemas relacionados ao estudo e à aplicação dos acordos internacionais para evitar a bitributação da renda decorre de questões atinentes à interpretação, qualificação e aplicação dos textos convencionais29.

As principais divergências de interpretação verificadas no expediente tributário estão comumente relacionadas ao enquadramento de determinados rendimentos nas cláusulas dos acordos internacionais para evitar a bitributação, para verificar como deverá ser exercido o poder de tributar em relação a certo rendimento. As consequências advindas das divergências de interpretação e qualificação são bastante relevantes, pois podem conduzir à bitributação (conflito positivo) ou à dupla isenção (conflito negativo). Por óbvio, essas possíveis consequências são absolutamente incompatíveis com os objetivos visados pelos Estados no momento da celebração dos acordos internacionais para evitar a bitributação da renda.

Com esse pano de fundo, percebe-se que é de vital importância o estudo doutrinário das atividades de interpretação e a qualificação dos instrumentos híbridos no âmbito dos acordos internacionais. Afinal, como relembra Daniel Vitor Bellan, a harmonia na aplicação dos acordos de bitributação da renda pelos países depende tanto da interpretação sintonizada de seus dispositivos, quanto da qualificação uniforme dos rendimentos submetidos aos seus domínios30.

Apesar da inexistência de dúvida a respeito da importância das atividades de interpretação e qualificação, convém ponderar que a doutrina, nacional e internacional, ainda é extremamente controvertida a respeito de como essas atividades devem ser desenvolvidas no âmbito dos acordos internacionais de bitributação.

A todo rigor, não há como enfrentar os problemas que emergem dos conflitos de qualificação sem a construção de um sólido arcabouço teórico a respeito da teoria da interpretação dos acordos internacionais. Ao proceder à distinção entre interpretação e qualificação, o professor Luís Eduardo Schoueri, com a sua habitual clareza, ensina que a interpretação dirige-se à compreensão da norma convencional, ao passo que a qualificação concentra-se no conhecimento do fato31.

Dessa forma, para atingir ao objetivo proposto no presente trabalho, será preciso determinar tanto o âmbito de aplicação das cláusulas convencionais, quanto investigar a natureza jurídica dos instrumentos financeiros híbridos, para, somente então, proceder à sua qualificação do acordo de bitributação.

É interessante registrar que as diferentes interpretações adotadas pelos países, por vezes, podem conduzir a problemas relativos ao próprio aproveitamento de crédito (tax credit) no âmbito dos acordos internacionais32, uma vez que o país de residência apenas outorga o direito ao crédito de imposto de renda caso o país da fonte esteja autorizado a efetuar a retenção, nos termos do respectivo acordo internacional33.

No que diz respeito à metodologia, a interpretação do acordo de bitributação deve ter como ponto de partida o próprio texto dos enunciados convencionais, à luz do princípio do pacta sunt servanda, consagrado no artigo 26 da Convenção de Viena. Em seguida, caso o significado do termo ou expressão não possa ser obtido por meio da interpretação do próprio texto do acordo internacional, deve-se recorrer ao seu contexto, nos termos do artigo 31 (2) e (3) da Convenção de Viena. Por último, caso a indefinição persista, o intérprete deve seguir o disposto no artigo 3 (2) da Convenção Modelo da OCDE, chamada cláusula de reenvio, que remete a interpretação do termo ou expressão ao direito interno dos Estados contratantes.

No caso dos rendimentos provenientes de instrumentos financeiros híbridos, cabe registrar que tanto os dividendos (artigo 10) quanto os juros (artigo 11) estão expressamente definidos na Convenção Modelo, o que, em princípio, afasta a aplicação do artigo 3 (2), que trata especificamente dos “termos não definidos”. A observação é relevante, uma vez que elimina o reenvio ao direito interno em relação às expressões autônomas (termos expressamente definidos no acordo), salvo nas hipóteses de remissões parciais específicas à lei doméstica.

Não há espaço para analisar, no presente texto, as possíveis soluções para a controvérsia acerca da competência para a qualificação dos rendimentos nos acordos internacionais. O tema provoca acesos debates na doutrina, que apresenta diferentes soluções: (i) cada Estado, ao aplicar o acordo internacional, qualificará os termos contidos em suas cláusulas de acordo com a sua legislação doméstica (qualificação pela “lex fori”); (ii) ambos os Estados qualificarão os rendimentos nas cláusulas do acordo internacional em consonância com o Estado de fonte do rendimento (qualificação pela “lex causae”); (iii) ambos os Estados estabelecerão uma qualificação consistente dos rendimentos com base no contexto do acordo internacional (a qualificação autônoma)34; (iv) a teoria da competência qualificatória exclusiva de Alberto Xavier35; (vi) a aplicação do “new approach” na qualificação pelo Estado de fonte e a teoria de Avery Jones36.

Para o propósito do presente estudo, é suficiente assimilar que, como os termos dividendos (artigo 10) e juros (artigo 11) estão expressamente definidos no acordo, deve-se privilegiar, primariamente, a qualificação autônoma. Apenas se essa restar infrutífera37, o que ocorre principalmente em relação aos termos “não expressamente definidos” (o que não é o caso), o intérprete-aplicador poderá, como último recurso, empregar a “lex fori” (qualificação pelo Estado da aplicação do acordo).

Feitas essas ponderações preliminares, passa-se a examinar o tema da qualificação dos instrumentos financeiros híbridos. Para o propósito do presente estudo, nos concentraremos na Convenção Modelo da OCDE, a qual, segundo estimativa da própria organização38, foi utilizada como base para a celebração de mais de 3000 acordos internacionais de bitributação, incluindo aqueles firmados pelo Brasil.

4. Os Dividendos (Artigo 10 da Convenção Modelo)

Em traços largos, o conceito de dividendos no âmbito da Convenção Modelo da OCDE envolve os lucros distribuídos por sociedades de capital, notadamente as sociedades anônimas, as sociedades em comandita por ações e as sociedades de responsabilidade limitada. Assim, como regra geral, a definição de dividendos não alcança os lucros distribuídos por meio de partnerships, as quais são tratadas, pela lei doméstica da maior parte dos países (principalmente aqueles de origem anglo-saxônica, baseados no sistema jurídico do common law), como formas associativas transparentes (pass-through entities) e destituídas de personalidade jurídica própria.

O artigo 10 (3) da Convenção Modelo OCDE define os dividendos como (i) os rendimentos provenientes de ações, ações ou direitos de fruição, quotas minerárias, quotas de sócios fundadores, partes beneficiárias; ou (ii) outros direitos de participação nos lucros, desde que não sejam caracterizados como direito de crédito. Na sua parte final, o dispositivo convencional faz remissão à lei interna do Estado de Fonte dos dividendos, ao incluir, no seu âmbito normativo, (iii) outros rendimentos submetidos ao mesmo regime fiscal dos lucros distribuídos sobre ações, segundo a legislação doméstica do Estado de residência da sociedade que os distribui.

Para facilitar a compreensão, convém transcrever trecho do dispositivo:

OCDE

Brasil

3. The term “dividends” as used in this Article means income from shares, “jouissance” shares or “jouissance” rights, mining shares, founders’ shares or other rights, not being debt-claims, participating in profits, as well as income from other corporate rights which is subjected to the same taxation treatment as income from shares by the laws of the State of which the company making the distribution is a resident.

3. O termo “dividendos” usado no presente artigo designa os rendimentos provenientes de ações, ações ou direitos de fruição, ações de empresa mineradoras, partes de fundador ou outros direitos de participação em lucros, com exceção de créditos, bem como rendimentos assemelhados aos rendimentos de ações pela legislação tributária do Estado Contratante em que a sociedade que os distribuir seja residente.

O elemento distintivo para a qualificação da remuneração proveniente de instrumentos financeiros híbridos como dividendos repousa na expressão “corporate rights” (em português, algo como “direitos societários”), utilizada na parte final do artigo 10 (3). Aliás, ao utilizar o adjetivo “other” para qualificar “corporate rights”, a cláusula convencional evidencia que os demais rendimentos incluídos na definição de dividendos também representam direitos societários. Logo, pode-se assentar que as ações, os direitos de fruição, as quotas minerárias, as quotas de sócios fundadores, as partes beneficiárias e os outros direitos devem ser interpretados como direitos societários de participação nos lucros, que não decorram de mero direito de crédito.

Sucede que, a despeito de sua importância para a definição do âmbito normativo do artigo 10, a expressão “corporate rights” não está definida expressamente na Convenção Modelo da OCDE, motivo pelo qual se faz necessário recorrer, à mingua de definição explícita, ao exame autônomo do seu conteúdo. Para que fique claro, perceba que não é necessário, neste momento, invocar a lei doméstica, pois se a expressão “corporate rights” não pudesse ser objeto de qualificação autônoma no contexto do acordo internacional, não faria muito sentido a sua inclusão no artigo 10(3) como pedra de toque para a compreensão do conceito de dividendos.

Nos domínios da qualificação autônoma, a expressão “corporate rights” deve ser compreendida como um reclamo de que, para ser qualificado como dividendo, o rendimento deve ser proveniente de uma operação na qual o investidor compartilhe os riscos incorridos pela sociedade no exercício de sua atividade econômica (i.e., corra o chamado “risco do negócio”). Essa interpretação encontra amparo nos parágrafos 25 do artigo 10 e 19 do artigo 11, do Comentário da OCDE à Convenção Modelo.

Embora esse critério - o risco do negócio - seja adequado para a qualificação de certo rendimento como dividendo, cabe ponderar que ele não diminui integralmente as dificuldades práticas atinentes aos instrumentos financeiros híbridos, na medida em que será preciso examinar as particularidades de cada caso concreto para verificar se o investidor compartilha, ou não, os riscos incorridos pela sociedade.

Ainda dentro do tema, anotamos que, sem embargo da importação da qualificação autônoma para a delimitação do conceito de dividendo, não se pode ignorar que a terceira classe de dividendos (i.e., “outros rendimentos submetidos ao regime fiscal dos lucros distribuídos sobre ações”) faz expressa remissão à lei doméstica do Estado de fonte. Daí se dizer que o conceito de dividendos da lei doméstica integra o acordo internacional para efeito de interpretação do artigo 10 (3), o que poderá ser de fundamental importância para a qualificação dos instrumentos financeiros híbridos. Diante desse quadro, não soa descabida a advertência de que a remissão à lei doméstica deve ser objeto de interpretação dinâmica, para alcançar a legislação atualmente em vigor no Estado de fonte, em vez da legislação vigente à época da celebração do acordo internacional.

Ainda no que tange à cláusula subsidiária de remissão, cabe anotar que nem todo rendimento classificado como dividendo sob o prisma da lei doméstica será assim considerado para efeito de aplicação do acordo internacional. Isso porque, o artigo 10 (3) dispõe expressamente que o respectivo rendimento deve estar submetido ao mesmo regime fiscal dos lucros distribuídos sobre ações39.

A advertência acima pode trazer consequências práticas relevantes, a depender das características do caso concreto. Como exemplo, relembre-se que o art. 17, parágrafo 6º, bem como o art. 201, ambos da Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações) permitem o pagamento de dividendos fixos aos acionistas titulares de ações preferenciais, em contrapartida à conta de reserva de capital. Assim, sob o prisma do direito privado, não há dúvida de que os valores pagos aos acionistas titulares de ações preferenciais, à conta de reserva de capital, têm natureza jurídica de dividendos.

Porém, não se pode afirmar, sem ampla investigação, que os dividendos pagos à conta de reserva de capital serão considerados como rendimento submetidos ao mesmo regime fiscal dos lucros distribuídos, para efeito de sua qualificação como dividendos no âmbito dos acordos internacionais de bitributação. É que as reservas de capital não são constituídas com base nos lucros auferidos pela companhia, mas sim a partir de contribuições de acionistas ou de terceiros para o patrimônio líquido da sociedade40, como ocorre nas seguintes hipóteses: ágio da emissão de ações; alienação de partes beneficiárias e bônus de subscrição41. Logo, as reservas de capital originam-se de recursos recebidos pela companhia, mas que não transitam por conta de resultados.

Ocorre que o art. 10 da Lei nº 9.249/1995 somente concede isenção de imposto de renda aos lucros e aos dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996. Ora, como os dividendos pagos à conta de reserva de capital não tem lastro nos resultados da pessoa jurídica, poder-se-ia sustentar que a isenção de imposto de renda não é aplicável ao caso42, o que, por consequência, submeteria tais rendimentos a um regime fiscal distinto perante a lei doméstica43.

Não se quer, com isso, dizer que os dividendos pagos à conta de reserva de capital não podem ser qualificados no artigo 10 da Convenção Modelo. Na verdade, o que se pretende assentar é a relevância da cláusula de remissão à legislação doméstica, na hipótese em que se exige a submissão do respectivo rendimento ao mesmo tratamento tributário aplicável aos lucros distribuídos.

Adiante, o parágrafo 19 do Comentário da OCDE esclarece que os rendimentos derivados de títulos ou de outros instrumentos de crédito dimensionados com base no lucro, bem como os juros derivados de obrigações conversíveis (v.g., debêntures conversíveis), não estão compreendidos no conceito de dividendos previsto na Convenção Modelo. De qualquer forma, cabe ponderar que os Estados contratantes têm certa liberdade para, por meio de negociações bilaterais, incluírem na definição de dividendos outros rendimentos pagos pelas sociedades aos seus sócios ou acionistas.

Anote-se, ainda, que o Comentário da OCDE expressamente ressalva, em seu parágrafo 25, que o regime convencional não impede a eventual requalificação dos juros de operações de empréstimos em dividendos, na hipótese em que o mutuante assuma, em medida preponderante, o risco empresarial (v.g., a sua remuneração dependa do sucesso da atividade econômica), em consonância com os critérios estabelecidos na legislação de subcapitalização (thin capitalization) do país do mutuário.

No que tange à tributação, o artigo 10 da Convenção Modelo da OCDE reparte a potestade impositiva sobre os dividendos entre o país de residência do sócio (Estado de residência) e o país da sociedade que os distribui (Estado da fonte)44. No caso em que o beneficiário efetivo (beneficial owner) do rendimento é residente no outro Estado contratante, a alíquota máxima aplicável não pode ultrapassar 15%. Contudo, o imposto de renda na fonte não poderá exceder a alíquota de 5% se o beneficiário efetivo, residente no outro Estado contratante, for uma sociedade (exceto partnerships) que possua, diretamente, pelo menos 25% do capital da sociedade que paga os dividendos. Essa ressalva tem o objetivo de evitar a dupla tributação sobre os lucros distribuídos intragrupo (intercompany dividends)45.

A respeito da alíquota, registre-se que os acordos de bitributação celebrados pelo Brasil costumam adotar, como regra geral, apenas a alíquota de 15%, sem qualquer redução em razão do percentual do investimento.

Assentadas essas noções de caráter geral, é preciso esclarecer que, apesar de os acordos celebrados pelo Brasil autorizarem a tributação de dividendos pelo Estado de fonte à alíquota máxima de 15%, os dividendos provenientes de pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil permanecem isentos de tributação, em razão do disposto no artigo 10 da Lei nº 9.249/1995. Neste ponto, cabe recordar a conhecida metáfora de Klaus Vogel, saudoso professor das universidades de Heidelberg e Munique, segundo a qual o espectro de atuação do acordo internacional para evitar a bitributação serve como uma máscara colocada sobre o direito interno, para encobrir determinadas partes. Assim, os preceitos normativos do direito interno que continuarem visíveis, por corresponderem aos buracos recortados na máscara, permanecem aplicáveis ao caso concreto, ao passo que os demais têm a sua aplicação contida pelo acordo internacional46. Frise-se que a parte da lei interna encoberta pela máscara deixa de ser aplicada ao caso concreto, sem que seja revogada47. Em consequência, os acordos internacionais para evitar a bitributação limitam-se a indicar o ordenamento jurídico competente para tributar determinado rendimento que guarde conexão com ambos Estados contratantes48. Porém, a tributação efetiva será realizada com base no direito interno do Estado competente, em virtude da insuficiência da norma convencional para dar origem à obrigação tributária.

Nesta linha, os preceitos normativos introduzidos por meio de acordos internacionais para evitar a bitributação têm características de normas de Direito Internacional, que impõem limites - aceitos pelos próprios Estados - à jurisdição nacional49. Assim, enquanto o antecedente da norma convencional prevê determinada espécie de rendimento, o consequente distribui a competência para a sua tributação ao Estado de residência, ao Estado de fonte ou a ambos os Estados, observados os limites estabelecidos no próprio acordo50. Em termos singelos, pode-se dizer que as normas dos acordos internacionais limitam a aplicação do direito interno dos Estados.

Por igual forma, a simples existência de norma distributiva de competência, seja exclusiva, seja cumulativa, não é suficiente para determinar a tributação, ou não, de certo rendimento. É necessário investigar, após a delimitação do poder de tributar, se a lei interna do Estado competente prevê aquela incidência tributária examinada no caso concreto. Impende registrar que, para efeito de tributação internacional, não há necessidade de o intérprete observar uma ordem específica de interpretação. Ao revés, o exegeta é livre para iniciar o exame pelo direito interno ou pelo acordo internacional, conforme o caso concreto revelar mais conveniente. O essencial, para que seja legítima a imposição fiscal, é que a lei interna prescreva a incidência do imposto de renda sobre determinado rendimento, sem que o acordo internacional suprima a competência impositiva do Estado naquela situação51.

É fácil ver, pois, que o acordo internacional apenas limita a aplicação da legislação interna, sem fazer com que a alíquota de 15% prevista na cláusula convencional seja aplicada a situações não disciplinadas pelo legislador nacional52.

5. Os Juros (Artigo 11 da Convenção Modelo)

O tratamento dos juros nos acordos internacionais de bitributação celebrados pelo Brasil segue, como linha mestra, o disposto no artigo 11 da Convenção Modelo da OCDE. Em linhas gerais, os acordos prevêem alíquotas reduzidas a serem aplicadas pelo Estado de fonte (tratamento analítico), com a possibilidade de aplicação de tratamento sintético pelo Estado de residência.

O artigo 11 (3) da Convenção Modelo da OCDE define como juros os rendimentos derivados de créditos de qualquer natureza, com ou sem garantia hipotecária, e que contenham, ou não, o direito de participar nos lucros, em especial rendimentos de títulos da dívida pública, títulos e debêntures, inclusive os respectivos prêmios. Para facilitar a compreensão, transcreve-se trecho da cláusula convencional:

OCDE

Brasil

The term “interest” as used in this Article means income from debt-claims of every kind, whether or not secured by mortgage and whether or not carrying a right to participate in the debtor’s profits, and in particular, income from government securities and income from bonds or debentures, including premiums and prizes attaching to such securities, bonds or debentures. Penalty charges for late payment shall not be regarded as interest for the purpose of this article.

O termo “juros”, conforme usado no presente Artigo, significa os rendimentos de créditos de qualquer natureza, acompanhados ou não de garantias hipotecárias ou de uma cláusula de participação nos lucros do devedor, e, em particular, os rendimentos da dívida pública, de títulos ou debêntures, inclusive ágios e prêmios vinculados a esses títulos, obrigações ou debêntures, assim como quaisquer outros rendimentos que a legislação tributária do Estado Contratante de que provenham assimile aos rendimentos de importâncias emprestadas.

A parte decisiva da definição de juros constante do artigo 11(3) repousa no significado da expressão “rendimentos derivados de créditos de qualquer natureza”. Assim, os exemplos citados na parte final da cláusula convencional - títulos da dívida pública, títulos e debêntures - têm caráter meramente ilustrativo, o que significa que esses instrumentos foram mencionados apenas por sua importância prática, sem qualquer influência significativa para a determinação do conceito de juros.

Como regra geral, o conceito de juros deve ser extraído da interpretação plena e exaustiva da definição enunciada no próprio acordo internacional.

Isso porque, de acordo com o parágrafo 21 do Comentário da OCDE ao artigo 11 da Convenção Modelo, a definição acima abrange praticamente todos os rendimentos considerados como juros nas leis internas dos diferentes países. No entender da organização, a fórmula empregada na redação da cláusula oferece maior segurança jurídica, além de assegurar que os acordos internacionais não serão afetados por futuras alterações nas legislações domésticas dos Estados contratantes. Afinal, a Convenção Modelo deve evitar, sempre que possível, remissão às leis domésticas.

Destarte, pode-se assentar que, pelo menos em princípio, a definição de juros é plena e exaustiva, o que afasta a necessidade de recurso à legislação doméstica dos Estados contratantes, tendo em vista que a Convenção Modelo, após a revisão de 1977, deixou de fazer menção “a qualquer outro rendimento que, pela legislação tributária do Estado Contratante de que provenham, seja assemelhado aos rendimentos de importâncias emprestadas” (cláusula de reenvio). Diante da eliminação da remissão subsidiária à lei interna, Alberto Xavier explica que a definição de juros deixa de ser aberta e passa a ser cerrada e exaustiva, o que restringe a competência qualificatória do Estado de fonte aos precisos termos do acordo internacional de bitributação53.

Porém, relembre-se que os acordos internacionais celebrados pelo Brasil estão baseados, em grande parte, na redação antiga do artigo 11, inserta na Convenção Modelo da OCDE de 1963, hipótese em que a lei doméstica pode desempenhar um papel importante na compreensão do conceito de juros54. De fato, o Brasil, como país não membro da OCDE, reservou expressamente o seu direito de considerar como juros qualquer outro rendimento assemelhando aos rendimentos oriundos de empréstimos sob a perspectiva da legislação do Estado contratante de onde provenham55. As únicas exceções são os acordos assinados com a China (1991), Finlândia (1996) e Ucrânia (2002), os quais não têm cláusula remissão ao direito interno.

Ainda no que tange ao conceito de juros, é interessante examinar o caso dos juros sobre o capital próprio (JCP), que é um instituto jurídico com características híbridas, sendo tratado como distribuição de resultado sob a ótica do direito societário e como despesa financeira sob o enfoque o direito tributário56. Em rápida síntese, o cerne da controvérsia consiste em saber se a qualificação direta do JCP no conceito de dividendo, em virtude da sua natureza jurídica de rendimento de participação societária, sobrepõe-se à norma de remissão subsidiária para a lei doméstica inserta na Convenção Modelo da OCDE de 1963, que é seguida pelo Brasil.

Com muita acuidade, Alberto Xavier defende que, na ausência de disposição convencional em sentido contrário, a remuneração paga a título de JCP deve ser qualificada como dividendo, pois não há uma relação de crédito preexistente (debt-claim). Para o autor, o JCP corresponde a uma forma de distribuição de lucro aos titulares do capital da pessoa jurídica pagadora, razão pela qual pode ser considerado um rendimento de participação societária (income from corporate rights). Porém, o próprio Xavier reconhece que a qualificação do JCP como juros representa uma tendência da política brasileira de negociação de acordos, baseada na similitude entre o tratamento tributário conferido aos juros e JCP no âmbito do direito interno57.

Em contraposição a esse ponto de vista, Paulo César Teixeira Duarte sustenta que os rendimentos pagos a título de JCP devem ser qualificados como juros, uma vez que a lei brasileira assemelha o JCP aos juros e, concomitantemente, os acordos internacionais de bitributação celebrados pelo Brasil tem cláusula convencional específica de reenvio à lei doméstica. Ao contrário de Alberto Xavier, o autor defende que a cláusula de reenvio constante do artigo 11 (3) não tem caráter subsidiário, por contribuir para a própria determinação do conceito de juros58.

De nossa parte, filiamo-nos à primeira corrente, capitaneada por Alberto Xavier, por estarmos convencidos de que é preciso privilegiar, na interpretação dos acordos internacionais, a qualificação autônoma, até como forma de mitigar os efeitos das diferenças existentes entre os regimes jurídicos de cada Estado contratante. Aos argumentos de Xavier, acrescentamos que, mesmo nos acordos de bitributação baseados na redação original dos artigos 10 e 11 da Convenção Modelo de 1963, as definições parcialmente abertas decorrentes de reenvio específico à lei interna devem ser interpretadas de forma sistemática e no contexto de cláusula convencional, motivo pelo qual o intérprete não pode considerá-la de forma isolada. Essa medida se justifica porquanto, caso assim não fosse, bastaria que o Estado de fonte alterasse o tratamento tributário aplicável a determinado rendimento perante a sua lei interna, equiparando-o aos juros, para que a nova qualificação passasse a vincular o Estado de residência.

Para se evitar o inconveniente acima, reputamos que o conteúdo extrínseco (reenvio à lei interna) deve pertinência ao conteúdo intrínseco (cláusula convencional como um todo), de tal sorte que, para ser qualificado no artigo 11, não basta que o rendimento esteja submetido ao regime jurídico de juros no âmbito da lei tributária brasileira, sendo indispensável a sua caracterização como “debt-claim”.

Analisando o tema sob a perspectiva acima, é fácil perceber que a relação jurídica subjacente ao pagamento do JCP não decorre de uma operação de crédito (debt-claim). Ao contrário, vê-se claramente que o JCP deve ser qualificado como “corporate right”, tendo em vista que (i) a distribuição está subordinada a existência de lucros atuais ou acumulados; (ii) o pagamento não decorre de uma obrigação de crédito subjacente, mas, sim, de um investimento em participação societária; (iii) o JCP somente pode ser pago a sócio ou acionista e na proporção da participação; e (iv) o JCP pode ser imputado ao dividendo obrigatório sob a perspectiva da lei societária brasileira59.

Ademais, cabe destacar que o artigo 10 (3) menciona expressamente “outros direitos de participação em lucros, com exceção de créditos”. Logo, em relação aos direitos de participação nos lucros, como é o caso do JCP, a cláusula acima diz claramente que a qualificação no âmbito do artigo 11 somente pode ocorrer caso a natureza jurídica da operação seja de “debt-claim”. Essa é a intepretação mais coerente, pois o ponto de partida para a qualificação de determinado rendimento envolve o exame do negócio jurídico subjacente. O intérprete não deve olhar diretamente para o rendimento. Ao contrário, é preciso primeiro compreender a natureza jurídica da operação subjacente, para, então, qualificar o rendimento dela proveniente.

Tanto é assim que, no parágrafo 21.1. do Comentário à Convenção Modelo, a OCDE esclarece que a definição de juros não abrange os rendimentos provenientes de instrumentos financeiros não tradicionais, nos quais não exista uma dívida subjacente (underlying debt), como ocorre na operação de swap de taxa de juros (interest rate swap). Isso comprova que é preciso examinar a natureza jurídica da operação, para então se qualificar o respectivo rendimento. No mesmo sentido, o Comentário da OCDE dispõe que o artigo 11 da Convenção Modelo deverá ser aplicado quando restar caracterizada a existência de um empréstimo subjacente, segundo o critério da prevalência da substância sobre a forma, do abuso de direito ou qualquer doutrina semelhante, o que corrobora a importância da essência da operação.

Logo, para que o rendimento seja caracterizado como proveniente de uma relação jurídica de crédito, é preciso que certos requisitos sejam observados: (i) o mutuante não deve compartilhar os riscos incorridos pela sociedade no exercício de sua atividade econômica; (ii) o direito ao resgate, reembolso ou devolução do capital investido não pode ser contingente, condicional ou incerto; (iii) o direito à devolução não deve estar subordinado ao pagamento de todos os demais credores em caso de liquidação da sociedade, a fim de que o capital somente seja devolvido se e quando todas as demais dívidas pendentes tiverem sido liquidadas.

Ao que interessa aos objetivos do presente trabalho, não há necessidade de maior esforço de intepretação para se concluir que, mesmo sob o prisma da Convenção Modelo de 1963, o valor pago a título de JCP deve ser qualificado como dividendo, como, aliás, defende o professor Alberto Xavier. A intepretação acima somente deve ser afastada nos casos em que há previsão expressa no Protocolo, como nos acordos de bitributação celebrados com Trinidad Tobago, Peru, Venezuela, Rússia, África do Sul, México, Ucrânia, Israel, Chile, Portugal e Paraguai, situações em que o JCP deve ser qualificado como juros. Aliás, cabe mencionar que, dos países indicados acima, apenas o acordo de bitributação celebrado com a Ucrânia não é baseado na Convenção Modelo da OCDE de 1963, o que confirma que a mera remissão à lei interna não é suficiente para qualificar o JCP como juros. Do contrário, não seria necessário incluir previsão expressa no Protocolo para atingir esse objetivo.

Com relação à tributação, a Convenção Modelo optou por repartir a potestade impositiva entre o Estado de fonte e o Estado de residência. Para tanto, o artigo 11 (2) prevê que o Estado de fonte poderá tributar os juros à alíquota máxima de 10%, caso o beneficiário efetivo do rendimento seja residente no outro Estado contratante. A seu turno, o Estado de residência do beneficiário deverá conceder crédito em relação ao imposto de renda retido pelo Estado de fonte. Note-se que o parágrafo 47 do Comentário da OCDE aos artigos 23A e 23B recomenda que, caso o Estado de residência opte por fazer uso do seu direito de tributar os juros e os dividendos, não se deve aplicar o método da isenção para eliminar a dupla tributação, pois isso implicaria a renúncia completa ao seu direito de tributar o rendimento em questão. Deve-se aplicar, portanto, o método do crédito de imposto, que oferece a solução mais satisfatória.

No caso do Brasil, a maior parte dos acordos de bitributação estabelece uma alíquota máxima de 15%, com exceção daqueles celebrados com a Suécia, que prevê uma alíquota de 25% para os juros pagos a pessoas físicas e a sociedades de pessoas, e com o Japão, que estabelece uma alíquota máxima de 12,5%60.

Retornando ao caso do JCP, convém esclarecer que a tributação na fonte do rendimento correspondente sempre será realizada com base no direito interno, pois o acordo internacional apenas delimita a jurisdição tributária. Como os acordos celebrados pelo Brasil adotam, como regra geral, a alíquota máxima de 15% como limite para a tributação pelo Estado de fonte, o JCP geralmente poderá ser tributado integralmente com base na alíquota de 15% prevista no artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei nº 9.249/1995, salvo no caso do acordo Brasil-Japão61.

Quer isso exprimir, por outros torneios, que a divergência geralmente existirá apenas no Estado de residência, no momento de evitar ou aliviar a bitributação, por meio dos métodos da isenção (artigo 23A) ou crédito de imposto (artigo 23 B). Para ilustrar a situação, cabe destacar que, em julgamento realizado em 6 de junho de 2012, o Tribunal Financeiro Federal Alemão (Bundesfinanzhof - BHF) considerou que o JCP deveria ser qualificado como dividendo no antigo acordo de bitributação celebrado entre o Brasil e a Alemanha62, com base nos argumentos a seguir sintetizados: (i) os juros representam uma remuneração pelo uso do capital emprestado, baseada no prazo de duração do mútuo; (ii) os juros são provenientes de uma relação jurídica principal de crédito, que permite o pagamento do principal e dos juros, o que não ocorre com o JCP; e (iii) o sócio não tem um direito de crédito (debt claim) contra a pessoa jurídica, na medida em que ele não pode exigir o pagamento do JCP63. Tal precedente demonstra que, salvo os acordos internacionais com previsão expressa no protocolo64, a classificação do JCP como juros não é imediata, mesmo nas hipóteses em que o Brasil adota a antiga redação da Convenção Modelo da OCDE de 1963, o que pode, inclusive, gerar conflitos de qualificação entre o Brasil e o Estado de residência do beneficiário do rendimento.

Consignadas tais anotações, impõe-se reconhecer que é criticável a postura da OCDE ao adotar abordagens distintas para os dividendos e os juros, ora admitindo o reenvio à legislação doméstica, ora privilegiando uma descrição exaustiva. Em certa medida, as diferentes abordagens podem contribuir para as controvérsias atinentes à qualificação dos rendimentos provenientes de instrumentos financeiros híbridos nos acordos de bitributação. O ideal é que o artigo 10 (3) da Convenção Modelo elimine o reenvio à lei doméstica em sua parte final, a fim de que o conceito de dividendo seja objeto de interpretação plena e exaustiva.

Por fim, ressalte-se que não necessariamente o tratamento tributário conferido aos dividendos será mais vantajoso sob a perspectiva do acordo internacional, principalmente nos casos de acordos com cláusulas de matching credit para os juros remetidos por fontes brasileiras. À guisa de ilustração, pode-se mencionar o acordo celebrado entre o Brasil e a Áustria, que prevê um crédito presumido de 25% relativo ao imposto pago no Brasil contra o imposto de renda pago pelas sociedades de capital, que também é cobrado à alíquota de 25%. Nesta situação, haverá uma redução global da carga tributária, pois não existirá imposto de renda a recolher na Áustria e a sociedade residente no Brasil, que efetuou o pagamento dos juros, poderá deduzir as despesas de juros do seu lucro tributável65.

6. Outros Rendimentos (Artigo 21 da Convenção Modelo)

A qualificação dos rendimentos provenientes de instrumentos financeiros híbridos em um artigo específico da Convenção Modelo da OCDE é exaustiva, implicando em exclusão mútua. Logo, não se admite a fragmentação do rendimento para qualificar uma parte como dividendo e outra parte como juros.

Ocorre que, como visto acima, tanto os dividendos quanto os juros possuem definições assentadas no âmbito do acordo internacional. Em suma, o elemento nuclear para a distinção é a caracterização do rendimento como proveniente de direito de sociedade (corporate right) ou de direito de crédito (debt-claim).

É possível, entretanto, que o rendimento não preencha os requisitos para a sua qualificação em qualquer das cláusulas convencionais acima. Neste caso, a interpretação poderá conduzir à aplicação do artigo 21 da Convenção Modelo.

Em inúmeros casos, os “rendimentos não expressamente mencionados” estão contemplados no artigo 22 dos acordos internacionais celebrados pelo Brasil. De qualquer forma, por conveniência didática, mencionaremos, doravante, apenas o artigo 21, para manter a exposição alinhada com a Convenção Modelo da OCDE.

Desde logo, cabe ressaltar que o artigo 21 da Convenção Modelo somente deve ser invocado em caráter residual, para alcançar os rendimentos que, depois de esgotadas as demais possibilidades de interpretação, não puderem ser qualificados em outros dispositivos específicos do acordo internacional.

Além disso, o artigo 21 da Convenção Modelo não pode ser utilizado para resolver conflitos de qualificação, como uma alternativa para as hipóteses em que o interprete-aplicador está em dúvida a respeito da correta classificação de determinado rendimento nas disposições do acordo internacional de bitributação. Assim, parece-nos que essa cláusula convencional somente poderá ser invocada em situações excepcionais, quando, em virtude das características específicas do instrumento financeiro híbrido, restar configurado o seu não enquadramento como juros ou como dividendos.

Ainda que sob o risco de soar redundante, vale insistir: o não enquadramento acima referido não pode decorrer de dúvida ou incerteza quanto à classificação do rendimento no artigo 10 ou 11, mas, sim, do fato de que o rendimento não ostenta as características indispensáveis para a sua qualificação como juros ou como dividendos, nos termos das definições do acordo internacional. Na prática, a possibilidade de aplicação do artigo 21 pode vir a ser apenas teórica, como contingência do caráter pleno e exaustivo das definições constantes das clausulas convencionais, eis que é difícil imaginar um rendimento proveniente de instrumento híbrido que, simultaneamente, não preencha as características de ambos os dispositivos.

Para ilustrar o seu caráter excepcional, convém anotar que o artigo 21 da Convenção Modelo geralmente alcança os seguintes rendimentos: anuidades de previdência social, pagamentos de manutenção a parentes, indenizações, resgate de plano de pensão, pagamentos de seguridade social, heranças, pensão por invalidez, prêmios artísticos e acadêmicos, donativos de fundações, ganhos de jogos de azar, prêmios de loteria, dentre outros. Sem prejuízo de seu caráter não exaustivo, o rol apresentado acima evidencia, com propriedade, a índole residual do artigo 21 dos acordos internacionais baseados na Convenção Modelo66.

Por fim, deve-se registrar que o artigo 21 dos acordos internacionais celebrados pelo Brasil adota um critério distinto daquele preconizado pela Convenção Modelo da OCDE, na qual prevalece a competência exclusiva do Estado de residência para tributar os rendimentos não expressamente mencionados67. Os acordos brasileiros preveem competência cumulativa do Brasil e do país de residência para a tributação.

7. Conclusões e Possíveis Soluções

Como visto ao longo do presente estudo, a qualificação dos instrumentos financeiros híbridos nos acordos internacionais de bitributação é um tema extremamente controvertido e de difícil solução. Assim, cabe ao intérprete-aplicador procurar soluções que, em um cenário ideal, evitem a dupla tributação ou a dupla não tributação, em observância ao single tax principle. É que a qualificação inconsistente dos rendimentos provenientes de instrumentos financeiros híbridos pode resultar na aplicação incongruente dos mecanismos fiscais integrados na origem e na residência68. Isso porque as receitas decorrentes dos instrumentos financeiros híbridos podem receber classificações distintas para fins de aplicação da legislação doméstica e dos acordos internacionais, o que também pode gerar consequências fiscais. A título de exemplo, a legislação doméstica não autoriza a dedutibilidade dos pagamentos de dividendos, ao passo que o Estado de residência não concede o mecanismo para aliviar a bitributação (isenção ou crédito), o que recomenda a harmonização entre a tributação interna e os acordos internacionais. Em sentido oposto, pode ocorrer de o rendimento do instrumento financeiro híbrido ser classificado como dívida pela legislação doméstica, com a consequente dedução das despesas de juros. Em seguida, esse rendimento é classificado como dividendo no âmbito dos acordos internacionais, com o reconhecimento de isenção ou concessão de crédito pelo Estado de residência.

O critério para a qualificação dos rendimentos oriundos de instrumentos financeiros híbridos repousa na dualidade entre direito de sociedade (corporate right) ou de direito de crédito (debt-claim).

Em sentido técnico, os dividendos decorrem da atividade geral da empresa, por meio de uma operação algébrica de receitas menos despesas69. Ao optar pela subscrição e integralização do capital social da pessoa jurídica, os sócios ou acionistas arriscam os recursos empregados no empreendimento, com o objetivo de obter lucro em montante superior ao chamado custo de oportunidade. Dessa forma, ao optar pelo investimento, o sócio ou acionista participa da atividade econômica e corre o risco do negócio, com o objetivo de auferir lucro. De outro lado, os juros são devidos em função de uma obrigação assumida pela empresa perante terceiro, mediante a contratação de empréstimo. O empréstimo tem risco limitado para o investidor, que, além de recuperar o valor do principal emprestado, também fará jus ao recebimento dos juros fixados.

De modo mais preciso, David B. Hariton ensina que a intenção do sócio ou acionista é embarcar na aventura empresarial, assumindo os riscos de perda inerentes ao exercício da atividade econômica, para que possa desfrutar das futuras possibilidades de lucro. Ao contrário, o credor não tem a intenção de assumir os riscos do empreendimento econômico, motivo pelo qual opta por simplesmente emprestar o seu capital para os investidores que estejam dispostos a assumi-los70.

No âmbito de um acordo de bitributação, para que seja caracterizado como investimento em participação societária, o investidor deve assumir o risco de perder o capital investido, de forma semelhante ao risco assumido pelo sócio de um empreendimento. Outra característica indicada no Comentário à Convenção Modelo para a caracterização do rendimento como dividendo consiste no direito do investidor de participar dos lucros e resultados do empreendimento (profit-contingency), o que tende a afastar do conceito de dividendos os rendimentos de caráter predeterminado, que independem de qualquer outro fator aleatório. É que o dividendo é um rendimento de natureza incerta, de modo que o acionista poderá, ou não, recebê-lo, a depender do resultado da atividade empresarial. Ademais, para ser qualificado como dividendo, o direito ao recebimento do rendimento deve ser subordinado aos demais créditos em caso de liquidação da sociedade.

Registre-se, porém, que a definição de dividendos não exige participação ativa no processo decisório da companhia investida, com efetiva influência na definição de sua política estratégica e na sua gestão, como um elemento essencial para a caracterização do investimento como capital. Esse aspecto é relevante, pois a ausência de participação no processo decisório é uma característica corriqueira nos investimentos híbridos, tendo em vista que o investidor, por vezes, não tem o conhecimento técnico específico para exercer, em caráter efetivo, o controle do investimento.

O relatório geral da International Fiscal Association (IFA) aponta que a maior parte dos países propõe a realização de testes para a qualificação dos instrumentos financeiros híbridos como dívida ou contribuição ao capital social71. Dentre os fatores apontados, cabe destacar os seguintes72:

Instrumentos de Dívida

Conversibilidade

Os instrumentos de dívidas conversíveis em ações podem ser classificados como contribuição ao capital social, a depender do prazo de vencimento e da volatilidade das ações.

Participação nos Lucros

Os instrumentos de dívida podem ser classificados como contribuição ao capital social caso a sua remuneração seja predominantemente baseada nos resultados da empresa (v.g., pagamento dos juros em função dos lucros distribuídos aos demais acionistas).

Prazo de pagamento dos juros e principal

Nos instrumentos de dívida de longo prazo, em que não há o pagamento de juros até a liquidação do principal, o risco assumido pelo investidor assemelha-se ao risco assumido pelo sócio ou acionista.

Subordinação

Se o instrumento de dívida é subordinado aos demais créditos em caso de liquidação da sociedade, o risco assumido pelo investidor assemelha-se àquele inerente ao sócio ou acionista.

Prazo longo ou indefinido

Os instrumentos de dívida sem prazo definido podem ser considerados um investimento permanente na empresa, principalmente se houver outras características mencionadas acima.

Liquidação em Ações

Caso o instrumento de dívida preveja a sua liquidação mediante o recebimento de ações, esse aspecto expõe o detentor do título aos mesmos riscos dos sócios ou acionistas.

Com supedâneo nas ponderações ora desenvolvidas, pode-se vaticinar que a Convenção Modelo da OCDE não oferece uma solução satisfatória para o problema da qualificação dos rendimentos oriundos de instrumentos financeiros híbridos, o que recomenda a adoção de medidas alternativas para dirimir eventuais controvérsias, principalmente mediante a inclusão de cláusulas específicas nos acordos internacionais.

A inclusão de cláusulas específicas nos acordos internacionais é uma solução viável para a qualificação dos rendimentos provenientes dos instrumentos financeiros híbridos, sendo que essa prática parece ser incentivada pelo Comitê de Assuntos Tributários no Comentário à Convenção Modelo da OCDE, especificamente no parágrafo 7 do artigo 21, que trata dos instrumentos financeiros não tradicionais.

Neste sentido, o novo acordo internacional celebrado entre a Alemanha e Luxemburgo, em 23 de abril de 2012, prevê expressamente, no item 2 do protocolo, que a remuneração decorrente de instrumentos financeiros híbridos, paga por fonte pagadora localizada na Alemanha, estará sujeita à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 26,375%, caso os respectivos valores tenham gerado despesas dedutíveis para fins de apuração do imposto de renda devido naquele país73.

A respeito do tratamento tributário específico comentado acima, Eugen Bogenschütz e Jean Schaffner explicam que o artigo 44a, parágrafo 9, do Regulamento do Imposto de Renda Alemão (Einkommen-steuergesetz) prevê que as sociedades não residentes na Alemanha podem apresentar um pedido de restituição de 2/5 do valor do imposto de renda na fonte, o que reduziria a carga tributária efetiva para 15,825%. Porém, os autores alertam que esse pedido de restituição está condicionado à observância das rígidas regras germânicas de antitreaty shopping, previstas no artigo 50d, parágrafo 3º, do RIR Alemão74.

Para concluir o presente estudo, parece-nos conveniente apresentar, nesta oportunidade, nossa proposta para futura reforma dos acordos internacionais de bitributação, com o objetivo de resolver - ou, pelo menos, mitigar - o problema da qualificação dos rendimentos provenientes de instrumentos financeiros híbridos.

A nossa proposta envolve o desenvolvimento e a inclusão de tie breaker rules, com uma série de critérios que visam a dirimir os conflitos de qualificação entre juros e dividendos, em relação aos rendimentos oriundos de instrumentos híbridos. As tie breaker rules corresponderiam a uma série de testes a serem aplicados em degraus, a partir da análise das características típicas do rendimento, bem como do próprio instrumento financeiro híbrido, com o objetivo de verificar se a natureza jurídica é de juros ou dividendos. Anote-se que, ao contrário das tie breaker rules relativas à definição da residência (artigo 4), os testes ora sugeridos devem ser aplicados de forma sucessiva até o último degrau, pois um único teste não será considerado conclusivo, sendo necessário que o intérprete siga para os critérios subsequentes.

Em ordem de aplicação, os critérios sugeridos seriam os seguintes:

1) Remuneração. O rendimento será qualificado como dividendo se os seguintes testes forem positivos: (a) o direito ao recebimento da remuneração estiver sujeito à álea, sendo condicional ou incerto; e (b) a quantificação da remuneração estiver sujeita a variações, com possibilidade simultânea de lucro ou prejuízo.

2) Devolução do capital. O rendimento será qualificado como dividendo se os seguintes testes forem positivos: (a) o direito ao reembolso (devolução) do capital (principal) investido estiver sujeito à álea, sendo condicional ou incerto; (b) a determinação do valor do principal a ser devolvido ao investidor estiver sujeita a incertezas e oscilações, com a possibilidade de perda do capital investido (critérios para determinação do valor do reembolso); (c) a devolução do capital investido estiver subordinada ao pagamento de todos os demais credores.

3) Prazo para o pagamento da remuneração ou devolução do capital. O rendimento será qualificado como dividendo se os seguintes testes forem positivos: (a) não houver prazo fixado para o pagamento da remuneração ou devolução do capital investido (prazo indefinido) ou o prazo for considerado longo para os padrões do mercado, podendo ser assimilado a um investimento em equity; e (b) o pagamento da remuneração ou devolução do capital estiver sujeito à discricionariedade do tomador de recursos, que poderá decidir como e quanto pagar, segundo a sua conveniência.

Por fim, para resolver o problema da dupla tributação ou da dupla não tributação, em linha com o single tax principle, entendemos que, para efeito de aplicação do artigo 23 da Convenção Modelo, que cuida das formas de eliminação da bitributação, por meio dos métodos da isenção (artigo 23A) ou crédito de imposto (artigo 23B), o Estado de residência deve aplicar a definição de juros ou dividendos constante do próprio acordo, obtida por meio da qualificação autônoma. Assim, o Estado de residência não deve qualificar o rendimento consoante o seu próprio direito interno, para fins de aplicação do artigo 23.

1 Cf. MACIEL, Miguel Ângelo. O tratamento tributário discriminatório como combate à concorrência fiscal internacional e a sua legitimidade. São Paulo: MP, 2009, p. 25.

2 Cf. BUNDGAARD, Jakob. “Classification and treatment of hybrid financial instruments and income derived therefrom under EU Corporate Tax Directives - Part 1”. European Taxation Journal v. 50, n. 10. Amsterdã: IBFD, 2010, p. 442.

3 HARITON, David B. “Distinguishing between equity and debt in the new financial environment”. Tax Law Review v. 49, n. 3. New York University, 1994, pp. 499-524.

4 Não é tarefa fácil saber se o legislador tributário vinculou ou não ao conceito de direito privado. Luís Eduardo Schoueri sustenta que cabe ao intérprete, à luz da interpretação contextual, verificar se o conceito de direito privado foi ou não adotado pelo legislador tributário. Veja-se: “Como, entretanto, saber se o legislador se o legislador tributário vinculou-se a um instituto de Direito Privado? Não é possível oferecer uma resposta apriorística. A mera circunstância de uma expressão ser conhecida no Direito Privado não há de ser suficiente para se entender que o referido instituto foi apreendido pelo legislador tributário. (...) Na falta de referência manifesta, entretanto, não há fundamento para que se entenda mandatória uma ou outra solução: é tarefa do intérprete/aplicador decidir a questão.” Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 646. De outro lado, Humberto Ávila entende que, ao fazer menção a termo ou expressão do direito privado, o legislador tributário adota um referencial conceitual, chamado de conceito impregnado pelo Direito Civil (zivilrechtlichte vorgeprägte Begriffe), pois não haveria nenhum propósito linguístico a justificar a adoção do respectivo termo ou expressão, sem que essa referência estivesse relacionada a um conceito cf. ÁVILA, Humberto. “Eficácia do novo Código Civil na legislação tributária”. In: GRUPENMACHER, Betina Treiger (coord.). Direito Tributário e o novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 65.

5 O limite de atuação do legislador tributário na modificação de institutos de direito privado é imposto pelo art. 110 do CTN, segundo o qual a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, para definir ou limitar competências tributárias.

6 Cf. PRATS, Francisco Alfredo Garcia. “Qualificação de instrumentos financeiros híbridos em tratados fiscais”. Direito Tributário Atual n. 26. São Paulo: Dialética/IBDT, 2011, p. 77.

7 Cf. TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário internacional: planejamento tributário e operações transacionais. São Paulo: RT, 2001, pp. 320-321.

8 Cf. PRATS, Francisco Alfredo Garcia, 2011, ob. cit., p. 76.

9 Para corroborar a atualidade e importância do tema relativo aos instrumentos híbridos, relembre-se que a International Fiscal Association (IFA), no seu congresso anual realizado em Boston, entre os dias 30 de setembro e 4 de outubro de 2012, dedicou um de seus principais painéis ao tema “Debt-Equity Conundrum”.

10 Cf. CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. “Considerações sobre o tratamento das entidades híbridas e dos instrumentos financeiros híbridos na Convenção Modelo da OCDE”. Revista de Direito Tributário Internacional n. 12. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 135-166.

11 A respeito da exigência de um critério de discrímen razoável, conferir: ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

12 Cf. SCHÖN, Wolfgang. “The distinct equity of the debt-equity distinction”. Bulletin for International Taxation v. 66, n. 9. Amsterdã: IBFD, 2012, p. 490.

13 Cf. SCHÖN, Wolfgang, 2012, ob. cit., p. 491.

14 Cf. BOADWAY, Robin; e BRUCE, Neil. “A general proposition on the design of a neutral business tax”. Journal of Public Economics v. 24(20). Elsevier,1984, pp. 231-239.

15 Cf. CHENCHINSKI, Amir C.; AVI-YONAH, Reuven S. “The Case for dividend deduction (September 16, 2010)”. University of Michigan Law & Econ: Empirical Legal Studies Center Paper n. 10-028; University of Michigan Public Law Working Paper n. 220.

16 Cf. SCHÖN, Wolfgang. “The distinct equity of the debt-equity distinction”. Bulletin for International Taxation v. 66, n. 9. Amsterdã: IBFD, 2012, p. 492.

17 The Debt-Equity Conundrum. CDFI 97b, 2012, pp. 373-390; 423).

18 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Juros sobre capital próprio: natureza jurídica e forma de apuração diante da nova contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; e LOPES, Alexsandro Broedel (coords.) Controvérsias jurídico-contábeis: aproximações e distanciamentos. V. 3. São Paulo: Dialética, 2012, p. 173.

19 Cf. SCHÖN, Wolfgang, 2012, ob. cit., p. 492.

20 A respeito do princípio da realização da renda, conferir: POLIZELLI, Victor Borges. O princípio da realização da renda: reconhecimento de receitas e despesas para fins de IRPJ. V. 7. São Paulo: Quartier Latin, 2012 (Série Doutrina Tributária, 7).

21 Em suma, pode-se dizer que a realização da renda está relacionada à imputação temporal dos fatos econômicos (subunidades positivas ou negativas/fatos acréscimos ou fatos decréscimos) individuais que compõem a apuração da renda tributável.

22 É interessante notar que há autores que defendem a própria extinção do imposto sobre a renda da pessoa jurídica. A respeito da conveniência, ou não, de tributar a renda auferida pelas pessoas jurídicas, conferir: BRAUNER, Yariv. “Revisitando a (In)sensatez do imposto de renda das pessoas jurídicas”. Tradução de Gustavo Gonçalves Vettori e Natalie Matos Silva. Direito Tributário Atual n. 21. São Paulo: Dialética/IBDT, 2009, pp. 61-102. Em sentido contrário, AVI-YONAH, Reuven S. “Pessoas jurídicas, sociedade e o Estado: uma defesa do imposto das pessoas jurídicas”. Tradução de Eduardo Arruda Madeira, João Victor Guedes e Ricardo Augusto Reis Rodrigues. Direito Tributário Atual n. 21. São Paulo: Dialética/IBDT, 2009, pp. 12-60.

23 DUARTE FILHO, Paulo César Teixeira. A bitributação econômica do lucro empresarial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2011, pp. 21-145.

24 A doutrina critica os mecanismos utilizados pela legislação brasileira para evitar a dupla tributação econômica. Em geral, sustenta-se que a tributação dos lucros de acordo com o imposto de renda das pessoas jurídicas impede a individualização do imposto e, consequentemente, a adequação da tributação ao princípio da capacidade contributiva. Além disso, a tributação dos lucros empresariais mediante a aplicação de alíquotas inferiores àquelas aplicáveis aos rendimentos do trabalho teria efeito regressivo, o que não seria compatível com os objetivos de justiça social e redistribuição de renda. Para Flávia Cavalcanti, a eleição do modelo de exclusão dos dividendos recebidos ocasiona distorções significativas, sobretudo em relação à equidade vertical. Isso porque, os rendimentos corporativos são tributados de maneira uniforme, pouco importando a capacidade contributiva de seus beneficiários finais (cf. CAVALCANTI, Flávia. “A integração da tributação das pessoas jurídicas e das pessoas físicas: uma análise calcada na neutralidade, equidade e eficiência”. Direito Tributário Atual n. 24. São Paulo: Dialética/IBDT, 2010, pp. 239-279.

25 Confira-se o entendimento do autor: “It can be said that an HFI [Hybrid Financial Instrument] is a financial instrument that has economic characteristics that are inconsistent, in whole or in part, with the classification implied by its legal form. Such an instrument may possess characteristics that are consistent with more than one tax classification (in more than one jurisdiction) or that are not clearly consistent with any classification.” Cf. BUNDGAARD, Jakob. “Classification and treatment of hybrid financial instruments and incomed derived therefrom under EU Corporate Tax Directives - Part 1”. European Taxation Journal v. 50, n. 10. Amsterdã: IBFD, 2010, p. 442.

26 Cf. MOSQUERA, Roberto Quiroga; e PICONEZ, Matheus Bertholo. “Tratamento tributário dos instrumentos financeiros híbridos”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; e LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis: aproximações e distanciamentos. V. 2. São Paulo: Dialética, 2011, p. 246.

27 Os dividendos fixos são estipulados no estatuto social da companhia como sendo: (a) um valor certo em moeda corrente nacional por ação preferencial; ou (b) um percentual do valor nominal da ação preferencial, ou caso não haja valor nominal, um percentual sobre o próprio capital social da companhia correspondente às ações preferenciais. Embora o dividendo fixo seja estipulado em quantia certa ou percentual certo, a sua efetiva distribuição aos acionistas é um evento incerto, na medida em que depende da existência de lucros no exercício, lucros acumulados ou reserva de lucros. Os dividendos fixos correspondem à parcela do lucro estabelecida no estatuto social da companhia que servirá para remunerar cada ação preferencial. A seu turno, os dividendos cumulativos correspondem ao valor acumulado dos dividendos fixos não distribuídos nos anos em que a sociedade anônima não auferiu lucros passíveis de distribuição. Ademais, relembre-se que o estatuto social pode conferir, às ações preferenciais, o direito de receber os dividendos cumulativos à conta das reservas de capital, como mencionado no exemplo acima. cf. THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Ações preferenciais: dividendos prioritários e lucros remanescentes”. In: WALD. Arnoldo; GONÇALVES, Fernando; e CASTRO, Moema Augusta Soares de (coords.). Sociedades anônimas e mercado de capitais: homenagem ao Prof. Osmar Brina Corrêa-Lima. São Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 181-200.

28 Para expor com fidelidade o pensamento de Wolfgang Schön, cabe transcrever o seguinte excerto, que sintetiza bem a sua preocupação com o tema: “This wide range of options to design new financial instruments not only leads to major complications for each national tax system where new financial gadgets have to be characterized under domestic tax law, but also contributes to malfunctions of international tax coordination. Even the application of standard tax treaties does not prevent conflicting qualifications of the same financial instruments by tax authorities in the state of the debtor and the state of the creditor, thereby leading either to double taxation or to double non-taxation.” Cf. SCHÖN, Wolfgang. “The distinct equity of the debt-equity distinction”. Bulletin for International Taxation v. 66, n. 9. Amsterdã: IBFD, 2012, p. 491.

29 Cf. ROTHMANN, Gerd Willi. “Problemas de qualificação na aplicação das Convenções contra a bitributação internacional”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 76. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 33-43.

30 Eis a precisa lição do autor: “Não haverá qualificação uniforme do rendimento em caso de interpretação divergente do tratado, tendo em consideração que a qualificação é fenômeno que pressupõe logicamente a interpretação. Por outro lado, não basta unicamente a interpretação harmônica dos dispositivos pelos dois países; a correta aplicação dos acordos de bitributação requer ainda a qualificação uniforme dos rendimentos.” Cf. BELLAN, Daniel Vitor. Direito tributário internacional: rendimentos de pessoas físicas nos tratados internacionais contra a dupla tributação. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 56.

31 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Direito tributário internacional: qualificação e substituição, tributação, no Brasil, de rendimentos provenientes de sociedade de pessoas residente na Alemanha”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 54. São Paulo: Dialética, 2000, p. 133.

32 A título de exemplo, pode-se mencionar a posição adotada pela Administração Tributária brasileira no Ato Declaratório Normativo Cosit nº 01/2002, na qual se sustenta que os rendimentos devidos a título de remuneração pela prestação de serviços por sociedades não residentes estão submetidos ao artigo 21 dos acordos internacionais celebrados pelo país (rendimentos não expressamente mencionados), o que permitiria a sua livre tributação pelo Estado da fonte (local de prestação dos serviços ou da fonte pagadora).

33 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Prefácio”. In: CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e (coord.). Tributação internacional: análise de casos. São Paulo: MP, 2010, pp. 19-20.

34 Cf. VOGEL, Klaus. On double taxation conventions: a commentary to the OECD, UN and US Model Conventions for the avoidance of double taxation of income and capital. 3ª ed. Londres: Kluwer, 1997, p. 58.

35 Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário internacional do Brasil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 148-156.

36 Cf. AVERY JONES, J. F. et al. “Credit and exemption under tax treaties in case of different income characterization”. British tax review, Londres, 1996, pp. 213-262.

37 Há de se observar que a eventual divergência entre os Estados também pode decorrer de diferença na interpretação dos fatos à luz do texto do acordo de bitributação.

38 OECD. OECD’s Current Tax Agenda. Paris, 2011, p. 58.

39 O artigo 10 (3) da Convenção Modelo menciona “income from other corporate rights which is subjected to the same taxation treatment as income from shares”, ao passo que a redação em português faz alusão aos “rendimentos assemelhados aos rendimentos de ações pela legislação tributária do Estado Contratante em que a sociedade que os distribuir seja residente”.

40 Sob o ponto de vista conceitual, as reservas de capital representam substancialmente os ingressos de capital ou patrimônio que vêm de fora da empresa, sem terem sido gerados pelo emprego dos respectivos fatores de produção, distinguindo-os dos ingressos de riquezas novas produzidas pela própria empresa, que são creditados à receita, e, pois, transitam por resultado.

41 Antes da edição da Lei n. 11.638/2007, também integravam as reservas de capital o prêmio recebido na emissão de debêntures e as subvenções para investimento.

42 Na esfera administrativa, a 2ª Turma Ordinária, da 2ª Câmara da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), no Acórdão n. 1202-00461, de 25 de janeiro de 2011, considerou que os valores pagos aos titulares de ações preferenciais, com lastro em reserva de capital, não têm natureza jurídica de dividendos para fins tributários.

43 É inequívoco que a isenção de imposto de renda alcança a totalidade do lucro contábil apurado pela pessoa jurídica, sendo o lucro real, o lucro presumido e/ou lucro arbitrado simples mecanismos para a apuração da base de cálculo da exação. A diferença é que os valores computados na apuração do resultado do exercício influenciam na apuração do lucro líquido contábil, que sofrerá os ajustes de adição, exclusão e compensação estipulados para fins de determinação do lucro tributável. Por outro lado, os valores registrados diretamente à conta de reserva de capital, como é o caso do ágio na subscrição de ações, sequer são computados na apuração do lucro contábil-societário.

44 Trecho original: “1. Dividends paid by a company which is a resident of a Contracting State to a resident of the other Contracting State may be taxed in that other State. 2. However, such dividends may also be taxed in the Contracting State of which the company paying the dividends is a resident and according to the laws of that State, but if the beneficial owner of the dividends is a resident of the other Contracting State, the tax so charged shall not exceed: a) 5 per cent of the gross amount of the dividends if the beneficial owner is a company (other than a partnership) which holds directly at least 25 per cent of the capital of the company paying the dividends; b) 15 per cent of the gross amount of the dividends in all other cases.”

45 CF. XAVIER, Alberto. Direito Tributário internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 593.

46 Cf. VOGEL, Klaus. “Doppelbesteuerungsabkommen der Bundesrepublik Deutschland auf dem Gebiet der Steuern vom Einkommen und Vermögen”. Kommentar auf der Grundlage der Musterabkommen. 3ª ed. Munique: Beck, 1996, p. 121, apud SCHOUERI, Luís Eduardo. “Tratados e convenções internacionais sobre tributação”. Direito Tributário Atual n. 17. São Paulo: Dialética/IBDT, 2003, p. 35.

47 Cf. BIANCO, João Francisco. Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética, 2007, p. 147.

48 Averba Gerd Willi Rothmann: “As normas de conflito das convenções tributárias internacionais são, pois, dispositivos mediante os quais Estados atribuem a competência tributária sobre determinado bem - renda, patrimônio, herança - a um dos Estados, a fim de evitar a bitributação. Não são, pois, normas de conflitos propriamente ditos, mas sim normas de delimitação e atribuição de competência tributária.” (ROTHMANN, Gerd Willi. “Problemas de qualificação na aplicação das Convenções contra a bitributação internacional”. Revista Dialética de Direito Tributário n. 76. São Paulo: Dialética, 2002, p. 33)

49 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Relação entre tratados internacionais e a Lei tributária interna”. In: CASELLA, Paulo Borba; [et. al] (org.). Direito internacional, humanismo e globalidade. São Paulo: Atlas, 2008, p. 568.

50 Cf. MONTEIRO, Alexandre Luiz Moraes do Rego. “Art. 24 do acordo de bitributação Brasil-Suécia e tratamento tributário distinto no pagamento de dividendos”. In: CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. Tributação internacional: análise de casos. São Paulo: MP, 2010, p. 364.

51 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Preços de transferência no Direito Tributário brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Dialética, 2006, p. 285.

52 Cf. BELLAN, Daniel Vitor; e SANTOS, João Victor Guedes. “Origem do capital investido: regimes diferenciados de tributação”. In: SANTI, Eurico Marco de; e CANADO, Vanessa Rahal (coords.). Tributação dos mercados financeiros e de capitais e dos investimentos internacionais. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 402 (Série GV Law).

53 Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 602.

54 A título de exemplo, confira-se o artigo 11(5) do acordo internacional Brasil-Espanha: “O termo ‘juros’ compreende os rendimentos da Dívida Pública, dos títulos ou debêntures, acompanhados ou não de garantia hipotecária ou de cláusula de participação nos lucros, e de créditos de qualquer natureza, bem como qualquer outro rendimento que, pela legislação tributária do Estado Contratante de que provenham, seja assemelhado aos rendimentos de importâncias emprestadas.”

55 Vide “Positions on Article 11 (Interest) and its Commentary”, na versão condensada da Convenção Modelo da OCDE.

56 Cf. LIMA, Mariana Miranda. A natureza jurídica dos juros sobre o capital próprio e as convenções para evitar a dupla tributação. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009. Originalmente apresentada como Dissertação de Mestrado em Direito Econômico e Financeiro na Universidade de São Paulo, 2009, p. 144.

57 Cf. XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp. 607-608.

58 Cf. DUARTE FILHO, Paulo César Teixeira. “A distribuição de lucros por empresas brasileiras a suas sócias no exterior: considerações sobre o Direito estrangeiro e os acordos para evitar a dupla tributação”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito Tributário Internacional aplicado. V. 4. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pp. 542-543.

59 “Art. 202 da Lei nº 6.404/1976”.

60 Para uma análise mais detalhada a respeito do tratamento aplicável aos juros, conferir: DUARTE FILHO, Paulo César Teixeira. “Os juros nos acordos internacionais celebrados pelo Brasil para evitar a dupla tributação”. In: MONTEIRO, Alexandre Luiz Moraes do Rego (coord.). Tributação, comércio e solução de controvérsias internacionais. São Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 111-139.

61 Na Solução de Divergência Cosit nº 16/2001, a Administração Tributária considerou que os juros pagos ou creditados, a título de remuneração do capital próprio, a sócio residente no Japão, estão sujeitos à tributação na fonte à alíquota de 12,5%.

62 O acordo com a Alemanha foi denunciado pelo governo alemão, estando sem efeito desde 1º de janeiro de 2006.

63 KPMG. German Tax Monthly (Newsletter - October 2012). “Interest on Equity according to Brazilian Law (ref. no. IR 8/11)”. Disponível em http://www.kpmg.de/docs/GTM-October_2012.pdf. Acesso em 19 de abril de 2013.

64 Trinidad e Tobago, Peru, Venezuela, Rússia, África do Sul, México, Ucrânia, Israel, Chile, Portugal e Paraguai.

65 Cf. DUARTE FILHO, Paulo César Teixeira. “A distribuição de lucros por empresas brasileiras a suas sócias no exterior: considerações sobre o Direito estrangeiro e os acordos para evitar a dupla tributação”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito Tributário Internacional aplicado. V. 6. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 544.

66 Para mais informações, conferir: BAKER, Philip. Double taxation agreements and international tax law: a manual on the OECD Model Tax Convention on income and on capital of 1992. 2ª ed. Londres: Sweet & Maxwell, 1994, p. 349.

67 Cf. ROCHA, Sergio André. Interpretação dos tratados contra a bitributação da renda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 196.

68 Cf. PRATS, Francisco Alfredo Garcia. “Qualificação de instrumentos financeiros híbridos em tratados fiscais”. Direito Tributário Atual n. 26. São Paulo: Dialética/IBDT, 2011, p. 81.

69 De acordo com Paulo Cezar Aragão e Fernanda Mattar Mesquita: “os dividendos constituem a parcela do lucro líquido correspondente a cada ação, entrando então na categoria dos frutos civis, já que podem ser considerados como o rendimento normal da ação” (ARAGÃO, Paulo Cezar; e MESQUITA, Fernanda Mattar. “Considerações a respeito da capitalização de reservas e lucros à luz da Lei das Sociedades por Ações”. In: WALD, Arnoldo; GONÇALVES, Fernando; e CASTRO, Moema Augusta Soares de (coords.). Sociedades anônimas e mercado de capitais: homenagem ao Prof. Osmar Brina Corrêa-Lima. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 90).

70 Confira-se o entendimento do autor: “The essential difference between a stockholder and a creditor is that the stockholder’s intention is to embark upon the corporate adventure, taking the risks of loss attendant upon it, so that he may enjoy the chances of profit. The creditor, on the other hand, does not intend to take such risks so far as they may be avoided, but merely to lend his capital to others who do intend to take them.” (HARITON, David B. “Distinguishing between equity and debt in the new financial environment”. Tax Law Review v. 49, n. 3. New York University, 1994, p. 499)

71 “Tax Treatment of Hybrid Financial Instruments in Cross Border Transactions”. Cahiers de Droit Fiscal International v. 85A. IFA, 2000.

72 A tabela foi adaptada a partir do artigo: MOSQUERA, Roberto Quiroga; e PICONEZ, Matheus Bertholo. “Tratamento tributário dos instrumentos financeiros híbridos”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; e LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis: aproximações e distanciamento. V. 2. São Paulo: Dialética, 2011, pp. 233-247.

73 É o que nos relatam Eugen Bogenschütz e Jean Schaffner, em artigo publicado na revista Tax Notes International. Veja-se: “Remuneration on hybrid instruments derived from German sources that is deductible for income tax purposes at the debtor’s level is not eligible for relief from German taxation. Therefore, German has the unfettered right to levy its withholding taxes on hybrid instruments at the current rate of 26.375 percent (including surtax).” (BOGENSCHÜTZ, Eugen; e SCHAFFNER, Jean. “The New Germany-Luxembourg income tax treaty”. Tax Notes International v. 67, n. 3. USA: Tax Analysts, 2012, p. 258)

74 Cf. BOGENSCHÜTZ, Eugen; e SCHAFFNER, Jean. 2012, ob. cit., pp. 258-259.