Reestruturação Empresarial - Aspectos Internacionais - Visão Geral

Ricardo Mariz de Oliveira

Advogado. Professor de Direito Tributário em Diversas Entidades (EAESP/GV; Centro de Extensão Universitária - CEU; e Outras). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

Resumo

Os aspectos que serão abordados neste texto são os relacionados ao Direito Tributário do Brasil, ou seja, serão tratados apenas os reflexos perante os tributos brasileiros decorrentes de reestruturações (reorganizações) empresariais internacionais.1

O texto está subdivido nas seguintes seções: (I) Aspectos Gerais. (II) Ganhos de Capital. (III) Formas de Capitalização ou Financiamento, e suas Consequências Tributárias. (IV) Subcapitalização. (V) Preços de Transferência. (VI) Incorporações, Fusões e Cisões. Devoluções de Capital. Incorporações de Ações. (VII) Ágios e Deságios. (VIII) Prejuízos Fiscais. (IX) Tributação da Renda Mundial.

Palavras-chave: capitalização, financiamento, subcapitalização, preços de transferência, reorganizações e combinações, ágio e deságio, prejuízo fiscal, tributação mundial.

Abstract

The aspects to be addressed herein are those related to Brazilian tax law; that is, only the implications with respect to Brazilian taxes arising from international corporate restructuring (reorganization) will be considered.

The text is divided into the following sections: (I) General Aspects. (II) Capital Gains. (III) Forms of Capitalization or Financing and Their Tax Implications. (IV) Undercapitalization. (V) Price Transfer Rules. (VI) Mergers, Consolidations, and Spin-Offs. Capital Repayment. Stock-for-Stock Mergers. (VII) Premiums and Discounts. (VIII) Fiscal Losses. (IX) Taxation of Worldwide Income.

Keywords: capitalization, financing, undercapitalization, transfer pricing, restructurings and combinations, premium and discount, fiscal loss, world wide income.

I - Aspectos Gerais

As reorganizações a serem analisadas podem ser as efetivadas mediante incorporações, fusões ou cisões de pessoas jurídicas sediadas no Brasil, das quais participem investidores não residentes neste país. Também podem ser realizadas através de aquisições de controle de pessoas jurídicas sediadas no Brasil, por investidores residentes no exterior, estando disponível uma grande gama de atos ou negócios jurídicos válidos e eficazes.

Alguns pontos gerais e básicos devem ser esclarecidos desde logo, para melhor compreensão de algumas operações específicas que serão objeto de considerações posteriores.

Assim, pode-se dizer de um modo geral que não há incidências de impostos indiretos nessas reestruturações, porque quase sempre elas se processam mediante transferências de propriedades de capital das empresas visadas, ou aumentos de capital destas, ou divisões desses capitais, e mais raramente envolvem alienações de ativos imobilizados ou circulantes do patrimônio das mesmas, feitas diretamente por elas. Todavia, na hipótese em que ativos desta natureza sejam objeto de negócios jurídicos da própria pessoa jurídica no Brasil, há inúmeras possibilidades de incidências da chamada tributação indireta, possibilidades estas que envolvem impostos federais, estaduais e municipais e cujas variabilidade e complexidade nem poderiam ser tratadas no espaço limitado deste texto, no qual, portanto, somente cabe a advertência sobre a necessidade de estudos mais detalhados de cada caso concreto.

II - Ganhos de Capital

Tendo em vista a linha acima tratada, fiquemos com as reorganizações mais comuns, que se processam no nível dos acionistas ou quotistas das empresas reestruturadas, e que ordinariamente somente acarretam consequências perante o imposto de renda, as quais derivam de eventuais ganhos obtidos pelos contribuintes nas alienações ou outras formas de reorganizações, ou seja, sobre os comumente chamados “ganhos de capital”.2

Há uma diferença fundamental conforme se trate de ganho de capital obtido por residentes no exterior e residentes no Brasil, pois aqueles são sujeitos à tributação na fonte, pela alíquota de 15%,3 ao passo que as pessoas físicas residentes no País têm uma tributação separada dos seus demais rendimentos, cuja regra geral é de 15%, mas com várias exceções, e as pessoas jurídicas sediadas no Brasil incluem seus ganhos de capital no lucro do período-base fiscal de incidência do imposto de renda das pessoas jurídicas, ou seja, sofrem a tributação total de 34%.4

Há particularidades sobre as bases de cálculo em todas essas situações.

A regra geral é de confrontação entre o custo de aquisição e o valor da alienação ou liquidação do investimento em capital, tal como ocorre com os bens em geral. No caso de pessoas jurídicas sediadas no Brasil, esta regra se impõe mesmo perante revalorizações contábeis decorrentes de procedimentos de escrituração e avaliação de ativos e passivos, com exceção dos investimentos em empresas coligadas e controladas, cujo custo fiscal é apurado pelo método da equivalência patrimonial, o qual determina periódicos ajustes em razão das alterações do patrimônio líquido contábil da pessoa jurídica investida, com acréscimos (não tributáveis) ou reduções (não dedutíveis) na conta de investimento, em relação ao custo anterior, e no qual, embora os variações ocorridas durante a permanência do investimento no ativo da empresa não tenham reflexos fiscais, aumentam ou reduzem o custo final para apuração de ganho ou perda de capital.

Já no caso de investimento feito em empresa do Brasil, por pessoa física ou jurídica residente fora do País, o ganho de capital é apurado com base no custo efetivamente despendido, desde que comprovado, sendo que a regra geral é de que os investimentos que tenham sido feitos com ingresso de recursos (em moeda ou em bens) para pagamento da sua aquisição devem ser registrados perante o Banco Central do Brasil e o custo, para apuração de futuro ganho de capital, corresponde ao valor ingressado. Neste caso, fugindo à regra de que toda a apuração é feita em moeda brasileira, o ganho de capital é mensurado segundo a moeda do referido registro e, sua conversão para moeda nacional, a fim de determinar a base de cálculo do imposto, é feita com base na cotação de câmbio da data da operação de alienação ou aquisição.5

É importante a existência da prova do custo de aquisição, especialmente quando não houver registro no Banco Central, porque a sua ausência acarreta a consideração de custo zero, para efeitos fiscais.

Tratando-se de ganho de capital relativo a bem situado no Brasil, a incidência do imposto brasileiro pode se dar ainda que a operação geradora do respectivo ganho tenha ocorrido no exterior,6 entre partes não residentes no Brasil, caso em que a obrigação de recolhimento do imposto é atribuída ao procurador residente no País.7

III - Formas de Capitalização ou Financiamento e suas Consequências Tributárias

Há algumas outras normas legais de caráter geral que podem interferir com reestruturações internacionais.

Duas delas são da maior relevância, quais sejam, as normas relativas à subcapitalização e a preços de transferência, mas, antes de abordá-las, convém esclarecer alguns pontos.

Há ampla liberdade para o aporte de capital necessário à reestruturação ser feito sob a forma de participação societária (em ações com direito a voto ou sem este direito8), por empréstimo ou por outras formas de capitalização ou financiamento, seja da própria empresa objetivada na reorganização, seja em outra empresa holding empregada para este fim.

Há mesmo a possibilidade de subscrição de debêntures participativas, ou seja, títulos que não asseguram direitos de sócio, mas podem garantir uma taxa de participação nos lucros, com ou sem juros, além de outras vantagens. Também é admitida a sua integralização com prêmio de emissão, ou seja, por valor superior ao valor nominal de resgate.9

A escolha da via de capitalização ou financiamento deve ser feita cuidadosamente, atentando-se para variadas consequências perante o imposto de renda:

- no caso de participação no capital social da empresa brasileira, os dividendos são isentos de tributação e não geram dedução no lucro tributável da pessoa jurídica; também é permitido o pagamento de juros sobre o capital próprio, calculados por critérios prefixados na lei, cujo valor é dedutível do lucro da pessoa jurídica e tributado na fonte pela alíquota de 15%;10

- no caso de juros devidos a não residentes, em geral são tributáveis na fonte pela alíquota de 15%11, e são dedutíveis do lucro da pessoa jurídica;12

- no caso de debêntures participativas, a participação é tributada na fonte pela alíquota de 15% e é dedutível do lucro da pessoa jurídica; quanto ao prêmio de emissão, não é tributável na pessoa jurídica que o recebe e pode ser amortizado na apuração do lucro da pessoa jurídica que o paga, desde que sediada no País.13

IV - Subcapitalização

De qualquer modo, na escolha de uma das referidas alternativas de capitalização ou financiamento, deve-se levar em consideração as normas sobre subcapitalização, que se aplicam em todos os casos de endividamento, portanto, somente não atingindo a capitalização por via de participação no capital, caso em que também não afetam a dedução dos juros sobre o capital próprio.

Porém, ao tratar da subcapitalização, a lei se refere expressamente apenas a juros, o que a rigor coloca a participação das debêntures fora do seu campo de incidência, embora esta matéria ainda não tenha sido apreciada pelos tribunais administrativos e judiciais.

Além da subcapitalização, é preciso atentar para os limites de preços de transferência, cujas regras se aplicam conjuntamente com as de subcapitalização, e que, segundo a lei, também somente se aplicam a juros, como será visto adiante.

No tocante às normas sobre subcapitalização, suas linhas gerais são as seguintes, quanto aos juros pagos ou creditados à pessoa vinculada residente em qualquer país no exterior que não seja país ou dependência com tributação favorecida, isto é, inferior a 20%, ou sob regime fiscal privilegiado:14

- no caso de endividamento com a pessoa vinculada no exterior que participe do capital da pessoa jurídica sediada no Brasil, o valor do respectivo endividamento, verificado por ocasião da apropriação dos juros, não pode ser superior a duas vezes o valor da participação da pessoa vinculada no patrimônio líquido da pessoa jurídica sediada no Brasil;

- no caso de endividamento com pessoa vinculada no exterior que não tenha participação societária na pessoa jurídica sediada no Brasil, o valor do endividamento com a pessoa vinculada no exterior, verificado por ocasião da apropriação dos juros, não pode ser superior a duas vezes o valor do patrimônio líquido da pessoa jurídica sediada no Brasil;

- em qualquer desses casos, o valor do somatório dos endividamentos com pessoas vinculadas no exterior, verificado por ocasião da apropriação dos juros, não deve ser superior a duas vezes o valor do somatório das participações de todas as vinculadas no patrimônio líquido da pessoa jurídica sediada no Brasil;

- os valores do endividamento e da participação da pessoa vinculada no patrimônio líquido devem ser apurados pela média ponderada mensal; para determinar o total de endividamento, deve ser adicionado ao valor do principal o montante dos juros incorridos e não pagos até o último dia útil do mês do cálculo do endividamento;

- a dedutibilidade dos juros é admitida na proporção do endividamento que não exceda os limites acima.

No caso de credor residente em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, a regras são as mesmas, mas o somatório dos endividamentos com todas as pessoas situadas em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado não pode ser superior a trinta por cento do valor do patrimônio líquido da pessoa jurídica sediada no Brasil.

Estas mesmas normas são aplicáveis às operações de endividamento de pessoa jurídica sediada no Brasil em que o avalista, o fiador, o procurador ou qualquer interveniente for pessoa vinculada, considerando-se interveniente a pessoa vinculada que seja responsável pelo pagamento total ou parcial da dívida, ainda que subsidiariamente.

Em qualquer caso, as regras de subcapitalização não se aplicam às operações de captação de recursos no exterior, por meio de emissão de títulos realizada por pessoa jurídica sediada no Brasil, desde que sejam observados determinados requisitos.

V - Preços de Transferência

Quanto a preços de transferência, entre outras hipóteses legais de aquisições a preços superiores aos legalmente admitidos segundo métodos prescritos, ou de alienações por preços superiores, há uma que se refere a juros pagos ou creditados à pessoa vinculada à pessoa jurídica sediada no Brasil, ou residente em país que tribute a renda abaixo de 20%, ou que conceda sigilo quanto à titularidade ou regime tributário favorecido, cuja dedutibilidade fiscal somente é admitida até o montante que não exceda o valor calculado com base em determinada taxa, acrescida de margem porcentual a título de spread, a ser definida por ato do Ministro de Estado da Fazenda com base na média de mercado, proporcionalizados em função do período a que se referirem os juros.15

Para este fim, a taxa dos juros, segundo a regra geral, varia conforme três hipóteses:

- na hipótese de operações em dólares dos Estados Unidos da América com taxa prefixada, é a taxa de mercado dos títulos soberanos da República Federativa do Brasil emitidos no mercado externo em dólares dos Estados Unidos da América;

- na hipótese de operações em reais no exterior com taxa prefixada, é a taxa de mercado dos títulos soberanos da República Federativa do Brasil emitidos no mercado externo em reais;

- nos demais casos, é a taxa Libor pelo prazo de seis meses.

Afora isto, o Ministro de Estado da Fazenda pode fixar a taxa a ser considerada nas operações em reais no exterior com taxa flutuante.

A verificação dos limites de dedutibilidade fiscal desses juros deve ser feita na data da contratação da operação.

VI - Incorporações, Fusões e Cisões - Devoluções de Capital - Incorporações de Ações

Nas reorganizações internacionais, como apontado inicialmente, podem estar envolvidas incorporações, fusões ou cisões, bem como outros atos jurídicos.

A propósito de valores envolvidos em operações de reestruturação, deve ser lembrado que as incorporações, fusões e cisões podem ser feitas pelos valores contábeis dos bens e obrigações das pessoas jurídicas absorvidas ou cindidas, mas também é possível fazê-las com base em valores de mercado devidamente avaliados. Neste último caso, a mais-valia que houver em relação ao valor contábil é sujeita à tributação na pessoa jurídica.16

Outra operação possível numa reestruturação é a de devolução de capital aos sócios, mediante entrega de bens da pessoa jurídica em pagamento da respectiva redução de capital. A lei permite que a devolução seja feita a valores de livros ou de mercado, neste caso com tributação da pessoa jurídica sobre a mais-valia, sendo que os bens recebidos pelos sócios conservarão, para efeitos fiscais, o valor de aquisição que tinham as participações devolvidas, ou seja, os sócios somente são sujeitos à tributação se futuramente alienarem os bens recebidos por valores superiores aos das referidas participações.17

Embora o presente trabalho não esgote todos os instrumentos jurídicos possivelmente utilizáveis em reestruturações societárias, há um outro que tem grande serventia e largo emprego.

Trata-se da incorporação de ações,18 operação na qual a totalidade das ações de uma companhia é transferida para o patrimônio de outra companhia sediada no Brasil, com a finalidade de transformar aquela em subsidiária integral desta, passando os acionistas da subsidiária a ser acionistas da incorporadora das suas ações.19

O valor das ações a serem incorporadas pode ser avaliado a valores contábeis ou a valores de mercado dos bens e obrigações da companhia a que elas se referem. Em vista disso, e pelo fato de que a lei tributária não regula expressamente este ato jurídico que tem especificidade própria perante o Direito Societário, há varias discussões com o Fisco federal, ainda não solucionadas pelos tribunais administrativos e judiciais.

Mesmo assim, convém que esse tipo de operação seja levado em consideração quando puder ser aplicado em casos concretos, partindo-se do pressuposto, reconhecido pela doutrina, de que não há ganho de capital originário de incorporação de ações, devendo as ações recebidas em troca das emitidas no ato de incorporação manter o custo fiscal das que foram incorporadas. No caso de ações possuídas por investidores não residentes, registradas no Banco Central do Brasil, processa-se apenas a troca do nome da empresa investida, no respectivo registro, o que reforça a não incidência tributária no momento da operação.

Resta dizer que há outra norma de menor abrangência numa reorganização internacional, mas que deve ser lembrada. Ela é relativa à possibilidade das pessoas físicas residentes no Brasil transferirem bens para integralização de capital de pessoa jurídica aqui sediada, pelos valores dos respectivos custos, neste caso sem qualquer incidência fiscal, mesmo que diferentes dos valores de mercado, ou por valores superiores aos respectivos custos, neste caso com incidência do imposto de renda sobre as pessoas físicas.20

VII - Ágios e Deságios

Outra norma diretamente envolvida nas reorganizações internacionais, e que tem sido empregada com muita constância, inclusive gerando uma grande quantidade de processos fiscais, é relativa a ágios na aquisição de participações societárias relevantes em empresas coligadas ou controladas, ou que pertençam ao mesmo grupo ou que estejam sob controle comum,21 em cujos investimentos o custo histórico de aquisição é sujeito à nova avaliação no encerramento de cada período-base de apuração do imposto de renda da pessoa jurídica.

É o chamado método da equivalência patrimonial (identificado pela sigla MEP), que se inaugura na data da própria aquisição da participação com a obrigatoriedade de confrontação do custo de aquisição com o valor patrimonial contábil da pessoa jurídica a que se refere a participação.22

Este critério de avaliação é independente do critério contábil que procura atribuir ao investimento feito o seu valor justo, havendo controle daquele em livro fiscal próprio.

Ao ser processada a confrontação entre o efetivo custo de aquisição e o valor patrimonial contábil, a diferença constada pode significar:

- se o valor de aquisição for superior ao valor patrimonial contábil, o pagamento de um ágio;

- se o valor de aquisição for inferior ao valor patrimonial contábil, uma aquisição teoricamente vantajosa com deságio.

O ágio e o deságio são neutros fiscalmente, ficando controlados à parte em livro fiscal próprio, sendo que, futuramente, quando da apuração de ganho ou perda de capital na alienação ou liquidação do investimento, o ágio é acrescido ao custo e o deságio é excluído.

A partir deste sistema, a lei criou um novo mecanismo de incentivo principalmente ao programa de desestatização federal que foi implantado nos anos 90 do século passado, mas que se aplica mesmo fora desse programa e ainda está em vigor.23

Assim, caso haja incorporação ou fusão, entre a pessoa jurídica adquirente da participação e a pessoa jurídica na qual fez a aquisição, o ágio pode ser amortizado e deduzido fiscalmente, e o deságio é tributável. Este mecanismo aplica-se em incorporação upstream ou downstream, e também quando apenas parte do patrimônio de uma das pessoas jurídicas seja absorvido pela outra em cisão parcial daquela, ou haja fusão das duas pessoas jurídicas.

Porém, as possibilidades de dedução fiscal da amortização do ágio dependem de as duas pessoas jurídicas estarem sediadas no Brasil, isto é, de ambas serem sujeitas ao imposto de renda das pessoas jurídicas aqui localizadas.

Em virtude disso, quando a aquisição de uma empresa brasileira se opera no exterior, ou mesmo no Brasil, mas por uma pessoa física ou jurídica não residente no Brasil, a possibilidade de amortização do ágio depende de ele ser “trazido” para este país. Na verdade, a dedução pressupõe duas medidas sucessivas:

- a constituição de uma pessoa jurídica no Brasil, que possa deter a participação na empresa adquirida e que fique obrigada a adotar o MEP e a apurar o ágio;

- a posterior reunião dessa pessoa jurídica com a empresa adquirida, mediante incorporação upstream ou downstream, fusão ou cisão.

Destarte, um procedimento muito empregado foi a pessoa do exterior, adquirente da empresa brasileira, após a aquisição constituir uma nova pessoa jurídica no Brasil (ou utilizar alguma aqui já existente24), e transferir a participação adquirida para esta em integralização de capital social.

Este procedimento levou o Fisco federal a instaurar inúmeros processos sob a alegação de abuso na utilização da nova personalidade jurídica, acusada de ser mera empresa veículo. Muitos destes processos ainda estão em curso na instância administrativa, sendo que os que já foram decididos resultaram em julgamentos ora a favor ora contra os contribuintes, estando, portanto, a matéria ainda sujeita à apreciação definitiva da Câmara Superior de Recursos Fiscais (última instância administrativa) e do Poder Judiciário.

Em vista disso, o procedimento mais recomendável, sempre que possível, é inverter a ordem para:

- primeiramente, constituir a pessoa jurídica no Brasil e integralizar seu capital em moeda remetida ao País;

- a nova pessoa jurídica empregar os recursos do seu capital para adquirir a empresa brasileira alvo;

- por fim, proceder-se à reunião dessa pessoa jurídica constituída com a empresa adquirida, mediante incorporação upstream ou downstream, fusão ou cisão.

Evidentemente que, sob o ponto de vista jurídico, ambos os procedimentos são regulares e produzem os mesmos efeitos legais e fiscais, mas o segundo afasta a acusação de que o ágio foi formado no exterior e abusivamente “importado” apenas para a obtenção da economia fiscal através de empresa veículo. No segundo caso comentado, a nova pessoa jurídica no Brasil também tem existência transitória, porém pode perfeitamente ser classificada como sociedade de propósito específico (inclusive com prazo de duração determinado), e sua reunião com a empresa adquirida, mesmo que processada em curto espaço de tempo, integra o próprio objetivo finalístico da norma fiscal.

Outra questão que foi levantada pela fiscalização girou em torno da forma de aquisição da empresa brasileira e do respectivo pagamento, sobre o que vários autos de infração sustentaram que o referido tratamento fiscal somente se aplicaria nas compras com pagamento em dinheiro, alegando que somente assim se justificaria a dedução do ágio, em contrapartida ao ganho de capital do vendedor.

Todavia, a lei não distingue o ato jurídico de aquisição, nem requer que tenha havido ganho de capital de alguém, para que a pessoa adquirente possa deduzir a amortização do ágio ao ser reunida com a empresa adquirida. Assim, o ágio pode surgir de subscrição direta de aumento de capital, integralizada em moeda ou em bens, na qual o ágio é contabilizado em reserva de capital pela empresa adquirida e não é tributável, nem seus outros sócios,25 tanto quanto pode decorrer de uma compra com pagamento em dinheiro ou outros meios de liquidação, ou de uma permuta ou de qualquer outro negócio jurídico.

Neste particular, é importante levar em conta que, fora do âmbito tributário, as variáveis de procedimento acima referidas não acarretam qualquer implicação jurídica diversa para o investidor residente fora do Brasil, uma vez que seu capital estrangeiro, desde que observadas as formalidades exigidas, sempre será registrável no Banco Central do Brasil e, através do registro, terá a garantia de repatriamento26 e de não tributação do valor registrado, quando da liquidação ou alienação do investimento.27

No tocante às possibilidades de amortização do ágio (e de tributação obrigatória do deságio, quando houver), após a reunião da pessoa jurídica adquirente e da adquirida, apresentam as seguintes variações:

- é obrigatória a demonstração do valor e do fundamento econômico do ágio,28 dentro de três categorias previstas na lei: ágio por expectativa de rentabilidade futura, ágio pelo valor de mercado dos bens da empresa adquirida, e ágio por outras razões econômicas, inclusive pelo fundo de comércio da empresa adquirida; trata-se de conceitos próprios da lei fiscal brasileira, que não correspondem aos conceitos contábeis internacionais, já adotados no Brasil, inclusive com a noção contábil de goodwill, a qual incorpora os pressupostos econômicos de mais de uma das referidas categorias fiscais;

- o ágio por expectativa de rentabilidade futura é amortizável segundo o prazo previsto para a obtenção desses lucros, com o limite máximo anual de 20%;

- o ágio decorrente do valor de mercado dos bens da empresa adquirida é amortizável na proporção em que estes forem depreciados, amortizados ou exauridos;

- o ágio por outras razões econômicas somente é dedutível fiscalmente no momento do encerramento da pessoa jurídica sobrevivente à incorporação, fusão ou cisão.

Em torno dos fundamentos econômicos, outros autos de infração foram lavrados, tendo a jurisprudência administrativa se fixado na validade das respectivas demonstrações apresentadas pelos contribuintes, salvo quando comprovadamente forem inverídicas. Para este entendimento, contribui decisivamente a prescrição legal de que a demonstração em ordem e lastreada em elementos de comparação constitui-se em prova a favor do contribuinte, invertendo-se o ônus da prova contrária em desfavor do Fisco.29

Outro aspecto que tem sido muito discutido é o relativo ao chamado “ágio interno”, ou seja, intragrupo.

Muitos abusos foram cometidos com vistas à obtenção das vantagens tributárias que a lei assegura, a maior parte deles mediante a criação artificial de ágios entre empresas sob controle único, em operações triangulares ou por outros arranjos.

O Fisco atacou duramente tais artifícios, e o fez com razão. Todavia, o seu sucesso em vários processos estimulou a fiscalização a alegar a ocorrência de ágios internos em muitos casos nos quais havia razão negocial para o pagamento de um ágio.

Reduzindo o tema ao seu grau mais simples, ágio é o ônus que algum novo investidor paga por adentrar em uma sociedade já existente, na qual determinados fatores justificam o pagamento de um sobrepreço em relação a determinado referencial econômico, inclusive visando a não diluição injustificada da justa participação dos sócios anteriores. Para os efeitos da lei tributária brasileira, o referencial corresponde ao valor patrimonial contábil da participação societária adquirida.

Sendo assim, a chave para justificar a existência legítima do ágio, e o seu consequente tratamento tributário, é haver uma efetiva aquisição de participação no capital de algum empreendimento já existente, podendo tal aquisição ser processada perante a própria pessoa jurídica titular do empreendimento, ou por negócios com sócios já participantes da mesma.

Neste sentido, embora muitas aquisições sejam feitas por novos sócios, nenhum impedimento legal ou negocial existe para que haja negócios entre pessoas que já participem do empreendimento. Neste caso, obviamente o alienante quer receber um preço justo que na maior parte das vezes supera o valor patrimonial contábil da sua participação (sendo possível que neste caso ele tenha ganho de capital sujeito à tributação).

Ainda neste sentido, se a adquirente for uma pessoa jurídica sediada no Brasil, ela deverá apurar o ágio relativo à aquisição deste novo lote de participação, o qual poderá vir a ser amortizado e deduzido se houver a reunião dessa pessoa jurídica com aquela à qual a participação se refere.

Destarte, aplainado o terreno dentro do qual pode haver legítimos ágios, pode-se perceber claramente que inúmeras outras situações podem gerar idênticos efeitos, mesmo quando ocorridas dentro de um determinado grupo econômico de empresas.

Por exemplo, a separação de ativos ou negócios através de aquisição por uma pessoa jurídica que participe do capital da empresa a que pertencem os ativos ou que realiza os negócios, quando haja a separação de sócios. Outro exemplo: o simples aumento de capital em que nem todos os sócios participem.

Em todos estes casos, é infundada a irresignação da fiscalização, sendo importante dizer que a Comissão de Valores Mobiliários (correspondente à Securities and Exchange Commission dos Estados Unidos da América) mais de uma vez se pronunciou favoravelmente à existência de justificados ágios intragrupo.

VIII - Prejuízos Fiscais

Por outro lado, ao se efetivar qualquer reorganização que envolva uma ou mais pessoas jurídicas no Brasil deve-se atentar para possíveis implicações face a prejuízos fiscais existentes em uma delas, uma vez que a lei brasileira autoriza a compensação de prejuízos fiscais, porém sob algumas limitações e restrições.

Realmente, o prejuízo fiscal de um período-base pode ser compensado com os lucros tributáveis de quaisquer períodos futuros, sem limitação temporal, porém até o limite de 30% desses lucros,30 mas impõe três tipos de restrições:

- é vedada a transferência de prejuízo de uma pessoa jurídica para outra, mesmo que esta tenha absorvido aquela em incorporação, fusão ou cisão;31

- na hipótese de cisão parcial, a cindida conserva o direito de compensar seus prejuízos fiscais apenas na proporção do patrimônio líquido que tenha remanescido nela, sendo vedada a compensação do restante;32

- é vedada a compensação de prejuízo da própria pessoa jurídica que tenha, após a formação do prejuízo e até a compensação, sofrido mudança de controle (direto ou indireto) e, também, mudança de ramo de atividade (mudança que acrescente atividade significativa às anteriormente praticadas).33

Em virtude do conjunto destas normas, as reorganizações são sempre processadas com os seguintes principais cuidados:

- caso a reestruturação envolva a reunião de duas ou mais pessoas jurídicas e uma delas detenha prejuízo fiscal, esta deve ser a incorporadora das outras, além de ficar afastada a alternativa de fusão;

- na hipótese de mais de uma pessoa jurídica deter prejuízo a compensar, e se possível, a reestruturação deve ser feita por etapas, ou seja, após a cada uma das entidades ter esgotado os seus prejuízos;

- ainda na hipótese de mais de uma pessoa jurídica deter prejuízo a compensar, e caso não seja possível a reorganização ser processada em etapas, a preferência é para que seja incorporadora aquela que for detentora do prejuízo de maior valor, além de ficar afastada a alternativa de fusão;

- em qualquer caso, se a reorganização importar em mudança de controle da pessoa jurídica que detiver prejuízo a compensar, é necessário verificar se também não ocorrerá mudança de ramo de atividade, dado que, havendo as duas mudanças, fica vedada a compensação; esta restrição fica afastada se a última das mudanças ocorrer após a compensação dos prejuízos fiscais.

Evidentemente que as hipóteses alternativas retroexaminadas levam em conta apenas os possíveis reflexos das reorganizações perante prejuízos fiscais a compensar. Deste modo, a adoção de qualquer uma delas depende de outros fatores existentes concretamente em cada caso.34

IX - Tributação da Renda Mundial

Por fim, nesta breve visão das implicações tributárias de toda e qualquer reestruturação internacional, deve-se sempre ter em mente que vigora no Brasil a tributação da renda mundial da pessoa jurídica, com direito a tax credit relativo ao imposto de renda pago no país de origem, mesmo quando não exista acordo para evitar a bitributação e não haja reciprocidade de tratamento no país de origem.

Atualmente há uma norma prescrevendo a tributação anual e automática dos lucros de controladas e coligadas no exterior, independentemente de efetiva distribuição à pessoa jurídica no Brasil, mas esta norma está sob julgamento de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, cuja decisão final ainda está pendente.

Perante a regra de tributação mundial, evidentemente há que se considerar as alternativas oferecidas pelos tratados que o Brasil mantém com outros países,35 para evitar a dupla tributação, os quais podem alterar a regra geral aqui exposta e podem acrescentar outras considerações relevantes.

1 O leitor deve ter em mente que este texto está sendo escrito para apresentação no V Congresso Brasileiro de Direito Tributário Internacional, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário em outubro de 2013. Por esta razão, ele não aborda todos os aspectos específicos das várias questões tratadas, limitando-se às principais diretrizes de ordem geral, principalmente para conhecimento dos participantes estrangeiros, e contendo apenas referências às respectivas fontes legislativas, para pesquisas mais aprofundadas e detalhadas.

2 No Brasil, o imposto de renda das pessoas jurídicas sediadas no País é subdividido nesse imposto propriamente dito, conhecido pela sigla IRPJ, e numa contribuição para a seguridade social sobre o lucro líquido, identificada pela sigla CSL, ou CSLL (doravante, ambos referidos em conjunto como “imposto de renda das pessoas jurídicas”), cuja carga total gira em torno de 34%. Já quando se trata de pessoa física residente no Brasil, ou de contribuinte residente no exterior, não há incidência da CSL. Outrossim, em qualquer caso, não existe um imposto sobre ganhos de capital que seja distinto do imposto de renda, o qual também engloba as incidências sobre ganhos na alienação de bens ou na liquidação de investimentos.

3 Não serão abordadas as possíveis regras especiais derivadas de tratados para evitar a dupla tributação. O Brasil tem tratados com os seguintes países: Japão, Portugal, França, Bélgica, Finlândia, Dinamarca, Espanha, Itália, Suécia, Áustria, Luxemburgo, Noruega, Argentina, Canadá, Equador, República Tcheca e República Eslovaca, Hungria, Filipinas, Coreia do Sul, Índia, Países Baixos (Holanda), República Popular da China, Chile, Paraguai, Israel, México, Ucrânia, África do Sul, Federação Russa, Peru, Venezuela, Trinidad e Tobago e Turquia, estando os três últimos pendentes de aprovação pelo Congresso Nacional.

4 Somente há consideração separada quando haja perdas de capital, cuja compensação em períodos-base futuros é possível, porém apenas contra ganhos de capital e observado um limite de 30% em cada período.

5 RIR/1999, art. 690, inciso II.

6 Independentemente de o pagamento ser feito dentro ou fora do Brasil.

7 Tal procurador deve ser aquele que tem participação direta na operação, mas a ambiguidade da lei gera grande discussão a este respeito, sendo recomendável cuidado especial em cada caso. Veja-se a Lei n. 10.833, de 2003, art. 26.

8 As ações sem direito a voto, cujo total não pode ultrapassar metade do total do capital social, podem ter direito a outras vantagens, como dividendo fixo ou preferencial, e podem adquirir o direito de votar em determinadas circunstâncias previstas na lei. Veja-se a Lei n. 6.404, de 1976, arts. 15 e seguintes.

9 Lei n. 6.404, de 1976, arts. 52 e seguintes.

10 Lei n. 9.249, de 1995, arts. 9º e 10.

11 Pode haver reduções até a alíquota zero, em determinados casos e conforme os prazos de amortização. Outrossim, no caso de credor domiciliado em paraísos fiscais (jurisdições que tributam a renda abaixo de 20%, ou que concedem regimes tributários favorecidos ou que assegurem sigilo de dados ou de titularidade de capitais), a alíquota é sempre de 25%.

12 Decreto-lei n. 1.598, de 1977, art. 17.

13 Decreto-lei n. 1.598, arts. 17, 38, inciso III, e 58, inciso II.

14 Lei n. 12.249, de 2010, arts. 24 e 25. Sobre pessoas vinculadas e paraísos fiscais, veja-se a Lei n. 9.430, de 1996, arts. 23 e 24 a 24-B.

15 No caso de mútuo concedido à pessoa vinculada no exterior por pessoa jurídica sediada no Brasil, esta deve reconhecer para efeitos fiscais, como receita financeira correspondente à operação, no mínimo o valor apurado segundo a mesma regra. Todo o assunto é tratado no art. 22 da Lei n. 9.430, de 1996, sendo as pessoas vinculadas definidas no respectivo art. 23, e os paraísos fiscais tratados nos arts. 24 a 24-B.

16 Lei n. 9.249, de 1995, art. 21.

17 Lei n. 9.249, de 1995, art. 22.

18 Operação distinta da incorporação de pessoa jurídica, na qual uma delas deixa de existir absorvida por outra. Na incorporação de ações, as duas companhias continuam a existir, uma controlando a outra.

19 Lei n. 6.404, de 1976, art. 252.

20 Lei n. 9.249, de 1995, art. 23.

21 As definições de investimento relevante e das referidas entidades constam da Lei n. 6.404, art. 247, parágrafo único, art. 243, parágrafos 1º e 2º, e art. 265.

22 Lei n. 6.404, de 1976, art. 248; Decreto-lei n. 1.598, de 1977, arts. 20 e seguintes.

23 Lei n. 9.532, de 1997, arts. 7º e 8º.

24 Geralmente foram utilizadas empresas constituídas por escritórios de advocacia, que já possuíam todas as inscrições e formalidades legais, mas que não operavam.

25 Decreto-lei n. 1.598, de 1977, art. 38, inciso I; Lei n. 8.849, de 1994, art. 3º.

26 Lei n. 4.131, de 1962, arts. 1º e seguintes.

27 RIR/1999, art. 690, inciso II.

28 A lei não estabelece forma específica de demonstração, que pode ser feita pela própria pessoa jurídica, mas usualmente ela é realizada através de empresa independente de auditoria ou de avaliação.

29 Decreto-lei n. 1.598, de 1977, art. 20, parágrafo 3º, em combinação com os parágrafos do art. 9º.

30 Lei n. 9.065, de 1995, arts. 15 e 16.

31 Decreto-lei n. 2.341, de 1987, art. 33.

32 Decreto-lei n. 2.341, de 1987, art. 33.

33 Decreto-lei n. 2.341, de 1987, art. 32.

34 As referidas hipóteses também não consideram a interpretação da lei segundo a qual não cabe a aplicação do limite de 30% nas incorporações de pessoas jurídicas.

35 Veja-se a relação desses tratados na nota (3) retro.