Efeitos da Anulação, por Vício de Finalidade, de Acórdão Utilizado como Paradigma para a Interposição de Recurso Especial no Carf

The Effects of the Annulment, by Vice of Finality, of an Administrative Court Decision Used as Paradigm to argue an Appeal to the Superior Chamber of tax Appeals of the Board of Tax Appeals (Carf)

Breno Ferreira Martins Vasconcelos

Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. LL.M em Direito Tributário pela Università Degli Studi di Bologna, Itália. Professor do Curso de Especialização em Direito Tributário da Escola de Direito da FGV-SP. Advogado (São Paulo). E-mail: breno@msvadv.com.br.

Maria Raphaela Dadona Matthiesen

Pós-graduanda em Direito Tributário pela FGV-SP. Advogada (São Paulo). E-mail: mariaraphaela@msvadv.com.br.

Resumo

O processo administrativo federal concentra na Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) a busca pela unidade e pela coerência do sistema, conferindo-lhe a função de uniformizar a interpretação legislativa aplicada pelas Turmas ordinárias do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Por consequência lógica, a admissibilidade dos recursos direcionados à CSRF é condicionada à demonstração de divergência entre acórdãos que tenham dado soluções diversas a situações fática e juridicamente semelhantes, requisito cumprido pelo confronto, no ato de interposição do recurso, da decisão recorrida com a(s) utilizada(s) como paradigma(s). Em um cenário de intensificação das medidas de fiscalização e transparência no processo administrativo fiscal federal, refletido especialmente pela operação Zelotes, surge no horizonte a possibilidade de anulação de acórdãos proferidos com vícios de finalidade pela prática de atos de corrupção, trazendo a seguinte questão, objeto deste estudo: de que forma a anulação do acórdão atingirá os recursos que o tenham utilizado como paradigma?

Palavras-chave: recurso especial, processo administrativo fiscal, paradigma, anulação, efeitos, Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF).

Abstract

The federal administrative proceeding concentrates at the Superior Chamber of Tax Appeals (CSRF) the search for unity and coherence at the law system, conferring to the Superior Chamber the function of uniformizing the interpretation of the law that is applied by the ordinary panels of the Board of Tax Appeals. By logical consequence, the acceptance of the appeals to the Superior Chamber is conditioned to the demonstration of the dissensions between court decisions that have given different solutions to situations that are factual and juridically similar, which is complied by confronting, at the arguing of the appeal, the appelled decision with a comparative one. In a scenario with intensification of the inspection reliefs, reflected specially by the Federal Police’s operation named “Zelotes”, the possibility of annulment of court decisions with finality’s vice arised from corruption acts appears and bring the following question, which is the object of this paper: how will the annulment of court decisions affect the appeals that have used it as a comparative decision.

Keywords: appeal to the Superior Chamber, federal administrative proceedings, comparative decision, annulment, effects, Superior Chamber of Tax Appeals (CSRF).

1. Introdução

O contencioso administrativo federal, à semelhança do sistema judicial, está estruturado sobre duas instâncias, inicial e revisora, e uma terceira instância harmonizadora.

Na esfera administrativa, os processos de determinação e exigência de créditos tributários são julgados, em primeira instância, por órgãos colegiados denominados Delegacias Regionais de Julgamento, compostos de agentes fiscais, que proferem decisões passíveis de recursos dirigidos a uma instância revisora, hoje chamada Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão também colegiado, de composição paritária, no qual cada turma de julgamento é composta por conselheiros representantes da Fazenda Nacional e das confederações e centrais sindicais.

Dentro do sistema administrativo de controle de legalidade dos lançamentos tributários, a decisão colegiada proferida por uma das turmas do Carf ficará sujeita a novo julgamento, pela via do recurso especial à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), que exerce juízo de mérito dotado de vocação diferenciada, qual seja, a de conferir unidade e harmonia ao sistema. Vale dizer, caberá à CSRF cotejar interpretações diversas das turmas baixas, representadas por acórdãos que tenham dado soluções diferentes a questões fáticas e jurídicas semelhantes, e pacificar o entendimento do Conselho sobre qual norma, dentre as de construção possível a partir do conjunto de regras analisadas, deve ser aplicada a casos concretos equivalentes.

Nesse ambiente de aparente normalidade institucional, em março de 2015 a Polícia Federal iniciou a chamada Operação Zelotes, a fim de investigar a prática de atos de corrupção voltados à manipulação do trâmite e do resultado de processos administrativos fiscais no Carf que, se comprovada, poderá ensejar a anulação de acórdãos proferidos pelas Turmas do Conselho com vício de finalidade.

A possível anulação de acórdãos eivados de vícios motiva a seguinte indagação, que propomos responder neste artigo: de que forma a declaração de nulidade do acórdão atingirá os recursos especiais que tenham utilizado a decisão anulada como paradigma?

2. A Relevância do Precedente no Sistema Jurídico

2.1. Jurisprudência como fonte de interpretação do Direito

A estruturação do sistema jurídico sobre as bases da civil law não implica seu engessamento pela letra das regras positivadas. Conceber o juiz como “boca da lei”, utilizando a expressão cunhada por Montesquieu em sua obra Do espírito das leis, é tentativa ultrapassada e há tempos ofuscada pela importância crescente atribuída à hermenêutica.

O exercício cognitivo de interpretação é verdadeira atividade de produção normativa. Partindo da lei, formulada em plano geral e abstrato, busca-se a essência da regra positivada para dela extrair uma norma individual e concreta que, por meio da interpretação, represente a melhor solução ao conflito de interesses dentre os possíveis comandos formulados a partir da lei.

Em que pese o fascínio pelo assunto, nosso intuito não é de nos aprofundarmos na ciência hermenêutica, mas sim jogar luz sobre o papel fundamental exercido pela jurisprudência na tarefa de aplicação da lei, sendo verdadeira fonte do Direito.

Exemplo disso são as dezenas de Súmulas editadas pelos Tribunais Superiores e a relevância sistêmica dada aos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento de recursos submetidos ao rito da repercussão geral ou dos representativos de controvérsia, que serão replicados aos casos sobrestados fundados em idêntica questão de direito (artigos 543-B, parágrafo 3º e 543-C, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil de 1973 e artigos 1.039 e 1.040 do Código de Processo Civil de 2015).

O apego aos precedentes é de tal nitidez que, notando-o, o legislador inseriu no Código de Processo Civil de 2015 (Lei n. 13.105/2015) – aplicável subsidiariamente ao processo administrativo fiscal a partir do início de sua vigência em 17 de março de 2016 – diversos dispositivos determinando que sua utilização na fundamentação de sentenças, nos recursos contra decisões de inadmissibilidade por contrariedade ao entendimento dos Tribunais Superiores ou na replicação de decisões proferidas com repercussão geral ou em regime de recurso repetitivo, deverão sempre observar a adequação do paradigma ao caso sob julgamento.

Na esfera administrativa tributária federal, o destaque dado ao precedente não é menor. Até esta data vigoram 107 Súmulas editadas e aprovadas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, sendo 14 vinculantes, ou seja, enunciados que vinculam a atividade da Administração Pública federal, conforme a previsão do artigo 75 do Ricarf (Portaria MF n. 343 de 9 de junho de 2015).

Nos milhares de acórdãos proferidos pelas Turmas do Conselho, são poucos aqueles cuja fundamentação não remete, ainda que de maneira complementar, aos precedentes.

Às Súmulas Vinculantes e decisões definitivas em controle de constitucionalidade feito pelo STF e aos acórdãos em repercussão geral ou recursos repetitivos, por sua vez, foi conferido especial tratamento pelo artigo 62 do Ricarf, para permitir que, com base em tais precedentes, o julgador administrativo afaste disposição de tratado, acordo internacional, lei ou decreto inconstitucionais:

“Art. 62. Fica vedado aos membros das turmas de julgamento do Carf afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.

§ 1º O disposto no caput não se aplica aos casos de tratado, acordo internacional, lei ou ato normativo:

I – que já tenha sido declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

II – que fundamente crédito tributário objeto de:

a) Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 103-A da Constituição Federal;

b) Decisão do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, em sede de julgamento realizado nos termos do art. 543-B ou 543-C da Lei nº 5.869, de 1973 – Código de Processo Civil (CPC), na forma disciplinada pela Administração Tributária.”

A outra face desse inegável peso da jurisprudência entre as fontes do Direito, que de mais a mais se torna uma ferramenta essencial para a construção normativa, é a preocupação com a manutenção da harmonia e da unidade do sistema jurídico, que não podem ser perdidas no emaranhado de normas fabricadas diariamente pelos julgadores.

2.2. Coerência do sistema jurídico – busca pela compatibilidade entre as normas e pela concretização da segurança jurídica

Assumindo como pressuposto que os atos de aplicação da lei são normas (de caráter individual e concreto, produzidas a partir da interpretação), a eles também se aplica a exigência de coerência e compatibilidade imposta ao conjunto normativo que compõe o sistema jurídico.

Norberto Bobbio, que em sua Teoria da norma jurídica1 insere os atos de aplicação da lei entre os comandos normativos chamando-os de “ordens”, em outra obra de igual importância destaca a necessidade de o conjunto de normas apresentar compatibilidade entre si e permitir a coerência do sistema jurídico:

“Diz-se que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Aqui, ‘sistema’ equivale à validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm um certo relacionamento entre si, e esse relacionamento é o relacionamento de compatibilidade, que implica a exclusão da incompatibilidade.”2

Não fosse a ascensão da hermenêutica, a compatibilidade seria facilmente alcançada. No papel de boca da lei o julgador apenas reproduziria a literalidade do texto positivado, sem explorar os diversos comandos possíveis que se desenham ao contemplar todo o ordenamento e buscar a conjugação das regras.

Situando o julgador na posição de intérprete, contudo, implementamos a moldura kelseniana para permitir que das prescrições legais seja extraída uma pluralidade de normas. Entre elas, caberá ao julgador eleger a que confira melhor solução ao caso concreto, transformando a atividade de produção de “ordens” em um campo minado de variáveis.

Some-se a isso as teorias lançadas em pesquisas comportamentalistas3, que traçam uma série de fatores extrajurídicos capazes, segundo os estudos, de influenciar a escolha da norma aplicável nas decisões.

O que se pretende destacar já é claro: no âmbito de produção de normas concretas (ou ordens) é alta a probabilidade de situações fáticas semelhantes serem resolvidas de maneiras diversas, inserindo no ordenamento um sem-número de normas que precisam ser compatibilizadas. Seja para permitir a coerência do sistema jurídico, seja para concretizar a segurança jurídica.

Com efeito, deixar os jurisdicionados à sorte dos atos de aplicação da lei, sem nenhum controle de compatibilidade entre as normas individuais e concretas, seria o mesmo que transformar a atividade jurisdicional em uma loteria trajada de processo.

Mas pensemos nas decisões colegiadas, que compõem a jurisprudência e indiretamente estendem seus efeitos a outros casos concretos exercendo função de fontes interpretativas da lei. Na ausência de unidade entre as ordens, seu emprego como precedentes leva à multiplicação de normas incompatíveis, atingindo em cheio a segurança jurídica.

Como, então, adequar a atividade de intérprete do julgador à necessidade de coerência entre as normas que introduz no sistema jurídico?

2.3. A função harmonizadora como controle de compatibilidade entre as ordens individuais e concretas

No plano legal a compatibilidade é implementada por meio de critérios para a solução de antinomias, como a especialidade, a hierarquia e a cronologia. No de aplicação da lei, por sua vez, a saída foi encontrada por meio dos órgãos de uniformização.

Aqui há um importante alerta feito por Rodolfo de Camargo Mancuso ao analisar a atividade uniformizadora do direito realizada pelo STJ: a busca pela interpretação uniforme não deve servir de mordaça aos julgadores. Do contrário,

“(...) o objetivo ali perseguido é o de possibilitar a unidade de interpretação da lei federal em todo o território nacional. Como observa José Afonso da Silva, de nada valeria dar-se o recurso como ‘instrumento da validade ou da autoridade da lei federal se se deixasse a interpretação das normas jurídicas a descontrole, entregue às inclinações pessoais ou regionais dos julgadores’. Ou, como já afirmara o saudoso Ministro do STF, Muniz Barreto: ‘De nada vale fundarem os tribunais na mesma disposição legal a solução de determinada relação de direito em lide, se os julgamentos divergem em suas conclusões, pela diversidade de interpretação da lei reguladora da espécie’.”4

A essência da CSRF é a mesma. Ao exercer a função de uniformização na esfera administrativa, a Câmara Superior permite o alcance da segurança jurídica e a coerência do ordenamento, aplicando ao caso concreto a interpretação eleita como mais adequada àquele contexto fático e harmonizando o sistema ao trazer unicidade aos precedentes, fontes interpretativas do Direito.

3. Demonstração de Divergência para Admissibilidade do Recurso Especial

A fim de instrumentalizar a função harmonizadora da CSRF, as regras que disciplinam o processo administrativo fiscal federal inseriram entre os requisitos de admissibilidade do recurso especial a demonstração pelo recorrente, no ato de interposição, da divergência entre as interpretações da legislação federal estampadas no acórdão recorrido e na decisão paradigma:

Decreto n. 70.235/1972

“Art. 37. O julgamento no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais far-se-á conforme dispuser o regimento interno.

§ 2º Caberá recurso especial à Câmara Superior de Recursos Fiscais, no prazo de 15 (quinze) dias da ciência do acórdão ao interessado:

II – de decisão que der à lei tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra Câmara, turma de Câmara, turma especial ou a própria Câmara Superior de Recursos Fiscais.”

Ricarf (Portaria MF n. 343, de 9 de junho de 2015)

“Artigo 67

Omissis

§ 1º Não será conhecido o recurso que não demonstrar de forma objetiva qual a legislação que está sendo interpretada de forma divergente. § 2º Para efeito da aplicação do caput, entende-se que todas as Turmas e Câmaras dos Conselhos de Contribuintes ou do Carf são distintas das Turmas e Câmaras instituídas a partir do presente Regimento Interno. § 3º Não cabe recurso especial de decisão de qualquer das turmas que adote entendimento de súmula de jurisprudência dos Conselhos de Contribuintes, da CSRF ou do Carf, ainda que a súmula tenha sido aprovada posteriormente à data da interposição do recurso.

§ 4º Não cabe recurso especial de decisão de qualquer das turmas que, na apreciação de matéria preliminar, decida pela anulação da decisão de 1ª (primeira) instância por vício na própria decisão, nos termos da Lei nº 9.784 de 29 de janeiro de 1999.”

O julgamento do recurso especial pela CSRF estará prejudicado, portanto, caso seja descumprido esse pressuposto de conhecimento ou constatada a ausência de semelhança entre as situações analisadas na decisão recorrida e na decisão paradigma.

A partir dessas premissas, parece-nos mais evidente a relevância do questionamento a que esse estudo se propõe. Se contaminado o acórdão paradigma por atos de corrupção, a interpretação conferida a determinado dispositivo da legislação federal será tão somente uma carcaça montada para mascarar o resultado efetivamente pretendido, não espelhando o real entendimento do colegiado sobre o tema.

Constatada essa hipótese, a função uniformizadora do recurso especial se perde, pois não há mais divergência que demande composição pela Câmara Superior. O acórdão contaminado, por sua vez, deverá ser anulado pela Administração, e causará inevitável alteração na situação do recorrente que, antes, havia cumprido o requisito de admissibilidade do recurso se valendo desse paradigma.

4. Anulação de Atos Administrativos

De acordo com a doutrina administrativista, o ato administrativo pode ser anulado quando houver vício em algum de seus elementos constitutivos: competência, forma, objeto, motivo e finalidade.

O vício de finalidade, segundo Weida Zancaner, ocorre “quando o agente se utiliza de um ato para satisfazer finalidade diversa da inerente à sua categoria. Não importa que a finalidade almejada, mas distinta da do ato utilizado, seja pública ou provada, que o móvel que anima o agente seja vil ou não. O que realmente importa é o descompasso objetivo gerado neste pressuposto; isto basta para torná-lo inconvalidável.”5-6

Ainda no campo da doutrina administrativista, Celso Antônio Bandeira de Mello destaca os efeitos retroativos da anulação, que em sua doutrina é denominada invalidação:

“Os efeitos da invalidação consistem em fulminar ab initio, portanto, retroativamente, o ato viciado e seus efeitos. Vale dizer: a anulação opera ex tunc, desde então. Ela fulmina o que já ocorreu, no sentido de que se negam hoje os efeitos de ontem.

Isto significa recusar a validade ao que já se passou.”7

Estão alinhados a esses ensinamentos os de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem “como a desconformidade com a lei atinge o ato em suas origens, a anulação produz efeitos retroativos à data em que foi emitido (efeitos ex tunc, ou seja, a partir de então)”8.

Partindo das afirmações formuladas até aqui, em um raciocínio apressado a pergunta proposta neste artigo seria prontamente respondida da seguinte forma: os efeitos da declaração de anulação da decisão paradigma atingirão todos os atos praticados desde sua origem, inclusive as decisões de admissibilidade de recursos especiais proferidas enquanto o acórdão ainda era válido.

Com efeito, a decisão proferida com vício de finalidade atinge a consistência da discordância entre as interpretações. Se o que animou os julgadores a decidir de determinada forma foi motivo desviado do interesse público (nesse caso, conferir liquidez, certeza e exigibilidade ao ato de lançamento, analisando sua subsunção ao ordenamento jurídico), a autenticidade da interpretação legal estampada no acórdão é duvidosa, pois veiculada pelo julgador como meio para, cancelando ou mantendo a autuação, alcançar a finalidade realmente almejada.

Ao colocar-se uma lupa sobre essa resposta, contudo, é possível identificar que a conclusão deixa de lado uma variável decisiva: o tempo.

O tempo é o único que não se curva às arbitrariedades e vontades do homem e que mantém um curso constante e contínuo, em seu próprio ritmo, sem diferenciar lugar ou destinatário.

Cientes de nossa impotência frente ao tempo, criamos a ilusão de que ele pode ser transformado em unidades contáveis e controláveis, nos esforçamos para estabilizar relações formadas há uma hora, um dia, um ano. Datamos documentos, estabelecemos prazos, definimos início e fim para a duração de obrigações, a fim de evitar, na medida do nosso alcance, a corrosão do tempo.

E no processo não é diferente. Ignoramos, por nossa vez, a fluência irrefreável do tempo e inventamos ficções não atingíveis pelas mudanças que acompanham sua passagem: direitos adquiridos, decisões transitadas em julgado, faculdades preclusas.

Como, então, conciliar as mudanças trazidas à decisão paradigma pelo fluxo do tempo com as regras de estabilização das relações processuais?

5. Reflexos da Anulação nos Recursos Especiais que utilizaram a Decisão com Vício de Finalidade como Paradigma

As regras positivadas que atualmente disciplinam o processo administrativo fiscal não trazem resposta expressa para a pergunta formulada nesse estudo, cabendo ao intérprete construir a norma a partir do aparato legal à sua disposição.

Regulando situações semelhantes, o Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais dispõe no artigo 67, parágrafo 12, sobre a hipótese em que o entendimento do acórdão paradigma é superado por (i) Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF), (ii) decisão transitada em julgado proferida em sede de repercussão geral (artigo 543-B do Código de Processo Civil – CPC), ou (iii) decisão transitada em julgado proferida sob o rito dos recursos repetitivos (artigo 543-C do CPC)9:

“Não servirá como paradigma o acórdão que, na data da análise da admissibilidade do recurso especial, contrariar:

I – Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 103-A da Constituição Federal;

II – decisão judicial transitada em julgado, nos termos dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973 – Código de Processo Civil (CPC); e

III – Súmula ou Resolução do Pleno do Carf.”

Ao mencionar expressamente a “data de análise da admissibilidade do recurso especial”, a redação do dispositivo parece nos indicar um marco estabelecido para enfrentar os efeitos do tempo: o juízo de admissibilidade do recurso.

Assim, imagine-se um contribuinte que, no momento X1, interpõe seu recurso com base em paradigma que tenha deferido o aproveitamento de prejuízos fiscais para a apuração da base de cálculo do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e de base negativa para a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), sem a limitação de 30% do lucro no caso de extinção da empresa.

Em um momento X2, a mesma matéria é apreciada pelo STF em julgamento submetido à sistemática do artigo 543-B do CPC (repercussão geral), entendendo a Corte pela constitucionalidade da trava.

O juízo de admissibilidade do recurso especial interposto à CSRF, contudo, é realizado apenas em um momento X3.

Nesse cenário, em que pese o acórdão paradigma representar entendimento ainda “vigente” ao tempo da interposição do recurso, pela disciplina do artigo 67, caput, sua capacidade de viabilizar o conhecimento do apelo especial estaria prejudicada.

Nada mais certo: a partir do momento em que o entendimento aplicável sobre determinada matéria é definido por meio de Súmula Vinculante ou decisão em recurso repetitivo ou com repercussão geral, a divergência que antes demandava o julgamento da CSRF estará superada, esvaziando a utilidade do recurso.

5.1. Recursos especiais que aguardam juízo de admissibilidade

Aplicando-se o critério temporal eleito pelo artigo 67, parágrafo 12, aos casos de anulação do acórdão paradigma, a inadmissibilidade do recurso especial à CSRF seria a consequência imediatamente verificável.

Novamente, contudo, a questão não pode ser tratada com simplicidade.

O artigo 67, parágrafo 12, do atual Ricarf é voltado à situação em que há nítida superação temática. Assim, nessa hipótese, eventual divergência de interpretação ensejadora do recurso especial já terá sido dirimida pela Súmula ou decisão proferida sob o rito dos artigos 543-B e 543-C do CPC.

Na anulação, por sua vez, o objeto da desconstituição é a decisão proferida com vício de finalidade, e não a interpretação da legislação federal trazida em sua fundamentação. Vale dizer: o foco da declaração de anulação é o ato administrativo decisão colegiada, sendo irrelevante o entendimento da legislação federal exposto como base para o julgamento.

Nesse cenário, é possível que outra decisão, proferida sem vício de finalidade, tenha dado a mesma interpretação à lei que a adotada no acórdão anulado, subsistindo a divergência veiculadora do recurso especial.

Nessa hipótese, a boa-fé do recorrente deverá ser priorizada para apontar os seguintes caminhos:

a) Divergência embasada em mais de um paradigma: nos termos do artigo 67, parágrafos 6º e 7º10 do Ricarf, a divergência poderá ser demonstrada por até dois paradigmas. Caso haja mais decisões arroladas para demonstrar a divergência, apenas as duas primeiras indicadas serão consideradas.

Nesse caso, anulado um dos dois acórdãos, a análise de admissibilidade deverá considerar a decisão remanescente e, se elencadas mais do que duas, o paradigma subsequente mencionado pelo contribuinte.

b) Divergência embasada em único paradigma (anulado): o contribuinte deverá ser intimado para que lhe seja dada a oportunidade de substituir o paradigma apresentado na interposição do especial. Não havendo substituição, o recurso deverá ser inadmitido.

Entendemos ser essa a solução que melhor se compatibiliza com (i) o critério temporal adotado pela legislação processual, (ii) a finalidade do recurso de divergência à CSRF, e (iii) os princípios da economia processual, da isonomia da eficiência, da finalidade e do formalismo moderado.

5.2. Recursos especiais já admitidos, mas com mérito ainda não apreciado

A partir das premissas levantadas no tópico anterior, a conclusão alcançada nos casos de recursos especiais já admitidos, mas com mérito ainda não julgado, será a mesma: existente outra decisão que possa operar como paradigma, ao contribuinte será dada oportunidade para substituir o acórdão anulado que embasou a interposição de seu recurso, desde que não tenha demonstrado a divergência por meio de mais de um paradigma.

Do contrário, o juízo de admissibilidade deverá ser refeito, inadmitindo-se o recurso.

5.3. Recursos especiais já admitidos e com mérito apreciado pela CSRF

É possível, ainda, que o paradigma anulado tenha sido utilizado para demonstrar o cabimento de recurso especial com mérito julgado pela CSRF.

Nesses casos, a saída é recorrer aos artifícios criados para tentar domar o tempo e evitar que a anulação do paradigma atinja uma relação já estabilizada e instaure o caos.

A segurança jurídica, valor caro em nosso ordenamento, é colocada na balança para exigir, mais uma vez, que o tempo seja convertido em termos iniciais e finais, e os efeitos das mudanças por ele carregadas fiquem restritas aos períodos assim delimitados.

A presunção de validade carregada pelos atos administrativos potencializa a exigência de segurança jurídica, princípio desenhado por José Gomes Canotilho nos seguintes moldes:

“o indivíduo têm do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.

As refracções mais importantes do princípio da segurança jurídica são as seguintes: (1) relativamente a actos normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais – inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração – tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos.11

Com efeito, a decisão administrativa definitiva confere estabilidade às partes na relação jurídica tributária, que cairia por terra caso a decisão de mérito fosse desconstituída em decorrência da anulação do paradigma. Basta imaginar que essa decisão de mérito, proferida sem vício de finalidade, mas originada por recurso especial interposto com base em paradigma anulado, pode também ter sido utilizada para demonstrar a divergência de interpretações em outros processos.

Partindo dessa linha de ideias é que Marçal Justen Filho afirma: “O máximo que se poderia afirmar é que os atos nulos não deveriam produzir efeitos jurídicos. Aliás, atos nulos não deveriam sequer ocorrer.” E prossegue:

“Embora nulo, um ato administrativo pode induzir mudança no mundo jurídico – mudança derivada da suposição de existir um ato válido. Os princípios da autoexecutoriedade e da presunção de legitimidade do ato administrativo vinculam o administrado a cumprir atos estatais defeituosos. A pronúncia do vício do ato administrativo envolve a necessidade de desfazer uma série ampla de situações fáticas derivadas do ato pretensamente válido.

As concepções democráticas de Estado impedem a frustração das expectativas legítimas geradas por atos formalmente perfeitos praticados por agentes públicos. Esse enfoque vem se acentuando significativamente na Europa e no Brasil, a partir da questão da inconstitucionalidade.”12

Voltar, então, à discussão sobre a admissibilidade quando o mérito do recurso já foi resolvido desencadearia um verdadeiro efeito dominó, exigindo a reapreciação de outros incontáveis julgamentos proferidos sem vício de finalidade.

Os desdobramentos da anulação do ato administrativo encontram seu limite nas expectativas legítimas dos recorrentes que, interpondo seu recurso com base em paradigma formalmente válido, tiveram sua relação jurídica estabilizada por uma decisão de mérito e contam com a previsibilidade dos efeitos a serem originados pelas ações nela pautadas.

A ilusão de controlar o tempo, assim, reflete nossa tentativa de achar um ponto de equilíbrio entre a (i) necessidade de adequação do sistema jurídico ao contexto social por ele ordenado e (ii) a garantia de segurança jurídica.

6. Conclusão

Os efeitos da anulação do acórdão paradigma serão experimentados pelo recorrente que nele apoiou seu especial de acordo com a fase processual de seu recurso à época em que pronunciada a nulidade.

A construção normativa formulada a partir desse aparato aponta, então, para as seguintes soluções:

Recursos Especiais que aguardam juízo de admissibilidade e Recursos Especiais já admitidos, mas com mérito ainda não apreciado

 

Se ainda não apreciado o mérito, na ausência de paradigma válido subsistente deve ser viabilizada ao recorrente a substituição do acórdão que justifique a atividade uniformizadora da CSRF.

Não cumprida a substituição, o conhecimento do recurso estará prejudicado por inexistir divergência de interpretações a ser harmonizada pela Câmara Superior.

 

 

 

Recursos Especiais já admitidos e com mérito apreciado pela CSRF

 

Julgado o mérito, a anulação do paradigma não atingirá a solução dada ao recurso especial que nele tenha se embasado.

A anormalidade do cenário proposto no início dessa pesquisa já sugere, por si só, a necessidade de balancear regras e valores diversos inscritos no ordenamento jurídico para buscar as respostas que se adequem à essência do recurso à CSRF e à sistemática processual administrativa fiscal, sem prejudicar o recorrente que, de boa-fé, se apoiou em decisão com vício de finalidade posteriormente constatado.

Atendendo a essa exigência, os efeitos da anulação de acórdão paradigma deverão ser limitados pela segurança jurídica. O curso do tempo não pode ser ignorado, mas sua ação deve respeitar as expectativas das partes que tiveram sua relação estabilizada, conferindo coerência ao sistema.

Referências Bibliográficas

BECKER, Laércio Alexandre. “O mito da neutralidade do juiz”. Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16673-16674-1-PB.htm. Acessado em 1º.11.2015.

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 1ª ed. São Paulo: Edipro – Edições Profissionais Ltda., 2001.

–. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11ª ed. São Paulo: RT.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros.

ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 1ª ed. São Paulo: RT.

1 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 1ª ed. São Paulo: Edipro – Edições Profissionais Ltda., 2001, p. 177.

2 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 80.

3 A título exemplificativo, confira-se: BECKER, Laércio Alexandre. “O mito da neutralidade do juiz”. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16673-16674-1-PB.htm. Acessado em 1º.11.2015.

4 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11ª ed. São Paulo: RT, pp. 297 e 298.

5 ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 1ª ed. São Paulo: RT, p. 74.

6 Para o presente estudo, vamos descartar a possibilidade de convalidação do ato administrativo anulável, pois sanado o vício o acórdão paradigma será mantido, em nada alterando o juízo de admissibilidade do recurso especial que nele encontra suporte.

7 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 410.

8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 223.

9 O Ricarf anterior, vigente até 8 de junho de 2015 (Portaria n. 256, de 22 de junho de 2009), tinha previsão em semelhante, estabelecendo que o acórdão cuja tese, na data de interposição do recurso, já tiver sido superada pela CSRF, não servirá de paradigma, independentemente da reforma específica do paradigma indicado (artigo 67, parágrafo 10).

10 “Art. 67. Compete à CSRF, por suas turmas, julgar recurso especial interposto contra decisão que der à legislação tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra câmara, turma de câmara, turma especial ou a própria CSRF.

§ 6º Na hipótese de que trata o caput, o recurso deverá demonstrar a divergência arguida indicando até 2 (duas) decisões divergentes por matéria.

§ 7º Na hipótese de apresentação de mais de 2 (dois) paradigmas, serão considerados apenas os 2 (dois) primeiros indicados, descartando-se os demais.”

11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.

12 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 404.