ICMS - Comunicação - Parecer

Alcides Jorge Costa

Professor Titular (aposentado) de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Advogado em São Paulo.

1. Consulta

1.1 A Consulente é uma empresa que tem por objeto o “fornecimento de sinais de televisão repetidos, via satélite; produção, distribuição, importação e exportação de programas de televisão; importação de equipamentos de peças de reposição, para uso próprio; prestação de demais serviços relacionados com sistemas para transmissão, recepção e distribuição de sinais e programas de televisão; exploração de propaganda e publicidade em todas as suas formas, implicações e modalidades, bem como a publicação de periódicos; participação em outras sociedades”.

1.2 A Consulente explora sistemas de televisão por assinatura, nas modalidades da transmissão por cabo, microondas e satélite, para o que detém permissões do Ministério das Comunicações.

1.3 Nessa atividade, presta serviços de televisão a usuários finais, fornecendo programação por sinais codificados a seus domicílios, tudo nos termos de Contrato de Assinatura. O serviço é oferecido em múltiplos canais. A Consulente trata a prestação de serviços de televisão por assinatura ao usuário final como sujeita ao ICMS.

1.4 A Consulente é também detentora de direitos autorais sobre a programação e, nessa qualidade, concede licença a outras operadoras às quais entrega a referida programas por canais de televisão mediante sinais que lhes transmite via Embratel; os operadores distribuem a seus assinantes de TV os sinais que assim recebem. A entrega via satélite é feita mediante contrato de prestação de serviços que a Consulente celebra com a Embratel. A Consulente entende que não necessita de licença do Ministério das Comunicações para conceder estas licenças e transmitir os sinais via Embratel.

1.5 A Consulente tem tratado esta operação como prestação de serviço de comunicação, tributada pelo ICMS à alíquota de 5%, mas, segundo está informada, empresas congêneres entendem tratar-se de prestação de serviços sujeita ao imposto municipal sobre serviços - ISS. A consulta refere corrente doutrinária segundo a qual a cessão de direitos autorais não configura prestação de serviços sujeita ao ISS.

1.6 Em vista do exposto, pergunta a consulente:

a) é a operação de licença para transmissão de programas que a Consulente faz a operadores autorizados, mediante sinais transportados via satélite às estações dos operadores, caracterizada como prestação de serviços de comunicação e, nesse caso, está sujeita ao ICMS? Se positiva a resposta, a que alíquota?

b) não estando caracterizada como serviço de comunicação sujeito ao ICMS, qual seria o correto e jurídico enquadramento fiscal da operação relatada?

2. O Imposto sobre Prestação de Serviços de Comunicação na Constituição

2.1 A Emenda nº 18, de 1965, à Constituição de 1946 deu à União competência para instituir imposto “sobre serviços de transportes e comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal” (art. 14, II).

2.2 A Constituição de 1967, em seu artigo 22, VII, declarava competir à União decretar imposto sobre “serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal”. Esta mesma competência foi mantida na Emenda Constitucional nº 1, de 1969 (artigo 21, VII, que conservou a redação do inciso VII do artigo 22, da Constituição emendada).

2.3 A Emenda Constitucional nº 27, de 1985, desdobrou em dois o citado inciso VII da Emenda Constitucional nº 1/69. Assim, o inciso VII do artigo 21 passou a dizer:

“Serviços de comunicação, salvo os de natureza estritamente municipal.”

O inciso X do mesmo artigo tinha a seguinte redação: “transportes, salvo os de natureza estritamente municipal”.

Como se verifica, a tributação dos transportes passou a fazer-se em função do próprio transporte e não mais da prestação de serviços de transporte.

2.4 A Constituição de 1988 transferiu para os Estados a competência para instituir imposto sobre serviços de comunicação e de serviços de transporte interestadual e intermunicipal. O artigo 155, II, da CF/88 dá aos Estados competência para instituir imposto sobre:

“operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (art. 155, II).

Voltou-se à tributação dos serviços de transporte e não apenas dos transportes.

3. O Alcance do Imposto sobre Prestação de Serviços de Comunicação

3.1 Comunicação é o ato ou efeito de comunicar. O verbo comunicar tem diversas acepções. O Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, em sua 1ª edição, assinala quatorze significados para este verbo, dos quais, os de nos 1 e 3 do verbete “comunicar” dizem respeito à comunicação que aqui interessa definir:

1. Fazer saber; tornar comum; participar: comunicar idéias, pensamentos, propósitos: “Tristão escreveu comunicando a mudança de carreira.” (Machado de Assis, Memorial de Aires, p. 36)

3. Fazer saber, tornar comum, participar: Na carta comunica ao amigo a sua decisão.

3.2 O ato de comunicar é repetido em todos os momentos e pelas mais variadas formas. A comunicação pode ser oral, escrita, por gestos ou por meio de imagens. Qualquer conversa é uma comunicação. Este parecer é uma comunicação escrita de uma opinião. Os exemplos poderiam multiplicar-se quase ad infinitum.

3.3 Mas a comunicação não é sempre pessoal. Por vezes, a mensagem é transmitida por terceiros. Mensageiros são conhecidos desde a remota antiguidade. Impossível deixar de fazer referência aos variados meios de comunicação à distância: telégrafo, telefone, telefax, televisão, tudo por cabos, por microondas ou por meio de satélites. Há quem tenha estes meios e os explore, pondo-os à disposição de quem deles queira utilizar-se para comunicar-se com terceiros. Trata-se, no caso, da prestação de serviços de comunicação e são estes serviços o objeto da tributação.

3.4 Ao comentar o artigo 22, VII, da Constituição de 1967, que falava em “serviços de transporte e comunicação, salvo os de natureza estritamente municipal”, Pontes de Miranda dizia:

“Quanto às comunicações, a expressão não foi imprópria, pela vaguidade que se revelaria, como se disse. Tal argüição é sem fundamento. Comunicação, no sentido estrito, que aparece, por exemplo, em ‘vias de comunicação marítima, terrestre ou aeronáutica’, é sinônimo de transporte. O art. 22, VII, de (sic) Constituição de 1967, não empregou ‘serviço de ... comunicação’ nesse sentido estrito, mas sim, embora em sentido também estrito, no de serviço de meio físico ou de processos aptos a permitir a transmissão direta, à distância, do pensamento humano, quer se trate de forma escrita, quer fônica ou simbólica.” (Comentários à Constituição de 1967, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, Tomo II, p. 468 - o grifo é nosso)

3.5 Da mesma forma, Aliomar Baleeiro, ao tratar do imposto sobre serviços de comunicação, em comentário ao artigo 68 do CTN disse:

“Igualmente, não há restrição outra em relação ao imposto sobre comunicações senão as de que estão excluídas as intramunicipais. Quaisquer outras que importem em transmitir ou receber mensagens por qualquer processo técnico de emissão de sons, imagens ou sinais, papéis, etc., estão sob o alcance do imposto federal, desde que constituam prestação remunerada de serviços.” (Direito Tributário Brasileiro, 10ª edição, revista e atualizada por Flávio Bauer Novelli, Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 283 - o grifo é nosso)

3.6 Como se verifica, não há dúvida de que o imposto é devido na ocorrência não da comunicação em si mesma considerada, mas na prestação de serviços que possibilitam a comunicação à distância. Se uma pessoa se comunica com outra pelo telefone, não é a mensagem que uma passa a outra que se tributa, mas a prestação do serviço de telefonia que possibilita que se faça a comunicação. Por outras palavras, é preciso distinguir entre mensagem e transmissão da mensagem. A mensagem não fica sujeita ao imposto sobre serviços de comunicação. Os serviços, quando prestados a terceiros é que são tributados.

3.7 Esta distinção é de importância fundamental na análise da Constituição e da lei complementar ou da lei ordinária pertinentes a este imposto, que, como se viu, já era mencionado na Emenda Constitucional nº 18/65. Dele trata o Código Tributário Nacional, art. 68, II, que fala em:

“prestação do serviço de comunicação, assim se entendendo a transmissão e o recebimento, por qualquer processo, de mensagens escritas, faladas ou visuais ...”

O CTN, corretamente, falava em serviços de transmissão e recebimento de mensagens.

3.8 Na verdade, o imposto sobre serviços de comunicação só veio a ser criado pelo Decreto-lei nº 2.186, de 20 de dezembro de 1974, cujo artigo 1º dizia:

“Artigo 1º - O Imposto sobre Serviços de Comunicações tem como fato gerador a prestação de serviços de telecomunicações destinados ao uso do público (artigo 6º, letras ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962).

Parágrafo único - São isentos do imposto os serviços de telecomunicações nas seguintes modalidades:

I - telefonia quando prestados:

a) em chamadas locais originadas de telefones públicos e semi-públicos;

b) em localidades servidas unicamente por posto de serviço público ou por centrais locais de até 500 (quinhentos) terminais.

II - televisão e radiodifusão sonora.”

Este Decreto-lei, como se vê, submetia ao imposto apenas os serviços de telecomunicações destinados ao uso do público. E como fazia remissão ao art. 6º, “a” e “b”, da Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962, por uso público entendia o serviço destinado ao uso do público em geral e ao facultado ao uso dos passageiros dos navios, aeronaves, veículos em movimento ou ao uso do público em localidades ainda não atendidas por serviço público de telecomunicação.

3.9 A Constituição de 1988 transferiu o imposto sobre serviços de comunicação para os Estados, anexando-o ao ICM. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu artigo 34, § 8º, dispôs que “se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, ‘b’, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria”. Os Estados celebraram este convênio, que foi o de nº ICM - 66/88. A meu ver, este convênio padecia de várias inconstitucionalidades que, no entanto, não cabe abordar neste trabalho. Saliento, que, entre outras impropriedades, está a da definição do fato gerador do imposto que a Constituição diz que incide sobre “prestações de serviços de comunicação”, ao passo que o convênio diz que ocorre o fato gerador “na geração, emissão, transmissão, retransmissão, repetição, ampliação ou recepção de comunicação de qualquer natureza, por qualquer processo, ainda que iniciada ou prestada a partir do estrangeiro”. Como se verifica, o Convênio não reproduziu a expressão “prestação de serviços de”, o que altera fundamentalmente o texto constitucional: a tributação da prestação de serviços de comunicação foi transformada em tributação da comunicação, o que é bastante diferente.

3.10 A Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, em seu artigo 2º, inciso III, diz que o imposto incide sobre:

“prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza”.

Este dispositivo deixa expresso que a tributação atinge a prestação onerosa de serviços de comunicação e, assim fazendo, torna clara a diferença já assinalada entre a mensagem e a sua comunicação. Voltando ao exemplo antes dado (cfr. 3.5 acima), se alguém quer enviar mensagem a outrem por telefone, a mensagem é desta pessoa mas o meio utilizado pertence a terceiro que, mediante pagamento, lhe permite a transmissão da mensagem.

3.11 Em certos casos, quem envia a mensagem é também dono do meio de transmissão. É o caso de qualquer rádio-amador que transmite suas mensagens por um meio do qual é proprietário. Entretanto, como ninguém presta serviços a si mesmo, esta atividade não fica sujeita ao imposto.

3.12 Esta situação reproduz-se em parte nas transmissões de rádio e televisão. O meio de transmissão lhes pertence. Quando transmitem música, entrevistas, notícias, etc. estão enviando sua própria mensagem e é esta que atrai ouvintes e telespectadores. Esta atração permite que a estação emissora transmita mensagens comerciais de terceiros, na certeza de serem recebidas por um bom número de pessoas. Para transmitir as mensagens de terceiros, a estação emissora cobra-lhes um preço. Está aí configurada a prestação onerosa de serviços de comunicação, sujeita ao imposto de que aqui se vem tratando.

3.13 Acrescento que se uma estação de rádio ou de televisão transmite filmes, música etc., pelos quais paga direitos autorais ou se transmite outros tipos de programas que cria e executa, está transmitindo mensagem própria e não de terceiro.

3.14 No caso concreto objeto deste parecer, a consulente é detentora de direitos autorais sobre a programação e, nesta qualidade, licencia outras operadoras para que a transmitam. A consulente transmite os sinais via satélite pertencente à Embratel, com a qual celebra contrato para este fim. As operadoras recebem os sinais e os retransmitem aos destinatários finais.

3.15 Concluo, portanto, que a consulente:

a) transmite suas mensagens e não as de terceiros;

b) usa de meios próprios ao enviar os sinais para a Embratel;

c) em conseqüência, não presta serviços onerosos de comunicação, uma vez que ninguém presta serviços a si mesmo;

d) “vende” suas mensagens e as “entrega” aos “compradores” via Embratel;

e) por tudo isto não está sujeita ao ICMS quando exerce a atividade descrita no primeiro capítulo deste parecer.

4. A Atividade da Consulente e o Imposto sobre Serviços de qualquer Natureza - ISS

4.1 A Constituição Federal confere aos Municípios competência para instituir imposto sobre:

“serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.

A Constituição exclui da competência dos Municípios os impostos sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e sobre a prestação de serviços de comunicação, que estão compreendidos no art. 155, II. Ademais o tributo só recai sobre os serviços definidos em lei complementar que é, atualmente, a de nº 56, de 15 de dezembro de 1987.

4.2 Esta lei contém uma lista dos serviços que podem ser tributados pelos Municípios. A primeira indagação que pode ocorrer é se uma definição pode ser dada por uma lista do que se compreende no objeto definido. A resposta é afirmativa. De fato, uma definição pode ser conceitual, isto é, conter um conceito abstrato com os traços essenciais daquilo que se define, de tal modo que dela se exclua tudo o que o objeto definido não comporta. Definir é excluir o que não é definido. Este tipo de definição aparece com freqüência nas leis. Assim, o Código Civil define em seu artigo 147: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio ou de remoção por força alheia”. Ou, como se lê no artigo 330 do mesmo Código: “São parentes, em linha reta, as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes.”

4.3 A par da definição conceitual existe a chamada estipulativa ou enumerativa. Em lugar de um conceito abstrato, este tipo de definição enumera aquilo que se compreende no objeto definido. Este tipo de definição também é utilizado em textos legais. O Código Civil, que define conceitualmente os bens móveis, define os imóveis por enumeração. O artigo 43 do Código diz:

“Art. 43 - São bens imóveis:

I - O solo com a sua superfície, os seus acessórios e adjacências naturais, compreendendo as árvores e frutos pendentes, o espaço aéreo e o subsolo.

II - Tudo quanto o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e construções, de modo que se não possa retirar sem destruição, modificação, fratura, ou dano.

III - Tudo quanto no imóvel o proprietário mantiver intencionalmente empregado em sua exploração industrial, aformoseamento, ou comodidade.”

Da mesma forma, o Código Civil não conceitua o que são pessoas jurídicas, mas enumera quais as de direito público interno (art. 14) e quais as de direito privado (art. 16).

4.4 Para definir os serviços sujeitos ao imposto municipal, o legislador complementar utilizou uma definição enumerativa e seria difícil que o fizesse de outra maneira. Qualquer definição conceitual de serviço se prestaria a interpretações as mais diversas, com resultados imprevisíveis. Basta lembrar que há, basicamente, duas concepções possíveis de serviço: a que deriva do contrato de locação de serviços previsto no artigo 1.216 e segs. do Código Civil e a resultante da classificação das atividades econômicas. A primeira seria claramente restritiva, ao passo que a segunda seria excessivamente ampla. De fato, do ponto de vista econômico, os serviços constituem o setor terciário da economia e entre eles inclui-se toda a atividade financeira e é evidente que haveria um vasto campo comum ao IOF e ao ISS, com todos os inconvenientes que daí decorreriam e que é desnecessário descrever. Daí a solução da definição enumerativa ou especificativa.

4.5 Conseqüência necessária deste tipo de definição é o caráter taxativo da lista. Se esta fosse exemplificativa não seria sequer uma definição. Já se disse que definir é excluir tudo quanto não se contém no objeto definido. Exemplificar inclui mas não exclui. De resto, a taxatividade da lista já foi reconhecida pelo Poder Judiciário e hoje trata-se de matéria pacífica. Note-se que a taxatividade não elimina a interpretação extensiva de cada item da lista.

4.6 Nestas condições, a atividade da consulente descrita no capítulo 1 deste trabalho ficará sujeita ao ISS se estiver mencionada na lista constante da Lei Complementar nº 87/96. Há decisões da Diretoria de Rendas Mobiliárias da Prefeitura de São Paulo que consideram a cessão de direitos autorais uma locação de bens móveis, mencionada no item 79 da lista que refere “locação de bens móveis, inclusive arrendamento mercantil”, uma vez que direitos autorais são classificados como bens móveis pelo artigo 48, III, do Código Civil e pelo artigo 2º da Lei nº 5.988, de 14 de dezembro de l973.

4.7 De fato, não vem ao caso discutir a noção de bens e se nela se enquadram os direitos autorais, uma vez que, ao cuidar da classificação dos bens, o Código Civil e a citada lei nº 5.988/73 qualificaram os direitos de autor como bens móveis (artigo 48, III), dentro da noção de Clóvis Beviláqua: “Para o direito, bens são os valores materiais ou imateriais, que servem de objeto a uma relação jurídica.” (Código Civil Comentado, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1944, 7ª edição, vol. I, p. 38)

4.8 Resta, portanto, saber se o contrato que a consulente celebra com seus licenciados é de locação. O artigo 1.188 do Código Civil diz que no contrato de “locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado, ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição”. O Código Civil não especifica se a coisa dada em locação é necessaria­mente corpórea ou se pode ser incorpórea.

4.9 Tem-se entendido que a coisa locada pode ser incorpórea, o que significa que direitos podem ser locados. Orlando Gomes diz que “assim como as coisas, certos direitos, como o de usufruto, são suscetíveis de locação. Mais interessante dentre eles é o de explorar patente de invenção” (Contratos, Rio de Janeiro, Forense, 1984, 10ª edição, p. 308). Da mesma forma, M. I. Carvalho de Mendonça também afirma: “Por isso que o fim do direito da locação é o uso da coisa, pode ser objeto desse contrato toda a coisa lícita, móvel ou imóvel, corpórea ou incorpórea, desde que seu uso seja possível do ponto de vista físico ou do legal. Da regra exposta deduz-se que direitos há que podem ser objeto deste contrato, como sejam: o usufruto, a superfície, a posse, o de patente de invenção” (Contratos no Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1955, 3ª edição, p. 421). Apenas a título de exemplo do que sucede em ordenamentos jurídicos de outros países, cito Henri De Page: “Les choses incorporelles peuvent également être louées. Il en est ainsi de l’ usufruit , du droit de superficie, du droit de chasse, du droit de passage ou de pacage ... du droit de pêche, du droit d’ exploiter un brevet d’ invention (surtout s’ il est limité dans le temps et dans l’ espace), etc. (Traité Elémentaire de Droit Civil Belge, 2ª edição, Etablissements Émile Bruylant, Bruxelas, 1951, tomo IV, p. 477). Na França, diz Planiol que “la location des brevets d’ invention et des marques de fabrique est pratiquée sous le nom de licence d’ exploitation”. Entretanto, o mesmo autor acrescenta que “on ne voit pas de location de la propriété literaire et artistique; le droit de représenter une pièce de théâtre, de projeter un film, d’ exposer un tableau compreend nécessairement une certaine jouissance de la propriété litteraire et artistique” (Traité Elimentaire de Droit Civil, revista por Georges Ripert, Paris, Libraire Générale de Droit et Jurisprudence, 1949, 3ª edição, tomo II, p. 817).

4.10 Pontes de Miranda sequer admite a locação de bens incorpóreos. Ao cuidar do contrato de licença de uso de patente de invenção, diz este contrato “é à semelhação da locação, sem que, com isso, possamos reduzir à locação: o objeto dele é bem incorpóreo ... Não é locação, não é venda; porque a locatio só se refere a coisas corpóreas e a serviços, e a transmissão da propriedade industrial é efeito de outro negócio jurídico concernente à invenção, como prometer a transmissão (= venda) não é licenciar. Nem se pode dizer contrato especial o que pode assumir caráter de contrato que atribui direito absoluto, real”(Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro, Borsoi, 1965, tomo XVI, p. 351). Pontes de Miranda refere-se à licença de uso do direito decorrente de patente de invenção, mas suas conclusões podem aplicar-se à cessão de uso de direitos autorais, também estes um bem incorpóreo.

4.11 Como se verifica, há dúvida doutrinária sobre a possibilidade de locação de bem incorpóreo. As citadas decisões da Prefeitura Municipal de São Paulo assentavam-se em um silogismo: a lei tributa a locação de bens móveis; o direito de autor é um bem móvel; logo, a lei tributa a locação do direito de autor. Mesmo que se admita ser este silogismo verdadeiro no tocante à possibilidade da locação de bens incorpóreos, deve indagar-se se a operação sob consulta constitui ou não uma locação. A consulente detém direitos autorais sobre a programação, seja porque a fez, seja porque adquiriu os direitos autorais sobre ela, seja porque adquiriu direito de utilizar a programação por tempo limitado ou em área predeterminada. Entretanto, a consulente não transfere estes direitos para as suas licenciadas e tanto não transfere que elas não têm como utilizá-los, exceto no exato momento em que estão recebendo os sinais da Consulente. Nos termos do contrato de licença para distribuição de sinais de televisão, as licenciadas ficam autorizadas a distribuir a assinantes do serviço de TV por assinatura os sinais que, para este fim, recebem da Consulente.

4.12 A Consulente explora a programação difundindo-a por sinais de televisão. Esta difusão não tem um direito autoral. A programação difundida tem este direito, mas não a difusão considerada em si mesma. O fato de o contrato entre a consulente e as licenciadas determinar que cabe a estas últimas arcar com o pagamento de direitos autorais, conexos ou correlatos devidos aos autores, intérpretes, executantes ou entidades competentes para a arrecadação dos respectivos direitos autorais, não significa senão uma repartição de custos, uma vez que quem detém os direitos para transmissão é a Consulente.

4.13 Não há, pois, cessão, temporária ou não, de direitos autorais às licenciadas, pelo que não se pode falar em contrato de locação, ficando assim afastada a incidência do ISS previsto no item 79 da lista da Lei Complementar nº 56/87. Ao que me parece, a operação - que consiste de fato na prestação de um serviço - não está expressamente mencionada em nenhum item da lista de serviços tributáveis, nem cabe em qualquer deles, mesmo por via de interpretação extensiva.

5. Conclusão

5.1 Em vista do exposto, respondo aos quesitos formulados pela recorrente:

a) a licença para transmissão de programas que a Consulente concede a operadores autorizados por contrato, mediante sinais transportados via satélite às estações dos operadores, não caracteriza prestação de serviços de comunicação, a não ser se a Consulente transmitir mensagens de terceiros, como propaganda, por exemplo;

b) a operação consiste na prestação de um serviço que não é de comunicação e que não é mencionado na lista de serviços sujeitos ao ISS/Lei Complementar nº 56/87).