As Multas Fiscais e os Direitos do Homem

A. Theodoro Nascimento

Advogado em Salvador - BA.

1. Tributação e Poder de impor Multas

Para obter recursos, que lhe possibilite atingir seus fins, o Estado moderno recorre à tributação. Esse é o processo corrente na atual fase da evolução dos povos, ao qual se recorre para obtenção dos meios indispensáveis à organização e manutenção dos serviços públicos. E porque as necessidades que dão origem à criação desses serviços não comportam paralisação, mesmo momentânea, os serviços públicos que as atendem são por natureza contínuos, no sentido de que não podem sofrer solução de continuidade na sua prestação.

Vem daí que o Estado, para reduzir resistência de contribuintes recalcitrantes ou negligentes nos deveres de pagar pontualmente os tributos a que estão sujeitos, os quais devem fluir com regularidade compatível com as necessidades inadiáveis do Erário, comina multas. Considerando que o poder tributário é faculdade que tem o Estado de exigir de pessoas que lhe estão juridicamente subordinadas u’a parcela de riqueza destinada ao custeio dos serviços públicos, (Giuliani Fonrouge, Derecho Financeiro, vol. I, Buenos Aires, Depalma, 1962, p. 266, nº 149), conclui-se sem dificuldade que multa com vistas a compelir contribuintes ao cumprimento dessa obrigação também configura atuação legítima desse poder tributário. Isso está perfeitamente de acordo com princípio indiscutivelmente aceito nas finanças públicas, qual seja o de que:

“L’impôt est essentiellement un paiement forcé. Les individus ne font pas un versement volontaire, parce quuils le veulent bien. Ils sont obligés juridiquement. Cet élément de contrainte se manifeste de plusieurs façons: d’abord le taux de l’impôt est fixé unilateralement par les agents publics; ensuite, le recouvrement aura lieu, au besoin, par la force.” (Gaston Jéze, Cours de Finances Publiques, 1934-1935, Paris, Lib. Gen. de Droit et Jurisp., 1935, p. 67)

No elenco de processos de que o Estado pode valer-se, “se necessário”, para compelir o contribuinte ao pagamento na época que a lei tributária lhe assina, está o de acrescer de multa a quantia representativa do tributo devido, se o pagamento ocorre com atraso, ou ao mesmo o contribuinte tentou fugir. Se essa perspectiva não se mostra suficiente para apressar o contribuinte faltoso, pode o Estado recorrer até a meios de coerção mais violentos, inclusive prisão, em alguns casos e, em todos, a execução da dívida, acrescida de correção monetária e juros de mora. Goza, ainda, o Fisco, em Juízo, de privilégios dos quais só ele dispõe: inversão de ônus da prova como colorário da presunção de liquidez e certeza da dívida fiscal inscrita, prazos em dobro e quádruplo etc.

Trotabas, distinguindo sanções fiscais aplicadas pela própria Administração e sanções aplicadas pelos Tribunais, esclarece: “Quando a Administração aplica ela própria determinadas sanções, elas constituem manifestação direta do poder fiscal.”(Louis Trotabas, Finances Publiques, 2éme ed. Dalloz, 1967, p. 555, nos 311 e 312)

2. Objetivos da Tributação

Atributo da soberania, esse poder de exigir impostos, taxas, contribuições, pode assentar no poder de tributar ou no poder da polícia. (Giuliani Fonrouge, ob. cit., vol. I, p. 268)

Diz-se que a imposição tem por fundamento o poder de tributar (taxing power) quando o Estado atua com o objetivo imediato de obter receitas para atender ao custeio dos serviços públicos. Quando o Estado tem objetivos extrafiscais, isto é, quando tem em mira, não a obtenção de recursos, mas alcançar objetivos outros, tais como, por exemplo, destruir o latifúndio, impedir o consumo de gêneros alimentícios nocivos à saúde da população, etc., diz-se que a exigência de tributos com tais objetivos tem por fundamento o poder de polícia (police power).

Essa distinção construída pela doutrina e jurisprudência norte-americana continua a merecer a acolhida de autores de prol, a exemplo de Fonrouge, e, entre nós, A. Baleeiro, Bilac Pinto, Teotônio Monteiro de Barros, Alberto Deodato e outros.

A atividade estatal realizada com base no poder de tributar, por isso que visa essencialmente a obtenção de meios para cobrir as despesas públicas, denomina-se, por isso mesmo, de atividade fiscal, em contraposição com a outra, que o Estado desempenha tendo em mira objetivos imediatos outros que não a obtenção de receitas e à qual se dá o nome de atividade extrafiscal.

Por serem objetivos diametralmente opostos, Grizziotti chega a considerá-los antitéticos: “cuanto mejor se alcanzan fines extrafiscales, tanto menos se logran los fines financieros”. (Principios de Ciencia de las Finanzas, Depalma, 1949, p. 5)

3. Tributação e Equilíbrio Orçamentário

Apesar do abandono do princípio do equilíbrio orçamentário, tão recomendado pelos financistas clássicos, não é possível recusar que, fora daquelas circunstâncias que justificam um desequilíbrio financeiro propositado como remédio adequado a sarar um desequilíbrio econômico que se prenuncia ou já se instalou, a verdade é que a recomendação dos clássicos ainda é ideal que as finanças públicas observam.

Entre nós, por exemplo, a Lei 4.320, que estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, embora não mande observar de maneira expressa o princípio do equilíbrio orçamentário, à semelhança do que faz de referência ao da unidade, universalidade e anualidade, insinua sua observância pela insistência com que determina que o Orçamento seja elaborado à base do confronto entre despesas e receitas previstas para exercício visado e despesas e receitas realizadas nos exercícios imediatamente anteriores.

Por outro lado, a recomendação contida no § 3º do art. 11 da Lei 4.320 (“o superávit do Orçamento Corrente não constituirá item da receita orçamentária”), é fruto do princípio de que o Estado não deve exigir dos cidadãos recursos maiores do que os estritamente necessários ao atendimento das despesas. Poderá ocorrer superávit; mas não poderá constituir cogitação dos que têm a seu cargo a elaboração da Lei de Meios.

Temos então que, sendo a atividade fiscal aquela que o Estado realiza para obter recursos destinados ao atendimento das necessidades públicas, tais recursos devem limitar-se ao necessário para atender ao montante das mesmas.

Assim, à obrigação que o cidadão tem, de não se recusar a contribuir com parcela da sua riqueza para o custeio das despesas públicas, corresponde o direito de obstar, pelos meios apropriados, a que se lhe exija mais do que o necessário para a cobertura das despesas públicas.

4. Tributação e Capacidade Contributiva

A determinação da alíquota do imposto, a quantia com que cada contribuinte deverá concorrer para o custeio das despesas públicas, são problemas eminentemente políticos, a cargo dos parlamentos.

E cada vez mais se pretende que a tributação guarde relação com a capacidade contributiva de quem o Estado convoca para assumir parcela da despesa pública.

A Constituição de 1946 era mais zelosa do que a atual na realização dessa justa aspiração. Nela o legislador constituinte recomendava que os tributos seriam “graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte” (art. 202). Sem conter recomendação semelhante, destinada ao legislador ordinário, resta ainda na Constituição atual dispositivo do qual se infere que a capacidade contributiva ainda constitui índice que a tributação deve levar em conta.

Isso posto, e tendo em vista que as multas fiscais por infração da lei tributária, quando o Estado está empenhado em atividade fiscal, também configuram atuação com fundamento no poder de tributar, não se compreende que a multa exceda o montante do imposto que o contribuinte deve pagar. Por outras palavras, admitindo-se como pressuposto que o Estado, ao votar o orçamento da Receita, considerou a capacidade econômica do contribuinte exigir daquele que não pôde pagar, ou pôde mas negligenciou nessa obrigação, duas, três, dez vezes o valor do imposto a título de multa, quando o Fisco se encontra aparelhado de meios rápidos para exigir o cumprimento da obrigação tributária, parece-nos que é desatender ao princípio de que não se deve exigir do contribuinte mais do que aquilo que sua capacidade contributiva suporta.

5. Proibição do Confisco Tributário

Todo homem tem o direito de viver, trabalhar e auferir os proventos do seu trabalho. Esse direito a Constituição Federal assegura ao dispor sobre direitos e garantias individuais, em vários dos parágrafos do art. 153.

Assim, no § 23: “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”. No § 25: “A lei assegura aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como a propriedade das marcas de indústria e comércio e a exclusividade do nome comercial”. Ainda no § 25: “Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas pertence o direito exclusivo de utilizá-las”. E no
§ 22: “é assegurado o direito de propriedade salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro” etc.

Tais direitos e garantias constitucionais seriam entretanto ilusórios se se permitisse ao Estado tributar ilimitadamente a propriedade, a renda, a produção artística literária ou científica etc. dado que, repetindo Marshall, o poder de tributar envolve o poder de destruir.

Tem-se pois como implícita na Constituição, precisamente como condição para que se efetivem tais garantias e direitos individuais, a proibição do confisco tributário, considerado tal toda tributação que destrua o capital, impeça sua recomposição, ou absorva toda ou quase toda a renda. Impostos que incidindo sobre a propriedade imobiliária exigissem que toda produção agrícola ou extrativa fosse utilizada no seu pagamento, frustrando-se a possibilidade de lucro ao agricultor; impostos que incidindo sobre atividade, arte, ofício ou profissão, absorvam toda a renda dos que a elas se dedicam, não deixando meio de sobrevivência compatível com a dignidade humana, são considerados impostos de caráter confiscatório, que atentam contra aqueles direitos e garantias que a Constituição Federal visa assegurar no art. 153, §§ 22, 23, 24 e 25.

À frente dos que se batem pelo reconhecimento entre nós do princípio que veda o confisco tributário como limitação implícita ao poder de tributar, o Ministro Aliomar Baleeiro tem insistentemente repetido:

“O tributo que absorvesse todo o valor do patrimônio, destruísse a empresa ou paralisasse a atividade, não se afinaria pela capacidade econômica nem se ajustaria à proibição do confisco. Mataria a capacidade econômica que a Constituição quer proteger na sua existência e atingir progressivamente, na medida inversa da sua utilidade individual e social. Extinguiria a propriedade, a iniciativa e o trabalho, que as CF de 1969 e 1946 garantem e advogam como atributo a ser generalizado a todos os homens e mulheres, para base do bem-estar social.”

(Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1974, p. 269)

6. As Multas Fiscais como Extensão do Poder de Tributar

Vários dispositivos da legislação tributária do Brasil, e nisso não constituem exceção no confronto com outros sistemas tributários conhecidos, atribuem ao Fisco a faculdade de aplicar ao contribuinte multas que chegam a exceder de algumas vezes o montante do imposto devido.

A título de exemplo podem ser destacados, na legislação federal. Entre outros, os seguintes:

a) Art. 156, III, do Regulamento do IPI, que além de outras penalidades aplicáveis, separada ou cumulativamente à infração, autoriza a aplicação da multa de 150% “do valor do imposto que deixou de ser lançado”.

b) Art. 44, II, do Dec.-Lei 66694, de 11 de junho de 1970 (sobre minerais do país), que permite aplicação de 150% do valor do imposto;

c) Art. 109 do Dec.-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, que autoriza aplicar ao mesmo contribuinte multa de ... Cr$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros), além de outra multa equivalente a 100% do valor do imposto, quando a infração consistir em importação de mercadoria prevista no item XIX do art. 105. Pode ocorrer então que o imposto devido represente a décima parte da multa, por exemplo, e nem por isso esta será inferior a ... Cr$ 50.000,00.

d) Arts. 445, letra d e 446, letra e, do Regulamento do Imposto de Renda, que autorizam a aplicação de multa de trezentos por cento (300%) “sobre a totalidade ou diferença do imposto devido”.

É sabido que, diferentemente do que ocorre no Direito Penal, o Direito Tributário permite a cumulação de penas pela mesma infração. Então o Regulamento do Imposto de Renda permite, no art. 448, b, que “independentemente da sanção prevista na lei penal para delito de falsidade”, que ao contribuinte seja aplicada multa de Cr$ 793.800,00! Quer dizer: além da pena de reclusão de um a cinco anos e da multa de Cr$ 500,00 a Cr$ 5.000,00 que o Código Penal estipula no art. 299, a lei tributária ainda impõe tamanha multa!

Se a hipótese for a prevista na letra c do art. 450 daquele Regulamento, a situação será mesma: multa do triplo do imposto sonegado. Se a infração configurar crime de sonegação fiscal previsto na Lei 4.729, cumulam-se a pena de detenção de seis meses a dois anos e a multa de duas a cinco vezes o valor do tributo (Art. 1º da Lei 4.729 e § 1. Do Art. 455 do Regulamento do Imposto de Renda). Quando nunca tenha sido condenado, isto é, quando for criminoso primário, o contribuinte embaraçado sofrerá apenas a multa de dez (10) vezes o valor do tributo!

O legislador estadual também copia o legislador federal. A legislação baiana do ICM, por exemplo, apropriada pelo recente Dec. 24.066, de 30.4.1974, prevê multas que em nenhum caso serão inferiores ao salário mínimo regional, pouco importando qual seja o montante do imposto a pagar (art. 290, II), e que poderão atingir até vinte e cinco vezes “o valor do maior salário mínimo em vigor no Estado” (Art. 295, X). E o Regulamento do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis, aprovado pelo Decreto 23.069, do Estado da Bahia, pelo pagamento (1) um dia a mais do prazo consignado no seu art. 32, sujeita o contribuinte (que pode não haver pago o imposto por carência de recurso e precise para tal vender bens da herança) à multa de 150% do valor do imposto (Art. 40, I, b, II).

Naquele Estado, e provavelmente não constitui caso isolado na federação, o imposto, nas transmissões inter-vivos é recolhido mediante a simples expedição da guia pelo Tabelião, procedendo o Fisco, posteriormente, à avalia­ção do imóvel. Então, não obstante haver sido lavrada a escritura de compra e venda, ou doação, se for o caso, pelo real valor, se este não coincidir com o valor que os agentes fiscais do Estado atribuírem ao imóvel vendido ou doado, tanto basta para que se imponha “aos infratores” multa de 40% do valor do imposto devido, quando entre o verdadeiro valor e o arbitrado pelo Fisco, ocorrer diferença superior a 20% (art. 40, I, a).

7. As Multas Fiscais como Instrumentos de Dissimulação do Confisco Tributário

Se o confisco tributário que as Constituições modernas repelem se configura quando a imposição, exercitada com fundamento no poder de tributar (taxing power), ocorre de maneira imoderada, em desproporção com o objetivo de obter recursos para cobertura das despesas públicas; se, por outro lado, a multa fiscal aplicada ao contribuinte que por qualquer modo retardou-se na sua obrigação de proporcionar, na medida da sua capacidade, parcela de riqueza para aquele fim, tem, também ela, fundamento no poder de tributar; entendo que toda vez que o montante dessa multa exagera da idéia de reparação de um prejuízo material sofrido pelo Estado pelo atraso no cumprimento da obrigação fiscal, ela também viola o princípio da proibição do confisco tributário, porque arrisca pôr em perigo a estabilidade econômica do contribuinte, visto absorver “substancial” parcela (usando da expressão usual na jurisprudência dos tribunais argentinos) que excede o índice de valorização do capital ou o rendimento que este ou o trabalho proporcionam.

A idéia de que a multa fiscal imposta à violação de obrigação tributária decorrente de lei que se propõe a exigir dos contribuintes, na medida das necessidades públicas, receita para atender à despesa pública, também pode configurar desrespeito ao princípio que veda o confisco tributário, está difusa no pensamento de alguns dos publicistas que se dedicam ao assunto. A Rafael Bielsa, por exemplo, não escapou. Ele teve ocasião de escrever, com remissão à jurisprudência da Suprema Corte argentina, que:

“La Constitución quiere que la producción, la circulazión y la distribución de la riqueza no se trabe com cargas fiscales. Las leyes pueden gravar el patrimonio, y com mayor razón a la renta; pero la imposición no puede pasar de las ‘necessidades del Estado’ y en ningun caso puede llegar a la ‘confiscación’. Aplicación particular de este principio de debe hacer en materia de multas fiscales, o sea, impuestas por el Poder admniistrador, aun cuando la multa fiscal sea un accessorio de la obligación Fiscal.” (Estudios de Derecho Público, II, Derecho Fiscal, B. Aires, Depalma, 1951, pp. 198 a 199)

É verdade que noutra passagem da mesma obra ele recusa caráter confiscatório às multas consistentes em quantia múltipla do imposto a ser pago, mas a razão que oferece para essa reserva é irrisória: “porque o mondo de ella se determina objetivamente y no en consideracón al patrimonio del infrator”. (Ob. cit., pp. 93 a 94)

Ora, se a justificativa tivesse procedência, nenhum imposto poderia ser considerado confiscatório, salvo os impostos medidos pelo capital.

8. A “Justiça” das Multas, Matéria Vedada à Apreciação do Poder Judiciário

O princípio de que, chamado a controlar os atos do Poder Executivo o Judiciário deve cifrar-se a examinar o aspecto da legalidade, é mais um empecilho sério a que se ponha freios à Administração Pública, quando esta se propõe a violentar, através da aplicação de multas fiscais o princípio que veda o confisco tributário.

Entre nós, embora já tenha acontecido aos tribunais, como já ocorreu ao Supremo, reconhecerem que muitas vezes a multa fiscal assume feição “gravosa e exorbitante” (Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 33, p. 647, RE nº 55906), e que, por conseqüência, “somente a ruína poderia aguardar o contribuinte por ela atingido” (Ac. de 22.4.70 da 4ª Câm. do Trib. de Alçada de São Paulo, Revista dos Tribunais de São Paulo, vol. 414, p. 236), só timidamente se tem admitido, vez por outra, ao juiz o poder de reduzir multa imposta pelo Fisco. Predomina em nosso sistema jurídico o princípio de que “estando a multa apoiada em dispositivo legal expresso, não cabe ao Judiciário a apreciação de haver sido rigorosamente cominada; cabe-lhe, exclusivamente, a contemplação objetiva de sua legalidade” (Ac. de 06.12.1958, da 3ª Câm. Cível do Trib. de Alçada de São Paulo, e Ac. de 11.4.1955, da 2ª Câm. do mesmo Tribunal, Revista dos Tribunais de São Paulo, vols. 287, ps. 616 a 617 e 237, ps. 570 a 571, respectivamente).

Destarte, veda-se ao cidadão o direito de pedir a tutela do Judiciário, sob o argumento de que tal implicaria em invasão de seara reservada ao Poder Executivo, qual seja a do exame do mérito do ato administrativo do lançamento. Ora, exatamente a recusa dessa possibilidade de apreciação por parte do Judiciário das multas fiscais impostas pela Administração é uma forma imaginosa para dissimular o confisco tributário. Para Schultz & Harris o princípio que veda o confisco tributário “proíbe ao Estado utilizar qualquer forma de tributação” ... “que seja essencialmente arbitrária, injusta ou iníqua, ou que negue ao contribuinte uma razoável oportunidade de fazer valer seus direitos perante um tribunal próprio” (W. J. Schultz e C. L. Harris, American Public Finance, 6ª ed., p. 152).

Cooley, invocado por A. Baleeiro, não é menos incisivo: “tudo que pode ser feito sob o nome de tributação pode não ser necessariamente um tributo; e pode acontecer que gravame opressivo criado pelo governo, quando analisado, cuidadosamente, revelar-se-á, invés dum imposto, um confisco ilegal de propriedade, injustificado por qualquer princípio do governo constitucional”. (A. Baleeiro, Limitações, 3ª ed., Forense, 1974, p. 271, nota 1).

O mesmo poderá ser dito das multas fiscais: quando analisadas cuidadosamente revelam que extrapolam de toda a idéia de reparação ou razoável repressão oposta ao atraso no pagamento do imposto exigido com fundamento no poder de tributar, acabando por configurar confisco.

9. Multas Fiscais Fundadas no Poder de Polícia

À semelhança do que ocorre de referência à tributação com fundamento no poder de polícia, que afasta a aplicação do princípio que veda o confisco tributário, quando o Estado quer, por exemplo, amparar a família e permite a tributação violenta sobre os celibatários, ou quer reprimir o latifúndio visando a melhor distribuição da propriedade e tolera tributação drástica contra grandes propriedades rurais insuficientemente exploradas, também é possível falar-se em multas fiscais aplicadas puramente com fundamento no poder de polícia.

Tais multas podem ser exigidas concomitantemente com quantia representativa de imposto, ou independentemente de quantia que represente imposto cobrado com fundamento no poder de polícia.

A primeira hipótese ocorrerá quando, por infração da lei que cria imposto com fundamento no poder de polícia, a Administração acresce a parcela do imposto a ser pago, de quantia representativa de multa. Se a multa que acresce a quantia representativa de imposto criado com fundamento no poder de tributar, configura, também ela, imposição com fundamento no poder de tributar, coerentemente há de se conceder que a multa que acresça quantia com significado de tributo criado com fundamento no poder de polícia há de configurar, também ela, imposição com fundamento no poder de polícia.

Muitas são as hipóteses de tributação com fundamento no poder de polícia, compreendido esse nos termos em que se encontra definido no art. 78 do Código Tributário Nacional, com a redação dada pelo Ato Complementar nº 31: “Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização de poder público, à tranqüilidade pública, ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”

Todas as aplicações extrafiscais do imposto configuram tributação com fundamento no poder de polícia. Impostos violentamente aplicados sobre terrenos baldios no perímetro urbano para compelir proprietários a constituírem; ou sobre propriedades rurais improdutivas para obrigar proprietários a melhor utilização da terra; ou sobre produtos de baixo teor alimentício ou nocivo à saúde para coibir o consumo deles; ou sobre artigos que atentem contra os bons costumes (baralhos, dados, roletas etc.), para embaraçar sua utilização, visam, não à arrecadação de receita para cobertura das despesas públicas, mas alcançar fins outros, extrafiscais. E porque esses outros fins são a preservação da saúde pública e dos bons costumes, a melhor utilização da propriedade urbana ou a extinção dos latifúndios etc., convencionou-se dizer que em semelhantes casos o imposto tem por fundamento o poder de polícia.

Ora, se o imposto exigido com essa finalidade saneadora ao contribuinte que se revela indiferente aos objetivos extrafiscais aos quais o Estado se volta, vem ser pago com acréscimo de multa violenta por atraso na satisfação da obrigação tributária ou por qualquer circunstância outra que configure infração, é compreensível e justificável que essa multa, tanto quanto a quantia representativa do imposto, tenha caráter confiscatório.

Há casos em que a multa é aplicada pela Administração fora da idéia de acréscimo à quantia representativa de imposto exigido. Assim a multa por infração do trânsito, pelo porte ilegal de arma, por transgressão das leis e regulamentos de pesos e medidas; pela inobservância das posturas municipais que visam preservar a limpeza pública, pela desobediência de determinações do Código de Pesca ou de Caça, etc., constitui manifestação do poder de polícia, e, tanto mais elevados forem, mais depressa reprimirão, pelo caráter intimidatório que encerram, a atividade que Administração quer obstacular. Embora seja de bom aviso fugir às formulações de caráter absoluto, parece-nos possível afirmar, sem incorrer nessa censura, que, toda vez que a Administração aplica multa sem a ocorrência simultânea do pagamento de imposto, tal como se verifica nos exemplos que vêm de ser oferecidos (multa por infração de trânsito, por porte ilegal de armas etc.), estamos iniludivelmente frente à hipótese de tributação com fundamento no poder de polícia. Foi tomando para exemplo as multas impostas por infrações desse tipo que Grizziotti assinalou: “las penas pecuniarias muy gravosas pueden prevenir las infracciones contra el orden público y no ocasionar ingresos financieros”. (Princípios de C. de las Finanzas, Depalma, 1949, p. 5).

Exatamente por isso, porque em todos esses casos, de aplicação de multas com fundamento no poder de polícia, o que se tem em mira é prevenir infrações contra a ordem pública, justifica-se que a tributação assuma caráter confiscatório capaz de retirar ao infrator oportunidade de perseverar na atividade nociva ao bem-estar geral, à paz e à prosperidade públicas.

10. Conclusão

Essas considerações conduzem-nos à convicção de que, na mesma medida em que a multa fiscal se justifica em todos os casos em que a imposição tenha por fundamento o poder de polícia, ela deve ser repelida quando, configurando manifestação do poder de tributar, exceda limite razoavelmente admissível, considerado tal o que não torne impossível ao contribuinte o cumprimento da obrigação tributária, porque lhe absorva toda ou quase toda a renda e lhe consuma todo produto do seu trabalho. Se a multa acresce a quantia devida a título de imposto exigido com fundamento no poder de tributar, este deve ser aplicado de modo a não ferir o princípio constitucional implícito que veda o confisco tributário, tanto mais repelida deverá ser a multa quando esta nada mais representar do que um expediente para aumentar o caráter confiscatório da tributação.

Por outro lado, se dentro do nosso sistema jurídico o legislador arma o Fisco de meios rápidos para compelir o contribuinte ao pagamento do imposto exigido, acrescido de juros moratórios e correção monetária que já têm objetivos compensatórios; se define como crime de sonegação fiscal (Lei nº 4.729, art. 1º) a fraude com vistas a excluir ou reduzir por qualquer modo o tributo devido, punindo-o como pena privativa de liberdade, e, finalmente, se a capacidade contributiva, que a Administração com os critérios modernos de avaliação estima de maneira muito aproximada da realidade, deve ser a medida do imposto, nada justifica multas absurdas e extorsivas, fora das hipóteses em que elas sejam exigíveis com fundamento no poder de polícia. Em nome da justiça tributária o legislador deverá vedar aplicação de multas com fundamento no poder de tributar que excedam o valor do imposto. Em todos os casos em que houver cobrança de tributos acrescida de multa, nenhuma poderá exceder do montante do tributo devido.

O ideal de justiça no imposto, perseguido durante séculos, pode levar a mitigações maiores na busca da realização do vaticínio de um notável financista e jurista de nossa época: “El Derecho Financeiro de nuestro tempo he de esforzar-se por encontrar um ponto de equilíbrio entre a soberania fiscal del Estado y los derechos sagrados e irrenunciables de la persona humana.” (Fernando Sainz de Bujanda, Hacienda y Derecho, Madrid, 1955, p. 462)