O Dever de Sigilo das Instituições Financeiras perante o Fisco - Comentário a Acórdão

Augusta Maria Bertoldi

Advogada em São Paulo. Mestranda em Direito Comercial pela USP.

1. Objetivos

Pretendemos analisar, através do acórdão abaixo, à luz da Constituição da República e da legislação ordinária, especialmente a Lei nº 4.595/64, o dever de sigilo que têm as instituições financeiras e equiparadas, relativamente às diversas operações ativas e passivas mantidas com seus clientes.

Demonstraremos ainda, comentando o acórdão abaixo transcrito com o auxílio valioso da doutrina e da jurisprudência, que não são admitidas exceções nem mesmo perante o Fisco, que normalmente se vale do quanto estatuído no inciso II do artigo 197 do Código Tributário Nacional para pretender obter a quebra do sigilo, com ou sem intervenção judicial, cumprindo, já de início, lembrar as sábias palavras de Luiz Mélega1, para quem, “A pretexto de fiscalizar e controlar o efetivo pagamento de contribuição, pretendem as autoridades governamentais ter acesso a dados e cifras protegidas pelo sigilo bancário”.

2. Transcrição do Acórdão, Emanado da 1ª Câm. Cível do TJRS, quando do Julgamento da Apelação Cível nº 592.080.4932

“Ementa: Mandado de Segurança. Sigilo Bancário. Pretensão do Fisco de rompê-lo com Base na Existência de Procedimento Administrativo e Determinação da Autoridade Fazendária. Descabimento. Inteligência do art. 38, § 5º, da Lei nº 4.595/64. Empregando a Palavra ‘Processo’, o Legislador deixou Claro de que se trata de Relação Jurídica Processual, pois, no Âmbito da Administração, se emprega o Menos Ambicioso Termo ‘Procedimento’. Além da Simples Interpretação Literal, a Exegese Sistemática do Dispositivo revela que, no Sistema Brasileiro, só ao Juiz é Dado quebrar o Sigilo Bancário. Tal Norma, tivesse Interpretação Diversa, infringiria Várias Liberdades Públicas (CF/88, Art. 5º, X, XII e LV) da Carta Política em Vigor. Segurança Concedida.

Fox Veículos Ltda., e outros, apelantes - Estado do Rio Grande do Sul, apelado.

Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam, em 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, à unanimidade, dar provimento à apelação, o que decidem de conformidade e pelos fundamentos constantes das inclusas notas taquigráficas que integram o presente acórdão. Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os Exmos. Srs. Des. Milton dos Santos Martins e Celeste Vicente Rovani.

Porto Alegre, 17 de novembro de 1992.

Araken de Assis, Relator.

Relatório: Des. Araken de Assis - Fox Veículos Ltda e outros ajuizaram mandado de segurança contra o ato do 3º Coordenador Regional da Administração Tributária do Estado, narrando que receberam visita ‘de rotina’ da fiscalização estadual, entregando todos os documentos solicitados e informando também os Bancos em que a empresa e os sócios mantinham conta bancária. Receberam tais agências bancárias ofícios requisitando cópia dos extratos e dos cheques emitidos e recebidos, indispensáveis para prosseguimento dos processos administrativos instaurados. Caso instaurados tais processos, não foram as empresas notificadas. Ante telefonema recebido pelos Bancos estabelecendo prazo para apresentação dos documentos requeridos, postulam o deferimento de liminar para que a autoridade coatora se abstenha de requisitar documentos (fls. 11/19). Foi a liminar deferida (fl. 2).

O Superintendente da Administração Tributária prestou informações dizendo ter sido instaurado processo administrativo contra as impetrantes, com o que estão legitimadas as ações do fisco. Entende que o pedido formulado não caracteriza quebra do sigilo bancário. Menciona jurisprudência e pede a cassação da liminar. Junta documentos (fls. 45/62).

Habilitação do Estado (fl. 63), parecer do MP pela denegação do ‘writ’ (fls. 64/66), seguindo-se sentença no mesmo sentido (fls. 67/74).

Apelam os impetrantes (fls. 76/81), discorrendo sobre sigilo bancário e referindo à inexistência de processo judicial contra os apelantes. Suscitam a inconstitucionalidade do art. 38 da Lei nº 4.595/64, eis que afrontam os preceitos constitucionais de ampla defesa, princípio do contraditório e a igualdade perante a lei. Pedem a reforma da sentença e juntam documentos (fls. 83/87). Postulam os apelantes o recebimento da apelação nos efeitos devolutivo e suspensivo, pretensão que restou desacolhida (fls. 88/90), obtendo êxito em sede de mandado de segurança (fls. 92/96). Com as contra-razões foi juntado documento (fls. 98/107).

Preparado (fl. 110), veio o recurso à consideração deste Tribunal. Em ambos os graus, manifesta-se o MP pelo improvimento (fls. 108 e 113/115). Por redistribuição, vieram conclusos. É o relatório.

Voto: Des. Araken de Assis - Sr. Presidente. Fundamentalmente, o mandado de segurança controverte o disposto no art. 38, § 5º, da Lei nº 4.595/64, e a existência, ou não, de sigilo bancário frente ao fisco. Dispõe o citado dispositivo: ‘Art. 38 - As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. § 5º - Os agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados somente poderão proceder a exames de documentos, livros e registros de contas de depósitos, quando houver processo instaurado e os mesmos forem considerados indispensáveis pela autoridade competente’.

Segundo as impetrantes, as cláusulas ‘processo instaurado’ e ‘autoridade competente’ interpretam-se, respectivamente, como ‘processo judicial instaurado’ e ‘autoridade jurisdicional competente’, enquanto na leitura do fisco basta o procedimento administrativo e a ordem da autoridade administrativa.

É necessário que se examine a espécie também à luz do art. 197, II, do CTN, que reza: ‘Art. 197 - Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiro: II - os Bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras’.

Em face dessa última norma, cuja hierarquia é superior e cuja verba legislativa se afigura explícita, consagrando a interpretação do fisco, obra recente e oportuna de Sérgio Carlos Covello (‘O Sigilo Bancário’, p. 175, São Paulo, 1991), conclui, simplesmente: ‘O sigilo bancário, pois, inexiste frente ao fisco.’

Todavia, a lição descura do parágrafo único do art. 197, que esclarece não abranger o dever do ‘caput’ quaisquer informações protegidas por sigilo. Por isso que, como sustenta Geraldo Vidigal (‘O Sigilo Bancário e o Fisco’, p. 14, São Paulo, 1988), o art. 38, § 5º, da Lei nº 4.595/64 continua em vigor. Passando à interpretação deste último dispositivo, não consigo realmente interpretá-lo no sentido preconizado pelo fisco.

Em primeiro lugar, rememore-se que os parágrafos anteriores do art. 38 permitem a quebra do sigilo por ordem judicial. E o aludido § 5º consigna a existência de ‘processo’ e de autoridade, sem quaisquer adjetivos funcionais. Ora, a interpretação sistemática conduz, necessariamente, a combinar o § 5º com o sistema do art. 38. Assim, só órgão jurisdicional, a instâncias da parte, aí incluído o fisco, pode romper o véu das instituições financeiras. Além da autoridade jurisdicional, sob a égide da atual Carta Política de 1988, também as Comissões Parlamentares de Inquérito ostentam idêntico poder.

E mesmo a leitura rigorosa do § 5º do art. 38, empregando a paupérrima exegese literal, não deixa dúvidas, porque se utiliza o substantivo ‘processo’, a denotar a relação jurídica processual, sabido que, na órbita administrativa, o legislador, em geral, utiliza a palavra menos ambiciosa de ‘procedimento’, por exemplo, no art. 399, II, que menciona os ‘procedimentos administrativos’; o art. 142 do CTN, ou, então, quando emprega ‘processo’, sempre adjetiva com ‘administrativo’ (v. g., no art. 2º, § 5º, VI, da Lei nº 6.830/80).

Foi o legislador de 1964, talvez, deliberadamente ambíguo, abrindo ensanchas à interpretação favorável ao fisco. Decerto a mesma, como se diz à fl. 114, poderia ter ‘redação bastante diferente’. Mas atenho-me à redação vigente e, nela, não extraio a exegese defendida amiúde pelas autoridades fazendárias.

Por outro lado, o advento do extenso catálogo de liberdades públicas constantes na Constituição Federal de 1988 altera o panorama infraconstitucional. Estou entre aqueles que obrigam, dia a dia, a repensar as normas anteriores, a cotejá-las com a Nova Carta Política, para verificar se, efetivamente, na letra e no espírito, foram recepcionadas pela Constituição.

Ora, o direito de o fisco vasculhar as contas bancárias de alguém, à procura mais do ilícito mesmo do que sua prova (esclarecem as informações que tais elementos ‘complementarão os dados necessários à perfeita averiguação do fato tributário’, fl. 43), se mostra incompatível, à primeira vista, com a tutela da intimidade, da vida privada e da imagem do cidadão (art. 5º, X, da Constituição Federal).

Não se olvide, neste passo, do cínico conselho do advogado Kummer, na novela ‘A Pane’, de Friedrich Dürrenmatt, notável novelista suíço, recentemente falecido. Explicou o advogado Kummer ao seu cliente: ‘Tome nota de uma coisa, jovem amigo, inocente ou não, o que vale é a tática. É arriscado, para me expressar de modo suave, querer apresentar-se inocente diante do nosso Tribunal; ao contrário, é mais prudente confessar algum crime, por exemplo, justamente para os comerciantes há um vantajoso: fraude. Mais tarde, durante o interrogatório, resta sempre o recurso de que o acusado exagera, de que, na realidade, não há fraude, mas um simples iludir dos fatos por motivo de propaganda, como é comum no comércio. O caminho da culpa para a inocência é difícil, mas não é impossível, ao passo que é absolutamente inútil insistir na inocência, e o resultado disso: o desastre. O senhor perde onde poderia ganhar e é também forçado a não poder escolher a culpa, tendo que deixar que a lhe imponham.’

Parece que esta é a concepção do fisco: todos são sonegadores, salvo prova em contrário. E, para comprovar que todos são sonegadores, também é lícito vasculhar e devassar as contas bancárias de todos os cidadãos, haja ou não indício prévio da existência de ilícito.

Também é incompatível a devassa unilateral com o contraditório e o direito à defesa, previstos no art. 5º, LV, porquanto não se pode supor que o Banco altere os dados de suas fichas e disquetes, em conivência com o ilícito do contribuinte, e as medidas sem audiência da parte contrária só se admitem quando há risco de que do seu conhecimento poderá o réu ou requerido torná-la ineficaz.

E, por fim, observo que, quando a Carta Política cuidou de romper sigilo, conferiu tal poder, exclusivamente, ao órgão jurisdicional, como se infere do art. 5º, XII, da Carta Política.

Quer no ponto de vista infraconstitucional, quer da interpretação constitucional, portanto, que já deixo, Sr. Presidente, questionados para eventual recurso da parte, o comportamento do fisco configura inominável abuso, contrário à ordem jurídica.

Se o fisco deseja obter prova de ilícitos tributários, que impliquem a quebra do sigilo bancário, se sujeitará, como todo e qualquer cidadão, a acudir ao órgão jurisdicional, mediante a demanda cabível, por exemplo, asseguração de prova, que deferirá ou não a medida. Comportamento diverso significará que o fisco, no dealbar do novo século, segue os padrões ancestrais dos odiados agentes da Coroa portuguesa.

Isso posto, dou provimento à apelação para julgar procedente a impetração, tornada definitiva a liminar, nos termos do pedido, condenada a autoridade coatora ao pagamento das despesas processuais. Sem honorários, haja vista a Súmula nº 512 do STF.

Des. Milton dos Santos Martins - Eminentes Colegas, realmente, nos dias que correm, nós já temos dificuldades com a facilitação das comunicações no que diz respeito até à informática, porque em todos os países há muita dificuldade de limitar, de manter a privacidade, de manter a pessoa resguardada na sua vida particular, nos seus negócios, eis que a tendência é cada vez maior de devassar na exigência de dados que são fornecidos a todo momento, na vida pública e privada, e esses dados não são guardados com a privacidade necessária.

O legislador, porém, ainda mantém um certo núcleo de respeito à pessoa, já enunciado na Constituição e lembrado pelo eminente Relator, ou seja, a privacidade da sua própria pessoa, da sua correspondência, dos seus negócios, das suas comunicações. E a lei ordinária, desde 1964, efetivamente, registrou, entre os sigilos, esse das instituições financeiras com o respeito às operações ativas e passivas e aos serviços prestados, segundo o art. 38 da Lei nº 4.595/64.

Agora, disputa o fisco, entendendo que, em acordo com o § 5º do mesmo artigo, os agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados poderão proceder a exames em documentos, livros e registros, contas de depósitos quando houver processo instaurado e os mesmos forem considerados indispensáveis pela autoridade competente. E o disposto nesse parágrafo se aplica igualmente à prestação de esclarecimentos e informes a instituições financeiras.

Sucede que, posteriormente a essa determinação legal, temos o CTN que ainda reitera a possibilidade de, evidentemente, a administração tributária e a fiscalização, em particular, obterem as informações todas necessárias de bens, negócios e atividades de terceiros, porque o seu art. 197 determina que as prestem os Tabeliães, os Bancos, as empresas, os corretores, inventariantes, síndicos e aquilo, todavia que é essencial e foi destacado pelo eminente Relator - e que a fiscalização não está lendo - é que ‘a obrigação prevista neste artigo’, diz o próprio CTN, no parágrafo único do mesmo artigo, ‘não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão’. Essa legislação posterior, então, esclarece que as informações são possíveis, são necessárias, à Administração Financeira Tributária, mas evidentemente não abrange abertura, não chega à quebra do sigilo bancário, antes disciplinado no art. 38 citado.

Assim, por isso, me parece que, efetivamente, não só a interpretação feita pelo eminente Relator, mas também porque a autoridade competente aqui para determinar, segundo o § 5º, o exame nos documentos deve ser a autoridade do Poder Judiciário. O acórdão juntado pelo Estado nos autos do processo, inclusive da lavra desta Câmara, sendo Relator o eminente Des. José Vellinho de Lacerda, era numa ação de exibição, onde se comprovava a necessidade de investigação, e essa investigação foi autorizada pelo Poder Judiciário. Destarte, não é o fisco chegar a qualquer repartição ou estabelecimento ou intimar qualquer repartição ou estabelecimento, obrigando-a a prestar-lhe a informação. Aliás, está no § 1º do art. 38, as informações, esclarecimentos devem ser ordenados pelo Poder Judiciário.

Vejo, eminentes Colegas, figurando, no caso concreto, ‘um processo’ administrativo. Verifica-se, no entretanto, no ‘processo’ que o fiscal apenas comunica ao seu superior que, vendo ou examinando os livros das firmas, entende que há possibilidade de fraude ou sonegação de imposto, e para isso é necessária a devassa nas contas bancárias. Não há realmente uma justificação sequer, não se aponta um fato só, nem ao seu superior. Não posso chamar isso de processo. O que foi o exame dos livros, o que havia de indicativo nesses livros de que se estava sonegando imposto? Não há uma informação sequer. Quando o fisco encontrar alguma base para sua investigação que permita prosseguir na investigação e a esta esteja prejudicada pela falta de exame das contas, o Judiciário, por certo, determinará essa verificação, como antes o fez. Creio que o fisco, por si só, não pode estar avançando e invadindo, quebrando o sigilo, dado os perigos e abusos que daí decorrem. Mesmo quando o Judiciário autoriza, o sigilo ainda deve permanecer, deve continuar na esfera de reserva necessária para não-divulgação. Nesses termos, estou acompanhando o eminente Relator.

Des. Celeste Vicente Rovani - Sr. Presidente, eu mantenho o meu ponto de vista expresso já por ensejo do deferimento da liminar em favor da impetrante e, por isso, acompanho os votos ilustrativos e brilhantes dos eminentes Colegas, aos quais nada mais tenho a acrescentar.”

3. Comentário

O conceito de reserva e discrição com que devem ser tratadas as operações bancárias não é moderno, remontando à antigüidade, época em que a confiança recíproca entre banqueiro e cliente já constituía elemento fundamental para a intermediação do crédito3.

Reconhecido nos sistemas jurídicos de muitos países, inclusive do Brasil (artigo 38 da Lei nº 4.595/64), o sigilo bancário enquadra-se na categoria de segredo profissional, erigindo-se como uma das formas de proteção à intimidade e à privacidade (Constituição da República, artigo 5º, X). Assim se expressa a norma ordinária:

“Art. 38. As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.”

A Lei do Colarinho Branco (Lei nº 7.492/86) apenas vem a ratificar essa restrição, prevendo, em seu artigo 18, pena de reclusão de 1 a 4 anos, e ainda multa, a quem “violar sigilo de operação ou de serviço prestado por instituição financeira ou integrante do sistema de distribuição de títulos mobiliários que tenha conhecimento, em razão de ofício”.

O Código Penal, por seu turno, também protege, por via indireta, o segredo contido nos documentos bancários. É que seu artigo 153 prevê pena de detenção ou multa a quem divulga, “sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem”.

No que se refere à violação do segredo profissional, o artigo 154 do Estatuto Penal também prevê pena restritiva de liberdade ou pecuniária a quem “Revelar a alguém, sem justa causa, segredo de que tenha ciência, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja violação possa produzir dano a outrem.”

Tais normas nada mais fazem que sacramentar o quanto estatuído primariamente como regra moral através do Direito Natural, de forma que não é a lei quem cria o segredo, mas “apenas lhe dá relevância jurídica, fornecendo ao sujeito o instrumento adequado (a norma de sigilo) para impedir a ingerência externa limitativa da liberdade de excluir outros sujeitos do conhecimento de determinadas notícias concernentes à sua pessoa”.4

O sigilo “Não constitui mera discrição ditada por regras de cortesia e sim efetiva obrigação dotada de sanção - diga-se de passagem, sanção rigorosa, porque não raro as normas de sigilo vêm acompanhadas de sanção penal.”5

De Cupis, citado pelo mestre Covello6, afirma, ao discorrer sobre o segredo, que “certas manifestações da pessoa destinam-se a conservar-se completamente inacessíveis ao conhecimento de outros, quer dizer, secretas; não é apenas ilícito o divulgar tais manifestações, mas também o revelá-las, não importa a quantas pessoas”.

Entendemos estar justamente aí o fundamento do dever que obriga as instituições financeiras a guardar sigilo em relação às operações realizadas com seus clientes e em suas dependências, constituindo-se realmente uma exceção dependente de regras próprias a divulgação desses dados a terceiros. Mesmo que se tratem de agentes do Governo imbuídos da mais genuína preocupação em cumprir sua função, a exemplo do Ministério Público e do Fisco. Afinal, “em inúmeras oportunidades, o Banco se torna confidente necessário do cliente como assessor técnico em investimentos”, e “o acesso a informações de ordem pessoal e patrimonial cria, à semelhança do que sucede no sigilo profissional e no sigilo fiscal, a obrigação de não revelar tais informes, sob pena de ferir o direito à intimidade”7.

Como bem lembra Silvânio Covas8, comentando V. acórdão emanado do C. STF a respeito do assunto, “O segredo bancário é direito do cliente e não do banqueiro. Este, aliás, é o sujeito passivo da obrigação de confidencialidade, tendo o dever de preservar a intimidade do seu cliente, na qual penetra tão-somente em razão do ofício. Por isso é que, ao recusar-se à abertura dos dados confidenciais, não age em defesa de interesse próprio, mas em razão de obrigação imposta pela severa legislação que trata a matéria, impondo ao depositário desidioso sanções inclusive de caráter criminal.”

Analisando Projeto de Emenda Constitucional objetivando a alteração do § 1º do artigo 145 da Carta Magna, o Deputado Régis de Oliveira, em parecer9 endereçado à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, constatando que a pretensão central da emenda analisada seria outorgar à administração tributária e previdenciária a possibilidade de acesso a elementos financeiros e, por via de conseqüência, às informações existentes nos bancos de dados das instituições financeiras, lembrou que tais dados são sigilosos, somente admitindo-se acesso a eles em casos excepcionais e mediante o cumprimento de determinadas regras.

Colacionou ao seu trabalho a seguinte lição, de Spinosa, acerca do corriqueiro argumento sobre “o interesse público sobre o privado”, e que merece ser aqui repetida: “tem sido a mesma cantiga de todos os que têm sede do poder absoluto, afirmar que os interesses do Estado exigem que seus assuntos sejam tratados em segredo. Mas, quanto mais esses argumentos se disfarçam sob a marca do bem público, mais opressiva é a escravidão a que conduzirão. É melhor que deliberações corretas sejam conhecidas do inimigo do que escondidos dos cidadãos, os segredos maléficos dos tiranos. Aqueles que podem tratar secretamente dos assuntos de uma nação têm-na inteiramente sob sua autoridade; e, assim como conspiram contra o inimigo em tempo de guerra, o fazem contra os cidadãos em tempo de paz.”

Ratificando a tese de que o sigilo bancário classifica-se no rol dos direitos e garantias individuais (direito à privacidade), o Deputado, de forma feliz, mencionou o § 4º do artigo 6º da Constituição (que veda a deliberação sobre proposta de emenda tendente à abolição de direitos e garantias individuais), e exarou seu parecer contrário à continuidade do Projeto de Emenda.

Hagstrom10 atribui à atividade bancária importância tal que nos leva à interpretação de que o sistema financeiro é de vital imprescindibilidade para a economia (ou seja, o interesse nessa seara é eminentemente público). Afirma o estudioso:

“Tal atividade, como hoje se reconhece, tem um caráter ‘publicístico’ e fundamental importância para o desenvolvimento econômico, como canalizadora de poupanças, distribuidora do crédito, criadora de moeda, instrumento de política monetária etc.

Em decorrência, passou-se a reconhecer, também, que o sigilo bancário, hoje, não protege apenas interesses privados, individuais; é importante, igualmente, como instrumento de proteção das próprias instituições financeiras e do sistema financeiro como um todo, atendendo a uma finalidade de ordem pública, qual seja a proteção do sistema de crédito. Ocorre que as instituições financeiras, os bancos, particularmente, ‘vendem’ segurança e somente sobrevivem se contarem com a confiança do público. Ao mesmo tempo são, por variadas razões, extremamente vulneráveis, enfrentando freqüentes situações de crise que, não raro, conduzem a quebras. Situações da espécie, além dos prejuízos que acarretam aos clientes e demais credores, geram desconfiança e intranqüilidade no mercado, afetando, assim, outras instituições financeiras.

Tais fatos e circunstâncias são extremamente relevantes, na atualidade, dada a fundamental importância da atividade financeira para a economia, em geral, e a integração das instituições financeiras em um ‘sistema’ de caráter nacional.”

Covello entende que o sigilo bancário é relativo, e vai até onde começa a obrigação de revelar o segredo. Não se pode negar que a própria lei (§§ 1º a 6º do art. 38) estabelece as exceções, as quais são entretanto extremamente restritivas.

Nesse passo, deve-se conceber o dever de prestar informações ao Fisco não sem que se respeitem as limitações próprias.

Entre os que defendem a total intromissão do Fisco nos negócios bancários, reforça-se esse conceito com o argumento de que existe o interesse público na arrecadação de tributos, a qual não seria adequadamente promovida sem o auxílio dos Bancos. Para o eterno mestre Covello11, “Há necessidade hoje do Estado intervir no sistema econômico em favor da constância no desenvolvimento econômico, da eqüidade na distribuição das riquezas e na segurança social.”

Conclui o eminente jurista afirmando que “o Fisco tem livre e pleno acesso ao segredo bancário, além de fazer dos Bancos seus colaboradores legais na arrecadação dos tributos”, e ainda que “O sigilo bancário, pois, inexiste frente ao Fisco.”

Bellinetti12, ao analisar a questão do § 5º do artigo 38 da Lei 4.595/64 diante do artigo 197 do CTN, apesar de não se aprofundar na análise, entende que este último não derrogou aquele, confirmando o teor do V. acórdão aqui comentado. Entende contudo que, por não encontrar amparo expresso na Constituição, e ainda porque, “pelo simples fato de o indivíduo ter revelado tais dados aos bancos, não serão eles mais tão íntimos”, ... “sempre que existir um interesse público ou de ordem pública na investigação de determinado(s) fato(s) que justifique a necessidade de revelação das informações, deverão elas ser fornecidas”.

Relativamente às afirmações feitas acima pelos eminentes juristas, há que se lembrar entretanto que trata-se o conceito de “interesse público” de um conceito um tanto quanto genérico, e sua utilização poderia facilmente dar margem a violação de garantia constitucional da privacidade. Assim, cada caso deverá ser não só muito bem analisado, como ainda o será pela autoridade judicial competente, sob pena de todos os integrantes do Fisco imbuídos do mais profundo “interesse público” em investigar o patrimônio alheio com vistas a melhor alimentar os cofres públicos, virem a agir sem qualquer escrúpulo para atingir seu objetivo.

Nesse passo, o próprio Código Tributário Nacional cuida de limitar o acesso do Fisco às informações a que estariam obrigados os entes que figuram nos diversos incisos do artigo 197, estabelecendo no parágrafo único que “A obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão”.

Ora, a palavra grifada define muito bem as limitações em que se esbarra o Fisco, relativamente às informações cuja fonte resida nos Bancos, uma vez que o artigo 38 da Lei nº 4.595/64 complementa a norma tributária ao, expressamente, determinar às instituições financeiras que conservem sigilo sobre suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

A corroborar a questão constitucional sobre a garantia do direito à privacidade, Ives Gandra da Silva Martins13, com extrema simplicidade, espanca qualquer dúvida sobre o assunto, ao afirmar: “Sempre estive convencido de que a expressão ‘sigilo de dados’ hospeda aquela de ‘sigilo bancário’. Esta é espécie daquele gênero.”

“Por outro lado - prossegue o mestre - nos direitos e garantias individuais, claramente, o constituinte assegurou a preservação da intimidade e privacidade das pessoas e a preservação do sigilo de dados.”

Finaliza o jurista, de forma impecável:

“Há de se perguntar se a preservação constitucional do sigilo bancário não favorece à sonegação fiscal e dificulta o combate a este comportamento reprovável, mas que é da tradição humana, em todos os períodos históricos e espaços geográficos.

Estou convencido de que o fenômeno de sonegação reside na natureza de norma de rejeição social de que se reveste a norma tributária. Todos os governos cobram mais tributos do que o Estado necessita para a prestação de serviços públicos, destinando esse ‘plus’ a custear as despesas para a detenção do poder por aqueles que governam. A carga tributária não é indevida, mesmo quando os países são governados por bons governos.

É que é absolutamente impossível eliminar os desperdícios, a corrupção, os apadrinhamentos e as despesas fúteis para a sustentação do poder. Os bons governos, em toda a humana história, apenas reduzem o nível destes males que afetam o Estado.

Não sem razão Carl Schimidt dizia ser a Política a Ciência que estuda a oposição entre o amigo e o inimigo. Para Maquiavel, o bom governante é aquele que mantém o poder, mesmo que mau, e mau aquele que o perde, mesmo que bom.

Para sustentar um Estado prestador de serviços públicos à sociedade e ‘protetor’ beneficiador daqueles que detêm o poder é que a carga tributária é sempre desmedida, razão pela qual Kelsen tinha razão ao dizer que sem sanção ninguém a pagaria. É a sanção, na imposição tributária, norma primária, secundária sendo a norma de conduta, ao contrário das normas de aceitação social, como o respeito ao direito à vida, em que a sanção é norma secundária, apenas aplicável a casos patológicos.

Ora, por ser a norma tributária norma de rejeição social, de vez que o Estado retira da sociedade mais do que o necessário para a devolução em serviços públicos, é que a sonegação é, muitas vezes, arma de que o contribuinte se utiliza, sempre que o fardo se torna demasiadamente pesado.

Por esta razão, o combate à sonegação é tanto mais pesado quanto mais injusta a política tributária, por maior a incidência de evasão tributária.

A melhor forma, pois, de combater a sonegação seria a adoção de política tributária justa, repartida pela sociedade, que reduzisse, sensivelmente, a sonegação e enquadrasse apenas os casos patológicos e de conduta delituosa configurados.

Para estas hipóteses, a quebra do sigilo bancário poderia até se justificar, mas nunca pelo livre-arbítrio do agente fiscal.

É, neste particular, que me parece absolutamente correta a postura do legislador e da jurisprudência em preservar o sigilo bancário do arbítrio e admitir sua quebra sempre que houver autorização judicial. A autorização judicial que exterioriza o exame imparcial da licitude do pedido só deve ocorrer na hipótese em que o interesse público assim o esteja exigindo e de que o sigilo esteja acobertando casos de sonegação evidente e não de mero palpite por parte da fiscalização. Não pode o Poder Judiciário hospedar uma ‘fishing exploration’ que, comumente, os agentes fiscais promovem na tentativa de conseguir apurar faltas de recolhimento tributário, sem dados mais precisos.”

O questionamento que vem em seguida encontra guarida na previsão estabelecida na norma (§ 5º do artigo 38 da Lei 4.595/64), no sentido de que “Os agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados somente poderão proceder a exames de documentos, livros e registros de contas de depósitos, quanto houver processo instaurado e os mesmos forem considerados indispensáveis pela autoridade competente.”

Dois aspectos são fundamentais à solução dessa tão polêmica questão: a necessidade de que exista processo instaurado e a imprescindibilidade das informações/documentos.

Relativamente ao primeiro aspecto, indaga-se qual seria a definição de “processo”. Teria o legislador, ao mencioná-lo, a intenção de igualá-lo ao “procedimento”? Entendemos que não, já que a própria legislação tributária cuida de diferenciar essas expressões em diversos momentos (v. g., Decreto nº 70.235/72 e Decreto-lei nº 37/66).

Hagstrom14, ao referir-se à administração tributária, ratifica o entendimento jurisprudencial objeto desta análise, e esclarece que as autoridades tributárias, interpretando a expressão “processo instaurado” mencionado na Lei nº 4.594/64, a entendiam como qualquer ato administrativo fiscal (“início de fiscalização, procedimento ou ação fiscal”), enquanto para as instituições financeiras, a mesma expressão só poderia ser interpretada à luz do Direito Processual.

Complementa o autor, observando que, perante o C. STJ15, venceu a tese sustentada pelas instituições financeiras16, ou seja, “‘processo instaurado’ e ‘autoridade competente’, nos §§ 5º e 6º do art. 38 da Lei nº 4.595, são expressões que devem ser entendidas como ‘processo judicial’ e ‘autoridade jurisdicional’”.

Essa interpretação, segundo o autor, mesmo que considerada muito rigorosa por alguns, funda-se na proteção constitucional à intimidade e à vida privada, e “harmoniza-se com o entendimento jurisprudencial atinente ao Ministério Público”.

A decisão mencionada por Hagstrom não é isolada, tanto em relação às Cortes Estaduais (veja-se por exemplo o acórdão transcrito no início deste trabalho) quanto em relação ao C. STJ, que em data relativamente recente, decidiu no seguinte sentido:

“Sigilo Bancário. Quebra. Processo administrativo. Impossibilidade.

Ementa: Em casos excepcionais e com obediência à lei, pode haver quebra do sigilo bancário, mas pelo Poder Judiciário, e não pelo Fisco, em processo administrativo.

Recurso improvido.17

Conhecido o recurso pela alínea a do artigo 105, III, da Constituição da República, assim se referiu o Eminente relator:

“São invioláveis a intimidade e a vida privada das pessoas (CF, art. 5º, X). É claro que neste princípio constitucional está incluído o sigilo bancário. Em casos excepcionais e com obediência à lei, ele pode ser quebrado, mas pelo Poder Judiciário e, não pelo Fisco em processo administrativo. O art. 197, item II do CTN determina que mediante intimação escrita as instituições financeiras são obrigadas a prestar à autoridade administrativa informações com relação a bens, negócios ou atividades de terceiros. Mas, no seu parágrafo único, deixa bem claro que: ‘A obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão do cargo, ofício função, ministério, atividade ou profissão.’

Ora, pelo ‘caput’ do art. 38 da Lei 4.595, de 31.12.1964, as instituições financeiras são obrigadas a conservar sigilo em suas operações e serviços prestados. Embora o art. 8º da Lei 8.021/90 autorize a autoridade fiscal a solicitar informações sobre operações realizadas pelo contribuinte em instituições financeiras, isso só seria possível se já tivesse sido iniciado o procedimento fiscal e houvesse autorização judicial, o mesmo ocorre com a Lei 4.595/64, art. 38, §§ 5º e 6º. Os agentes fiscais só poderão examinar documentos, livros e registro de contas de depósitos, quando houver processo instaurado e estas informações forem consideradas pelo Poder Judiciário como indispensáveis. Não podem eles, em procedimento administrativo e sem a autorização judicial, quebrar o sigilo bancário de ninguém.

...

Esta Egrégia Turma, no REsp. 37.566-5/RS, DJ de 28.3.1994, Relator Min. Demócrito Reinaldo, decidiu que: ‘O sigilo bancário do contribuinte não pode ser quebrado com base em procedimento administrativo-fiscal, por implicar indevida intromissão na privacidade do cidadão, garantia essa expressamente amparada pela Constituição Federal (art. 5º, inc. X).

Por isso, cumpre às instituições financeiras manter sigilo acerca de qualquer informação ou documentação pertinente à movimentação ativa e passiva do correntista/contribuinte, bem como dos serviços bancários a ele prestados.

Observadas tais vedações, cabe-lhes atender às demais solicitações de informações encaminhadas pelo Fisco, desde que decorrentes de procedimento fiscal regularmente instaurado e subscritas por autoridade administrativa competente.

Apenas o Poder Judiciário, por um de seus órgãos, pode eximir as instituições financeiras do dever de segredo em relação às matérias arroladas em lei.

Interpretação integrada e sistemática dos arts. 38, § 5º, da Lei 4.595/64 e 197, inc. II e § 1º, do CTN.’

No mesmo sentido o Recurso em Mandado de Segurança 7.275/SP, DJ de 01.03.1997, Rel. Min. Ari Pargendler.”

Geraldo Vidigal18, com a grandeza que lhe é peculiar, entende, lembrando a Portaria nº 493/68, ser inadmissível mesmo a instauração do processo através de mera portaria ou qualquer outro ato administrativo, por mais alto que seja o grau da autoridade que o tenha gerado, sob pena de tornar letra morta a condição estabelecida pela Lei nº 4595/64.

O festejado autor complementa seu pensamento afirmando que, “Para os fins do dever de informação previsto nos parágrafos 5º e 6º do Artigo 38 da Lei 4.595, o ‘processo instaurado’ há de ser um corpo processual perfeitamente definido, identificado necessariamente por um conjunto de signos que o caracterize com nitidez e determinado pela intimação do sujeito passivo da ação fiscal”. Finaliza o eminente jurista:

“Somente para efeitos administrativos internos, no âmbito do próprio fisco, poderia declarar-se instaurado o processo fiscal com a simples lavratura do termo de início de fiscalização, procedimento ou ação fiscal. Para quaisquer outros objetivos - e especialmente para os fins previstos nos parágrafos 5º e 6º do artigo 38 da Lei 4.595 - não poderia prevalecer definição tal de ‘processo fiscal instaurado’.

...

Para os limitados fins de comunicação previstos no inciso III da Portaria 493/68 - meramente para esses fins - nada impedirá que chame de ‘instauração de processo fiscal’ o que é apenas, nos termos da lei, a documentação do início de procedimento (art. 196 do CTN, caput).

O processo, em si, pelos princípios mesmo que a ele presidem, não se instaura e nem poderia instaurar-se senão após a lavratura do auto ou representação, com base neles, pela intimação do acusado, prevista no artigo 199 do mencionado Decreto 61.514/67, que a própria Portaria 493/68 invocou.”

Bem colocado outrossim o raciocínio daquele jurista, que, ao discorrer sobre a “autoridade” mencionada na Lei 4.595, nega se tratem dos próprios fiscais a referida autoridade, porque, do contrário, a exigência legal de que exista alguém que julgue se são ou não indispensáveis informes, esclarecimentos e documentos das instituições financeiras, restaria vazia, sem efeito.

Defendendo a idéia de que, relativamente ao Fisco, não deve existir a contingência do sigilo bancário, Cid Heráclito de Queiroz19 (ex-Procurador Geral da Fazenda Nacional) aduz que o maior objetivo do Fisco, “no que tange à fiscalização do IPMF, e, mesmo, das contas bancárias em geral, é identificar as chamadas ‘contas fantasmas’, que, além de ilegais, envolvem o ilícito de sonegação fiscal”, e afirma que a única solução para o impasse em torno da questão - de um lado o “legítimo” interesse da Fazenda em seu mister, e de outro, as instituições financeiras que negam-se a prestar informações respaldadas no sigilo bancário - seria a reformulação de todo o tratamento legislativo dado à matéria, de forma a se conjugar os interesses de todos.

De outro lado, João Feder, em interessante trabalho20, entende que, em relação às contas públicas, não há de haver sigilo bancário e, sob esse argumento, interpreta extensivamente o artigo 37 da Lei nº 4.595/64 (esse dispositivo determina que as instituições financeiras ficam obrigadas a fornecer ao Banco Central do Brasil os dados e informes julgados necessários para o fiel desempenho das funções daquela Autarquia), afirmando que, integrante da mesma ordem institucional, também o Tribunal de Contas tem direito ao acesso a esses dados.

Mais adiante, Feder mostra o seguinte raciocínio: “Ora, se os bancos oficiais integram a administração indireta, não podem fugir a essa fiscalização. E só se pode fiscalizar a legalidade e a legitimidade dos negócios bancários sem o embargo do sigilo”, e lembra que, quando da edição da Lei de Reforma Bancária, o Tribunal de Contas não exercia ainda fiscalização sobre os bancos oficiais, o que passou a ser feito a partir de 1975, com a edição da Lei nº 6.223, consagrada pela Constituição Federal de 1988.

E invoca em seu auxílio a lembrança de que o Código Tributário Nacional (e o quanto disposto no artigo 197, II, respectivo) também é posterior à edição da Lei 4.595.

Ora, ainda que contenha o brilhante trabalho mencionado acima detalhes que nunca devem ser esquecidos no que diz respeito à administração dos recursos públicos21, o fato é que, sem prejuízo de que o Estado dispõe de outras formas de controle até mais eficientes, se bem utilizadas, é importante se ter em conta que:

- A mesma Constituição Federal que menciona o autor traz em seu bojo (art. 173, § 1º, II) a previsão de que as empresas públicas que explorem atividade econômica estarão sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, “inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”;

- Inciso III do dispositivo acima, bem como outros da Carta Magna (arts. 37, XXI, e 175, caput), além da própria Lei de Licitações, já têm o condão de satisfazer o Tribunal de Contas no controle dos gastos públicos, de forma que não se justifica a pretendida ingerência (poder-se-ia mesmo chamar de devassa) nos sistemas bancários, não sendo demais lembrar ainda que não é somente através de bancos públicos que circula o dinheiro público;

- Finalmente, e o mais importante, é que, mesmo que tenha o CTN sido editado posteriormente à Lei de Reforma Bancária, os dispositivos desta última (o art. 38, mais especificamente) não foram derrogados pelo artigo 197, II, do CTN. Primeiramente porque a Lei 4.595, como todos sabemos, foi recepcionada como lei complementar pela Constituição da República e, ademais, o parágrafo único do artigo 197 do CTN não foi ali posto se não tivesse o legislador a clara intenção de preservar o segredo profissional, aí incluído, como já visto, o sigilo bancário.

Observe-se a propósito que, relativamente ao mercado de capitais, nem à própria CVM - Comissão de Valores Mobiliários, foi conferido o poder de vistoriar, sem autorização judicial, as operações bancárias inerentes aos valores mobiliários, sendo que, a despeito de que as respeitáveis opiniões de alguns especialistas não caminhem no mesmo sentido22, deve ser observado o § 1º do artigo 18 da Lei nº 4.595/64. Referido dispositivo estatui que:

“§ 1º Além dos estabelecimentos bancários oficiais ou privados, das sociedades de crédito, financiamento e investimentos, das caixas econômicas e das cooperativas de crédito ou a seção de crédito das cooperativas que a tenham, também se subordinam às disposições e disciplinas desta Lei no que for aplicável, as bolsas de valores, companhias de seguros e de capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios em imóveis, mercadoria ou dinheiro, mediante sorteio de títulos de sua emissão ou por qualquer forma, e as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam, por conta própria ou de terceiros, atividade relacionada com a compra e venda de ações e outros quaisquer títulos, realizando, nos mercados financeiros e de capitais, operações ou serviços de natureza dos executados pelas instituições financeiras.” (grifos nossos)

Em brilhante parecer sobre o assunto, Luiz Alfredo Paulin23 nos oferece preciosa contribuição, ao afirmar que “Tais entes, conquanto não se enquadrem nos precisos termos da definição técnica de instituição financeira, foram submetidos, ‘ex vi legis’, a regime jurídico assemelhado a esta. É importante que se atente que estas pessoas, a despeito de não serem tecnicamente instituições financeiras, têm pontos em comum com estas últimas, de sorte a permitir que a lei lhes dê tratamento assemelhado”.

Mais adiante, prossegue o autor:

“É evidente que se a lei estabeleceu um regime jurídico assemelhado, quis o legislador que estes entes estivessem sujeitos ao mesmo tratamento que as instituições financeiras ‘stricto sensu’. Aliás, tais entes só se afastam do regime jurídico das instituições financeiras ‘stricto sensu’ quando o comando a ser aplicado não se coadunar com a natureza do ente a este sujeito.

...

Forçoso também admitir que, impôs-se a todas as instituições, sejam intermediários ou entes auxiliares ou equiparados, a obrigatoriedade da prévia autorização do Banco Central do Brasil. Isto porque, o parágrafo primeiro estende o regime da lei a todos os entes auxiliares e equiparados. Logo, tomando-se em conta os termos de que se valeu o legislador, conforme acima transcritos, indubitável que se estendeu a disciplina da Lei Bancária a estes entes.”

4. Conclusão

Não resta qualquer dúvida de que, como visto acima, o V. acórdão, aqui comentado à guisa de ratificação do nosso pensamento, traz em seu conteúdo a melhor solução ao objeto da discórdia, somente podendo-se compelir os agentes elencados nos incisos I a VII (e, para o objetivo do nosso estudo, mais especificamente os entes mencionados no inciso II) a prestar as indigitadas informações se estas não estiverem protegidas pelo manto do sigilo profissional.

Exceções somente serão admitidas em caso de indícios de delito de natureza fiscal, e mediante autorização judicial.

Afinal, “O sigilo bancário representa ainda uma garantia do cidadão de que poderá ter, usar e gozar do que é seu reservadamente, sem sofrer devassas e perseguições de curiosos, invejosos e tiranos. Ele preserva assim a personalidade individual e garante a propriedade chamada Justa.24

1 MÉLEGA, Luiz Henrique Cavalcanti. “CPMF - Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - Emenda Constitucional nº 12, de 15.8.1996 - Lei nº 9.311, de 24.10.1996” in Suplemento Tributário Ltr nº 77/96.

2 RJTJRGS, vol. 157, p. 324.

3 COVELLO, Sérgio Carlos. O Sigilo Bancário. São Paulo: LEUD, 1991, p. 7.

4 COVELLO, Sérgio Carlos. As Normas de Sigilo como Proteção à Intimidade. São Paulo: Sejac, 1999, p. 14.

5 COVELLO, obra citada, pp. 14/15.

6 COVELLO, obra citada, p. 8.

7 COVELLO, obra citada, p. 30.

8 COVAS, Silvânio. “A Ilegitimidade do Ministério Público para requisitar Diretamente Informações Sigilosas às Instituições Financeiras” in Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais nº 5, pp. 145-156.

9 OLIVEIRA, Régis de. “Aspectos Constitucionais do Sigilo Bancário” in Revista de Direito Mercantil nº 99. São Paulo: Malheiros, 1995, pp. 98-104.

10 HAGSTROM, Carlos Alberto. “Sigilo Bancário: Novas Questões” in Revista de Direito Mercantil nº 105. São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 43-52.

11 COVELLO, Sérgio Carlos. O Sigilo Bancário. São Paulo: LEUD, 1991, p. 170.

12 BELLINETTI, Luiz Fernando. “Limitações Legais ao Sigilo Bancário” in Revista de Direito do Consumidor nº 18. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, pp. 141-161.

13 MARTINS, Ives Gandra da Silva. “Sigilo Bancário em Matéria Fiscal” in Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas nº 12. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pp. 66-76.

14 HAGSTROM, obra citada, pp. 48/49.

15 STJ, REsp nº 37.566-5-RS, j. 02.02.1994.

16 Este posicionamento, como já visto neste trabalho, é o esposado pela maioria dos especialistas da área, a exemplo de Arnoldo Wald (“Sigilo Bancário e os Direitos Fundamentais” in Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas nº 22), para quem “as restrições devem ser legalmente estabelecidas e a revelação de informações financeiras somente poderá ocorrer com a instauração de processo judicial, no qual estará garantido o contraditório e a ampla defesa”.

17 STJ, 1ª Turma, REsp. 115.063/DF, j. 17.04.1998, Rel. Min. Garcia Vieira, in Rev. Dir. Bancário nº 4, 1999, pp. 197-199.

18 VIDIGAL, Geraldo. O Sigilo Bancário e o Fisco. Cadernos IBCB 3, 1988, p. 10.

19 QUEIROZ, Cid Heráclito de. “O Sigilo Bancário” in Revista Forense, vol. 329, 1995, pp. 41-54.

20 FEDER, João. “A Fiscalização do Dinheiro Público e o Sigilo Bancário” in Revista Forense, vol. 308, 1989, pp. 51-58.

21 Feder inicia seu artigo lembrando oportunamente que “o Estado Moderno, seguindo o mau exemplo do Estado Antigo, se habilitou a gastar mais do que pode e deve, como se isso não trouxesse nenhuma conseqüência para o Estado e para os seus membros, como se o dinheiro aplicado não tivesse origem no trabalho legítimo e chegasse ao erário sem qualquer sacrifício do contribuinte”.

22 Roberto Quiroga Mosquera (Tributação no Mercado Financeiro e de Capitais, p. 81) entende que, entre Bacen e CVM, poderá haver a quebra de sigilo, “dentro da esfera de competência que eles possuem”. Entende ainda que “as bolsas de valores, de mercadorias e de futuros estão obrigadas a informar ao Bacen e à CVM, respeitando a competência atribuída a cada uma das autarquias aludidas, todas e quaisquer informações a respeito das partes realizadoras de negócios bursáteis, as características particulares das operações, dados financeiros e quantitativos”.

23 PAULIN, Luiz Alfredo. “Das instituições financeiras de fato ou irregulares - Análise com base na Lei nº 4.595/64” in RDM 110/196.

24 LUZ, Aramy Dornelles da. Negócios Jurídicos Bancários - O Banco Múltiplo e seus Contratos. 2. ed. reformulada. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 19.