Apontamentos sobre a Tributação das Operações de Hedge pelo Imposto de Renda na Fonte

Rodrigo Octávio Broglia Mendes

Advogado em São Paulo.

I. Introdução

O artigo 5º da Lei nº 9.779/99 instituiu a tributação na fonte dos rendimentos auferidos nas “operações de hedge, realizadas por meio de operações de swap e outras, no mercado de derivativos”. A análise desse dispositivo gerou algumas questões relativas, inclusive, ao exame da própria constitucionalidade do preceito.

De fato, o estudo desse dispositivo suscita várias questões que, em sua maioria, referem-se a conceitos e princípios fundamentais do Direito Tributário Brasileiro, como o da irretroatividade, legalidade, conceito de renda etc.

Assim, o estudo da disciplina tributária das operações de hedge é de interesse tanto para a teoria quanto para a “praxis” do Direito Tributário.

Com o presente estudo, pretende-se apresentar algumas das questões levantadas pela doutrina e que foram submetidas ao Poder Judiciário, de forma sistematizada, colocando os argumentos favoráveis, contrários e nossa posição crítica.

Il. Operações de Hedge - Conceito e Tratamento Legal

A primeira aproximação que deve ser feita, para o estudo da disciplina jurídico-tributário das operações de hedge, diz respeito à sua natureza jurídica.

Identificar o conceito e a natureza jurídica das operações de hedge não é tarefa fácil. Ao tentar enquadrar esse instituto sob a perspectiva da teoria contratualista, percebe-se, pela leitura da doutrina pátria, a dificuldade da empreitada. Isto pelo fato de não existir, talvez, um contrato com características típicas e próprias que qualifiquem a operação de hedge. Caio Mário da Silva Pereira esclarece: “Muito se tem falado no “contrato de hedging”. A denominação é imprópria. O hedging não é, propriamente, um contrato com caracteres típicos próprios. É mais uma modalidade de operação de bolsa, com caráter aleatório, tendo por objeto a comercialização de mercadorias a termo.1 No mesmo sentido, Maria Helena Diniz: “O hedging não é propriamente um contrato com caracteres típicos, pois consiste numa modalidade de operação aleatória de bolsa, tendo por escopo a comercialização de mercadorias a termo. É uma modalidade negocial a termo nas bolsas de mercadorias (commodities future market), com liquidação pela diferença.”2

Segundo Waldírio Bulgarelli, “constitui, pois, a operação de hedging uma operação do tipo a termo - futures - realizada pelo preço do momento, para entrega em data posterior fixada, podendo ser liquidada pela diferença da cotação do registro do contrato e a do dia da liquidação (dia anterior). Não se confunda o contrato futuro, ou seja, a venda a termo, com a venda para entrega futura, posto que esta implica basicamente a obrigação da entrega da mercadoria.”3

Percebe-se, da leitura dos trechos mencionados, que a doutrina é unânime ao reconhecer a natureza econômica do hedge, qual seja, a cobertura contra os riscos das variações e oscilações dos preços4. Contudo, ainda que excluam a possibilidade de ser considerado um contrato com caracteres típicos, os mencionados juristas não fixam, data venia, o conceito jurídico da operação de hedge. De fato, todos indicam a função econômica da operação sem, contudo, dar-lhe tratamento jurídico.5

Isto porque, ao que se parece, não há propriamente um conceito jurídico de hedge. O que há, de fato, é uma finalidade econômica que se busca através de várias formas jurídicas, como a realização de a) negócios jurídicos no mercado futuro (contrato futuro); b) negócios jurídicos de opções (opções); c) negócios jurídicos a termo de troca de rentabilidades (“swap”) etc. Assim, o hedge não é um instituto jurídico que se contrapõe à outro, como “swap” (cuja natureza comentar-se-á abaixo). Na verdade, é uma função, um objetivo econômico que, no mercado de derivativos, contrapõe-se à finalidade especulativa e à arbitragem.6

Portanto, por hedge pode-se entender uma operação cuja finalidade econômica é a proteção contra a oscilação de preço. Demais disso, a operação de hedge não constitui tão-somente uma operação realizada no mercado futuro, no mercado de opções etc. Há a necessidade que essa operação seja realizada para cobrir o risco suscetível de ser corrido no mercado à vista7. Para ilustrar como tal finalidade é alcançada, verifique-se o seguinte exemplo: “Suponhamos um fazendeiro que esteja, em agosto de 1973, e tenha condições de planejar a estrutura de preços da sua safra a ser plantada ainda no curso desse mesmo ano, para colher em março/abril de 1974. Verificando as cotações, esse fazendeiro conclui que os preços atuais pelos quais estão sendo negociados os contratos para entrega da mercadoria, em diferentes meses de 1974, são bastante interessantes. Ele toma então, em agosto de 1973, a decisão de vender um contrato para vencimento em julho de 1974, ao preço de 9 dólares e 3 centavos por 27,22 quilos (1 bushel). Chegando o mês de abril de 1974, o fazendeiro está em condições de vender sua colheita, mas os preços no mercado disponível estão bem mais baixos: digamos, a 5 dólares e 50 centavos pelos mesmos 27,22 quilos. Vendendo a mercadoria no mercado a vista, o fazendeiro obtém esse preço, mas liquidando a sua posição no mercado futuro ele obtém um ganho (diferença entre o preço pelo qual vendeu - 9 dólares e 3 centavos - e o preço pelo qual comprou um contrato para saldar seu compromisso anterior de venda: 5 dólares e 89 centavos). O lucro obtido no contrato futuro compensa a queda nas cotações da mercadoria no mercado a vista, permitindo assim que o preço final obtido seja mais ou menos igual às cotações na época em que o fazendeiro vendeu no mercado futuro. A esta operação conjunta, que objetiva salvaguardar uma posição de risco por outra equivalente, mas de sentido contrário, chama-se hedging (que significa proteger).”8

No que diz respeito à disciplina normativa, o hedge foi regulado, no setor do mercado exterior, pela Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 272, de 17 de dezembro de 1973. Esse ato foi expressamente revogado pela Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 2.012, de 30 de julho de 1993, que passou, então, a regular a matéria.

Outra forma de realizar hedge é por intermédio de uma operação de “swap”, e que por ser expressamente mencionada no art. 5º da Lei nº 9.779/99, merece ser analisada.

Com efeito, segundo Rachel Sztajn, “define-se swap como o contrato pelo qual as partes ajustam a permuta de fluxos de caixa futuros, de acordo com a fórmula predeterminada9. Assim, por intermédio de uma operação de “swap”, pode-se “hedgear”, na terminologia utilizada pelo mercado, uma posição, minimizando riscos de uma oscilação de preços. Essa estratégia é utilizada, por exemplo, para resguardar empresas, que possuam débitos em moeda estrangeira, do risco de uma brutal variação cambial. São contratos negociados no mercado de balcão, regulados, atualmente, pela Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 2.68810, de 26 de janeiro de 2000; ou, também, na Bolsa de Mercadoria e Futuros (negociado sob a denominação de Contrato a Termo de Troca de Rentabilidades)11.

Portanto, com a troca dos resultados financeiros, decorrente da aplicação de taxas diferentes - por exemplo, troca-se a variação cambial por taxa ANBID - sobre um determinado valor - o valor da dívida -, a empresa poderá minimizar o risco de uma desvalorização cambial.

De acordo com essa delimitação do conceito de hedge, e segundo a teoria econômica, não existirá ganho nem perda. Todavia, esclarece John Hull que, na prática, o hedge não é tão eficaz assim, podendo gerar um ganho ou uma perda, por uma série de fatores, como não se conseguir exata identidade do ativo cuja oscilação de preço pretende-se ver minimizada através dessa operação de hedge e do contrato futuro; incerteza quanto a data da compra ou venda do ativo etc.12 Contudo, a verificação desse ganho ou perda dependerá de um confronto da operação realizada no mercado à vista com a resultante do instrumento utilizado para o hedge.

No que diz respeito ao tratamento tributário, especialmente no que se refere ao Imposto sobre a Renda, a operação de hedge não possuía expressa regulamentação na legislação tributária até 1995, quando a Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, em seu artigo 77, V, excluiu a incidência do Imposto de Renda na Fonte dos rendimentos ou ganhos líquidos originados em operações de cobertura (hedge), realizadas em bolsa de valores, de mercadoria e de futuros ou no mercado de balcão.

Com efeito, o legislador estabeleceu o conceito de hedge para fins tributários, conforme disposto no parágrafo 1º do mencionado artigo 77, in verbis: “§ 1º. Para efeito do disposto no inciso V, consideram-se de cobertura (hedge) as operações destinadas, exclusivamente, à proteção contra riscos inerentes às oscilações de preço ou de taxa, quando o objeto do contrato negociado: a) estiver relacionado com as atividades operacionais da pessoa jurídica; b) destinar-se à proteção de direitos ou obrigações da pessoa jurídica.”

Ainda, o § 2º do mesmo dispositivo confere competência ao Poder Executivo para definir requisitos adicionais para a caracterização das operações de hedge, bem como estabelecer procedimentos para registro e apuração dos ajustes diários. Por força do § 3º do artigo 77 da Lei nº 8.981/95, os rendimentos e ganhos líquidos obtidos nas operações de hedge deveriam ser computados para a apuração do lucro real e, então, tributados pelo Imposto de Renda.13

Verifica-se, contudo, que a legislação estabeleceu a incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte sobre as operações “swap”, à alíquota de 10%, consoante o disposto no artigo 74 da Lei nº 8.981/95. Afirma José Roberto Pisani que essas operações de “swap”, ao contrário das operações de hedge, foram equiparadas às demais aplicações financeiras de renda variável.14 Contudo, essa tributação não alcançava as operações de “swap” para fins de hedge, entendimento esse que, além de decorrer da interpretação sistemática da lei, foi adotado pela Administração Tributária (cfr. Nota Cosit nº 4, de 6 de janeiro de 1995)

Demais disso, a Secretaria da Receita Federal editou a Instrução Normativa nº 72, de 10 de setembro de 1997 para regulamentar as disposições atinentes à exclusão da incidência do Imposto de Renda na Fonte das operações de hedge, inclusive as de “swap” para esse fim (cfr. art. 19 da mencionada Instrução Normativa). Com advento da Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997, as operações de “swap” passaram a ser tributadas à mesma alíquota das aplicações financeiras de renda fixa, “ex vi” do artigo 36 do referido diploma legal. Em decorrência, a Secretaria da Receita Federal editou a Instrução Normativa nº 96, de 26 de dezembro de 1997, para regular essa alteração, mas não alterou as disposições da Instrução Normativa nº 72/97 atinente às operações de “swap” para fins de hedge.15

Em 29 de dezembro de 1998, contudo, o Presidente da República editou a Medida Provisória nº 1.788, cujo artigo 5º era do seguinte teor: “Art. 5º. Os rendimentos auferidos em qualquer aplicação ou operação financeira de renda fixa ou de renda variável sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte, mesmo no caso das operações de cobertura (hedge), realizadas por meio de operações de swap e outras, nos mercados de derivativos. Parágrafo único. A retenção na fonte de que trata este artigo não se aplica no caso de beneficiário referido no inciso I do artigo 77 da Lei nº 8.981, de 1995.”

A referida Medida Provisória foi convertida na Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999, cujo artigo 5º passou a vigorar com o seguinte teor: “Art. 5º. Os rendimentos auferidos em qualquer aplicação ou operação financeira de renda fixa ou de renda variável sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte, mesmo no caso das operações de cobertura (hedge), realizadas por meio de operações de swap e outras, nos mercados de derivativos. Parágrafo único. A retenção na fonte de que trata este artigo não se aplica no caso de beneficiário no inciso I do artigo 77 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, com redação dada pela Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995.”

Com a edição da Medida Provisória nº 1.778/98, a Secretaria da Receita Federal baixou o Ato Declaratório nº 2, de 6 de janeiro de 1999, firmando o entendimento que a incidência do imposto retido na fonte, sobre os rendimentos auferidos nas liquidações das operações de “swap” para fins de hedge, alcançaria, inclusive, as operações contratadas anteriormente a 1º de janeiro de 1999.

Demais disso, esse novo regime tributário foi regulamentado pelo art. 770 do RIR/99 e pela Instrução Normativa 123/99.

Da análise da evolução legislativa, percebe-se que a Lei nº 9.065/95 não alterou o artigo 77 da Lei nº 8.981/95, seu inciso V ou seu parágrafo primeiro e tampouco o revogou expressamente. Portanto, há uma antinomia aparente de normas, que poderá ser afastada, talvez, pela aplicação do princípio geral que determina que a lei posterior revoga a lei anterior.

Todavia, há necessidade de se verificar se a Lei nº 9.779/99 foi validamente promulgada, tanto do ponto de vista formal, isto é, se foi eleito o instrumento adequado para realizar essa alteração, como do ponto de vista material; vale dizer, se a matéria disciplinada não afrontou disposição hierarquicamente superior. Num caso, a inobservância acarretaria inconstitucionalidade formal, noutro, material. Mas em nenhum desses casos, do ponto de vista teórico, a Lei seria válida.

De fato, a doutrina tem suscitado algumas inconstitucionalidades, cujo debate, inclusive, foi levado ao Poder Judiciário. Assim, passa-se à sistematização e análise de algumas dessas questões.

III. O Ato Declaratório SRF nº 02/99 e os Princípios da Legalidade, Retroatividade

Uma das primeiras questões levantadas diz respeito ao Ato Declaratório da Secretaria da Receita Federal nº 02/99.

Com efeito, o Ato Declaratório SRF 02/99, como acima mencionado, firmou o entendimento da Administração Tributária no sentido de que “a incidência do imposto na fonte de que trata o art. 5º da Medida Provisória nº 1.788, de 29 de dezembro de 1998, aplica-se aos rendimentos auferidos nas liquidações de operações de swap, utilizadas como cobertura (hedge), ocorridas a partir de 1º de janeiro de 1999, ainda que a operação tenha sido contratada em data anterior.”

A referida Medida Provisória entrou em vigor na data de sua publicação, isto é, 30 de dezembro de 1998.

Duas são as teses contrárias a esse Ato Declaratório: (i) a primeira, que pretende impugná-lo por ilegalidade, uma vez que o Secretário da Receita Federal foi além do que estabeleceu a Lei, ao dizer que o Imposto da Renda na Fonte incidiria também em operações de “swap” para fins de hedge que tenham sido contratadas antes da edição da Medida Provisória; e (ii) a segunda, que ataca o ato por violação ao princípio da irretroatividade da lei tributária.

De acordo com Renato Lopes Becho, o Ato Declaratório nº 002/99 é ilegal, porquanto (i) o Secretário da Receita Federal não possui competência para editar atos administrativos que veiculem normas que projetem conseqüências diretas aos contribuintes, sendo certo que os únicos destinatários possíveis são os servidores públicos lotados na Secretaria da Receita Federal; e (ii) o conteúdo material do mencionado Ato Declaratório não poderia ser veiculado por decreto presidencial, porque não constitui disposição necessária à execução da lei, mas sim, estabelece prescrição que a Lei (Medida Provisória) não o faz.

Demais disso, o Ato Declaratório tem verdadeira natureza de Instrução Normativa, pois prescreve um comando geral, ao invés de certificar a existência de uma situação de fato ou relação jurídica.16

Com efeito, a questão a ser enfrentada consiste em saber se, ao estabelecer que o Imposto de Renda na Fonte incidirá, a partir de 1º de janeiro de 1999, sobre as operações de “swap” para fins de hedge, ainda que as operações tenham sido contratadas anteriormente, o Secretário da Receita Federal alterou o aspecto temporal da regra-matriz de incidência do Imposto de Renda na Fonte sobre operações de “swap” para fins de hedge, tal como descrita na Medida Provisória nº 1.788/98, convertida na Lei nº 9.779/99.

A resposta parece ser positiva e, portanto, ilegal o mencionado Ato Declaratório sob esse aspecto. Ora, não há, nem na Medida Provisória nº 1.778/98 nem na Lei nº 9.779/99, qualquer dispositivo que autorize o entendimento de que as operações de hedge contratadas antes da vigência da mencionada Medida Provisória, mas com liquidação já sob a sua vigência, seriam tributadas pelo Imposto de Renda na Fonte.

A mencionada Medida Provisória, convertida na Lei nº 9.779/99, descreveu de forma exauriente a regra-matriz de incidência tributária e, caso assim não o tivesse feito, padeceria de vício de inconstitucionalidade, porquanto a imposição tributária somente pode ser estabelecida, em todos os seus aspectos, por lei (princípio da legalidade),17 por uma questão de segurança jurídica18.

Ora, o Ato Declaratório nº 002/99, ao estabelecer que o Imposto de Renda na Fonte também deve incidir sobre as operações de hedge contratadas antes de 1º de janeiro de 1999, descreveu o aspecto temporal da hipótese de incidência de forma contrária à lei. Portanto, a tese da violação do princípio da legalidade, colocada nesses termos, pode ser sustentada.

Questiona-se, ainda, se o Ato Declaratório nº 002/99 viola o princípio da irretroatividade da lei tributária.

Com efeito, estabelece o artigo 150, III, “a”, da Constituição Federal, que é vedado à União “cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”.

Nesse sentido, a legislação tributária não poderá instituir um tributo com relação a um fato ocorrido antes do início de sua vigência. No caso em exame, o aspecto temporal da regra-matriz de incidência é a liquidação da operação de hedge, ou de swap para esse fim.

Assim, verifica-se que o Ato Declaratório nº 002/99 pretendeu fazer incidir a norma jurídico-tributária na liquidação das operações de “swap”, ainda que contratadas antes de 1º de janeiro de 1999, isto é, antes da vigência da Lei nº 9.779/99. Esta pretensão da administração tributária é constitucional, ou afronta o princípio da irretroatividade da lei tributária?

José Roberto Pisani entende que o Ato Declaratório nº 002/99, “além de não ter respaldo legal, possui nítido caráter retroativo, pois pretende colher uma situação consolidada à luz da legislação anterior. Com efeito; as operações de swap para fins de hedge, realizadas antes da edição das normas acima indicadas (MP nº 1.788/98 e Lei nº 9.779/99), não seriam passíveis de incidência do IRF, por expressa disposição legal, como já mencionado. Assim ao pretender tributar situações já consolidadas antes de sua publicação, esse Ato Declaratório ofendeu o princípio da irretroatividade das leis fiscais, insculpido no artigo 150, inciso III, alínea a, da Constituição Federal”.19

No mesmo sentido, entendendo que o Ato Declaratório viola o princípio da irretroatividade, ferindo ato jurídico perfeito e direito adquirido, Renato Lopes Becho: “Dentro da idéia de ato jurídico perfeito, encontramos proteção para aqueles que celebraram contratos com todas as observâncias da legislação então em vigor (por exemplo, contrato de hedge cambial). Por outro giro verbal, é dizer: quem celebrou um contrato segundo as leis que nesse dia vigiam, passa a ter proteção constitucional de que essas leis não sofrerão mudanças. Se mudarem, contudo, seus contratos estarão a salvo das novas regras. (...) Transpostas essas premissas para uma sociedade evoluída no campo tributário, passamos a ter o princípio da irretroatividade da lei tributária, versada no já citado artigo 150, como proibição aos entes públicos para: “ II - cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”. Esse inciso II, a, trouxe a irretroatividade da lei para o campo tributário. Se superasse a quebra da legalidade (se se permitisse que outro órgão público emitisse comandos abstratos e genéricos, de observância para toda sociedade), outra lesão surgiria, a da violação à irretroatividade da lei.”20

Sob esse prisma, sendo o contrato de hedge um ato jurídico perfeito, o contribuinte tem o direito adquirido de ser tributado pelo regime vigente à época da celebração, válida, do mencionado negócio jurídico.

Por outro lado, é possível responder à pergunta formulada a partir da distinção dos fatos geradores, no que se refere à sua ocorrência temporal, em (a) instantâneos, sendo aqueles “que se verificam e esgotam numa específica unidade de tempo e, a cada ocorrência, dão origem a uma obrigação tributária autônoma”; (b) continuados, que são “constituídos por uma situação permanente cuja continuidade, dentro da unidade temporal definida em lei, não origina novas obrigações tributárias”; e (c) complexivos, “cujo processo de formação se completa após o transcurso de unidades sucessivas de tempo”.21

A hipótese “sub examine” refere-se ao Imposto de Renda na Fonte e Sampaio Dória, ao tratar da natureza do fato gerador desse imposto segundo a classificação acima exposta, manifestou-se no sentido de que o fato gerador, muito embora se apresente como instantâneo, possui processo de formação complexivo, verbis: “No entanto, se pesquisarmos mais a fundo a natureza do fato gerador do imposto de renda na fonte, verificaremos que, embora seja ele preponderantemente instantâneo, o processo de sua formação é complexivo, pois a percepção do rendimento, que se registra especificamente numa unidade de tempo, pressupõe, não raro, todo um processo anterior, desenvolvido ao curso de período mais ou menos longo, durante o qual se cristalizaram as condições jurídicas ou econômicas que possibilitaram a ocorrência ulterior do fato gerador - a mencionada percepção de renda. (...) Ora, diante desse quadro, pode-se muito bem definir o fato gerador do imposto de renda na fonte como instantâneo-complexivo, instantâneo na ocorrência e complexivo na formação. Sendo a ocorrência do fato gerador, e não a natureza do processo de sua formação, o elemento decisivo na fixação da obrigação tributária e, portanto, da correspondente legislação pertinente, é de se concluir que lei aplicável à cobrança do imposto de renda na fonte é a vigente no momento da percepção do rendimento tributável, e não aquela ou aquelas vigentes no estágio de sua formação.”22

Dessa forma, segundo essa corrente, a legislação tributária aplicável seria a da percepção do rendimento oriundo da operação de hedge, mesmo que a legislação vigente na época da celebração do contrato era outra.

A jurisprudência tem se manifestado, ainda que não definitivamente, no sentido de reconhecer a violação do princípio da irretroatividade da lei tributária, da segurança e certeza jurídica.23

Entendemos ser possível sustentar a tese segundo a qual o Ato Declaratório nº 002/99 viola o princípio da irretroatividade da lei tributária e da segurança jurídica. Com efeito, a situação de operações de hedge contratadas antes de 1º de janeiro de 1999 e, portanto, sob a regência da Lei nº 8.981/95, mas que seriam liquidadas após essa data, vale dizer, supostamente sob a vigência da Lei nº 9.779/99, parece subsumir-se ao conceito de retroatividade de 2º grau, na terminologia de Alberto Xavier24. Dessa forma, a regra tributária, inclusive que informará o lançamento, deve ser a vigente quando da celebração das operações de hedge, prevalecendo, portanto, a não-incidência.

IV. Hedge e o Conceito de Renda

Outra concepção sobre o assunto que tem sido defendida pela doutrina e discutida no Poder Judiciário é que os resultados obtidos nas operações de hedge não têm natureza jurídica de renda. É o que afirma, por exemplo, José Roberto Pisani, verbis: “A primeira das impropriedades contidas na tributação pelo IRF das operações de hedge, assim como das operações de swap para fins de hedge, está relacionada à violação ao conceito de renda, previsto no artigo 43 do Código Tributário Nacional.”25

Com efeito, o artigo 153, III, da Constituição Federal prescreve: “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: (...) III - renda e proventos de qualquer natureza.” Portanto, o fato gerador do Imposto de Renda somente pode ser “obter renda”, ou na dicção do artigo 43 do Código Tributário Nacional, a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou de proventos de qualquer natureza.

De fato, muito embora o Código Tributário Nacional, em seu artigo 43, I, defina renda, é de extrema importância que o intérprete procure o seu conceito constitucional, para que não tenha que interpretar a Constituição através de uma lei e, assim, incorrer em grave erro metodológico, porquanto é o conceito constitucional de renda que deve ser considerado para verificar a competência tributária. Em verdade, a dicção do artigo 43, I do Código Tributário Nacional deve se adequar ao conceito constitucional de renda.26

Pode-se adotar, para a Constituição de 1988, o mesmo conceito constitucional de renda de Amílcar de Araújo Falcão que, segundo observa Sacha Calmon Navarro Coêlho, é “o aumento ou incremento de patrimônio decorrente do emprego do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, expresso em dinheiro ou nele determinável, e apurável em um momento ou um período de tempo”.27

Portanto, a renda, para fins tributários, é um conceito de relação entre o mesmo patrimônio num momento anterior e noutro posterior. É a diferença positiva quantificada nesse período, desde que resultante do emprego do capital, trabalho ou combinação de ambos.

As operações de hedge, por si só, não podem representar um acréscimo patrimonial, pois um eventual ganho nesse tipo de operação pode ser compensado por uma perda verificada numa operação realizada no mercado à vista. É essa, efetivamente, a função do hedge, proteger o ativo de oscilações de preço e taxas.

Ora, numa operação isolada no mercado futuro, ou de “swap”, para fins de hedge, não é possível verificar o acréscimo patrimonial, porquanto o ganho ou a perda somente poderá ser quantificados com o ajuste do preço do ativo (ou da dívida) no mercado à vista. Logo, não há, necessariamente, renda a ser tributada.

Nesse sentido, José Roberto Pisani esclarece: “22. Como anteriormente, afirmado, uma operação de swap para fins de hedge, pode ser feita por uma empresa brasileira com determinada obrigação em moeda estrangeira, que pretenda não correr os riscos da desvalorização da moeda nacional. Nessa hipótese, a empresa, titular de aplicação financeira destinada ao pagamento da sua obrigação, faz o swap de tal aplicação, por outra referenciada na moeda da sua obrigação. Quando do vencimento da sua aplicação, se houver ganho na operação de swap, este será compensado com o aumento do valor pago no cumprimento da obrigação. Se houver perda na operação de swap, haverá um ganho com a diminuição do valor a ser pago na obrigação em moeda estrangeira. 23. Há, assim, a assunção de posições absolutamente idênticas, mas em sentido contrário e que se anulam, para que a empresa não seja penalizada pela alteração na taxa de câmbio. A conseqüência disso é que se a empresa ‘ganha’ de um lado, ‘perde’ de outro. Não há qualquer renda. Por esse motivo, pretender tributar na fonte as operações de hedge, ou de swap para fins de hedge, constitui delírio da lei e violação ao artigo 43 do Código Tributário Nacional.”28

Essa é a orientação que vem sendo adotada pelos tribunais, conforme se verifica das ementas seguintes:

“Ementa. Processual Civil e Tributário. Mandado de Segurança. Operação de Hedge. Imposto de Renda. I - Pelos documentos acostados aos autos, trata-se de operação de Hedge e, sendo assim, a exigência do imposto de renda caracteriza violação do art. 153, III, da Constituição Federal e artigo 43, incisos I e II, do CTN, ao definir a operação de cobertura como aquela que objetiva proteger a variação de valor de determinada obrigação. A própria lei fiscal (artigo 77, da Lei nº 8.991/95) reconhece e admite que a operação em questão é insuscetível de produzir acréscimo ou decréscimo patrimonial, porque o seu rendimento é da mesma magnitude da valoração da obrigação acobertada; II - A exigência do IRF caracteriza tributação, não da renda, mas do patrimônio, com feição de empréstimo compulsório; III - Precedente nesta E. Corte, 4ª Turma, Rel. Des. Fed. Rogério Vieira de Carvalho, Agravo de Instrumento nº 99.02.09995-5, por unanimidade; IV - Recurso provido.” (TRF 2ª Região, 5ª Turma, AI 43537 (Proc. 1999.02.01.036016-8) - RJ, rel. Des. Fed. Tanyra Vargas de Almeida Magalhães, v.u., j. 9.5.2000, DJU 2 de 6.7.2000, p. 251)

Ementa. Processo Civil e Tributário. Agravo Regimental. Mandado de Segurança. Medida Liminar. Operação de Hedge. Imposto de Renda. Maduro o agravo de instrumento, para julgamento, vez que o agravo regimental esgota toda a controvérsia em torno do direito postulado no recurso, atende à economia processual o julgamento do agravo de instrumento, com prejuízo do agravo regimental. Medida liminar em mandado de segurança constitui ato vinculado do juiz e, correspectivamente, direito subjetivo da parte, em se achando presentes seus pressupostos, e, por isto, independentemente de ser teratológica, sujeita ao reexame na instância recursal. Impugnada no “mandamus” a exigibilidade do imposto de renda na fonte sobre rendimentos de “swap”, é intuitiva a presença de um dos pressupostos da medida liminar, consistente na ineficácia da segurança, que venha a ser concedida, se não deferida a medida liminar. Induvidosa a existência fática de que a exigibilidade do imposto de renda na fonte impugnada está a incidir sobre rendimento de operação de cobertura (Hedge), verossímil a alegação de que tal fato (operação de cobertura - hedge) não constitui espécie de fato gerador da obrigação de pagar imposto de renda, vez que o rendimento, assim pactuado, não tem natureza de rendimento, acréscimo patrimonial, mas, sim, de indenização. Agravo de instrumento provido, prejudicado o agravo regimental.” (TRF 2ª Região, 4ª Turma, AI 36533 (Proc. 99.02.09995-5) - RJ, rel. Des. Fed. Rogério Carvalho, v.u., j. 06.10.1999, DJU 2 de 31.08.2000, fls. 450/466.)

Pode-se entender, contudo, que a operação de hedge é uma aplicação financeira como outra qualquer e da qual resulta, por si só, rendimentos tributáveis, porque se subsumem ao conceito de renda.

Todavia, essa posição é de difícil defesa, pois viola a própria natureza da operação de hedge, uma vez que essa consiste numa operação de cobertura destinada, exclusivamente, à proteção contra riscos inerentes às oscilações de preço ou de taxa, “ex vi” do art. 77 da Lei nº 8.981/95.

Logo, parece-nos consistente a tese segundo a qual a tributação das operações de hedge pelo Imposto de Renda na Fonte é inconstitucional por violar o conceito constitucional de renda, inscrito no artigo 153, III da Constituição Federal, uma vez que somente com a operação realizada para fins de hedge é impossível verificar um acréscimo patrimonial.

V. Hedge e a Regra-Matriz de Incidência

Roberto Quiroga Mosquera, ao tratar do artigo 5º da Lei nº 9.777/99 sustenta a tese de violação do princípio da legalidade, porém com outro fundamento.

O referido autor afirma que o legislador pretendeu tributar, pelo Imposto de Renda na Fonte, “os rendimentos oriundos das aplicações ou operações financeiras de renda fixa ou de renda variável, mesmo no caso das operações de cobertura (hedge), realizadas por meio de swap e outras, no mercado de derivativos”.

Contudo, o legislador não teria descrito a forma de tributação das operações de Hedge, tampouco a sua regra-matriz de incidência tributária, verbis: “Ocorre que, como já tivemos oportunidade de verificar nos itens anteriores deste estudo, o artigo 5º não estabeleceu uma tributação dessas operações (hedge) por equiparação; isto é, o referido dispositivo normativo não determina que se apliquem às operações de hedge as mesmas normas aplicáveis às aplicações financeiras de renda fixa. O artigo aludido apenas prescreve que todo e qualquer rendimento auferido em aplicação ou operação financeira de renda fixa, fica sujeito ao imposto de renda na fonte. Porém, pergunta-se: qual a tributação na fonte? A mesma das aplicações financeiras de renda fixa ou das aplicações de renda variável? Qual a alíquota e base de cálculo desse imposto? Há responsável tributário? Como se vê, o artigo respectivo nada criou e, tampouco, equiparou a tributação das operações de hedge a qualquer outra espécie de tributação. Tal ‘esquecimento’ do legislador tributário fere frontalmente o princípio da legalidade tributária, insculpido no artigo 150 do Texto Constitucional de 1988. Portanto, é nosso entendimento que enquanto a legislação tributária, por intermédio de lei ordinária competente, não estabelecer a regra-matriz de incidência tributária por completo, impossível será exigir o imposto sobre a renda na fonte sobre ganhos auferidos em operações de hedge.”29

O fundamento dessa posição parece residir na distinção que o autor faz entre aplicação financeira, operação financeira e operação de hedge. A regra-matriz de incidência tributária das aplicações financeiras30 foi inteiramente descrita por lei, mas não a das operações financeiras e das operações de hedge. Portanto, segundo Roberto Quiroga, por falta de descrição da regra-matriz de incidência ou de qualquer equiparação, o artigo 5º da Lei nº 9.779/99 é inconstitucional, por violar o princípio da legalidade tributária.

Contra essa tese pode-se argumentar que as operações de hedge são realizadas por diversas formas, no mercado futuro, de opções, a termo etc. Em verdade, o que qualifica uma operação como hedge é a destinação, a finalidade, “ex vi” art. 77, § 1º, da Lei nº 8.981/95. Portanto, o que deve ser analisado é o negócio jurídico utilizado para a finalidade de hedge.

Nesse prisma, se o negócio jurídico celebrado para fins de hedge for um contrato futuro (por exemplo, compra de contrato futuro de café arábico), então pode-se entender que, sobre o ganho líquido dessa “operação de hedge”, deverá incidir o Imposto de Renda na Fonte, à alíquota de 15% (Lei nº 9.959/00, art. 6º, parágrafo único). De outra parte, na hipótese de ter se contratado uma opção de compra para realizar hedge de um ativo, a tributação deverá observar as normas aplicáveis a essa operação.

Assim, pode-se argumentar que o artigo 5º da Lei nº 9.779/99 teria revogado tacitamente o artigo 77, V, da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, que exclui da incidência do Imposto de Renda na Fonte o ganho líquido das operações de hedge realizadas em bolsa de valores, de mercadorias e de futuros, ou no mercado de balcão. Ora, o artigo 5º da Lei nº 9.779/99 regulou de forma diversa a matéria, prescrevendo que sobre as mencionadas operações incide o Imposto de Renda na Fonte. Logo, a lei tributária tratou da mesma forma todas as operações realizadas em bolsa de valores, mercado de derivativos ou de balcão, não fazendo qualquer distinção, para efeitos fiscais, quanto à finalidade.

Observa-se, portanto, que tanto o argumento de Roberto Quiroga como o possível contra-argumento são muito fortes. Ao que tudo indica, essa controvérsia não foi decidida pelos tribunais.

Abstraindo as demais hipóteses de inconstitucionalidade mencionadas no presente estudo, entendemos, data venia, que o artigo 77, inciso V, da Lei nº 8.981/95 foi revogado tacitamente pelo artigo 5º da Lei nº 9.779/99, porquanto esses dois dispositivos veiculam normas contraditórias e que, pelo princípio da lex posteriori derrogat priori, deve prevalecer a norma posterior que regulou a matéria.

Assim, as operações realizadas em bolsa de valores, de mercadorias e de futuros ou no mercado de balcão, quer tenham ou não finalidade de hedge, são tributadas pelo Imposto de Renda na Fonte. Ressalte-se, todavia, que entendemos que a tributação pelo Imposto de Renda na Fonte das operações de hedge é inconstitucional, por constituir tributação de patrimônio e não de renda, tal como exposto acima.

VI. Conclusão

Em suma, das considerações a respeito das questões atinentes à tributação das operações de hedge pelo Imposto de Renda na Fonte, tratadas pela doutrina e jurisprudência, pode-se concluir que:

a) não há uma figura contratual com características próprias que identifiquem o hedge ou “hedging”. Na verdade, como afirma Oscar Barreto Filho, “o que existe, no hedging, é mera interdependência factual, de natureza econômica, entre contatos equivalentes e opostos, concluídos com pessoas diversas e que visem a compensar seus efeitos reciprocamente. Os dois contratos são completos e autônomos, e independem um do outro para sua existência e validade intrínseca.”;31

b) para fins tributários, hedge foi conceituado pela Lei nº 8.981/95, artigo 77, parágrafo 1º, como as operações destinadas, exclusivamente, à proteção contra riscos inerentes às oscilações de preço ou taxa, quando o objeto do contrato negociado: (i) estiver relacionado com as atividades operacionais da pessoa jurídica; e (ii) destinar-se à proteção de direitos ou obrigações da pessoa jurídica;

c) os ganhos líquidos apurados nas operações de hedge eram computados para a apuração do lucro real, “ex vi” do § 3º do artigo 77 da Lei nº 8.981/95. Essa sistemática foi alterada pela Medida Provisória nº 1.788/98, convertida na Lei nº 9.779/99, que sujeitou os rendimentos auferidos nas operações de hedge à tributação pelo Imposto de Renda na Fonte;

d) o Ato Declaratório nº 002/99, que firmou o entendimento do Secretário da Receita Federal no sentido de incidir o Imposto de Renda na Fonte sobre as operações de hedge liquidadas a partir de 1º de janeiro de 1999, mesmo quando contratadas anteriormente, fere o princípio da legalidade, da irretroatividade da lei tributária e da segurança e certeza jurídica;

e) a tributação pelo Imposto de Renda na Fonte das operações de hedge é inconstitucional, pois constitui incide sobre o patrimônio e, portanto, viola o conceito de renda;

f) o artigo 5º da Lei nº 9.779/99 não violou o princípio da legalidade ao não descrever a tributação das operações de hedge, pois essa tributação deve observar as normas aplicáveis ao negócio jurídico celebrado com a finalidade hedge. Assim, a finalidade de hedge tornou-se irrelevante, para efeitos tributários. Contudo, isso não implica dizer que o mencionado artigo é constitucional, pois a tributação das operações de hedge pelo Imposto de Renda na Fonte afronta o conceito constitucional de renda.

Essas são nossas observações sobre as questões tratadas pela doutrina e jurisprudência a respeito da tributação das operações de hedge pelo Imposto de Renda na Fonte.

1 Instituições de Direito Civil, vol. III. 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 389.

2 Curso de Direito Civil Brasileiro, 3º vol. 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 449.

3 Contratos Mercantis. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 1998, p. 271.

4 “A atividade de hedging consiste basicamente na proteção, na salvaguarda de uma determinada posição de risco.” Eizirik, Nelson. Aspectos Jurídicos dos Mercados Futuros. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro nº 81, p. 23.

5 O conceito econômico de hedge é finalístico, vale dizer, estabelece que as operações de hedge tem por finalidade a cobertura contra os riscos de oscilação de preço. Esse objetivo, não obstante, sempre foi considerado pelos juristas no estudo dos aspectos jurídicos das operações de hedge. Carvalho de Mendonça, ao tratar das operações a termo, muito embora não se referir expressamente sobre hedge, mencionava esse objetivo: “Não se pode affirmar em these serem as operações de bolsa actos sempre de especulação, no sentido geral desta palavra. Diz-se ordinariamente que as operações à vista são negócios serios e que as a termo não passam de negocios de especulação. Há exagero nesse conceito, aliás geralmente espalhado. Nas operações à vista, a especulação intromette-se livremente não poucas vezes, exemplo, se o operador compra títulos, recebendo e pagando immediatamente, com o fim de revender, ou se vende com a intenção de recomprar na baixa. Nesse caso, o operador sae do dominio tranquillo da collocação de capitaes, para entrar no da especulação. As operações a termo servem muitas vezes para dar sahida a titulos ou a mercadorias, que não acha­riam immediatamente compradores promptos a pagar, ou para o operador munir-se adeantadamente de titulos, ou mercadorias de que terá necessidade pouco temoo depois. Negociar a termo equivale, assim, a constituir uma especie de seguro contra as oscillações dos preços; o comprador garante-se contra a alta, o vendedor segura-se contra a baixa.” Tratado de Direito Commercial Brazileiro, vol. VI, parte III. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1928, p. 376.

6 Ao se afirmar que o hedge ou hedging é um contrato, parece que se está identificando a função econômica com os contratos futuros ou a termo. Essa identificação, data venia, não nos parece correta. Não há uma natureza jurídica de hedge, mas, ao se realizar uma operação de hedge, deve-se investigar a natureza do negócio jurídico realizado para alcançar essa finalidade.

7 Nesse sentido, Rachel Sztajn: “Hedge pode ser encarado como a participação em mercado futuro para evitar ou reduzir a exposição ao risco no mercado à vista. Isso implica celebrar contrato futuro como substituto temporário de uma operação à vista similar.” Futuros e Swaps - Uma visão jurídica. São Paulo: Cultural Paulista, 1999, p. 189.

8 Spínola, Noênio D. Commodities, o Preço do Futuro. s.I. IBMEC, 1974, apud Bulgarelli, Waldírio, op. cit., p. 270.

9 Op. cit., p. 215.

10 Consoante o disposto no parágrafo 1º do artigo 1º da mencionada Resolução, “são definidas como operações de swap aquelas consistentes na troca dos resultados financeiros decorrentes da aplicação de taxas ou índices sobre ativos ou passivos utilizados como referenciais”.

11 Na BM&F, o contrato de swap é padronizado, sujeitando-se ao depósito de margem e outras garantias.

12 Introdução aos Mercados Futuros e de Opções. São Paulo: BM&F, 2000, p. 94.

13 Assim como as perdas verificadas com as operações de hedge também poderiam ser deduzidas do lucro tributável. Nesse sentido, TRF da 3ª Região, REO 39827, rela. Juíza Lúcia Valle Figueiredo, DJU 20.09.1993, v.u., verbis: “Tributário. Operações de Hedging - Imposto de Renda - Prejuízo - Dedução - Decreto-lei nº 2.182/84. I - São Dedutíveis do Lucro Tributável pelo Imposto de Renda os Prejuízos Resultantes de Operações a Termo em Bolsa de Mercadorias - Hedging, a Teor do Disposto Decreto-lei no Art. 5, do Decreto-Lei nº 1.418/75. II - Inaplicabilidade da Regra do art. 4, do nº 2.182, de 11 de dezembro de 1984, em Balanços Apurados no Final do exercício da Publicação da Alteração (Violação Ao Princípio da Anterioridade, Parágrafo 29, do Art. 153, da C.F./69 e art. 104 do CTN). III - Sentença Confirmada. Remessa oficial Desprovida”.

14 Hedge: Alterações na Legislação Tributária in Rezende, Condocert (org). Estudos Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 327.

15 As mencionadas Instruções Normativas foram revogadas expressamente pela Instrução Normativa SRF nº 079, de 1 de agosto de 2000.

16 Mais uma Tentativa de Retroatividade da Lei Tributária, Revista Dialética de Direito Tributário nº 44, maio 1999, pp. 143/8.

17 No que diz respeito à interpretação do princípio da legalidade tributária, poder-se-ia questionar se é constitucional a exigência ou o aumento de tributo por medida provisória. Grande parte da doutrina já se manifestou no sentido de não ser possível, porquanto o art. 150, I da Constituição Federal refere-se à lei stricto sensu (Cfr. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, pp. 53/4). Entretanto, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido que a medida provisória, por ter força de lei, é instrumento idôneo para instituir e aumentar tributos. Cfr. RExt. 247.243-3/MG, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, v.u., j. 16.11.1999; RExt. 250.170/MG, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence; AGRAG 236976/MG, 2ª Turma, rel. Min. Néri da Silveira, v.u., j. 17.08.1999, DJU 24.09.1999, pag. 32. ement. vol. 01964-05, p. 1106.

18 “O princípio da legalidade tributária, nos quadros do Estado de Direito, é essencialmente um critério de realização da justiça; mas é, do mesmo passo, um critério da sua realização em termos seguros e certos. A idéia da segurança jurídica é, decerto bem mais vasta do que a de legalidade; mas posta em contato com esta não pode deixar de a modelar, de lhe imprimir um conteúdo, que há de necessariamente revelar o grau de segurança ou certeza do imposto, ou pelas concepções dominantes, ou pelas peculiaridades do setor a que respeita. Ora, o Direito Tributário é de todos os ramos do Direito aquele em que a segurança jurídica assume a sua maior intensidade possível e é por isso que nele o princípio da legalidade se configura como uma reserva absoluta de lei formal.” Xavier, Alberto. Legalidade e Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, pp. 43/4.

19 Op. cit., p. 334.

20 Op. cit., pp. 147/8.

21 Sampaio Dória, Antônio Roberto. Da Lei Tributária no Tempo. São Paulo, 1968, pp. 140/1.

22 Op. cit., p. 176.

23 TRF da 3ª Região, AI 1999.03.00.062670-8 100256 AG, 6ª T., rel. Des. Fed. Marli Ferreira, despacho Des. Fed. Andrade Martins (Turma de Férias), 04.01.2000, DJU 2 de 18.01.2000, pág. 589; TRF da 2ª Região, AI 37774 (Proc. 99.02.16860-4), despacho rel. Des. Fed. Ney Fonseca, 30.04.1999, DJU 2 de 25.5.199, p. 281.

24 “Na retroatividade de 2º grau (que uns designam por retroatividade ‘imperfeita’ ou ‘imprópria’) o fato também se verificou por inteiro ao abrigo da lei antiga, aproximando-se por isso da retroatividade de 1º grau. Mas desta se distingue porque os seus efeitos não se esgotaram por inteiro à sombra da lei velha, antes continuam a produzir-se no domínio temporal de aplicação da lei nova.” O Problema da Retroatividade das Leis sobre Imposto de Renda. Direito Tributário e Empresarial - Pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 68.

25 Op. cit., p. 329.

26 Cfr. Quiroga Mosquera, Roberto. Renda e Proventos de Qualquer Natureza: o Imposto e o Conceito Constitucional. São Paulo: Dialética, 1996, passim, especialmente, p. 40.

27 Navarro Coêlho, Sacha Calmon. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 45.

28 Op. cit., pp. 329/330.

29 Tributação no mercado financeiro e de capitais. 2ª ed. São Paulo: Dialética, 1999, pp. 233/4.

30 Entende o autor que aplicação financeira é aquela operação, de cunho financeiro, que esteja submetida ao regime jurídico próprio do mercado financeiro e de capitais. Cfr. op. cit., p. 184.

31 As operações a termo sobre mercadorias (hedging). Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro nº 29, p.14.