A Efetiva Aplicação de Imunidade de Livros, Jornais, Periódicos e Papel Destinado à sua Impressão

Alcides Jorge Costa

Professor Titular (aposentado) de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP. Sócio Fundador e Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário - IBDT. Professor do Curso de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em São Paulo.

 

 

1. Consulta

A Constituição Federal concede imunidade para livros, jornais, periódicos e papel destinado à sua impressão.

Na produção dos produtos utilizam-se matérias-primas, produtos secundá­rios e energia elétrica comprada de terceiros e que são sujeitos ao ICMS. Dada a imunidade, qual a situação dos créditos referentes aos insumos adquiridos, uma vez que a imunidade supõe a completa desoneração do produto imune?

 

2. A Imunidade Constitucional

2.1. A Constituição Federal estabelece uma série de imunidades, algumas relativas a todos os impostos federais, estaduais e municipais (artigo 150, VI, “d”), outras relativas a certos impostos (artigo 153, § 3º, III; artigo 153, § 2º, II; artigo 155, § 2º, X; artigo 156, § 2º, I). Qual o significado jurídico de imunidade tributária? Esta pergunta tem recebido respostas variadas.

2.2. Amílcar de Araújo Falcão (Fato Gerador da Obrigação Tributária, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1994, p. 64) diz que a imunidade “é uma forma qualificada ou especial de não-incidência, por supressão, na Constituição, da competência impositiva ou do poder de tributar, quando se configuram certos pressupostos, situações ou circunstâncias previstos pelo estatuto supremo”. E mais adiante, acrescenta que “a imunidade é, assim, uma forma de não-incidência pela supressão da competência impositiva para tributar certos fatos, situações ou pessoas, por disposição constitucional”. No mesmo sentido, Elizabeth Nazar Carrazza (“Imunidade Tributária das Instituições de Educação”, Revista de Direito Tributário nº 3, pp. 167-168); Edgard Neves da Silva (“Imunidade e Isenção”, Curso de Direito Tributário, obra coletiva, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 175) e Vittorio Cassone (Direito Tributário, Atlas, São Paulo, 1985, p. 161).

2.3. Esta doutrina sofreu crítica, a meu ver pertinente, de Paulo de Barros Carvalho (Curso de Direito Tributário, 4ª edição, Saraiva, São Paulo, 1991, p. 108). Só se suprime o que existe. Se a Constituição fixa as competências tributárias e, ao fazê-lo, estabelece as imunidades, estas nada suprimem, pois competências e imunidades nascem juntas e nem anterioridade lógica existe entre elas.

2.4. Para outros, a imunidade é uma hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada. É o caso de José Souto Maior Borges (Isenções Tributárias, 2ª edição, Sugestões Literárias, São Paulo, 1980, p. 181) que explica existirem “duas modalidades distintas pelas quais se manifesta o fenômeno denominado não-incidência: a) a não-incidência genérica ou pura e simples; e b) a não-incidência juridicamente qualificada ou especial; não-incidência por determinação constitucional, de lei ordinária ou complementar. A imunidade tributária inclui-se, pois, nesta segunda alternativa.” O mesmo autor acrescenta, ainda, que a regra de imunidade “deve ser conceituada como regra de exclusão ou restrição ou competência tributária e não apenas de proibição da incidência do preceito que tributa”. Perfilham esta doutrina Hugo de Brito Machado (Curso de Direito Tributário, Forense, Rio de Janeiro, 1991, pp. 197-198) e Antonio Lazarin (Introdução ao Direito Tributário, Atlas, São Paulo, 1984, p. 159). Ainda aqui, é de grande pertinência a crítica de Paulo de Barros Carvalho (op. cit., pp. 110-111). A norma deve sempre incidir. Norma que não incide não é norma jurídica. Como, pois, falar em norma de imunidade como norma de não-incidência?

2.5. Por fim, deve citar-se a corrente doutrinária que vê na imunidade uma limitação constitucional do poder de tributar. A ela pertencem Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1946, vol. II, 2ª edição, Max Limonad, São Paulo, 1953, p. 157), Ives Gandra Martins (Sistema Tributário na Constituição de 1988, 3ª edição, Saraiva, São Paulo, 1991, p. 152, nota 5), Gilberto de Ulhôa Canto (“Algumas Considerações sobre a Imunidade Tributária dos Entes Públicos”, Revista de Direito Administrativo, vol. 52, p. 34 e Temas de Direito Tributário, vol. III, Alba, Rio de Janeiro, s/d, p. 190) e Ormezindo Ribeiro de Paiva (Imunidade Tributária, Resenha Tributária, São Paulo, 1981, p. 7). A esta doutrina pode aplicar-se, mutatis mutandis, a crítica feita à doutrina que vê na imunidade uma forma qualificada ou especial de não-incidência. A limitação é imposta a algo preexistente. Se a Constituição determina as competências tributárias da União, dos Estados e dos Municípios e se, ao delimitá-las, estabelece as imunidades, está cuidando apenas desta delimitação e não da limitação de uma competência já existente.

2.6. Na verdade, a Constituição é uma limitação do poder seja uma autolimitação da soberania do Estado, seja como a especificação dos poderes que o povo confere ao Estado. Como diz Karl Loewenstein (Teoría de la Constitución, trad. espanhola, Ariel, Barcelona, 1964, p. 150) “a história do Constitucionalismo não é senão a busca pelo homem político das limitações ao poder absoluto exercido pelos detentores do poder, assim como o esforço de estabelecer uma justificação espiritual, moral ou ética da autoridade, em lugar da submissão cega à faticidade da autoridade existente”. E mais adiante (p. 151): “Em um sentido ontológico, dever-se-á considerar como o ‘telos’ de toda Constituição a criação de instituições para limitar e controlar o poder político.”

2.7. Assim, no campo tributário, quando a Constituição determina que a União pode cobrar os impostos especificados e outros que só podem ser instituídos nos termos do artigo 154, e quando determina que Estados e Municípios podem cobrar estes ou aqueles impostos, está fixando os limites da atuação estatal no campo tributário. Sem esta enumeração, cada um cobraria os impostos que bem entendesse. Por outras palavras, a Constituição é uma limitação ao poder de tributar, como é limitação de outros poderes do Estado. Por esta razão, foi um equívoco dar a uma Seção do Capítulo dedicado ao sistema tributário o nome “Das Limitações do Poder de tributar”, dando a impressão de que alí estão todas estas limitações.

2.8. Ao estabelecer o campo tributário em que o Estado (palavra aqui usada em seu sentido amplo) pode mover-se, a Constituição, além de determinar os impostos que podem ser cobrados, determina certos contornos que não podem ser ultrapassados. Entre estes contornos, acham-se as imunidades que não são, portanto, senão como que apêndices da enumeração dos impostos cobráveis. Não são senão um complemento da discriminação das fontes de receita tributária.

2.9. Ao fazer esta discriminação, a Constituição limita o poder de tributar mediante atribuição de competência. Como assinala Ernst Forsthoff (Tratado de Derecho Administrativo, Instituto de Estudios Políticos, Madrid, 1958, trad. espanhola, p. 573) embora referindo-se ao direito administrativo, “toda atribuição de competência representa ao mesmo tempo uma autorização e uma limitação”. Esta é também a opinião de Paulo de Barros Carvalho (op. cit., p. 108) segundo quem “em última ratio, concebemos os dispositivos que identificam a chamada imunidade tributária como singelas regras que colaboram no desenho do quadro das competências, expostas, todavia, por meio de esquemas sintáticos proibitivos ou vedatórios”.

2.10. É importante fixar o conceito de imunidade e sua extensão na esfera constitucional. A Constituição dispõe ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão. Uma vez que, como foi visto, imunidade é inexistência de competência, o texto constitucional poderia ter sido escrito de maneira diferente, com o mesmo resultado, como bem assinalou Paulo de Barros Carvalho. Restringindo as indagações ao papel de imprensa e ao ICMS, para simplificação, é como se o artigo 155, I, “b”, dissesse que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, exceto papel de imprensa. A imunidade é absoluta e como se trata de estabelecimento de competência, os Estados não podem descumpri-la tanto quanto não podem, por exemplo, cobrar imposto sobre operações financeiras ou o IPTU.

 

3. O ICMS: Imposto Fracionário

3.1. Antes de examinar o alcance da imunidade constitucional em relação às operações de circulação de papel destinado à impressão de livros, jornais e periódicos, é necessária uma prévia análise do sistema deste imposto. Para simplificar a exposição, os serviços de transporte interestadual e intermunicipal são deixados de lado, uma vez que não têm interesse para o objeto da consulta, embora a Constituição os englobe com o imposto sobre circulação de mercadorias.

3.2. Os impostos que John F. Due chama, genericamente, de impostos de vendas, classificam-se, segundo este autor, em dois grandes grupos: multifásicos e monofásicos. Refere ele, ainda, uma terceira forma, o imposto sobre o valor acrescido, com características de cada uma das outras duas formas (cfr. Sales Taxation, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1957, p. 4). Ainda conforme diz esta obra, clássica na matéria, o imposto sobre o valor acrescido é um híbrido das outras duas formas, uma vez que envolve incidências múltiplas, mas produz a mesma distribuição total por mercadoria que um imposto monofásico (p. 5). E acrescenta que, uma vez que a soma deste imposto incidente nas várias fases por que passa uma mercadoria até chegar ao consumidor é igual à quantia de um imposto à mesma alíquota sobre o preço de venda no varejo, sua carga total por mercadoria é igual à obtida por um imposto monofásico sobre o varejo (p. 5).

3.3. A configuração de um imposto como este tem feição peculiar em vista de técnica impositiva, típica de um imposto plurifásico sobre o consumo, com pagamentos fracionados, caracterizada pelo instituto de reembolso e pela aplicação do critério de dedução “imposto sobre imposto”. O ICMS afeiçoa-se a esta matriz doutrinária, nos termos mesmos de sua implantação constitucional. De fato, a Constituição Federal, artigo 155, § 2º, I, estabelece que o ICMS será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado ou pelo Distrito Federal.

3.4. Este imposto é sempre concebido como um imposto pago fracionadamente nas diversas fases de produção e comercialização das mercadorias. Já Maurice Lauré, cujo livro La Taxe sur la Valeur Ajoutée marcou época na história deste tipo de imposto, falava em pagamentos fracionados (pp. 83-84 da citada obra, publicada por Recueil Sirey, Paris, 1952). Assim, repita-se, trata-se de um imposto que não é pago de uma só vez, mas fracionadamente, pelos vários agentes que intervêm no processo de produção e de comercialização das mercadorias.

3.5. Um imposto deste tipo causou certa perplexidade a respeito da natureza jurídica das relações entre Fisco e contribuintes e de contribuintes entre si, em razão do jogo crédito - débito e do fato de tratar-se de imposto que é pago fracionadamente em função deste mesmo jogo. Várias idéias foram expendidas, tendo como pano de fundo a existência de um imposto, a recair uma vez sobre cada mercadoria, embora pago em diversas vezes, fração por fração. Assim é que A. Berliri, em 1968 concluía que o pagamento de um imposto implica sempre o empobrecimento do contribuinte e o enriquecimento do Estado; que no imposto sobre o valor acrescido isto não acontecia senão na venda ao consumidor final uma vez que, nas anteriores, o Estado recebia uma quantia de que o elo seguinte na cadeia de circulação se creditava imediatamente; que nas operações intermediárias, o pagamento do imposto não resultava da solutio de uma obrigação principal, mas do cumprimento de uma obrigação acessória. Obrigação principal só surgia e só era solvida na venda ao consumidor final. Note-se que, para A. Berliri, além da obrigação tributária em sentido estrito, há obrigações que chama de acessórias e de conexas. As primeiras vinculam o sujeito passivo da obrigação principal, ou um terceiro, ao sujeito ativo e têm por fim integrar ou reforçar a obrigação principal; as segundas vinculam o sujeito passivo a um terceiro e a elas permanece alheio o sujeito ativo da obrigação principal. Estas idéias foram expostas por A. Berliri em artigo publicado em Giurisprudenza delle Imposte, 1968, p. 351 e reproduzido em L’ Imposta sul Valore Aggiunto (A. Giuffrè, Milão, 1971, pp. 202- 42).

3.6. Gian Antonio Micheli, referindo-se ao assunto, disse, com propriedade que “estas relações de crédito - débito entre Estado e contribuinte são um novum do nosso ordenamento tributário (pelo menos com esta amplitude) e têm feito até duvidar de que imposto pudesse tratar-se, reconhecendo-se tradicionalmente o tributo (como foi dito) apenas quando haja um sacrifício definitivo, a cargo do con­tribuinte e, portanto, um enriquecimento definitivo em favor do Estado” (“L’ IVA: Dalle Direttive Comunitarie al Decreto Delegato”, Revista di Diritto Finanziario e Scienza delle Finanze, nº 3, ano XXXII, setembro de 1973, p. 443). O mesmo autor termina por afirmar que o IVA apresenta-se como um imposto sobre o consumo, que atua mediante um imposto sobre a receita dos negócios, com exclusão de qualquer efeito cumulativo, o que impõe que os pagamentos feitos antes da entrega ao consumo final sejam provisórios e possam dar a cada operador econômico um direito de crédito ou o reembolso de quanto pagou.

3.7. Da mesma forma, Andrea Amatucci entende que as obrigações nascidas nas diversas fases da circulação das mercadorias, autônomas porém ligadas à mesma ratio, conquistam sua definitividade quando não surge para o comprador o di­reito ao crédito da soma paga, ou seja, quando o comprador é o consumidor final (“Struttura ed Effetti della Fatispecie Contenuta nelle Norme Istitutive dell’ Iva”, Rivista di Diritto Finanziario e Scienza delle Finanze, nº 4, ano XXXV, dezembro de 1976, p. 593). E ainda no mesmo sentido, John Maes e Jacques Gysbrecht (Le Code de la Taxe sur la Valeur Ajoutée, Bruylant, Bruxelas, 1971, p. 62).

3.8. Não estou de acordo com as idéias mencionadas por não me parecer que, no processo do ICMS, haja apenas uma obrigação principal, a da operação com o consumidor final; pelo contrário, entendo que as obrigações são tantas quantas as operações e que o adquirente tem também um crédito contra a Fazenda, liquidável por compensação. A análise desta posição foi muito bem feita por Furio Bosello, com argumentos a que dou minha adesão (“Appunti Sulla Strutura Giuridica dell’Imposta sul Valore Aggiunto”, Rivista di Diritto Finanziario e Scienza delle Finanze, nº 3, ano XXXVII, setembro de 1978, p. 435). Já tive opinião diferente, entendendo equivocadamente que o “crédito” era assim denominado de modo impróprio e que o montante do ICM cobrado nas operações anteriores era integrante da base de cálculo (cfr. ICM na Constituição e na Lei Complementar, Resenha Tributária, São Paulo, 1978). Mas depois de mais reflexão, modifiquei meu ponto de vista, passando a ver no crédito do ICM um real direito de crédito contra a Fazenda, normalmente liquidável por compensação. (“ICM - Créditos - Natureza Jurídica - Correção Monetária”, Revista de Direito Tributário, nº 45, ano 12, julho - setembro de 1988, p. 39).

3.9. Apesar da divergência doutrinária e sem embargo do fato de cada operação dar nascimento a uma obrigação relativa ao ICMS, fica bem claro que tanto uma corrente quanto outra vêem num imposto deste tipo um tributo concebido como um todo, pago parceladamente, à medida que as operações se sucedem. Com propriedade, o ICMS poderia ser chamado de imposto fracionário.

 

4. O Alcance de Imunidade do ICMS

4.1. Já agora é possível determinar o alcance da imunidade de livros, jornais e periódicos e papel destinado à sua impressão. Se está fora da competência dos Estados tributar estes produtos e se o ICMS é um imposto fracionário, não podem os mesmos Estados desconhecer esta ausência absoluta de competência e pretender estornar os créditos que os produtores têm, em razão da compra de matéria-prima e materiais secundários que emprega na fabricação do produto. Com este estorno, o papel destinado à impressão de livros, jornais e revistas, bem como estes, ficariam de fato tributados, uma vez que o fabricante não teria oportunidade de se ressarcir das frações do imposto pagas nas operações anteriores com a matéria-prima, materiais secundários e embalagens. Se o fabricante não se ressarcisse das frações do imposto antes pagas, através da manutenção dos créditos e da utilização destes (inclusive por transferência a terceiros), a imunidade ficaria frustrada.

4.2. Em apoio da conclusão aqui firmada pode ser citada a decisão do Supremo Tribunal Federal no RE nº 102.141-RJ (Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 116, pp. 267 e ss.), cuja ementa diz:

“Imunidade Tributária. Livro. Constituição, artigo 19, III, alínea ‘d’.

Em se tratando de norma constitucional relativa às imunidades tributárias genéricas, admite-se a interpretação ampla, de modo a transparecerem os princípios postulados nela consagrados.

O livro, como objeto de imunidade tributária, não é apenas o produto acabado, mas o conjunto de serviços que o realiza, desde a redação, até a revisão da obra, sem restrição dos valores que o formam e que a Constituição protege.”

4.3. Da mesma forma, pode dizer-se que livros, jornais periódicos e o chamado papel de imprensa não são só o produto acabado, mas o conjunto de matérias-primas e materiais secundários que o compõem. Impossível restringir a imunidade ao que seria o ICMS devido apenas na operação de venda dos produtos acabados. Há, pois, que manter os créditos referentes aos insumos, para que sejam aproveitados ou transferidos a terceiros. Caso contrário, repito, frustra-se a imunidade. Como disse o Ministro Carlos Madeira em seu voto, no citado acórdão:

“Considerar apenas o livro como produto acabado, seria restringir exatamente os valores que o formam e que a Constituição protege.”

Ou, como salientou o Ministro Cordeiro Guerra na mesma decisão:

“De modo que, se fôssemos reduzir a imunidade, estaríamos reduzindo a Constituição apenas para consagrar a isenção do ICM nas vendas dos livros.”

4.4. As isenções interpretam-se literalmente, diz o Código Tributário Nacional em seu artigo 111, II. Não assim as imunidades cuja interpretação deve ser ampla, admitindo-se a interpretação teleológica (cfr. Amílcar de Araújo Falcão, “Parecer”, Revista de Direito Administrativo, vol. 66, p. 369). E como diz o mesmo autor (op. cit., p. 369), as imunidades são muito mais um problema de direito constitucional do que um problema de direito tributário.

 

5. A Imunidade e o artigo 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal

5.1. O artigo 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal dispõe que, salvo determinação da legislação em contrário, a isenção ou não-incidência acarreta a anulação do crédito do ICMS relativo às operações anteriores. À vista desta regra, pode perguntar-se se a conclusão exposta em 4.1 acima tem fundamento ou se é contrariada pelo citado dispositivo.

5.2. No contexto da Constituição, há que distinguir imunidade e não-incidência. Esta última expressão tem um sentido amplo e um sentido estrito. Em sentido amplo, existe a não-incidência quando algum ato, fato ou situação não se enquadra na descrição da hipótese de incidência prevista em qualquer lei tributária. Neste sentido, pode falar-se de não-incidência ainda quando inexista incidência por falta absoluta de competência da União, dos Estados e dos Municípios para criá-la. Em sentido estrito, a não-incidência existe quando um poder tributante (União, Estado ou Município) deixa de exercer no todo ou em parte a competência tributária que a Constituição lhe outorgou. Por exemplo, existiria a não-incidência para imóveis construídos de menos de cem metros quadrados, se lei municipal, ao definir a hipótese de incidência do IPTU, dissesse expressamente que estavam sujeitos a este imposto apenas os imóveis construídos de mais de cem metros quadrados. Neste caso, os imóveis com área inferior à assinalada estariam fora de um campo de incidência que poderia existir se o legislador constitucional assim desejasse. Neste sentido estrito, a não-incidência em sentido estrito resulta do não-exercício, pelo legislador ordinário, da totalidade da competência que lhe foi atribuída.

5.3. A não-incidência mencionada no artigo 155, § 2º, II, “b”, da Constituição é a não-incidência em sentido estrito. Se a não-incidência não implica crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes é porque ela diz respeito a uma operação de circulação de mercadorias que o legislador ordinário deixou de tributar. De outra forma, não se entenderia o teor desta proibição. Se, porém, se trata de imunidade, o legislador apenas não exerceu uma competência que a Constituição não lhe atribuiu, ou seja, não exerceu uma competência que não estava legitimado para exercer. Neste caso, só se poderia falar em não-incidência entendida em sentido amplo.

5.4. De resto, em matéria de ICMS, entender de outra forma, isto é, que não-incidência deve ser entendida em sentido amplo no contexto do artigo 155, § 2º, II, seria atribuir à Constituição uma clara antinomia, em razão do pagamento fracionário do ICMS. A Constituição subtrairia a qualquer imposto os livros, jornais e periódicos e o papel destinado à sua impressão e, ao mesmo tempo, tributá-los-ia com o ICMS, mandando anular os créditos relativos aos respectivos insumos. Coexistiriam, na Constituição, uma regra de imunidade ampla e uma regra limitativa da imunidade. Como não se podem conceber antinomias senão quando claras, a expressão “não-incidência” do citado dispositivo constitucional só pode ser entendida em sentido estrito, como assinalado. E em conseqüência, não pode levar à anulação dos créditos e ao seu não-aproveitamento. Nem se alegue que a anulação só deixa de existir se assim o determinar a legislação, pois não se pode conceber que a imunidade que a Constituição concede fique na dependência, total ou parcial, do legislador ordinário.

 

6. Conclusão

Em suma, o produtor tem o direito de conservar os créditos do ICMS relativos às matérias-primas, materiais secundários e energia elétrica usados na produção de livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão e de utilizar tais créditos, inclusive por transferência a terceiros, na forma da legislação aplicável. Esta legislação não pode frustrar a utilização dos créditos porque, se o fizer, estará frustrando a imunidade constitucional de livros, jornais e periódicos e do papel destinado à sua impressão.