Limites da Integração no Direito Tributário1

João Francisco Bianco

Advogado. Mestre em Direito Tributário pela USP. Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

 

 

“Existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que entre o dramaturgo e o ator. Deve este atender às palavras da peça e inspirar-se no seu conteúdo; porém, se é verdadeiro artista, não se limita a uma reprodução pálida e servil: dá vida ao papel, encarna de modo particular a personagem, imprime um traço pessoal à representação, empresta às cenas um certo colorido, variações de matiz quase imperceptíveis; e de tudo faz ressaltarem aos olhos dos espectadores maravilhados belezas inesperadas, imprevistas. Assim o magistrado: não procede como insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos; porém como órgão de aperfeiçoamento destes, intermediário entre a letra morta dos Códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade.”

(Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 1996, p. 59)

 

1. Introdução

O operador do direito tributário conhece melhor do que ninguém as vicissitudes que cercam os atos de interpretar e de aplicar as leis pois diariamente depara-se com uma infinidade de novos textos normativos de todos os níveis hierárquicos, de vigência imediata e de larga aplicação, regulando e instituindo obrigações tributárias.

Desse modo, em seu trabalho, o operador do direito tributário é constantemente colocado diante de situações de fato e chamado a opinar se, sobre elas, há a incidência de algum tributo.

Esse processo de estabelecimento de uma correlação entre o fato e a norma legal - feito quase intuitivamente pelo operador do direito tributário - é chamado de aplicação do direito. O processo de aplicação do direito dá-se - tanto no direito tributário como nos demais ramos do direito - através da comparação entre o fato concreto e a hipótese prevista na norma legal. Caso ocorra uma identidade entre a situação fática e a hipótese legal, diz-se que houve a subsunção do fato à norma, desencadeando a correspondente conseqüência legal.

É importante ressaltar que o processo de aplicação do direito não se resume a uma questão de lógica formal, decorrente da simples comparação automática e fria entre fato e norma. Trata-se, na verdade, de processo complexo, no qual fatores lógicos e axiológicos se correlacionam, formando aquilo que Miguel Reale denominou de tridimensionalidade do direito, ou seja, a correlação entre fato, norma e valor2.

Ocorre que, no mais das vezes, existem dúvidas sobre a efetiva ocorrência da subsunção do fato à norma, ou seja, da equiparação do fato concreto à hipótese legalmente prevista. Essas dúvidas devem ser esclarecidas através do processo de interpretação da norma jurídica.

Interpretar a norma, portanto, não se confunde com a sua aplicação. O processo interpretativo é de conhecimento do conteúdo da norma, é de determinação do seu alcance e de seus limites. Já a aplicação da norma pressupõe a inexistência de dúvidas sobre o seu conteúdo. Trata-se do passo seguinte, após o término do processo de conhecimento, de determinação conclusiva de que o fato concreto e a hipótese legal são equiparáveis e que, portanto, o primeiro está subsumido à segunda3.

O processo de interpretação da norma implica a exata delimitação do seu campo de atuação. E a determinação segura da extensão da norma passa necessariamente pelo correto estabelecimento do conteúdo do comando legal. Interpretar a lei tributária, portanto, é compreendê-la, é explicá-la, é elucidá-la.

No processo de interpretação da norma, o intérprete utiliza-se de algumas técnicas ou métodos interpretativos. O método literal, segundo o qual o intérprete leva em consideração a construção literal ou gramatical do texto legal; o método histórico, em que o intérprete investiga os precedentes normativos anteriores à vigência da lei e, com isso, busca compreender os motivos que justificaram a edição da nova norma; o método lógico formal, através do qual o intérprete busca o sentido da lei construindo silogismos - premissa maior, premissa menor, conclusão; o método teleológico, segundo o qual a norma deve ser interpretada pelos fins visados pelo legislador; e, por fim, o método sistemático, em que o intérprete examina o conteúdo da norma não de forma isolada mas em relação ao conjunto do ordenamento jurídico.

Esses métodos não são aplicados de forma isolada ou individualizada pelo intérprete. Pelo contrário, no processo interpretativo todos os métodos vistos acima, em maior ou menor grau, são aplicados para que o intérprete consiga atingir a mais completa compreensão do sentido da norma interpretada.

Os variados métodos interpretativos, portanto, formam um todo harmônico, um encadeamento lógico, que se relaciona de forma orgânica e sistemática. Esse processo de sistematização das formas de interpretar as leis é que se chama de hermenêutica4.

Vale lembrar ainda que, na atividade de interpretar e aplicar o direito, muitas vezes verificamos que falta no ordenamento jurídico uma regra específica que regule a situação em exame. Essa ausência de lei reguladora é comumente denominada de lacuna.

Veremos adiante que as lacunas legais devem ser preenchidas, sob pena de o ordenamento perder sua característica de completude. O processo de preenchimento das lacunas é conhecido por integração. No direito tributário a integração não se dá da mesma forma como nos demais ramos do direito. Pelo contrário, o processo integrativo sofre algumas restrições.

O objetivo deste trabalho é examinar quais são essas restrições e em que condições é admitida ou rejeitada a integração no direito tributário.

 

2. As Características do Ordenamento Jurídico

Segundo Norberto Bobbio5, são três as características dos ordenamentos jurídicos: a unidade, a coerência e a completude. Isso quer dizer que necessariamente os ordenamentos jurídicos são unos, coerentes e completos. Examinemos cada uma dessas características separadamente.

 

Unidade

O ordenamento jurídico é composto por um incontável número de normas, que não derivam de somente uma fonte. Daí por que mesmos os ordenamentos mais restritos e pouco institucionalizados - como o que regula o núcleo familiar, por exemplo - são complexos, justamente porque suas normas emanam de mais de uma fonte.

A complexidade do ordenamento jurídico, entretanto, não exclui a sua unidade. Pelo contrário, todo o ordenamento jurídico necessariamente deve ser uno, sob pena de não poder ser caracterizado como um ordenamento. O que justifica a unidade do ordenamento jurídico é o fato de as normas que o integram não estarem no mesmo plano hierárquico. Existem normas inferiores e normas superiores, aquelas derivando destas, até chegar à última delas - a norma suprema ou fundamental - que não depende de qualquer outra e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento.

É a norma fundamental, portanto, que faz das normas esparsas e das mais variadas procedências um todo uno, ou seja, que confere unidade ao ordenamento. Sem a norma fundamental, todas as normas editadas ao longo do tempo constituiriam um mero acervo, um agrupamento amorfo de regras, e não um ordenamento.

 

Coerência

O ordenamento jurídico não deve ser somente uno mas também coerente.

Com efeito, o relacionamento coerente entre as normas do ordenamento caracterizam-no como um sistema. O ordenamento jurídico, portanto, deve ser uma unidade sistemática, ou seja, um conjunto de normas que subsistem dentro de uma certa ordem, através de uma relação de compatibilidade.

Ora, é pressuposto da coerência do sistema que normas contraditórias entre si não podem coexistir. Daí por que se diz que o direito não suporta a antinomia, ou seja, a existência de duas normas incompatíveis e contraditórias. A antinomia, portanto, é uma anomalia do ordenamento jurídico que deve ser corrigida em benefício da coerência do sistema.

A correção da antinomia dá-se através da exclusão do ordenamento jurídico de uma das normas contraditórias. Esse processo de exclusão pode ser realizado segundo três critérios alternativos: o critério cronológico (exclui-se a norma mais antiga, mantendo-se a mais recente); o critério hierárquico (exclui-se a norma inferior, mantendo-se a superior); ou o critério da especialidade (afasta-se a norma geral, aplicando-se a especial).

Completude

Por fim, além de um sistema uno e coerente, o ordenamento jurídico é também completo. Entende-se por completude a característica segundo a qual para cada caso deve sempre haver uma norma que o regule. Nesse sentido, o ordenamento jurídico é completo quando o aplicador sempre pode identificar uma norma para reger o caso concreto, ou quando não exista um caso concreto que não possa ser regulado por uma norma emanada do ordenamento.

Isso quer dizer que o aplicador do direito não pode recusar-se a dirimir uma determinada controvérsia sob o argumento da ausência de norma. O litígio deve sempre ser solucionado. E caso efetivamente não exista uma norma que regule aquela específica situação, uma nova norma pode, em determinadas situações, ser “criada” pelo aplicador do direito para preencher o vazio existente.

Esse vazio legislativo é denominado de lacuna. E o processo de prenchimento das lacunas pelo aplicador do direito é chamado, conforme veremos mais adiante, de integração. Bobbio identifica variadas espécies de lacunas. Vejamos, em poucas palavras, a classificação adotada pelo autor italiano.

 

Lacunas

As lacunas podem ser próprias ou impróprias em função do ente apto a preenchê-la. Diz-se própria a lacuna cujo preenchimento pode ser feito pelo intérprete. Já imprópria é a lacuna cujo preenchimento depende da edição de norma legal específica. As lacunas nas leis penais, por exemplo, são sempre impróprias porque não cabe ao intérprete enquadrar como crime conduta não tipificada pelo legislador.

As lacunas também podem ser subjetivas ou objetivas. As primeiras derivam de algum motivo imputável ao legislador. Este deixou de regular determinada matéria, seja por manifestação deliberada de vontade (lacuna voluntária), seja por qualquer outro motivo, até puro esquecimento (lacuna involuntária). Já as segundas derivam da evolução da atividade social. Quando da edição da lei, por exemplo, era impossível prever a necessidade de regular determinada matéria. Assim sendo, a nova atividade acabou ficando sem uma lei que a regule.

As lacunas subjetivas voluntárias não podem ser consideradas propriamente hipóteses de lacuna. Trata-se, na verdade, de manifestação da vontade do legislador de deixar de regular determinada matéria. Uma conduta, por exemplo, que o legislador penal não quis tipificar como crime. Assim, não há propriamente lacuna no ordenamento mas matéria que o legislador preferiu deixar de regular.

Por fim, as lacunas também podem ser praeter legem ou intra legem. A lacuna praeter legem ocorre nas hipóteses de leis muito minuciosas e detalhistas, cheias de especificidades, e que mesmo assim apresentam assuntos não regulados pelo ordenamento. Esse tipo de lacuna somente pode ser preenchido pelo legislador, através da edição de nova lei. Por outro lado, a lacuna intra legem ocorre nas leis mais gerais, elaboradas de forma genérica, cheias de espaços vazios, próprios para serem preenchidos pelo intérprete.

 

Integração

O processo de preenchimento das lacunas do ordenamento pelo aplicador do direito é chamado de integração. Quando o texto legal não fornece ao intérprete a disciplina expressa do caso, estamos diante de uma lacuna que deve ser integrada6, ou seja, preenchida.

Bobbio aponta duas espécies de integração: a heterointegração e a auto-integração. A heterointegração é o processo através do qual o sistema jurídico é completado através de medidas externas ao ordenamento, como por exemplo, através de outros ordenamentos ou de outras fontes que não as leis (os costumes, o poder criativo dos juízes ou a opinião de juristas). Já a auto-integração é o processo através do qual o ordenamento é completado com o uso da analogia e dos princípios gerais de direito.

 

Analogia

A analogia pode ser definida como sendo a aplicação do regime jurídico de um caso regulado pelo ordenamento a um caso não regulado pelo ordenamento. O caso não regulado pelo ordenamento, portanto, passa a submeter-se ao regime jurídico próprio do caso regido pelo ordenamento.

Para que a analogia possa ser empregada é necessário que os dois casos - tanto o regulado pelo ordenamento como o não regulado - sejam semelhantes. Essa semelhança, entretanto, não pode ser aparente, ou superficial, ou genérica. Pelo contrário, a semelhança que justifica o emprego da analogia como método de integração deve ser relevante.

A relevância entre as duas situações é estabelecida identificando-se uma característica comum a ambas e que, ao mesmo tempo, seja o motivo pelo qual a norma foi editada.

Tome-se como exemplo um país em que o comércio de livros obscenos seja vedado por lei específica e o comércio de livros policiais não seja objeto de qualquer tipo de lei que o regule. O comércio de livros policiais é semelhante ao comércio de livros obscenos pois ambos lidam com o mesmo objeto: comércio de livros. Mas essa semelhança não é suficiente para justificar o emprego da analogia com o objetivo de aplicar ao comércio de livros policiais a vedação legal ao comércio de livros obscenos pois a semelhança entre os dois tipos de comércio não é uma semelhança relevante. Isso porque o fim objetivado pelo legislador ao vedar o comércio de livros obscenos foi coibir a obscenidade e não o comércio de livros em geral.

Por outro lado, pode-se dizer que existe uma semelhança relevante entre o comércio de livros obscenos e o comércio de revistas obscenas. Neste caso sim a hipótese não regulada pelo ordenamento - comércio de revistas obscenas - poderia ser submetida à vedação do comércio de livros obscenos, por analogia, pois a semelhança entre as duas atividades é relevante, tendo em vista que o que foi objetivado pelo legislador com a vedação do comércio de livros obscenos foi a comercialização de material obsceno, seja livros ou revistas.

Por fim, vale mencionar que a analogia não se confunde com a chamada interpretação extensiva. Na analogia o intérprete “cria” uma norma nova para ser aplicada ao caso não regulado pelo ordenamento. Na interpretação extensiva o intérprete aplica uma norma já existente ao caso não regulado pelo ordenamento.

Princípios gerais de direito

Os princípios gerais de direito nada mais são do que as normas fundamentais do sistema, que permeiam todo o ordenamento a partir da Constituição. Podem ser mencionados como exemplos o princípio de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei; o princípio de que a lei deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais; o princípio que veda o enriquecimento ilícito etc.

 

3. As Características do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro

O Sistema Constitucional Tributário Brasileiro apresenta todas as características vistas acima e que são próprias de todos os ordenamentos jurídicos em geral. Ele é uno pois emana da própria Constituição Federal (a lei fundamental), que lhe dá conformação através da fixação de princípios de observância obrigatória; ele é coerente pois as normas que o integram relacionam-se harmonicamente dentro do sistema; e ele é completo à medida que admite, em princípio, a integração para o suprimento das lacunas porventura existentes.

Como todo ordenamento jurídico, o Sistema Constitucional Tributário é composto por regras e princípios7. Muito embora seja pacífico o entendimento no sentido de que não há hierarquia entre as normas constitucionais, o fato é que referidas normas nem sempre desempenham a mesma função. A força normativa da norma constitucional é inconteste, tendo em vista tratar-se ela também de uma norma do direito positivo. Mas dentro da Constituição as normas que a integram podem ter não somente natureza de simples regras como também natureza de princípios, operando como verdadeiros alicerces do sistema e servindo de critério para a sua compreensão por conferir-lhe lógica e racionalidade8.

Canotilho classifica os princípios constitucionais em princípios fundamentais, compostos pelos princípios estruturais da organização política do Estado, como o Federalismo e a República; princípios gerais, que são os princípios que se irradiam por toda a ordem jurídica e funcionam como definidores de direitos, como os princípios da legalidade e da isonomia; e os princípios especiais, que têm um âmbito de atuação restrito ou limitado mas que, na sua esfera de atuação, são supremos, como os princípios da legalidade tributária ou da anterioridade em matéria de tributação.

Por ser um sistema aberto, a Constituição não poderia deixar de apresentar aquilo que Canotilho denomina de tensão entre princípios. Não se trata propriamente da existência de antinomia entre normas constitucionais mas sim do reconhecimento de que a Constituição “é o resultado de um compromisso entre vários atores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios”9. E como tal, a Constituição é permeada de contradições e de antagonismos entre os seus princípios.

Assim, por exemplo, o princípio democrático, que se concretiza através da prevalência da vontade da maioria, coexiste com o princípio da proteção das minorias; o princípio da livre iniciativa convive com o princípio da defesa do consumidor; o princípio da propriedade privada coexiste com o princípio da função social da propriedade; e o princípio da legalidade convive com o princípio da igualdade.

Desse modo, é perfeitamente possível a coexistência na Constituição de princípios até certo ponto conflituosos entre si, portadores dessa tensão na sua aplicação. E enquanto a antinomia de normas se resolve pela exclusão de uma delas, o antagonismo entre princípios constitucionais resolve-se pela aplicação proporcional e razoável de ambos, de forma ponderada e observando-se as circunstâncias de cada caso concreto.

Examinemos mais especificamente o conflito existente entre os princípios constitucionais da legalidade e da igualdade, no âmbito da aplicação das normas de natureza tributária.

 

O princípio da legalidade tributária

Durante décadas sustentou-se pacificamente na doutrina, e foi acatada unanimemente pela jurisprudência, a supremacia do princípio da legalidade na conformação de todas as demais normas integrantes do sistema tributário brasileiro. Esse entendimento, que doravante chamarei de tradicional, foi sustentado e recentemente consolidado com maestria por Alberto Xavier10.

Segundo esse entendimento tradicional, o princípio da legalidade não exige somente a existência de lei formal para o surgimento da obrigação tributária mas sim a existência de uma lei qualificada, uma lei especial, que reúna determinadas condições essenciais à incidência do tributo. É por isso que o direito tributário não é informado pela simples reserva da lei mas sim pela reserva absoluta da lei, o que faz com que o princípio da legalidade seja também expresso pelo princípio da tipicidade.

A reserva absoluta da lei, ou princípio da estrita legalidade, ou princípio da tipicidade, têm como corolários os seguintes princípios:

- princípio da seleção, segundo o qual o fato econômico objeto da norma tributária não pode ser um conceito geral, ou uma situação genérica, mas sim um modelo que exprima uma seleção, pelo legislador, das realidades (tipos) que se pretende tributar. Decorre desse processo seletivo que alguns fatos são selecionados para ensejar o surgimento da obrigação tributária e que outros fatos são excluídos do processo seletivo, como ato de manifestação de vontade do legislador;

- princípio do “numerus clausus”, segundo o qual a escolha do tipo que será objeto da tributação deve ser taxativa, e não simplesmente exemplificativa ou delimitativa;

- princípio do exclusivismo, de acordo com o qual a conformação dos fatos econômicos aos tipos legais tributários é necessária e suficiente à ocorrência do nascimento da obrigação tributária, exatamente como disposto no art. 114 do Código Tributário Nacional. Isso quer dizer que a tipicidade é fechada, ou seja, o tipo legal não admite quaisquer elementos adicionais não contidos na norma tributária;

- princípio da determinação, segundo o qual os elementos integrantes do tipo devem ser precisos e determinados, de modo a não gerar qualquer espécie de dúvida em sua aplicação.

Segundo Xavier, a supremacia da legalidade e da tipicidade fechada no nosso Sistema Constitucional Tributário está prevista no art. 150, inciso I (“é vedado exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”) e no art. 146, inciso III, alínea “a” (“cabe à lei complementar estabelecer, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a definição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”), ambos da Constituição.

Com efeito, este último dispositivo, ao exigir da lei complementar a definição dos elementos essenciais ao surgimento da obrigação tributária - quais sejam, o fato gerador, a base de cálculo e o contribuinte - consagrou em sua plenitude o princípio da seleção (pois proibiu a cláusula geral, selecionando fatos econômicos sujeitos à incidência do imposto); o princípio do numerus clausus (pois os tributos passíveis de serem exigidos são somente aqueles discriminados da Constituição)11; e o princípio da determinação (pois os elementos essenciais à incidência do tributo devem ser os definidos pela lei complementar).

“Definir” significa determinar a extensão e os limites de um conceito. É por isso que a função definidora do fato gerador, da base de cálculo e do contribuinte, exercida pela lei complementar, deve ser vista como o processo de determinação do tipo. Daí por que se pode concluir que a Constituição albergou expressamente os princípios da reserva absoluta da lei e da tipicidade fechada.

 

O princípio da igualdade

Marco Aurelio Greco12, contrapondo-se ao pensamento tradicional, propõe uma interessante releitura de todo o capítulo da Constituição que trata do Sistema Tributário Nacional. Inicia ele por traçar uma importante distinção entre princípio e limitação ao poder de tributar. Reconhece Greco que ambos dispõem sobre o exercício do poder de tributar; mas enquanto os princípios veiculam comandos positivos, indicando um caminho a ser seguido pelo aplicador do direito, as limitações ao poder de tributar veiculam comandos negativos, criando verdadeiras barreiras que não podem ser ultrapassadas pelo legislador ordinário.

Assim sendo, legalidade, anterioridade e irretroatividade não são propriamente princípios pois caracterizam comandos negativos, inibidores do poder de tributar. Princípios verdadeiramente são o da uniformidade do ordenamento tributário (art. 146) e o da capacidade contributiva (art. 145, inciso I).

Sobre a capacidade contributiva, Greco lembra que, no texto da Emenda Constitucional de 1969, não havia menção expressa a esse princípio. E a doutrina costumava sustentar que a capacidade contributiva era um subprincípio ou um desdobramento do princípio da igualdade.

Com a Constituição de 1988, entretanto, ocorreu uma inversão de funções entre os dois conceitos. Assim, enquanto a capacidade contributiva passou à categoria de princípio, por força do disposto no art. 145, § 1º, da Constituição (“os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”), a igualdade da tributação passou à condição de limitação ao poder de tributar, conforme previsto no art. 150, inciso II (“é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”).

Isso quer dizer que o princípio da capacidade contributiva assumiu uma importância muito maior agora, passando a ser um princípio conformador do sistema tributário, que diz respeito à sua própria estrutura e funcionamento. Desse modo, identificada a capacidade contributiva a ser captada pelo imposto, o poder de tributar deve ser exercido positivamente no sentido de alcançá-la, mas fazendo-o com respeito à isonomia, sem discriminações.

 

4. Por que a Tensão entre Legalidade e Igualdade?

O que poderia, à primeira vista, ser caracterizado como um debate meramente acadêmico e de cunho doutrinário, sem qualquer implicação prática, na verdade esconde em seu âmago questão da mais alta relevância e que deverá dominar, sem qualquer sombra de dúvida, as discussões dos estudiosos do direito tributário nos próximos anos. Trata-se de definir a forma como deve ser aplicada a lei tributária e de como deve ser estruturado o regime de incidência do tributo.

Com efeito, a grande discussão na doutrina de hoje, no Brasil e no exterior, versa sobre a forma como a lei tributária deve atingir os fatos econômicos gerados a partir do que no direito privado é conhecido por negócio jurídico indireto.

Com efeito, desde o Direito Romano já se admitia a possibilidade de as partes adotarem determinada estrutura jurídica não típica para o negócio a ser praticado, com o objetivo de atingir fins idênticos àqueles próprios da estrutura jurídica típica. Essa estrutura jurídica não típica é que é denominada de negócio jurídico indireto. No negócio jurídico indireto, portanto, as partes utilizam uma estrutura jurídica diversa daquela que normalmente seria adotada e, mesmo assim, conseguem atingir o mesmo fim econômico pretendido caso fosse realizado o negócio jurídico direto.

Vejamos um exemplo: uma pessoa deseja entregar recursos a outrem, para recebê-los de volta após o decurso de um prazo, acrescido de remuneração, tendo como garantia um bem. Essa é a situação de fato. O negócio jurídico direto, que normalmente seria contratado entre as duas partes, é o mútuo. O mútuo é, portanto, o negócio jurídico típico a ser adotado.

As partes, entretanto, não querem - ou não podem, e nem precisam - utilizar a figura jurídica do mútuo para ser aplicada à situação de fato. Assim, decidem contratar a compra e venda do bem que é de propriedade de quem necessita dos recursos, ajustando simultaneamente a sua retrovenda. Desse modo, a pessoa detentora dos recursos disponíveis entrega-os a outra parte, não mais a título de mútuo mas a título de preço pela aquisição do bem. Passado um determinado prazo, o vendedor original do bem exerce o seu direito de recomprá-lo, por um preço já previamente ajustado quando da contratação da operação. O preço da recompra traz embutida a remuneração pelo período em que os recursos ficaram à disposição do vendedor do bem.

Como se verifica, ao invés de as partes contratarem o negócio jurídico direto (mútuo), decidem elas ajustar o negócio jurídico indireto (compra e venda com cláusula de retrovenda). É possível isso?

No direito privado a figura do negócio jurídico indireto é plenamente aceita. Há, inclusive, várias decisões do Supremo Tribunal Federal admitindo a sua contratação, desde que o negócio indireto não seja utilizado para fraudar a lei que rege o negócio direto. Em outras palavras, é possível adotar-se o negócio indireto desde que o negócio direto não seja vedado pela lei13.

No caso da retrovenda, por exemplo, que foi a situação fática examinada pelo Supremo, o preço para o exercício da retrovenda computava juros a taxas superiores àquelas admitidas pela Lei de Usura. Nesse caso, a adoção do negócio indireto visou fraudar a lei que regula o negócio direto, o que acabou acarretando a nulidade do negócio jurídico indireto. Mas a contratação da retrovenda com um preço compatível com a Lei de Usura é plenamente aceitável.

A adoção do negócio indireto não guarda qualquer relação com a simulação. Nesta, as partes desejam contratar um negócio mas contratam outro. Há, portanto, dois negócios sendo ajustados: o real e o aparente. As partes não querem contratar aquilo que foi ajustado. O negócio é enganoso.

Já no negócio jurídico indireto há um e somente um negócio sendo contratado. E as partes desejam aquilo que foi ajustado, submetendo-se integralmente ao regime jurídico aplicável ao negócio indireto. As partes, portanto, querem aquilo que foi contratado.

Pois bem. Somente com essa breve exposição sobre o conceito de negócio jurídico indireto e sobre a identidade das conseqüências econômicas advindas da adoção tanto do negócio direto como do negócio indireto já é possível concluir-se que as capacidades contributivas que emanam de ambas as situações são absolutamente idênticas. As estruturas jurídicas adotadas para os negócios jurídicos direto e indireto é que diferem, mas os fins visados são os mesmos e, conseqüentemente, as manifestações de capacidade contributiva, em ambas as operações, são rigorosamente as mesmas.

Ora, se idêntica expressão de capacidade contributiva é manifestada através do negócio direto e do negócio indireto, e se o legislador ordinário instituiu a incidência do tributo sobre o negócio direto e deixou de instituir a tributação do negócio jurídico indireto, como deve portar-se o aplicador do direito?

De acordo com a doutrina tradicional - que privilegia o princípio da estrita legalidade e da tipicidade fechada - o aplicador do direito deve simplesmente exigir a incidência do tributo sobre os fatos econômicos derivados do negócio jurídico direto, na forma estrita da lei, e afastar a incidência do tributo sobre os fatos econômicos decorrentes do negócio jurídico indireto.

Isso porque o legislador ordinário selecionou os efeitos do negócio direto para serem submetidos à tributação e excluiu os efeitos do negócio indireto do regime de tributação (princípio da seleção). A enumeração do tipo legal é taxativa e não exemplificativa (princípio do numerus clausus) e se os efeitos do negócio indireto não foram tipificados na lei, é porque o legislador ordinário assim o quis14.

A inexistência de lei instituindo a tributação dos efeitos do negócio indireto representa manifestação da vontade do legislador. Trata-se daquilo que Bobbio denominou de lacuna subjetiva voluntária, que nem pode ser caracterizada como propriamente uma lacuna pois deriva de manifestação da vontade do legislador de deixar de regular pelo direito determinada matéria, ou de deixar de submeter à tributação determinada manifestação de capacidade contributiva.

Essa lacuna não pode ser integrada pelo aplicador do direito e somente o legislador poderia, através da edição de lei nova, instituir tributo sobre os efeitos do negócio jurídico indireto.

Já na visão proposta por Marco Aurelio Greco, a observância do princípio de que idênticas capacidades contributivas devem submeter-se a idênticas cargas tributárias autorizaria o aplicador do direito - e não apenas o legislador - a estender o regime de tributação próprio do negócio jurídico direto aos efeitos econômicos gerados pela realização do negócio jurídico indireto.

Seja pela aplicação da analogia, seja pela adoção da interpretação extensiva, o fato é que o negócio indireto deve submeter-se ao regime de tributação aplicável ao negócio direto, ainda que não haja lei expressa nesse sentido, porque a Constituição privilegiou o princípio da graduação da tributação segundo a capacidade econômica do contribuinte (art. 145, § 1º) e determinou ser vedada a instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (art. 150, inciso II).

Ora, se o negócio direto é submetido a um regime de tributação, porque idêntica manifestação de capacidade contributiva não poderia ser também tributada? Somente porque as partes convencionaram adotar estrutura jurídica diversa? De acordo com essa nova leitura da Constituição, a adoção de regimes distintos de tributação, em função da estrutura jurídica adotada pelas partes, fere os princípios da capacidade contributiva e da isonomia tributária. Caberia então ao aplicador do direito submeter o negócio indireto ao mesmo regime tributário do negócio direto, dando plena eficácia aos dois princípios antes mencionados.

 

5. Comentários Críticos às Posições Doutrinárias

Não restam dúvidas de que ambas as opiniões vistas acima estão embasadas em sólidos argumentos jurídicos e em fundamentada interpretação das normas constitucionais que versam sobre o Sistema Tributário Nacional. Além disso, deve ser destacado o brilho intelectual que permeia o trabalho desses dois destacados autores que, por seu indiscutível mérito, engrandecem a cultura jurídica brasileira.

De minha parte, ouso apresentar uma modesta contribuição ao debate, sem logicamente pretender esgotar assunto tão complexo e de tamanha relevância.

Restou claro que estamos diante daquilo que Canotilho denominou de tensão entre dois princípios constitucionais.

De um lado a Constituição exige lei para a instituição ou para o aumento de tributo, em clara evidência de que o princípio da legalidade - seja ele efetivamente um princípio ou mera limitação ao poder de tributar - foi albergado pelo legislador constituinte.

De outro lado, é de clareza meridiana que a Constituição determina que mesmas capacidades contributivas sejam submetidas ao mesmo regime de tributação. Basta uma leitura ligeira do inciso II do art. 150 para verificarmos que contribuintes que se encontrem em situação equivalente não podem ser tributados de forma desigual. E é indiscutível que os efeitos econômicos gerados por negócios jurídicos diretos são equivalentes aos efeitos decorrentes dos negócios jurídicos indiretos.

Ora, se lei ordinária prevê a tributação dos efeitos econômicos derivados do negócio jurídico direto e silencia sobre a tributação dos efeitos econômicos do negócio jurídico indireto, parece claro que há no caso uma tensão entre os dois princípios constitucionais - da legalidade e da capacidade contributiva. Constatada a tensão entre os princípios, como solucionar essa antinomia, essa evidente contradição entre duas normas constitucionais? Voltemos à lição de Canotilho.

Segundo o constitucionalista português, não há como elaborar uma Constituição que não esteja permeada de princípios antagônicos. Pelo contrário, é próprio de todo texto constitucional apresentar uma certa dose de normas conflituosas entre si porque a assembléia constituinte espelha o resultado do confronto de variados atores sociais com aspirações e interesses contraditórios.

A tensão entre princípios, entretanto, exige uma solução. E a solução, sempre segundo Canotilho, repousa na coexistência pacífica entre as contradições dos princípios constitucionais, ponderada com uma grande dose de proporcionalidade e razoabilidade na sua aplicação.

Lembre-se de que não há hierarquia entre os princípios. Como também não existe antinomia entre princípios. Diferentemente das demais normas do ordenamento, o choque entre princípios constitucionais não se resolve com a exclusão de um deles do ordenamento, pelos critérios da hierarquia, da cronologia ou da especialidade. Ambos os princípios antagônicos convivem em harmonia e o aplicador do direito deve utilizar de todo o seu bom senso, proporção e razoabilidade para aplicá-los igualmente, com a mesma importância.

Isso logicamente se não houver, no próprio texto constitucional, uma indicação da forma como a tensão entre os princípios deve ser resolvida. Porque se houver na Constituição a chave para a solução do conflito, deve esta ser adotada, em detrimento de qualquer outra.

Ora, na Constituição Federal existe - a meu ver - clara indicação sobre a forma como devem ser solucionados todos os conflitos e antagonismos em matéria de tributação, que constam de seu texto e que são decorrentes de contradições entre princípios. Trata-se do disposto no art. 146, inciso III, que tem a seguinte redação: “cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária”.

Parece-me evidente que a própria Constituição escolheu o caminho da norma complementar para dissipar todos os choques e contradições existentes entre os princípios conformadores do Sistema Tributário. A Constituição, portanto, ao cometer à lei complementar a tarefa de estabelecer as normas gerais de direito tributário, delegou competência a ela para ponderar a aplicação dos princípios contraditórios do ordenamento.

Trata-se de delegação expressa do texto constitucional, que carrega em si a relevância da incumbência determinada pelo legislador constituinte. Este, ciente dos antagonismos que estava criando com os variados princípios que estava acolhendo, confiou ao legislador complementar a tarefa de regular a coexistência harmoniosa entre eles, sopesando a aplicação de cada um deles e ponderando a forma como cada um deles irá conformar o sistema.

A lei complementar que estabeleceu as normas gerais em matéria de legislação tributária é a Lei Complementar nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, também conhecida como Código Tributário Nacional. Seu Livro Segundo é inteiramente dedicado ao estabelecimento de normas gerais. Nele constam regras de vigência da lei tributária (arts. 101 a 104); normas de aplicação da lei tributária (arts. 105 a 106); normas de interpretação e de integração da lei tributária (arts. 107 a 112); normas sobre a obrigação tributária, seu fato gerador, seu sujeito ativo, seu sujeito passivo (arts. 113 a 127); normas sobre a constituição, a suspensão, a extinção e a exclusão do crédito tributário (arts. 139 a 182); e por fim normas sobre a administração tributária (arts. 194 a 208). Todas essas matérias são inegavelmente objeto de normas gerais de direito tributário.

Especificamente no que diz respeito ao tema até aqui discutido, vemos que o legislador complementar não se furtou a enfrentar a questão da proporcionalidade entre a legalidade e a igualdade. Essa matéria foi expressamente abordada pelo art. 108 do Código Tributário Nacional, que tem a seguinte redação:

“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente na ordem indicada:

I - a analogia;

II - os princípios gerais de direito tributário;

III - os princípios gerais de direito público;

IV - a eqüidade.

§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.

§ 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.”

Sabemos que a aplicação, aos efeitos do negócio jurídico indireto, do regime jurídico tributário a que se submetem os efeitos do negócio jurídico direto somente poderia ser feita através da adoção da analogia, pois é através dessa técnica que se integra o ordenamento e que o aplicador do direito cria a norma para ser aplicada às situações de fato não previstas em lei.

Vimos acima que Bobbio admite o emprego da analogia quando as duas situações de fato apresentam uma semelhança relevante entre si. Ora, no caso concreto, parece claro que a identidade de efeitos econômicos entre os negócios jurídicos direto e indireto justifica a conclusão de haver, entre ambos, uma semelhança relevante.

E se a lei tributária prevê a incidência do tributo sobre os efeitos do negócio direto, silenciando sobre a tributação dos efeitos do negócio indireto, a técnica correta a ser empregada para a integração do ordenamento, em perfeita sintonia com os princípios da capacidade contributiva e da igualdade, é a adoção da analogia.

Ora, o legislador complementar dispôs sobre a forma como pode ser empregada a analogia no processo de integração das normas de direito tributário. O legislador complementar, no uso da atribuição que lhe foi conferida pela Constituição, admitiu a possibilidade de haver integração no direito tributário.

Não é vedado o emprego da integração no direito tributário. Pelo contrário, a integração é plenamente admitida. Mas o seu uso não pode ser feito de forma ilimitada e indiscriminada pelo aplicador do direito. O emprego da analogia no direito tributário é submetido a limites e condições.

E esses limites são aqueles estabelecidos pelo art. 108 do CTN, ou seja, o emprego da analogia não pode resultar na incidência de tributo não previsto em lei. Isso quer dizer que o legislador complementar praticamente restringiu o emprego da analogia à integração de normas tributárias que regem obrigações acessórias. As obrigações principais, que têm por objeto o pagamento do tributo, foram excluídas expressamente do processo integrativo e não podem ser exigidas através do emprego da analogia.

As restrições impostas pelo art. 108 do CTN não estão imunes a críticas. Com efeito, no exercício do poder de criar normas gerais de direito tributário, com a incumbência de ponderar a aplicação da legalidade e da igualdade previstas na Constituição, o legislador complementar conferiu excessiva preponderância à legalidade, deixando completamente de lado a igualdade no processo de integração das normas de direito tributário.

E nem se alegue que a nova redação do art. 116 do CTN teria tido o condão de ponderar os dois princípios com mais parcimônia e proporcionalidade. Isso porque o parágrafo único desse dispositivo, introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, nada mais fez do que positivar a pacífica jurisprudência de nossos Tribunais - Judiciais e Administrativos - no sentido de que os negócios simulados devem ser submetidos ao regime de tributação aplicável aos negócios que se pretendeu dissimular.

Confira-se nesse sentido a lição de Ricardo Mariz de Oliveira15.

Desse modo, continua em plena vigência a restrição ao emprego da analogia em direito tributário imposta pelo legislador complementar, prevista no § 1º do art. 108 do CTN, não modificada pelo parágrafo único do art. 116.

 

6. Conclusão

Em trabalho anterior16, sustentei que somente uma reforma de natureza constitucional, que excepcionasse o princípio da legalidade, poderia autorizar o aplicador da lei tributária a submeter os efeitos do negócio jurídico indireto ao regime de tributação próprio do negócio jurídico direto.

Hoje, após detida reflexão sobre o assunto, confesso que admito a possibilidade de mera alteração da lei complementar autorizar o aplicador do direito a estender o regime de tributação do negócio direto ao negócio indireto.

Trata-se, na verdade, da mais pura aplicação do princípio da capacidade contributiva e da isonomia, albergados pela Constituição tanto quanto foi também albergado o princípio da legalidade. Não há no texto constitucional, parece-me, qualquer indicação sobre a possibilidade de prevalência de um princípio sobre o outro. Pelo contrário, vimos que Canotilho sustenta não haver hierarquia entre princípios e os possíveis conflitos entre eles devem ser resolvidos com o emprego ponderado e proporcional de ambos.

No caso específico dos princípios de natureza tributária, o próprio constituinte delegou ao legislador complementar a competência para solucionar os antagonismos porventura existentes. E o legislador complementar de 1966 privilegiou, sem sombra de dúvidas, a legalidade em detrimento da igualdade.

Uma releitura da Constituição, especialmente do capítulo que trata do Sistema Tributário Nacional, indica a necessidade de ser feita uma revisão do art. 108 do CTN, que, sem afastar a legalidade da tributação, pudesse exprimir com maior fidelidade o pensamento do constituinte de 1988. Mesmo porque o CTN foi editado na vigência da Emenda Constitucional de 1999 e deveria passar por um processo de atualização em face da promulgação da Constituição vigente.

Mas enquanto essa revisão não for feita, continuamos submetidos ao império da estrita legalidade e da tipicidade da lei tributária. É o que se extrai do exame sistemático do art. 108 do CTN.

1 Este trabalho é uma singela homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira, fundador do IBDT e que dedicou sua vida ao ensino do Direito Tributário.

2 Lições Preliminares de Direito, Bushatsky/Edusp, São Paulo, 1973.

3 Interpretação e Aplicação dos Acordos Internacionais contra a Bitributação, tese de doutoramento de Gerd Willi Rothmann, 1978, não publicada.

4 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 1996, p. 5.

5 Teoria Generale del Diritto, Giappichelli, Torino, 1993.

6 Francesco Tesauro, Istituzioni di Diritto Tributario, vol. 1, Utet, Torino, 2000, p. 34.

7 Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998.

8 Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de Direito Administrativo, RT, São Paulo, 1986.

9 Canotilho, ob. cit., p. 1.108.

10 Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, Dialética, São Paulo, 2001.

11 Ressalvados os tributos oriundos da competência residual da União, mas que decorrem de norma excepcional expressa que restringe as possibilidades de sua adoção (art. 154, inciso I, da Constituição).

12 Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária, Dialética, São Paulo, 1998, pp. 137 e seguintes.

13 Confira-se exemplificativamente o RE nº 82.447, de 8 de junho de 1976, Revista dos Tribunais 518/244.

14 O Supremo Tribunal Federal, no RE nº 135.637 (RTJ 136/1.357), com muita felicidade, denominou essa manifestação do legislador ordinário de “silêncio eloqüente”.

15 “A Elisão Fiscal ante a Lei Complementar nº 104”, O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104, coordenador Valdir de Oliveira Rocha, Dialética, São Paulo, 2001, p. 247.

16 “Norma Geral Antielisão - Aspectos Relevantes”, O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104, coordenador Valdir de Oliveira Rocha, Dialética, São Paulo, 2001, p. 147.