A Problemática das Receitas de Terceiros perante as Bases de Cálculo da Contribuição ao PIS e da Cofins

Ricardo Mariz de Oliveira

Advogado em São Paulo. Diretor Executivo do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

I. Introdução

Com a possibilidade da incidência da contribuição ao PIS e da Cofins sobre a totalidade das receitas, a partir da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, além de todos os problemas surgidos para a caracterização do que seja receita1, uma questão em especial passou a ser objeto de preocupação: trata-se das situações em que uma pessoa jurídica receba valores que, em determinados contextos negociais, devam ser transferidas a terceiros.

Esta preocupação atinge um sem-número de atividades, como, por exemplo: agenciamento de viagens, agenciamento de publicidade, comunicações telefônicas, subempreitadas em construção civil ou em empreitadas relativas a outros objetos, consórcios cuja liderança tenha a incumbência de receber as receitas de outras consorciadas, administração de cartões de crédito.

Não é intenção deste trabalho concentrar-se em qualquer dessas atividades, ou afirmar qual o tratamento que cada uma delas deva ter perante as duas contribuições, mas apenas a de indicar os pressupostos legais, inclusive de índole constitucional, a partir dos quais os casos concretos poderão ser tratados.

Outrossim, a Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, que por primeiro prescreveu a incidência ampla sobre todas as receitas, no inciso III do § 2º do art. 3º previa a exclusão, da receita bruta, para “os valores que, computados como receita, tenham sido transferidos para outra pessoa jurídica, observadas normas regulamentares expedidas pelo Poder Executivo”.

Aparentemente, esse dispositivo legal serviria para solucionar a problemática ora enfocada, mas, a par de jamais ter sido objeto de norma regulamentadora, foi revogado pela Medida Provisória nº 1.991-18, cuja última reedição tomou o nº 2.158-35, sendo esta datada de 24 de agosto de 2001.

Em vista disso, os órgãos da Secretaria da Receita Federal, que até então não reconheciam a exclusão de valores transferidos a terceiros sob a infundada alegação de falta de regulamento, passaram a seguir a orientação central contida no Ato Declaratório SRF nº 56/00, segundo o qual a possibilidade de exclusão em tela dependida de regulamentação e, com a revogação2, nunca chegou a entrar em vigor, de modo que não há possibilidade de se efetuar a exclusão que estaria prevista na norma revogada.

Neste quadro, a proposta deste estudo é, primeiramente, verificar o que ocorre com as bases de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins em relação às receitas de terceiros que transitem por uma pessoa jurídica que as receba não para si, e, em segundo lugar, analisar a eventual importância que o revogado inciso III do § 2º do art. 3º da Lei nº 9.718 possa apresentar para a questão.

Já tive oportunidade de enfrentar o primeiro destes enfoques ao participar do 3º Simpósio Nacional IOB de Contabilidade, realizado em São Paulo no dia 21 de junho de 2000, quando ainda não havia sobrevindo a mencionada revogação. Naquela ocasião, o texto que foi publicado no livro editado para o evento, sob o título “Receitas Transferidas a Outras Pessoas Jurídicas - Exclusão nas Bases de Cálculo da Cofins e da Contribuição ao PIS - Outras Considerações sobre essas Contribuições”, apresentou as seguintes conclusões:

“Em síntese:

- a Cofins e a contribuição ao PIS são contribuições que gravam fatos isolados de receitas de qualquer espécie, inclusive as contidas no faturamento de vendas mercantis ou da prestação de serviços, podendo ser economicamente cumulativas, porque a Constituição Federal não dispôs no sentido de que elas incidam sobre valores agregados ou com dedução de valores anteriormente pagos;

- a lei ordinária, para a quantificação da base de cálculo de um específico fato gerador - uma receita - prescreve a exclusão dos valores que, tendo sido reconhecidos como receita do contribuinte, sejam por este transferidos a outras pessoas jurídicas, que sobre eles pagarão as duas contribuições se não tiverem algum tratamento excepcional;

- essa exclusão é relativa a valores referidos ao próprio evento tributável, e não a outros anteriores ou posteriores, ainda que estes também sejam sujeitos à incidência das duas contribuições;

- essa exclusão é uma imposição do princípio da capacidade contributiva;

- essa exclusão cabe quando determinada receita, referente a um determinado evento, for compartilhada entre a pessoa jurídica que a tiver recebido e outra ou outras pessoas jurídicas que tenham participado diretamente desse mesmo evento;

- a não-exclusão, nestas circunstâncias, representaria inconstitucional bis in idem e afrontaria o princípio da capacidade contributiva, pois multiplicaria incidências de um mesmo tributo sobre um mesmo evento tributável, acarretando a tributação de valores maiores do que os efetivamente existentes nessa situação.

A matéria é nova e sujeita a conflitos, sobre ela inexistindo experiência jurisprudencial, além de serem escassas as manifestações doutrinárias. Portanto, fica lançada a presente contribuição para o debate e o deslinde da mesma.”

O que motiva retornar ao assunto são os problemas causados pela revogação do citado inciso e as controvérsias que estão subsistindo no cenário negocial da atualidade.

II. A Competência Constitucional para Cobrança de Contribuições sobre a Receita ou o Faturamento - Conceitos Fundamentais de Receita e de Faturamento, e também de Patrimônio

Claro que o primeiro passo neste empreendimento é compreender o campo constitucional de incidência das duas contribuições, o que também exige compreender os conceitos jurídicos de receita, faturamento e patrimônio.

Na Constituição de outubro de 1988, o inciso I do art. 195 estabelecia, dentre as contribuições para a seguridade social, a possibilidade de serem instituídas contribuições sobre “o faturamento”. Depois disso, como já dito acima, a Emenda Constitucional nº 20 estendeu a incidência para abarcar “a receita ou o faturamento”.

O conceito de “faturamento”, antes da Emenda nº 20, sempre suscitou uma série enorme de discussões, muito embora a Lei nº 5.474, de 18 de julho de 1968, previsse a emissão de faturas e duplicatas apenas para vendas de mercadorias e prestação de serviços, conceito este que, sendo de direito privado, necessariamente teria que repercutir no âmbito tributário, conforme o mandamento do art. 110 do Código Tributário Nacional - CTN.

Neste aspecto, manifestações jurisprudenciais, inclusive do Supremo Tribunal Federal, reconheceram que faturamento abrangeria vendas de mercadorias e serviços, mas não exclusivamente negócios para pagamento a prazo. Todavia, as discussões não cessaram aí, e todos têm conhecimento de alargamentos admitidos por certa jurisprudência, como, para citar um exemplo, a inclusão, no conceito, das vendas de imóveis.

Hoje em dia, com o advento da Emenda nº 20, perdeu muito da sua importância caracterizar especificamente o que seja “faturamento”, pois ele é um conceito muito menos amplo do que “receita”, e toda e qualquer receita está inserida no campo de incidência das duas contribuições.

Numa ótica atual correta, faturamento não passa de uma espécie do gênero receitas.

Realmente, para as exações destinadas à seguridade social, faturamento não pode ser considerado o simples ato físico ou material de emitir faturas, pois qualquer incidência fiscal visa o conteúdo econômico das situações constitucionalmente eleitas como hipóteses de incidência. Destarte, faturamento somente pode ser concebido como o montante ou o conteúdo econômico das faturas, representado pelas receitas contidas nas mesmas, vale dizer, pelas receitas de vendas de mercadorias e da prestação de serviços.

Já receitas, que a partir da Emenda nº 20 passaram a integrar o campo de incidência das contribuições destinadas à seguridade social, tanto podem ser as contidas no faturamento quanto as manifestadas por outras vias e a partir de outros negócios jurídicos que não a compra e venda de mercadorias e a prestação de serviços.

Há uma outra maneira de ver a dicotomia “faturamento ou receita” estabelecida pela Constituição, maneira esta que parte do pressuposto de que os dois termos são sinônimos e se equivalem.

Da minha parte, não comungo com esta maneira de ver, pois não me parece minimamente razoável que a Constituição tenha recebido uma emenda tão-somente para florear o texto com a inserção de uma palavra sinônima de outra já contida na norma anterior.

Na verdade, e como deve acontecer com quaisquer alterações legislativas, a inovação da Emenda nº 20 modificou efetivamente o dispositivo, pois aumentou o campo de incidência das contribuições para a seguridade social, que neste ponto antes era limitado ao faturamento. Com a alteração, foi mantida a palavra “faturamento” - embora fosse bastante a referência à “receita” - por razões históricas e com o intento de evitar qualquer dúvida quanto ao novo e amplíssimo espectro de incidência, além de não prejudicar o deslinde de velhas controvérsias nas quais a União Federal defendia que faturamento não tinha alcance restrito a vendas mercantis e serviços.

Não obstante, a sinonímia parece ser a opção adotada pelo legislador ordinário, até porque, diga-se de passagem, o mentor da Emenda nº 20 foi o mesmo autor dos projetos que se transformaram nas leis que a ela se atrelaram.

Assim, a Lei nº 9.718 diz no art. 2º que as contribuições “serão calculadas com base no faturamento”, e no art. 3º arremata que “o faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica”, o que equivale, portanto, a equiparar os termos. O mesmo ocorre com a Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002, no seu art. 1º.

Seja como for, não é importante que aqui nos detenhamos neste debate, pois, sejam o que forem “receita” e “faturamento”, o que nos interessa é verificar se os valores repassados a terceiros integram ou não a receita do recebedor ou o seu faturamento. Melhor dizendo, o que queremos é estabelecer se tais valores compõem a receita do recebedor, faturada ou não, passível de incidência da contribuição ao PIS e da Cofins.

Neste mister, é de primeira importância saber o que seja “receita”, notando-se que é necessário um empenho doutrinário neste sentido, em face da inexistência de uma definição geral fornecida por lei, o que se agrava em vista do entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, a despeito do disposto no art. 149 da Constituição, as contribuições para a seguridade social não dependem de lei complementar para definição dos respectivos fatos geradores e bases de cálculo.

Uma primeira tentativa de definição, que até pode ser suficiente para os fins deste estudo, é dizer que as receitas representam entradas ou ingressos no patrimônio de uma pessoa em decorrência das suas atividades negociais, remunerando-a pelo exercício destas, e se destinando a pertencer ao respectivo patrimônio.

Antes da Emenda nº 20, a conceituação de receita foi muitas vezes proferida pela doutrina tributária brasileira, mas com vistas a um ou a outro objetivo específico. Somente após essa alteração constitucional alguns autores se voltaram para uma definição mais ampla, agora requerida. Vale citar, de ambos os períodos: Aliomar Baleeiro, Uma Introdução à Ciência das Finanças, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 130; Eduardo Domingos Bottallo, citando Ruy Barbosa Nogueira, Geraldo Ataliba e Bernardo Ribeiro de Moraes, in Repertório IOB de Jurisprudência nº 23/99, p. 667, e também na Revista Dialética de Direito Tributário nº 5, p. 16; Aires Fernandino Barreto, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 5, p. 85; Sidney Saraiva Apocalypse, citando Bulhões Pedreira, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 48, p. 172; Marco Aurelio Greco, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 50, p. 129.

Desses estudos podem ser extraídas algumas afirmações que se destacam, seja por sua pertinência, seja por sua constância nas referidas publicações:

- receita é um tipo de entrada ou ingresso no patrimônio da pessoa jurídica, sendo certo que nem todo ingresso ou entrada é receita;

- receita é o tipo de entrada ou ingresso que se integra ao patrimônio sem reserva, condição ou compromisso no passivo, acrescendo-o como elemento novo e positivo;

- a receita, portanto, passa a pertencer à pessoa jurídica com sentido de permanência;

- receita remunera a pessoa jurídica, correspondendo ao benefício efetivamente resultante de atividades suas;

- receita exprime a capacidade contributiva da pessoa jurídica;

- receita modifica o patrimônio, incrementando-o.

Fora da doutrina jurídica, vamos encontrar na ciência contábil conceito que, em linhas gerais, equivale às afirmações acima.

Leia-se, por exemplo, o seguinte pronunciamento do Ibracon - Instituto Brasileiro de Contadores (Princípios Contábeis, 2ª ed., São Paulo, Atlas, p. 112):

“2. Receita corresponde a acréscimos nos ativos ou decréscimos nos passivos, reconhecidos e medidos em conformidade com princípios de contabilidade geralmente aceitos, resultantes dos diversos tipos de atividades e que possam alterar o patrimônio líquido. Receita e despesa, como conceituadas neste pronunciamento, se restringem genericamente às atividades de empresas comerciais e industriais, não abrangendo, conseqüentemente, as empresas que exploram recursos naturais, transportes, e outras entidades, inclusive as sem fins lucrativos.

3. Acréscimos nos ativos e decréscimos nos passivos, designados como receita, são relativos a eventos que alteram bens, direitos e obrigações. Receita, entretanto, não inclui todos os acréscimos nos ativos ou decréscimos nos passivos. Recebimento de numerário por venda a dinheiro é receita, porque o resultado líquido da venda implica em alteração do patrimônio líquido. Por outro lado, o recebimento de numerário por empréstimo tomado ou o valor de um ativo comprado a dinheiro não são receita, porque não alteram o patrimônio líquido. Nem sempre a receita resulta, necessariamente, de uma transação em numerário ou seu equivalente, como por exemplo, a correção monetária de valores ativos.”3

Outro exemplo encontra-se na Resolução CFC nº 750, de 29 de dezembro de 1993, pela qual o Conselho Federal de Contabilidade dispôs sobre os princípios fundamentais de contabilidade, outrora mais conhecidos como “princípios contábeis geralmente aceitos”. Depois de dizer no “caput” do art. 9º que “as receitas e as despesas devem ser incluídas na apuração do resultado do período em que ocorrerem...”, acrescenta o seguinte § 3º a esse dispositivo:

“§ 3º As receitas consideram-se realizadas:

I - nas transações com terceiros, quando estes efetuarem o pagamento ou assumirem compromisso firme de efetivá-lo, quer pela investidura na propriedade de bens anteriormente pertencentes à Entidade, quer pela fruição de serviços por esta prestados;

II - quando do desaparecimento, parcial ou total, de um passivo, qualquer que seja o motivo;

III - pela geração natural de novos ativos, independentemente da intervenção de terceiros.”

Em suma, para a contabilidade, a receita é algo que integra o resultado do período e que existe quando terceiros efetuam o pagamento de uma transação ou assumem o compromisso firme de efetivá-lo em decorrência de uma venda ou de serviços, ou pelo desaparecimento de uma dívida ou geração natural de ativos. Com a ressalva da inclusão da geração natural de ativos, sob o ponto-de-vista jurídico o conceito de receita é o mesmo.

Voltado para o tema conceito de “receita” após a Emenda nº 20, desenvolvi dois estudos, a saber: “Conceito de Receita como Hipótese de Incidência das Contribuições para a Seguridade Social (para Efeitos da Cofins e da Contribuição ao PIS)”, publicado no livro do 9º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário, Grandes Temas Tributários da Atualidade - 2000, pp. 39 e segs., e no Repertório IOB de Jurisprudência nº 1/01, pp. 43 e segs.; e “PIS/Cofins: Incidência ou não sobre Créditos Fiscais (Créditos-prêmio e Outros) e Respectivas Cessões”, que preparei para 10º Simpósio IOB de Direito Tributário, publicado no respectivo livro Grandes Temas Tributários da Atualidade - 2001, pp. 29 e segs.

Nesses estudos, recorrendo inclusive à evolução doutrinária precedente e a observações da experiência de vários contratos, cheguei à conclusão de que receita é um conceito formado por vários elementos afirmativos, e negado por alguns elementos negativos. De lá para cá, a própria aplicação do resultado desses estudos permitiu uma evolução para acrescentar alguns novos pontos específicos, embora mantendo as conclusões básicas anteriores.

Destarte, entendo que o conceito de receita não é um conceito contábil, mas, sim, um conceito jurídico, que assim se resume:

- receita é algo novo, que se incorpora a um determinado patrimônio;

- todo patrimônio é formado por um conjunto de direitos e obrigações de um determinado sujeito de direito, isto é, por elementos regulados pelo direito;

- logo, o algo novo que se constitui em receita é um dado jurídico, definido pelo direito;

- não existe uma definição única e geral para receita, de modo que, em cada situação, receita será um acréscimo patrimonial dependente da definição jurídica aplicável, isto é, do tratamento jurídico que for prescrito pela norma jurídica aplicável a essa situação;

- por conseguinte, a receita é um “plus jurídico” que se agrega ao patrimônio, ainda que o ato do qual ela seja parte não acarrete aumento patrimonial, ou mesmo que acarrete redução patrimonial; por isso, é mais apropriado dizer que receita agrega um elemento positivo ao patrimônio;

- receita é um novo direito - na sua existência, se se tratar de direito antes inexistente, ou na sua valoração por novo ato jurídico bilateral ou multilateral, quanto a direitos anteriormente existentes -, de qualquer natureza e de qualquer origem, produzido por qualquer causa ou fonte eficiente, desde que pertencente ao próprio patrimônio, e que não acarrete para o seu adquirente qualquer nova obrigação;

- em outras palavras, receita é um acréscimo de direito que não acarrete qualquer prestação para o adquirente desse direito, pendente de cumprimento por ele; ou, ainda, receita é um acréscimo de direito para o respectivo adquirente que não atribua a terceiro qualquer direito contra o adquirente daquele primeiro direito;

- ademais, receita é um novo direito adquirido por alguém, que representa obrigação para um terceiro, a qual surge necessariamente no mesmo momento da aquisição do direito por aquele alguém, mas cujo cumprimento ou extinção não necessita ocorrer simultaneamente;

- mas não é receita a entrada ou o ingresso de um novo elemento positivo no ativo que seja mera decorrência e mero cumprimento de obrigação da contraparte do titular do correspondente direito, ou que seja destinado a esta finalidade, isto é, o simples ingresso ou entrada de um meio de pagamento não se qualifica como receita;

- também não é receita o direito novo que seja simples direito à devolução de direito anteriormente existente no ativo componente do patrimônio, ou de outro que juridicamente lhe seja equivalente, e que apenas reponha o ativo e o patrimônio ao estado anterior;

- também não é receita o direito novo que, por sua natureza e por definição legal, represente capital social ou reserva de capital da pessoa jurídica, ou que, mesmo não representando capital social ou reserva de capital, por sua natureza corresponda a uma transferência patrimonial;

- redução ou extinção de obrigação, sem pagamento ou qualquer outro comprometimento de ativos, também pode ser considerada receita, o que ocorre se for possível identificar nela uma forma de remuneração ou contraprestação do patrimônio; ao contrário, não se tratará de receita se tal redução de passivo for uma hipótese de transferência de dívida para o patrimônio líquido, como pode ocorrer com a transferência de créditos dos sócios contra a pessoa jurídica, para aumento de capital ou absorção de prejuízos acumulados, além dos casos em que o perdão de dívida perante os sócios ou terceiros se constituir numa gratuidade, que também importa transferir o crédito perdoado para reserva de capital, sendo estes casos meras transferências patrimoniais, correspondendo à mandatória definição de “não receita”4 e do respectivo crédito à conta de capital, de reserva de capital ou de prejuízo acumulado.

Este elenco de dados, que compõem o que podemos chamar de elementos e características das receitas, forma um conjunto orgânico e coerente pelo qual se pode, por uns, afirmar existir receita, e por outros excluir essa afirmação.

Por se tratar de um conjunto orgânico e coerente, todos os elementos e características das receitas devem ser sempre empregados na abordagem de qualquer situação concreta, pois, para ser receita, um ingresso ou entrada deve corresponder a todos os elementos e características afirmativos e não pode corresponder a qualquer um dos negativos.

Ademais, do acervo doutrinário colhido e do conjunto de elementos e características das receitas, pode-se definir receita de uma maneira geral como sendo qualquer ingresso ou entrada que se incorpore positivamente ao patrimônio empresarial, e que represente remuneração ou contraprestação de atos, atividades ou operações da pessoa jurídica (remuneração ou contraprestação do emprego dos seus recursos materiais, imateriais ou humanos).

De se observar, a partir desta definição, que a receita ainda traz consigo esta característica de ser o produto que vem de fora do patrimônio empresarial, mas que é derivado de dentro, por decorrer de atos, operações ou atividades da empresa, ou do emprego de recursos que compõem esse patrimônio, e de que resulte algum benefício direto para a pessoa que o remunera por isso.

Em todas as ocasiões anteriores em que me dediquei a este tema, recorri a um exemplo que serve de teste para demonstrar a procedência da conceituação acima exposta, sendo útil repetir a experiência neste momento.

Trata-se de confrontar o que foi dito com o preço de uma venda mercantil, que, por conhecimento empírico, ninguém contesta ter a natureza jurídica de receita, além de inquestionavelmente caber no conceito de faturamento. Assim, aplicando aqueles elementos e características de conceituação de receita ao contrato de venda mercantil, e seguindo-se a ordem acima, pode-se verificar que, após a entrega da mercadoria, o respectivo preço:

- é receita por ser algo novo que se incorpora ao patrimônio do vendedor, sendo um dado jurídico definido pelo direito, ou seja, pela norma jurídica aplicável à situação (antes, pelo art. 191 do Código Comercial; hoje pelos arts. 237, 481 e segs., 1.226 e 1.267 do Código Civil de 2002), correspondendo assim a um “plus jurídico”, ainda que o ato de venda a que se refere não acarrete aumento patrimonial ou mesmo que acarrete redução patrimonial, pois, isoladamente considerado, ele agrega um elemento positivo ao patrimônio do vendedor, sendo um novo direito antes inexistente nesse patrimônio, produzido por uma causa ou fonte do próprio patrimônio, sem acarretar qualquer nova obrigação para o vendedor, obrigação esta que esteja pendente de cumprimento por ele, e que não atribui a terceiro qualquer direito contra o vendedor, pelo contrário representando obrigação para o comprador, surgida esta no mesmo momento da aquisição do direito ao preço pelo vendedor, ainda que o termo de cumprimento ou extinção dessa obrigação não ocorra simultaneamente;

- outrossim, é receita por não ser ingresso ou entrada decorrente de mero cumprimento de obrigação do comprador, nem destinado a esta finalidade, além de não ser mera devolução de direito anteriormente existente no patrimônio do vendedor ou de outro que lhe seja juridicamente equivalente, e também por não se destinar a repor o patrimônio ao estado anterior, nem representar capital social, reserva de capital ou outra transferência patrimonial;

- ademais, é receita por ser remuneração ou contraprestação de ato, atividade ou operação do vendedor, vindo de fora do respectivo patrimônio empresarial, mas sendo derivado de dentro, ou seja, de ato, operação e atividade da empresa do vendedor e do emprego de recursos que compõem o seu patrimônio;

- finalmente, é receita porque, a partir do momento da entrega da mercadoria, há direito adquirido definitiva e incondicionalmente.

Em suma, o produto ou contrapartida (preço) que uma venda de mercadoria traz para a pessoa jurídica é receita desta porque preenche todos os elementos e características positivos do conceito de receita, e não incorre em qualquer dos negativos. Além disso, é receita também em face do acervo doutrinário acima exposto, pois corresponde aos seguintes elementos afirmados pelos autores citados: é um tipo de ingresso ou entrada no patrimônio do vendedor, que se integra a ele sem reserva, condição ou compromisso no passivo, acrescendo-o com elemento novo e positivo, passando a pertencer ao vendedor com sentido de permanência, remunerando a sua atividade, exprimindo a sua capacidade contributiva e modificando o seu patrimônio, para incrementá-lo.

Resumindo tudo, o arquétipo de receita corresponde a todos estes enunciados, de modo que é receita o que corresponda a ele nos seus elementos e características afirmativos e não corresponda quanto a qualquer um dos negativos, pois, como dito, para ser receita, um ingresso ou entrada deve corresponder a todos os elementos e características afirmativos e não corresponder a todos os negativos.

Ainda há um outro conceito jurídico que precisa ser devidamente considerado: trata-se do conceito de patrimônio. Considerar o que seja patrimônio torna-se relevante a partir da afirmação, já feita, de que as receitas representam fundamentalmente um tipo de acréscimo ao patrimônio da pessoa, derivando do fornecimento de utilidades feito por essa pessoa aos devedores ou pagadores do correspondente ingresso ou entrada. Além disso, também foi dito que as receitas, dentre outras características, devem ser o produto do fornecimento de utilidades mediante o emprego de elementos componentes do patrimônio.

Portanto, vejamos o que é patrimônio.

Ao contrário de receita, para a qual não existe uma definição geral dada por lei, para patrimônio o direito positivo, ao menos desde o Código Civil de 1916, contém norma expressa. Realmente, naquele Código lia-se o seguinte:

“Art. 57. O patrimônio e a herança constituem coisas universais, ou universalidades, e como tais subsistem, embora não constem de objetos materiais.”

Coisa universal ou universalidade significa um conjunto de elementos unidos entre si para constituir uma única entidade, distinguindo-se as universalidades de fato das universalidades de direito (universitas juris).

As universalidades de fato constituem-se pelo conjunto de coisas físicas que se unem para constituir um todo determinado, sem perder a individualidade de cada uma. No dizer do art. 90 do Código Civil de 2002, “constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária”, definição esta que no art. 54, inciso II, da anterior lei civil era restrita à conceituação de coisas coletivas ou universais como sendo as que se encaram agregadas ao todo. Exemplo de universalidade de fato é a composição ferroviária formada pela locomotiva e pelos vagões, que são coisas singulares reunidas para uma única destinação.

As universalidades jurídicas já são idealizações do direito e são compostas por relações jurídicas, como são a herança e o patrimônio, segundo o art. 57 da Lei de 1916.

Neste aspecto, nada mudou com o novo Código Civil Brasileiro aprovado pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o qual inclusive incorporou ao conceito de universalidade jurídica o cunho econômico das relações jurídicas por ela abrangidas, exatamente como a doutrina sempre apontou.

Realmente, segundo o art. 91 do novo código, “constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”.

Mais detalhadamente, podemos dizer que o patrimônio de uma pessoa é coisa universal ou universalidade jurídica constituída por todos os direitos e todas as obrigações dessa pessoa, que tenham valor econômico. Ou ainda, podemos dizer que os elementos constitutivos da entidade universal denominada “patrimônio” são sempre dados do direito, isto é, direitos e obrigações segundo alguma disciplina jurídica, desde que tenham expressão econômica.

Por outro lado, tratando-se de direitos e obrigações, necessariamente, há um sujeito de direito que seja titular daqueles e devedor destas, que é a pessoa física ou jurídica proprietária do patrimônio.

Esta dissecação do conceito legal de patrimônio não é original nem é novidade, pois os civilistas sempre demonstraram esses elementos contidos no patrimônio.

Cito inicialmente, por me parecer tratar-se de quem melhor abordou a matéria, o Professor Silvio Rodrigues, em cujo livro Direito Civil - Parte Geral, vol. 1, 2ª ed., São Paulo, Max Limonad, pp. 121/122, explica:

“Noção de Patrimônio - Mister agora se faz dar uma idéia de patrimônio.

O Código Civil, em seu art. 57, o define como universalidade e certamente como ‘universitas juris’, pois subsiste, embora não conste de objetos materiais. O patrimônio é formado pelo conjunto de relações ativas e passivas e esse vínculo entre os direitos e as obrigações do titular, constituído por força de lei, infunde ao patrimônio o caráter de universalidade de direito (Sylvio Marcondes, ob. cit., nº 79).

O patrimônio de um indivíduo é representado pelo acervo de seus bens, conversíveis em dinheiro. Há, visceralmente ligada à noção de patrimônio, a idéia de valor econômico, suscetível de ser cambiado, de ser convertido em pecúnia. Nesse sentido a opinião de Beviláqua, que define patrimônio como

‘... o complexo das relações jurídicas de uma pessoa que tiverem valor econômico’.

Entende o mestre que o patrimônio é composto por todo o ativo e por todo o passivo do indivíduo. De modo que se pode encontrar pessoa que tenha um patrimônio negativo, como é o caso do insolvente.

Esse conceito de patrimônio, abrangendo o ativo e o passivo de uma pessoa, provocou alguma crítica na doutrina, crítica encabeçada por Fadda e Bensa, em suas notas às ‘Pandectas’ de Windscheid. Sustentam que aí há uma confusão entre a idéia de ter um patrimônio e a capacidade, reconhecida pela lei a todo o homem, de o ter. Quem dirá, perguntam, que o indivíduo apenas por ter capacidade para ser titular de um patrimônio, já o tenha?

A crítica, entanto, não infirmou a idéia, tendo apenas provocado correções, tais as que admitem cabentes na noção de patrimônio dois sentidos. Isto é, o termo patrimônio, se pode empregar corretamente para indicar, seja a soma do ativo (patrimônio bruto), seja o conjunto do ativo com dedução do passivo que o grava (patrimônio líquido).”

Cito, também, o Professor Washington de Barros Monteiro, para quem (Curso de Direito Civil - Parte Geral, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 147):

“Coisas singulares e coletivas: - Ainda sob o mesmo aspecto, em si mesmas consideradas, as coisas são simples e compostas.

Coisas simples, em direito, são as que formam um todo homogêneo, cujas partes, unidas pela natureza ou pelo engenho humano, nenhuma determinação especial reclama da lei: ‘unu spiritu continentur’, como diziam os romanos. Podem ser materiais (como um cavalo, uma planta), ou imate­riais (como um crédito).

Coisas compostas são as que se formam de várias partes ligadas pela arte humana. Como as simples, podem ser também materiais (por exemplo, a construção de um edifício, com fornecimento de materiais e mão-de-obra) e imateriais (por exemplo, o fundo de negócio).

As coisas simples ou compostas, materiais ou imateriais, são singulares ou coletivas (art. 54):

I. Singulares, quando, embora reunidas, se consideram de per si, independentemente das demais.

II. Coletivas, ou universais, quando se encaram agregadas em todo.

As coisas singulares, embora consideradas isoladamente, têm individualidade própria, têm valor próprio. Como observa Clóvis, as coisas são ordinariamente singulares. Somente por determinação da lei, ou pela vontade das partes, se consideram coletivas.

Coisas coletivas, ou universais, são as que, embora constituídas de duas ou mais coisas singulares, se consideram, todavia, agrupadas num único todo. Esse todo, que tem individualidade distinta das unidades que o compõem, é geralmente designado por um nome genérico.

As coisas coletivas compreendem as universalidades de fato (por exemplo, o rebanho, uma biblioteca, uma galeria de arte) e as universalidades de direito (o patrimônio, a herança, a massa falida, o fundo de negócio).”

Não discrepa dessas lições a doutrina de Caio Mário da Silva Pereira, em sua obra Instituições de Direito Civil, vol. I, 9ª ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 295:

“Reminiscência de intermináveis discussões dos glosadores, herdadas pelo direito moderno, é a distinção das coisas em singulares e coletivas, de quase nenhum interesse prático. Dizem-se singulares as coisas quando, embora reunidas, consideram-se de per si, independentemente das demais, e coletivas ou universais, quando se encaram agregadas em um todo. Não é o mesmo que distingui-las em simples ou compostas, pois que os critérios diferenciadores são diversos, vigorando, nesta última classificação, a coesão natural de suas partes, ou o fato de estarem artificialmente unidas. Uma árvore é uma coisa simples, um navio uma coisa composta, mas uma e outro são coisas singulares. Uma floresta ou uma frota, como um agregado no seu conjunto, têm-se como coisas coletivas, que os glosadores chamavam de universalidades de fato e universalidades de direito. A ‘universitas facti’ é a que se compõe de coisas corpóreas, e auniversitas iuris’ a que se forma de coisas e direitos. Para o legislador brasileiro a herança e o patrimônio são casos típicos de universalidades jurídicas, que subsistem ainda que não constem de objetos materiais (Código Civil de 1916, art. 57), porque a idéia fundamental da universalidade jurídica é um conjunto de relações de direito, e não propriamente as coisas sobre que recaem.”

Entre os tributaristas, quem chamou atenção para o conceito jurídico de patrimônio foi Brandão Machado, que se referiu a Pontes de Miranda e observou com clareza o seguinte (Estudos sobre o Imposto de Renda (em Homenagem a Henry Tilbery), São Paulo, Resenha Tributária, julho de 1994, p. 114):

“XVII - O Código Civil (art. 57) diz que patrimônio é uma universalidade, subsistindo como tal, ainda que não conste de objetos materiais. A universalidade é sempre de direito, embora haja ‘univesitas facti’ ou ‘hominis’, que também é de direito. No patrimônio só há direitos. Não se pode dizer, em terminologia e sistemática jurídica escorreita, diz Pontes de Miranda, que a casa A é elemento do patrimônio de alguém; o que é elemento do patrimônio é o direito de propriedade e os demais direitos reais, os direitos sobre bens imateriais, os direitos de crédito e a herança, que, por sua vez, é universalidade de direito. A posse também é direito e pode integrar o patrimônio. Não são os bens que compõem o patrimônio, mas, sim, os direitos sobre eles, que são direitos reais; mas não só os reais; também os direitos de crédito, ou pessoais.

XVIII - Quando alguém faz alguma referência ao que é patrimonial, para logo se tem a noção de que se cogita de econômico, porque a patrimonialidade está intimamente vinculada ao valor econômico. Entretanto, não é possível dissociar da noção de patrimônio a noção fundamental de direito, porque, como se disse, o conceito de patrimônio engloba um complexo não de objetos, materiais ou não, mas de direitos reais (sobre coisas) e pessoais (contra pessoas), portanto, sempre direitos.”

Destaque-se nesse trecho a observação de que, em virtude de o patrimônio ser formado integralmente por direitos e obrigações, é errônea a afirmação comumente feita de que participam de um ativo patrimonial veículos, máquinas, imóveis, mercadorias, etc. Na verdade, o que participa do patrimônio são os direitos de propriedade ou de posse sobre essas coisas.

Na lei comercial, a conceituação da lei civil repercute no mesmo tom, pois a Lei nº 6.404, disciplinando no art. 179 a classificação dos bens no ativo das sociedades por ações5, refere-se, dentre os ativos circulantes e realizáveis, a “direitos realizáveis”, “direitos de crédito” e “direitos que tenham por objeto bens”, ou seja, aludindo corretamente à efetiva natureza jurídica dos componentes do ativo patrimonial, que são sempre direitos.

Note-se em particular no art. 179 a alusão a “direitos que tenham por objeto bens”, e confirme-se que Brandão Machado tem razão quando assevera que no patrimônio não existem objetos materiais, mas só direitos, inclusive direitos sobre objetos materiais ou não.

Da mesma maneira, ao tratar do passivo exigível, o art. 180 dessa lei alude à “obrigações”, ou seja, também a elementos regidos pelo direito.

Se nos estendermos nessa pesquisa em torno desses dispositivos da Lei nº 6.404, encontraremos menções à “disponibilidades”, “aplicações de recursos”, “participações societárias”, etc., que também são direitos, pois aí temos os direitos de propriedade sobre as disponibilidades financeiras, ou sobre os recursos aplicados, ou sobre as participações societárias.

E assim é com todos os elementos do patrimônio, a despeito de que, na forma de expressão das contas do balanço patrimonial, costumeiramente se leia simplesmente “veículos”, “imóveis”, etc., o que na essência representam efetivamente direitos sobre veículos, sobre imóveis, ou sobre outras coisas.

Esta coincidência entre o que dispõem a lei civil e a lei societária não é produto do acaso, mas, sim, decorre da unicidade e organicidade do ordenamento jurídico, que não permitiria haver uma descrição de ativos ou de passivos na norma societária que fosse contraditória com a definição de patrimônio dada pela lei civil.

Também é decorrência dessa uniformidade sistemática o fato de que a diferença matemática entre o ativo (composto por direitos) e o passivo (composto por obrigações), seja intitulado pela Lei nº 6.404 de “patrimônio líquido”, ou seja, o mesmo vocábulo da lei civil (“patrimônio”) qualificado pelo adjetivo “líquido”.

Realmente, todos os componentes positivos do patrimônio da pessoa jurídica são direitos de cunho econômico que contabilmente são figurados no ativo, e todos os seus componentes negativos são obrigações com conteúdo econômico relacionadas contabilmente no passivo, de tal modo que o patrimônio é a somatória de todos os direitos menos a somatória e de todas as obrigações da pessoa. Ou, computando algebricamente, o patrimônio é o resultado da soma de tudo o que for positivo com tudo o que for negativo, e, contabilmente se expressando, ele é tudo o que for ativo menos tudo o que for passivo, sendo que o diferencial entre os dois grupos representa exatamente o que o direito e a ciência contábil denominam unissonamente de “patrimônio líquido”.

Não olvidemos, portanto, o elemento central que ora nos interessa, que é a natureza jurídica de todos os componentes do patrimônio: todos eles são dados do direito.

Ademais, por ser assim, à toda evidência nesta conceituação de patrimônio uma pessoa assume participação especial, em virtude de ser ela que liga indissoluvelmente todos os elementos - direitos e obrigações - que o compõem.

Realmente, direitos ou obrigações não são seres da natureza, nem são seres que existam por si sós num mundo físico ou virtual. Ao contrário, são seres do direito ligados indissociavelmente a uma pessoa, isto é, mais precisamente, são elementos de uma relação regida pelo direito - relação jurídica - que une no mínimo duas pessoas distintas, para atribuir direito a uma e obrigação a outra. Outrossim, nessa relação jurídica, mais de duas pessoas podem participar, em qualquer um dos seus pólos, como também pode haver a relação de direito real, aproximando uma pessoa de alguma coisa especificamente considerada, e oponível erga omnes.

No fundo, direitos e obrigações são os objetos dessas relações jurídicas, e, havendo relações jurídicas, necessariamente há pessoas, uma vez que direitos são detidos e obrigações são devidas necessariamente por alguém que participe das relações jurídicas das quais aqueles direitos e obrigações são os objetos.

Por isso é que se dá a necessária consideração do sujeito de direito quando se pensa no patrimônio ao qual os direitos e as obrigações pertencem, pois estes, verdadeiramente, não pertencem ao patrimônio, que é massa única de direitos e obrigações, mas, sim, pertencem à pessoa que, com esta massa, dá origem e existência ao patrimônio, que é seu.

Ou seja, os direitos pertencentes a uma dada pessoa e as obrigações que essa mesma pessoa tenha formam, no seu conjunto e desde que tenham valor econômico, o que a ordem jurídica concebe como patrimônio.

Percebe-se nitidamente, sem esforço, que a idéia dessa pessoa necessária a formar um patrimônio deriva de que os direitos e obrigações componentes de um determinado patrimônio não apresentam entre si qualquer relação material que os una a um todo de alguma natureza física, como também não há, em princípio ou por natureza, qualquer elo entre eles, nem sua vinculação em relação a qualquer conjunto de qualquer espécie.

Na verdade, a única via de comunicação entre tais direitos e obrigações é a pessoa única que os detém, a qual, por conseqüência, constitui e dá existência ao respectivo patrimônio com todos os seus direitos e obrigações possuidores de conteúdo econômico.

Toda esta digressão em torno de patrimônio - principalmente sua formação exclusivamente por direitos e obrigações regidos pelo ordenamento jurídico - torna-se necessária para passarmos a verificar que, se é assim, e se receita é algo que se incorpora a um patrimônio, necessariamente receita também é um dado do direito.

Quer dizer, de pronto podemos constatar e afirmar que mutações no patrimônio ocorrem apenas por acréscimos ou reduções de direitos e de obrigações, segundo o ordenamento jurídico.

Tal como ocorre quanto ao patrimônio, também quanto aos fatos positivos e negativos que contribuem para aumentar ou diminuir o patrimônio, eles não se inter-relacionam materialmente ou por qualquer outro liame, mas se ligam por terem um denominador comum em todos eles, que é a pessoa titular do patrimônio.

Portanto, o patrimônio é “coisa universal” instituída pelo direito, isto é, “universalidade de direito”, composta por uma multidão de direitos referentes a bens físicos, outros direitos relativos a bens imateriais, obrigações pendentes de cumprimento, enfim, direitos e deveres de toda ordem, sempre com expressão econômica, os quais não teriam qualquer associação natural entre si, mas que passam a ter uma adesão ideal porque agrupados segundo uma norma jurídica e em razão do sujeito de direito que é titular e devedor de cada um desses componentes.

Por conseqüência, as receitas que se agregam a esse patrimônio representam necessariamente um “plus jurídico”, no sentido de que necessariamente devem ser novos direitos que se agregam a um determinado patrimônio, a partir do que todos os demais elementos e características acima elencados podem e devem ser confrontados. Por outro lado, há reduções (cancelamentos) de passivos que, dependendo dos mesmos elementos e características, também podem representar receitas e não deixam de corresponder a novos direitos, no caso ao direito do até então devedor deixar de pagar as dívidas exoneradas.

Penso que estes são os conceitos fundamentais sobre o campo de incidência das contribuições sobre faturamento ou receitas, aos quais se associa umbilicalmente o conceito de patrimônio, formando eles os conceitos necessários para se poder abordar especificamente a questão dos recebimentos pertencentes a terceiros.

III. Os Recebimentos de Valores Transferíveis a Terceiros

Nas situações de valores recebidos por uma pessoa jurídica, mas destinados à transferência para outrem, a conclusão sobre se os respectivos ingressos ou entradas representam ou não receitas para a aquela pessoa - passando ou não a integrar as bases de cálculo das suas obrigações a título de contribuição ao PIS e de Cofins - depende exclusivamente dos elementos e características dissecados no capítulo II do presente estudo.

Nem de outra forma poderia ser, perante o que lá foi visto, em especial a partir da constatação feita, de que nem todos os ingressos ou entradas constituem-se em receitas.

Portanto, pela norma jurídica - lei e/ou contrato - aplicável em cada caso pode-se saber se se trata de um novo direito que corresponda a todos os elementos e características positivos das receitas e não corresponda a qualquer dos negativos. Se assim for, estar-se-á frente a uma receita da pessoa jurídica recebedora.

Ao contrário, quando assim não for, estar-se-á perante um ingresso ou entrada que não corresponde à receita dessa mesma pessoa, embora possa ser receita da outra pessoa jurídica à qual o respectivo valor se destina.

Não havendo aqui preocupação em considerar qualquer caso concreto, nem declarar a priori existir ou não existir receita, basta apontar que não deve causar surpresa a afirmação de que algum valor, embora cobrado pela pessoa jurídica, possa não corresponder à receita sua. Isto pode acontecer, pois há inúmeras situações em que a pessoa jurídica tem um mero ingresso ou entrada de ordem financeira que não lhe pertence, eis que se destina ao patrimônio de outrem, a quem pertencerá e de quem poderá ser receita.

Quando este for o caso, isto é, quando juridicamente não houver incremento patrimonial pela agregação de um novo direito ao patrimônio da pessoa recebedora, o ingresso ou entrada que tiver ocorrido será objeto de registro contábil a débito do seu ativo (conta de caixa ou banco), em contrapartida a crédito ao seu passivo (conta a pagar ao terceiro a quem se destina o respectivo valor), não havendo um crédito à conta de receita, que seria a porta de entrada no patrimônio líquido da pessoa recebedora.

Isto é assim porque, nestes casos, simultaneamente ao recebimento existe para a pessoa jurídica recebedora a obrigação de entregar o valor recebido a quem de direito, motivando débito ao ativo e crédito no passivo em favor dessa pessoa.

Na visão conceitual exposta no capítulo II, esses mesmos valores não são receitas da pessoa jurídica que os tiver recebido porque não são valores novos que se incorporem ao seu patrimônio, não são valores que representem para ela um acréscimo patrimonial segundo a norma jurídica aplicável à situação, pelo contrário sendo direitos pertencentes a outrem. Ademais, trata-se de valores que não se integram ao patrimônio da recebedora sem reserva, condição ou compromisso no seu passivo, não se tratando, portanto, de valores que acrescem ao patrimônio como elemento novo e positivo, e que passem a pertencer à pessoa recebedora em caráter permanente. Isto é, tais ingressos ou entradas não representam um “plus jurídico” que se agregue ao patrimônio da pessoa jurídica recebedora, nem direito novo produzido por alguma causa ou fonte eficiente do seu próprio patrimônio. Também não representam direito adquirido pela recebedora, que representem obrigação de terceiros perante ela própria. Igualmente, não são valores que remunerem essa pessoa jurídica por algum benefício fornecido a terceiro e efetivamente resultante de atividades suas.

Enfim, quando se tratar de mero ingresso ou entrada que não configure receita, poder-se-á verificar que não se trata de um ingresso ou entrada que se incorpora positivamente ao patrimônio empresarial em remuneração ou contraprestação de atos, atividades ou operações da pessoa jurídica (remuneração ou contraprestação do emprego dos seus recursos materiais, imateriais ou humanos), não trazendo consigo aquela característica de ser o produto que vem de fora do patrimônio empresarial, mas que é derivado de dentro, por decorrer de atos, operações ou atividades da empresa, ou do emprego de recursos que compõem esse patrimônio, e de que resulte algum benefício direto para a pessoa que o remunera por isso.

A tudo se acresce a consideração de que, quando não se trata de receita da própria pessoa jurídica recebedora do ingresso ou entrada de natureza financeira, não há expressão de capacidade contributiva sua, aspecto este sobre o qual falarei no capítulo V abaixo.

Novamente enfatizando que cada caso depende de acurado exame do regime jurídico aplicável ao ingresso ou entrada, pois alguns deles corresponderão a receitas e outros não, deve-se ter em conta que a possibilidade de não se tratar de receita corresponde à circunstância comum em diversas atividades empresariais, e até em situações mais simples e incontroversas, tais como os ingressos ou entradas a título de devolução de despesas de terceiros, pagas pela pessoa jurídica que depois é reembolsada pela pessoa em favor da qual as despesas foram pagas, ou as receitas tributárias arrecadadas pelas instituições financeiras da rede autorizada, situações estas em que, até intuitivamente, ninguém pensa em considerar como receitas da pessoa que recebe os reembolsos ou os recolhimentos para repasse a quem de direito.

Assim também com outras situações, inclusive possivelmente com as atividades citadas exemplificativamente na abertura do capítulo I deste, até pela constatação de já haver algumas manifestações jurisprudenciais em torno de algumas delas, que olharam o tratamento cabível com perfeita adequação ao ordenamento jurídico, conforme será mencionado no capítulo VI adiante.

IV. A Natureza e a Estrutura da Norma do art. 3º, § 2º, inciso III, da Lei nº 9.718, e a Influência da sua Revogação

A Lei nº 9.718, quando da sua promulgação em 1998, dispunha no inciso III do § 2º do art. 3º que poderiam ser excluídos das bases de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins:

“III - os valores que, tendo sido computados como receita, tenham sido transferidos para outra pessoa jurídica, observadas as normas regulamentadoras expedidas pelo Poder Executivo”.

Cabe primeiramente verificarmos o conteúdo dessa norma, e depois averiguarmos se, em virtude da sua revogação (pela atual Medida Provisória nº 2.158-35), os ingressos ou entradas de natureza financeira ocorridos numa pessoa jurídica, mas que se destinem a outrem, podem ser excluídos das bases de cálculo das suas obrigações perante a contribuição ao PIS e a Cofins.

Note-se, preambularmente, que aquele inciso somente se aplicaria às situações de valores creditados à receita, pois, não sendo creditados a essa conta, não precisariam ser excluídos das bases a serem tributadas.

Esta é uma afirmação haurida da própria redação do inciso III, mas também de uma visão sistemática da lei, inclusive considerando-se que nenhum procedimento contábil pode alterar a obrigações tributárias, para mais ou para menos. Vale dizer, um ingresso ou entrada que não fosse receita não seria tributado, fosse ele contabilizado em conta de receita, fosse em conta de passivo, mas apenas no primeiro caso caberia a exclusão das bases de incidência, pois no segundo caso desde o início já não teria ocorrido a inclusão, motivo porque não haveria o que excluir.

Esta afirmação deriva primeiramente da parte descritiva da hipótese fática de incidência da norma do inciso III, que aludia à exclusão de valores “computados como receita”. Destarte, somente nessa situação fática incidiria a regra mandamental constante da parte prescritiva ou dispositiva da norma, que era a de exclusão das bases de cálculo.

Podemos verificar esta morfologia da norma em toda e qualquer disposição do ordenamento jurídica positivo, sendo que, em se tratando de fato gerador de alguma obrigação tributária principal, corresponde ao que o art. 114 do CTN define como “situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”.

Realmente, toda norma de lei define uma situação hipotética (daí Geraldo Ataliba ter chamado o fato gerador previsto em lei de “hipótese de incidência”), a qual é necessária - pois sem ela não há a aplicação da disposição - e suficiente - pois ela, de per si, já basta para haver a aplicação da disposição - à ocorrência do fato gerador, que corresponde à incidência da parte dispositiva ou prescritiva da norma (situação que Ataliba denominou de “fato imponível”).

No caso do inciso III do § 2º do art. 3º da Lei nº 9.718, a situação fática por ele descrita incluía a ocorrência de “valores ... computados como receita”, motivo pelo qual a disposição da respectiva norma - exclusão das bases de cálculo - dependia inelutavelmente de haver aquela ocorrência efetiva. Em outras palavras, somente seria aplicável a parte dispositiva ou prescritiva da norma se a respectiva parte descritiva tivesse ocorrido efetivamente.

Entretanto, se a situação fática também fosse de valores transferíveis a terceiros, mas que não tivessem sido creditados à receita, o tratamento tributário seria o mesmo, isto é, não haveria o que excluir das bases de cálculo, mas também não haveria o que incluir. Isto em virtude de tudo quanto já foi dito até aqui, e de mais o que será visto adiante.

Feita esta observação preliminar, podemos passar a avaliar a natureza daquela norma revogada, dentro do escopo de verificar se, e quando, ela se aplicaria às situações de que aqui estamos tratando.

Sabemos que a exclusão ou não-nascimento do crédito tributário pode decorrer de isenção ou de não-incidência, acrescentando-se a imunidade como uma espécie de isenção outorgada pela Constituição, não obstante também possa ser vista como uma maneira de retirar fatos do campo de incidência.

Mas, reduzindo ao que interessa aqui, a não-incidência distingue-se da isenção por ser relativa a fatos que não estão no campo de incidência de um determinado tributo, ao passo que a isenção é relativa a fatos que estão no campo de incidência, mas são excluídos da tributação pela norma isentiva.

Sendo assim, a não-incidência apresenta-se como uma barreira intransponível para o legislador das leis ordinárias sobre o respectivo tributo, de tal modo que a sua ocorrência não depende da vontade do legislador nem de expressa determinação na lei sobre o tributo. Já a isenção é derivada e depende de ato legislativo do próprio poder detentor da competência para tributar.

Não obstante, é comum nas leis ou nos regulamentos tributários a expressa menção de situações de não-incidência, muitas vezes até impropriamente chamadas de “isenção”. Esses casos devem-se ou à má compreensão do ordenamento, o que inclusive explica chamar de “isenção” ou que não é isenção, ou, como ocorre na maioria das vezes, para fins de explicitação de situações de não-incidência. Esta última hipótese cabe perfeitamente nos regulamentos, e é muito comum, como se pode ver, por exemplo, no art. 39 do RIR/99.

Conseqüência do que está dito no parágrafo anterior é que a não-incidência opera-se haja ou não norma expressa, pois ela prescinde de uma norma que a diga existente, tendo em vista que a sua existência deriva implicitamente de outra norma (constitucional) que estabelece o campo de incidência. Em outras palavras, quando a Constituição outorga uma competência tributária, automaticamente ela limita essa competência aos fatos a que se refere expressamente e, também automaticamente, mas implicitamente, exclui desse campo de competência todos os demais fatos que não se conformem com os fatos por ela referidos, isto é, que estejam além dos limites prescritos.

Assim, quanto às contribuições sociais sobre receitas, a expressa descrição constitucional do campo de incidência - faturamento ou receitas - circunscreve a ação do legislador a este limite e, implicitamente, exclui a competência sobre tudo que esteja além desse limite.

Esta afirmação é doutrinariamente indisputada, assim como é remansada a jurisprudência a este respeito. Cito para ilustrar o Acórdão CSRF/01-0422, de 16 de março de 1984, da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, no qual se lê:

“A forma pela qual se corporificam esses institutos tem relevante importância, pois enquanto a incidência e a isenção somente por lei poderão ser estabelecidas, a não-incidência não necessita figurar em qualquer diploma legal, pois ela, em princípio, decorre da falta de previsão legal, ou seja da omissão intencional ou não do legislador.

...

Portanto, ao contrário do que sucede com a incidência, a não-incidência se cristaliza pela ausência de norma incluindo expressamente o ato, fato ou negócio no campo da incidência (princípio da reserva legal).

O princípio da estrita legalidade e a impossibilidade de recorrer-se à analogia para a constituição da obrigação tributária, nos conduzem a taxatividade ou numerus clausus dos fatos abrangidos pela norma de incidência.”

As receitas de terceiros, que por alguma razão operacional ou jurídica sejam recebidas por uma pessoa jurídica, a qual simplesmente as receba não para si, mas para repasse aos seus verdadeiros titulares, melhor dizendo, os ingressos ou entradas que não se coadunem com o conceito de receita, estão exatamente nessa situação de não-incidência das duas contribuições.

Quando este for o caso, para a pessoa jurídica recebedora e repassadora, a situação será de não-incidência, porque não se tratará de receita dela, e tal conseqüência jurídica - melhor, a inexistência de conseqüência jurídica perante as duas contribuições - independe de haver alguma disposição legal que o diga expressamente.

Neste quadro, o inciso III do § 2º do art. 3º da Lei nº 9.718 apenas explicitava uma norma de não-incidência, e não de isenção ou de exclusão da base de cálculo, porque, não se tratando de fato ocorrido dentro do campo de incidência, não havia, como continua a não haver, necessidade de norma isentiva ou excludente da base de cálculo.

Convém observar que o § 2º do art. 3º dessa lei relaciona várias situações que correspondem a diferentes naturezas jurídicas, embora todas englobadas em um único comando que alude à exclusão das bases de cálculo. Assim temos:

- uma hipótese que especifica a exclusão de um valor que tenha sido computado como receita, mas que tenha perdido capacidade contributiva por fato superveniente: é o caso das vendas canceladas (inciso I);

- uma hipótese que define valores que não compõem a base de cálculo de alguma receita tributável: é o caso dos descontos (ainda o inciso I);

- uma hipótese que especifica determinados tipos de receitas (ao menos na prática contábil, ou para fins de imposto de renda) que estão fora do campo de incidência porque efetivamente não representam receitas nem são dotadas de capacidade contributiva, e que, portanto, devem ser excluídos da incidência: são os casos das reversões de provisões e recuperações de créditos baixados como perda (inciso II);

- uma hipótese que também expressa a não-incidência, por não se tratarem efetivamente de receitas e não revelarem capacidade contributiva: era o caso dos valores transferidos (inciso III);

- uma hipótese que é norma de isenção: é o caso da receita de venda de bens do ativo permanente (inciso IV).

No já referido trabalho para o 3º Simpósio Nacional IOB de Contabilidade abordei a validade constitucional e os aspectos da múltipla incidência da contribuição ao PIS e da Cofins, demonstrei a aplicabilidade imediata do inciso III (então ainda não revogado), independentemente de regulamentação, e prossegui abordando o sentido da respectiva norma.

No aspecto específico da natureza e da estrutura do inciso III do § 2º do art. 3º da Lei nº 9.718, disse o seguinte, “in verbis”:

“V. O Significado da Exclusão dos Valores Transferidos

Daí a necessidade de compreender que a transferência de receita aludida na Lei nº 9718, geradora de exclusão na base de cálculo das contribuições em questão, é restrita à receita de um determinado evento, nada tendo a ver com receitas de outros eventos anteriores, ainda que relacionados a uma mesma coisa.

Isto é assim porque não existe para tais contribuições qualquer vedação constitucional, como existe para o ICMS e para o IPI, a que as sucessivas incidências sejam economicamente cumulativas, pois para elas a Constituição não exige a dedução dos valores pagos em etapas ou operações anteriores, nem prescreve que sua incidência se limite ao valor acrescido.

Inclusive convém notar, no aspecto redacional, que o parágrafo 2º do art. 3º da Lei nº 9.718 não alude à ‘dedução’ ou ‘compensação’ de valores, pois adota corretamente o verbo ‘excluir’ para elencar as verbas que não devem integrar a base de cálculo das contribuições, no sentido acima já explicado.

Em suma, apenas economicamente ambas as contribuições podem ser consideradas cumulativas, mas juridicamente elas nem são cumulativas nem são plurifásicas, porque incidem sobre fatos que são isolados de outros eventos - receitas de faturamentos ou outras - ainda que esses fatos estejam relacionados a uma coisa em processo de múltipla circulação.

Independentemente disso tudo, e da querela sobre dedução de valores anteriores ou valor agregado, cada fato material - receita de faturamento ou outra - é um fato gerador tributário específico e distinto, significando que cada um desses fatos materiais não pode gerar mais de uma incidência de cada uma das contribuições, ou incidência sobre valor maior do que aquele efetivamente nele existente.

Por isso, na situação hipoteticamente descrita pelo inciso III do parágrafo 2º do art. 3º da Lei nº 9.718, que se refere à contribuições que gravam a receita, deve-se procurar identificar a existência de um único fato produtor de receita, cuja receita seja repartida entre mais de uma pessoa - vale dizer, transferida de uma para outra -, de tal arte que:

- se uma pessoa receber da fonte pagadora original a totalidade da receita relativa a este único fato, para subseqüentemente a distribuir a outra ou outras pessoas que também tenham participado deste mesmo fato, deve oferecer à tributação apenas o valor líquido que lhe restar após o repasse, eis que estarão preenchidos os dois requisitos legais, quais sejam, o da computação em sua receita e o da transferência para outra pessoa jurídica;

- mas, se duas ou mais pessoas receberem diretamente suas partes da fonte pagadora original, cada uma deve oferecer a sua parte à tributação, sem qualquer exclusão, pois neste caso não há qualquer dos dois referidos requisitos legais, dado que cada uma somente computa em sua receita a sua parcela na receita total, e nenhuma transfere qualquer participação à outra.

Outro aspecto que pode ser suscitado é quanto a existência ou inexistência de receita nessas hipóteses em que há a repartição do valor recebido por uma, entre ela e outra ou outras pessoas.

Realmente, o que se pode dizer é que, se a receita transferível já pertencia a outrem, a rigor não pertence e jamais terá pertencido à pessoa jurídica que a tiver recebido, tendo para esta a natureza de mero ingresso - e não receita - cujo registro contábil correto seria a crédito de conta no passivo, e não a crédito de conta de receita, no resultado.

Com efeito, pode haver situações em que, tecnicamente, o certo sob o ponto de vista jurídico é constatar a inexistência de direito à receita e, portanto, a existência de um simples trânsito de dinheiro ou sua representação, através de uma pessoa que deva entregar esse objeto ao seu efetivo titular. Neste caso, o certo e recomendável é contabilizar o ingresso a débito de caixa ou banco e a crédito do titular do repasse, no passivo circulante, não havendo que se cogitar de aplicar o disposto no inciso III do parágrafo 2º do art. 3º da Lei nº 9.718.

Mas pode haver situações em que a receita efetivamente pertença ao recebedor, que, a despeito da sua titularidade original, a deva compartilhar com outrem. Isto pode ocorrer quando contratualmente o direito à receita pertença à pessoa que receba o respectivo pagamento, a qual, portanto, tenha o direito de exigi-lo, mas que, por motivos operacionais e jurídicos, deva dividir essa mesma receita com outra pessoa ou outras pessoas que também a tenham produzido. Como pode haver, inclusive nas situações referidas no parágrafo precedente, indevida classificação contábil em conta de receita. É em todos estes casos que cabe a exclusão dos valores transferidos a terceiros, prevista e admitida pelo referido dispositivo da Lei nº 9.718.

...

Finalmente, é importante distinguir estas situações de transferência, no sentido da Lei nº 9.718, da simples aquisição de insumos (em sentido amplo) para a produção da coisa final (objeto do contrato) a ser entregue pelo contratado ao adquirente contratante, cujas situações não se compreendem na hipótese legal de transferência.

Realmente, transferência ocorre quando o próprio objeto do contrato, que gera a receita tributável, seja produzido ou prestado, no todo ou em parte, por outra pessoa jurídica não contratada pelo adquirente, e que vem a receber a sua receita através da pessoa jurídica que tenha sido contratada pelo adquirente. Ou quando o próprio objeto do contrato que gera a receita tributável seja produzido ou prestado, no todo ou em parte, por uma pessoa jurídica que, embora também contratada pelo adquirente, não venha a receber diretamente deste a respectiva contraprestação (preço).

Já no caso de aquisição de insumos, o respectivo valor não deve ser deduzido da base de cálculo das contribuições devidas sobre a receita contida no faturamento da venda do produto final porque aquela aquisição representa uma fase anterior, distinta e isolada da fase presente em que ocorre o evento tributável - receita do faturamento -, embora essa fase anterior também contenha outro evento - outra receita de outro faturamento - que também seja sujeito a ambas as incidências6.

Para se certificar disso, basta observar que a exclusão ora em estudo é elemento da base de cálculo da obrigação tributária cujo fato gerador consiste na receita contida no faturamento da venda do produto final, e que, portanto, deve ser base composta apenas pelos fatores econômicos que dão dimensão a esta receita.

Como visto, o fato gerador das duas contribuições ocorre instantaneamente a cada aquisição de receita, independentemente de ser somado a outras receitas ocorridas num mesmo período de tempo, a fim de ser apurado o montante total a ser recolhido ao final do mesmo.

Ora, a base de cálculo representa a expressão monetária do fato gerador, de modo que somente tem a ver com ele e nada tem a ver com elementos externos a ele.

Portanto, não há razão para deduzir da base de cálculo de uma específica obrigação tributária valores estranhos a esta, porque relativos a fatos alheios ao fato imponível ora em consideração.

Realmente, a dedução de valores de etapas anteriores somente seria necessária se a Constituição tivesse estabelecido as duas contribuições sob o modelo da não cumulatividade, ou somente seria possível se, mesmo não havendo tal previsão constitucional, a lei ordinária prescrevesse a dedução.

Entretanto, nada disso ocorre quer na lei constitucional quer na lei infra-constitucional, não se podendo confundir a exclusão dos valores transferidos, reconhecida pela Lei nº 9718, com a dedução de valores formadores das etapas precedentes à do fato gerador da obrigação tributária presente.

...

VI. Conclusão

Em síntese:

- a Cofins e a contribuição ao PIS são contribuições que gravam fatos isolados de receitas de qualquer espécie, inclusive as contidas no faturamento de vendas mercantis ou da prestação de serviços, podendo ser economicamente cumulativas, porque a Constituição Federal não dispôs no sentido de que elas incidam sobre valores agregados ou com dedução de valores anteriormente pagos;

- a lei ordinária, para a quantificação da base de cálculo de um específico fato gerador - uma receita - prescreve a exclusão dos valores que, tendo sido reconhecidos como receita do contribuinte, sejam por este transferidos a outras pessoas jurídicas, que sobre eles pagarão as duas contribuições se não tiverem algum tratamento excepcional;

essa exclusão é relativa a valores referidos ao próprio evento tributável, e não a outros anteriores ou posteriores, ainda que estes também sejam sujeitos à incidência das duas contribuições;

- essa exclusão é uma imposição do princípio da capacidade contributiva;

- essa exclusão cabe quando determinada receita, referente a um determinado evento, for compartilhada entre a pessoa jurídica que a tiver recebido e outra ou outras pessoas jurídicas que tenham participado diretamente desse mesmo evento;

- a não-exclusão, nestas circunstâncias, representaria inconstitucional ‘bis in idem’ e afrontaria o princípio da capacidade contributiva, pois multiplicaria incidências de um mesmo tributo sobre um mesmo evento tributável, acarretando a tributação de valores maiores do que os efetivamente existentes nessa situação.”

Hoje em dia, em que não mais vige o inciso III do § 2º do art. 3º da Lei nº 9.718, a norma que ele expressava subsiste por ser norma de não-incidência, derivada diretamente da delimitação do campo de incidência pelo art. 195, inciso I, letra “b”, da Constituição, e que, por isso, prescinde de declaração legislativa expressa, de maneira que a revogação daquele inciso não alterou o ordenamento jurídico7.

Note-se que o referido inciso, que para um observador desatento poderia ter a aparência de se tratar de norma de permissão, concessiva de uma vantagem na determinação das bases de cálculo das duas contribuições, na verdade não passava de explicitação de uma norma superior, cuja norma era independente da intervenção do legislador ordinário e que, por esta mesma razão, sobrevive à decisão desse legislador de retirar da lei comum aquela explicitação, qualquer que tenha sido a sua motivação para tanto.

V. Quando a Receita pertence a Terceiro, é este que detém a Respectiva Capacidade Contributiva

Um outro fundamento de capital importância para o deslinde da questão ora posta diz respeito ao princípio da capacidade contributiva, ao qual já foi feita alusão em passagem anterior deste estudo.

Realmente, quando, pela aplicação dos elementos e características das receitas, em uma determinada situação se conclui que o ingresso ou entrada ocorrido em uma pessoa jurídica não representa receita, essa pessoa não detém capacidade contributiva. E, mais, quando se conclui que esse ingresso ou entrada na verdade é mero trânsito financeiro pela referida pessoa jurídica, porque se destina a outra pessoa jurídica para a qual será receita, é esta que detém a capacidade contributiva específica em relação à contribuição ao PIS e à Cofins.

No trabalho para o 3º Simpósio Nacional IOB de Contabilidade, acima já aludido mais de uma vez, e ainda a propósito da exclusão das bases de cálculo que era permitida pela Lei nº 9.718, art. 3º, § 2º, inciso III, fiz menção a este aspecto fundamental, “in verbis”:

“III. A Exclusão Decorre do Princípio da Capacidade Contributiva

De mais a mais - e já iniciando a pesquisa sobre o conceito de transferência -, a norma contida na Lei nº 9.718, que aparenta ser uma norma de permissão, na verdade é uma norma que se impõe porque decorre do princípio da capacidade contributiva, segundo o qual todo fato gerador de obrigação tributária capta no mundo fenomênico uma determinada manifestação de capacidade econômica para alguém contribuir em benefício das necessidades do erário público.

Em sendo assim, cada fato que a Constituição permite ser tributado detém uma certa dose de capacidade contributiva, ou, em outras palavras, detém um conteúdo econômico que atribui capacidade contributiva a um sujeito de direito. Por isso, cabe à lei que eleger esse fato como gerador de uma obrigação tributária correspondente a essa capacidade determinar um sujeito de direito a ser considerado sujeito passivo da mesma, a par de definir os critérios (base de cálculo e alíquota) para a sua quantificação.

Ainda por isso, se um único fato ensejar a repartição do produto econômico que ele produz, entre mais de uma pessoa, a lei somente pode considerar haver uma única capacidade contributiva, embora repartida, e deve prescrever a sujeição tributária passiva em função desta premissa.

Ora, se um fato único enseja transferência da receita dele decorrente, da pessoa que originariamente a tiver auferido para uma outra, o fato continua a deter e atribuir uma única capacidade de contribuição, podendo a lei, sempre respeitando esta premissa, estabelecer uma dentre as seguintes possibilidades:

- atribuir a totalidade da sujeição passiva tributária a uma só das pessoas envolvidas na recepção do benefício econômico, neste caso podendo fixar na totalidade desse benefício a base de cálculo do tributo em questão; ou

- subdividir a sujeição passiva tributária entre as várias - duas ou mais - pessoas envolvidas na recepção do benefício econômico, mas neste caso devendo também fracionar a base de cálculo do tributo de maneira proporcional à repartição das vantagens econômicas de cada pessoa.

O que a lei não pode, em qualquer caso, é multiplicar incidências do mesmo tributo sobre um único dado econômico, multiplicando fatos geradores e sujeitos passivos tributários sobre aquele único substrato, e para todos atribuindo como base de cálculo o valor total dessa situação econômica. Como também não pode, se subdividir a sujeição passiva entre mais de uma pessoa, atribuir para cada uma delas um valor maior do que a respectiva participação no produto econômico derivado da referida situação.

Se, por hipótese, a lei estabelecesse mais de uma incidência do mesmo tributo sobre um único fato tributável, estaria estabelecendo intolerável ‘bis in idem’, e afrontando a exigência da capacidade contributiva.

É claro que este princípio teórico - teórico, mas com substrato constitucional - pode tornar-se de difícil aplicação na prática, inclusive podendo, se considerado sem o necessário cuidado, aparentemente chocar-se com as incidências em cascata, quando admitidas pelo ordenamento constitucional.

A solução para as dificuldades práticas em casos concretos deve procurar distinguir as sucessivas etapas de circulação da riqueza, para considerar cada uma delas como um fato econômico individual, específico e distinto dos demais que o antecedem e o sucedem.

Com isto, poder-se-á identificar cada fato de per si, como um fato dotado de uma única e total capacidade contributiva a ser atribuída à pessoa ou pessoas ligadas a ele, sem prejuízo de anteriores e posteriores incidências tributárias sobre outras etapas, quando o tributo seja constitucionalmente delineado para incidir em cada etapa do processo de circulação da riqueza. Nesta circunstância, inexiste ‘bis in idem’ sob o ponto de vista jurídico, ainda que a tributação plurifásica seja, ou possa ser, economicamente cumulativa.

É esta distinção que faz com que um tributo possa ser juridicamente devido em cada fase de circulação da riqueza, captando a capacidade contributiva de cada fase, embora economicamente haja cumulatividade nas sucessivas incidências, a qual é juridicamente válida se admitida pela discriminação constitucional de competências tributárias.”

Com o advento da Lei nº 10.637, que passou a permitir determinadas deduções no valor da contribuição ao PIS devida nas circunstâncias que descreve - instituindo o que denomina de “cobrança não-cumulativa” -, não se alteram essas observações, posto que, com ou sem dedução (isto é, com ou sem cumulatividade econômica), em cada etapa de circulação há um fato isolado passível de tributação e revelador de uma determinada capacidade contributiva. Principalmente, em cada etapa continua a haver uma única capacidade contributiva.

Em síntese, detém capacidade contributiva para ser contribuinte das contribuições sobre a receita a pessoa jurídica que, de acordo com a norma jurídica (lei e/ou contrato) aplicável à situação concreta, for titular do direito à receita, e não aquela que simplesmente a recebe perante terceiros, para entregá-la ao seu legítimo titular8.

VI. A Jurisprudência Administrativa e a Judicial

Já há vários casos julgados pelo 2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, em situações fáticas diferentes, que concluíram corretamente quanto à incidência de alguma contribuição social sobre receita, seja quanto à sujeição passiva, seja quanto à base de cálculo.

Um desses casos terminou com a prolação do Acórdão nº 201-73.817, de 6 de junho de 2000, da 1ª Câmara:

“Cofins - Fato Gerador - Base de Cálculo - A base de cálculo da Cofins é o valor da receita bruta decorrente do faturamento. Para a sua determinação, quando relativo a serviços, é indispensável definir qual o valor do serviço prestado, não servindo o simples ingresso de valores globais como faturamento bruto. No caso de agenciamento de cargas, suficientemente provado o fato, é o valor deste serviço a base de cálculo ainda que o agenciador, sob responsabilidade e por conveniência do contrato de transporte, receba o valor total do frete para posterior pagamento ao agenciado.”

Ainda nesse caso, afirmou o acórdão:

“O que está incontroversamente contido nos autos é que a contribuinte pratica duas operações de prestação de serviços. Uma de transporte próprio e a outra de transporte praticado por terceiros, por ela conseguido. O valor que recebe nesta última operação é o da diferença entre o que recebe do contratante do frete e o pago a quem transporte o produto, fato incontroverso.

Desta dualidade entre subcontratação e agenciamento, persiste o mencionado acima. O que é do contribuinte é o valor da diferença. Não efetuou o mesmo o transporte, senão repassou-o a terceiros que, de forma direta ou através de sistema comumente praticado, recebeu o que lhe era devido e previamente acordado. Esta circunstância leva ao entendimento de que a natureza do serviço é a de agenciamento, se é que tal conceito se divorcia do de subcontratação para definir diferentes bases de cálculo ao tributo atacado.”

Outra decisão da mesma câmara julgadora consubstanciou-se no Acórdão nº 201-73.804, de 10 de maio de 2000, que tratou de situação na qual uma pessoa jurídica exercia atividades de coordenação de um consórcio de construção civil, recebendo uma taxa de administração e reembolso de custos das outras consorciadas. Diz a ementa:

“Cofins - Exclusão da Base de Cálculo - A incidência da Cofins recai sobre a ‘prestação de serviços’, tomando-se como base de cálculo o ‘preço dos serviços’, excluindo-se receitas específicas e estranhas à referida base. No caso em foco, operando a empresa por conta e ordem de seus cotistas, é de se considerar receita sujeita à Cofins somente o valor da taxa de administração cobrada dos cotistas.”

No acórdão lê-se o seguinte:

“Na verdade, a incidência da Cofins recai sobre ‘prestações de serviços’ tomando-se por base de cálculo o ‘preço dos serviços’, excluindo-se, assim, as receitas específicas e estranhas à referida base.

Nestes termos e mantendo a posição por mim já adotada em matéria idêntica, nos autos do Processo nº 10510.000758/95-02 (Acórdão nº 202-71.794), entendo que a Recorrente age por conta e ordem de suas quotistas e que o preço dos seus serviços é somente o valor da taxa de administração, posto que os demais valores são objeto de transferência para outra pessoa jurídica e, portanto, estranhos à base de cálculo da Cofins.”

Outro Acórdão é o de nº 201-73.944, datado de 16 de agosto de 2000, cuja ementa diz:

“Cofins - Base de Cálculo - Se o veículo de comunicação não recebe diretamente do anunciante o valor da comissão da agência de publicidade pela veiculação de anúncio de propaganda (‘descontos’), dessa forma não escriturando-o em conta de receita, tal valor não é base imponível da Cofins, restando ao Fisco, por todos os meios lícitos, invertendo o ônus da prova, demonstrar que tal valor efetivamente é receita da empresa. Por outro lado, se o valor referente à comissão da agência é pago diretamente pelo anunciante ao agente veiculador do anúncio para que este repasse à agência publicitária, sendo tal valor escriturado em conta redutora de receita, também tal valor não integra a base de cálculo da Cofins. De igual sorte, resta ao fisco, sendo seu o ônus, provar que tais valores não foram repassados ou que referem-se a custos operacionais.”

Mais um julgamento da mesma câmara foi proferido pelo Acórdão nº 201-75.328, de 18 de setembro de 2001, onde se lê:

“Cofins - Concessionária de Veículos - Contrato de Concessão - não-incidência da Exação sobre Faturamento de Terceiros - Faturamento de terceiro não pode compor a base de cálculo da Cofins. Ademais, em tendo como base imponível da Cofins o que não se constituir em faturamento próprio, ou seja, valores que não correspondam à receita auferida pelo próprio contribuinte, estamos efetivamente, diante de um confisco. Apenas podem ser lançados créditos tributários referentes ao não recolhimento da Cofins incidente somente sobre o faturamento da contribuinte (concessionária de veículos), excluído o faturamento de terceiros, tudo nos termos da fundamentação.”

Cite-se, finalmente, da jurisprudência do 2º Conselho de Contribuintes, o Acórdão nº 201-73.935, datado de 15 de agosto de 2000, que afirma:

“Cofins - Fato Gerador e Base de Cálculo - A base de cálculo da Cofins é o valor da receita bruta decorrente do faturamento. Para a sua determinação, quando relativo a serviços, é indispensável definir qual é o valor do serviço prestado pelo sujeito passivo do tributo, não servindo o simples ingresso de valores globais como faturamento bruto.”

No 1º Conselho de Contribuintes também há acórdãos que não discrepam do que vem decidindo o 2º Conselho.

Assim, temos o Acórdão nº 103-20.418, de 19 de outubro de 2000, da 3ª Câmara, que diz na ementa:

“IRPJ - Omissão de Receita - Agência de Propaganda - Incensurável a decisão monocrática que afastou a tributação de omissão de receitas, baseada em valores constantes em Notas Fiscais de Serviços, que, efetivamente, não representam receita auferida pelo contribuinte. No caso específico das Agências de Propaganda, a tributação incide, exclusivamente, sobre os valores auferidos a título de honorários, excluindo-se, por conseguinte, os valores repassados a terceiros.”

Um outro acórdão do 1º Conselho de Contribuintes foi proferido por sua 1ª Câmara em 8 de novembro de 2001, tomando o nº 101-93.683. Sua ementa reza:

“IRPJ. Omissão de Receita na Emissão e Comercialização de Vale-Transporte. Inocorrência. Valores originários da venda de vales-transporte, recebidos por operadora, não se enquadram no conceito de receita dado pelo artigo 226 do RIR/94, por constituir uma obrigação da operadora. Citados valores se destinam na realidade a pagamento às concessionárias de serviços de transporte municipal, em decorrência de prestação dos referidos serviços, que recebem os bilhetes dos trabalhadores, a título de pagamento das passagens e tem seus valores ressarcidos pela operadora.”

A mesma câmara proferiu o Acórdão nº 101-93.741, de 10 de fevereiro de 2002, nos seguintes termos:

“IRPJ. Omissão de Receitas. Receitas de Vales-Transporte. As vendas de vales-transportes pela associação de classe, emitidos pela mesma associação, por delegação expressa no parágrafo 2º, do artigo 5º, da Lei nº 7.814/85 (redação da Lei nº 7.855/89), não constituem receitas da associação de classe. Os recursos arrecadados passam a constituir receitas quando utilizados os vales-transporte e prestados os serviços de transporte pelas empresas concessionárias de transporte coletivo de passageiros que são os titulares dos direitos de emissão de vales-transporte pelo caput do artigo 5º da Lei nº 7.814/85.”

A 3ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes, no Acórdão nº 103-21.076, de 5 de novembro de 2002, disse:

“IRPJ. Receitas de Vales-Transportes. As vendas de vales-transportes por associação civil que reúne empresas de transporte coletivo de passageiros, não constituem receitas dessas entidades, tendo em vista a delegação expressa no parágrafo 2º do art. 5º da Lei nº 7.814/85, alterada pela Lei nº 7.855/89. Os recursos arrecadados passam a constituir receitas quando utilizados os vales-transportes e prestados os serviços pelas empresas concessionárias de transporte coletivo de passageiros, mesmo não associadas, que são os titulares dos direitos de emissão de vales-transportes pelo caput do art. 5º da Lei nº 7.814/85”.

Na mais alta instância do processo administrativo também temos precedentes importantes.

Assim, a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais proferiu em 19 de fevereiro de 2001 os Acórdãos nos CSRF/02-0986 e CSRF/02-0987, cujas ementas dizem:

“Finsocial - Exclusão da Base de Cálculo. A incidência do Finsocial recai sobre o faturamento da ‘prestação de serviços’, tomando-se como base de cálculo o ‘preço dos serviços’, excluindo-se receitas específicas e estranhas à referida base. No caso em foco, operando a empresa por conta e ordem de seus cotistas, é de se considerar receita sujeita ao Finsocial somente o valor da taxa de administração cobrada dos cotistas.”

E no corpo dos acórdãos:

“Não há como fugir à evidência de que se os valores deduzidos na formação do preço vieram a ser contabilizados como recuperação de custos, com repercussão, inclusive, na apuração do resultado do exercício, a receita da Recorrente, para os efeitos tributários relativos ao Finsocial, se confina na taxa de administração prevista no contrato firmado entre a empresa prestadora de serviços e os tomadores, seus quotistas pessoas jurídicas.

Na verdade, a incidência do Finsocial recai sobre o ‘faturamento da prestação de serviços’ tomando-se por base de cálculo o ‘preço dos serviços’, excluindo-se, assim, as receitas específicas e estranhas à referida base.

Nestes termos e mantendo a posição por mim já adotada em matéria idêntica nos autos dos Processos nos 10510.000758/95-02 (Acórdão 202-71.794) e 13574.000028/96-82 (Acórdão 201-73.804), este último em que foi dado provimento ao Recurso por unanimidade de votos, entendo que a Recorrente age por conta e ordem de suas quotistas e que o preço dos seus serviços é somente o valor da taxa de administração, posto que os demais valores são objeto de transferência para outra pessoa jurídica e, portanto, estranhos à base de cálculo do Finsocial.”

A mesma superior instância, no Acórdão nº CSRF/02-01000, de 19 de fevereiro de 2001, reafirmou:

“Cofins - Incidência - A prestação de serviços caracterizada pela taxa de administração é a base de cálculo da Contribuição uma vez que, os demais ingressos financeiros não se compatibilizam com essa base.”

O Poder Judiciário dedicou-se ao tema tratando de questões perante o imposto municipal sobre serviços, cujos pressupostos, nos aspectos aqui ventilados, são os mesmos aplicáveis à contribuição ao PIS e à Cofins.

Cite-se o julgamento proferido pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 259.339-SP em 12 de setembro de 2000, “in verbis”:

“Tributário. Imposto. ISS. Base de cálculo - Serviços. Ilegalidade da incidência sobre a renda bruta quando o contribuinte for distribuidora de filmes cinematográficos e vídeo-tapes. Denúncia espontânea.

O distribuidor de filmes e vídeos-games coloca-se como intermediário, aproximando produtor e exibidor. Por isso, a base de cálculo do ISS relativo a sua atividade é a remuneração efetivamente percebida, ou seja o saldo entre a quantia recebida do exibidor e aquela entregue ao produtor.”

VII. Síntese Conclusiva

A contribuição ao PIS e a Cofins são contribuições de custeio da seguridade social que, a teor do art. 195, inciso I, letra “b”, da Constituição Federal de 1988, com a alteração da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, somente podem incidir sobre faturamento ou receita.

Faturamento é uma espécie de receita, pois corresponde ao conteúdo econômico das faturas, as quais legalmente se referem apenas ao preço das vendas de mercadorias ou da prestação de serviços, para pagamentos a prazo ou à vista.

Importa, portanto, prioritariamente, saber o que seja receita, para cuja conceituação inexiste uma definição legal de caráter geral.

Segundo doutrina e estudos anteriores, há uma lista de elementos e características afirmativos da existência de receita, ou negativos dela, pelos quais em cada caso concreto pode-se aferir se algum ingresso ou entrada no patrimônio da pessoa jurídica corresponde ao conceito de receita - pois nem todo ingresso ou entrada é receita -, observando-se que tais elementos e características não discrepam da definição sintética de receita que consta do parágrafo seguinte.

Realmente, ainda segundo doutrina e estudos anteriores, conceitua-se receita de uma maneira geral e resumida como sendo um espécie de ingresso ou entrada no patrimônio da pessoa jurídica, que se incorpora positivamente a ele, desde que represente remuneração ou contraprestação de atos, atividades ou operações da pessoa jurídica (remuneração ou contraprestação do emprego dos seus recursos materiais, imateriais ou humanos), sendo, portanto, produto que vem de fora do patrimônio empresarial, mas derivado de dentro, isto é, decorrente de atos, operações ou atividades da empresa, ou do emprego de recursos que compõem o seu patrimônio, e de que resulte algum benefício direto para a pessoa que o remunera por isso.

Paralelamente ao conceito de receita, deve-se considerar que o art. 91 do Código Civil de 2002 (antes, o art. 57 do Código Civil de 1916) define patrimônio como sendo o complexo de relações jurídicas - direitos e obrigações - de uma pessoa, dotadas de valor econômico.

Este conceito de patrimônio é relevante porque, se ele é composto apenas por elementos positivos e negativos regidos pelo direito, suas mutações necessariamente dependem do acréscimo ou da redução de direitos e/ou de obrigações. Destarte, como as receitas são sempre acréscimos positivos ao patrimônio, elas somente existem quando uma norma jurídica (lei e/ou contrato) outorgar um novo direito ao titular do patrimônio, cujo direito, entretanto, também deve estar conforme ao referido elenco de elementos e características das receitas.

Quando a pessoa jurídica recebe valores que são transferíveis a terceiros, pode ou não haver receita para essa pessoa jurídica, de acordo com estas mesmas regras, sendo que, não se tratando de receita dessa pessoa jurídica, pode tratar-se de receita de outrem, a que se destina.

Destarte, pode-se resumir essas situações dizendo que:

- somente são receitas os valores que pertencem à pessoa jurídica recebedora, segundo o conceito exposto;

- os valores que a pessoa jurídica receba no interesse de terceiros, a quem pertençam, não são receitas dela, mas meros ingressos ou entradas, podendo, ainda segundo o mesmo conceito, representar receita da pessoa a quem se destinam.

Quando este for o caso, a pessoa jurídica que receber de passagem valores que se destinem a outrem, terá neles meros ingressos ou entradas de natureza financeira no seu caixa ou em suas contas bancárias, não representando receitas que se incorporem ao seu patrimônio para incrementá-lo. Sendo assim, a pessoa jurídica deverá creditá-los em contas de passivo, representativas da sua obrigação de entrega às pessoas titulares dos direitos sobre os mesmos.

Nesses casos, esses ingressos ou entradas não compõem as bases de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins devidas pela pessoa jurídica recebedora e repassadora dos mesmos.

O inciso III do § 2º do art. 3º da Lei nº 9.718 tratava da exclusão, nas bases de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins, de valores transferidos pela pessoa jurídica a terceiros, mas que houvessem sido creditados à sua receita. Esse inciso manifestava explicitamente uma norma de não-incidência das contribuições, por se referir à receitas de terceiros recebidas por uma pessoa jurídica em virtude de razões jurídicas ou operacionais, sem que esta tivesse titularidade sobre as mesmas.

Nesta questão dos valores transferidos a terceiros, assume capital importância o princípio constitucional da capacidade contributiva, uma vez que somente detém capacidade contributiva para ser contribuinte das duas contribuições a pessoa jurídica que se identificar como titular das respectivas receitas, a cujo patrimônio elas pertencem e se agregam.

Em vista disso, a revogação do inciso III do § 2º do art. 3º da Lei nº 9.718, pela atual Medida Provisória nº 2.158-35, não afeta a intributabilidade dos meros ingressos ou entradas que devam ser transferidos à pessoa que detenha a titularidade do direito aos mesmos.

1 Conceito apenas aparentemente simples, mas efetivamente difícil de ser delimitado, como se pode ver pelas inúmeras controvérsias que desde então já foram estabelecidas.

2 Entendimento este que, a despeito de estar equivocado, foi adotado pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 445.452-RS, julgado em 17.12.2002.

3 Este pronunciamento trata exclusivamente das receitas e despesas originadas de transações em numerário ou seu equivalente. (nota do original)

4 O mandamento legal de se tratar de transferência de capital creditável diretamente em reserva de capital, e não em receita, é o art. 182, § 1º, da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

5 Regime contábil este que, a míngua de outra disciplina jurídica, estende-se aos demais tipos de sociedades.

6 Estas afirmações foram feitas antes da Lei nº 10.637, que introduziu, quanto à contribuição ao PIS, um regime de dedução dos valores que elenca.

7 Douglas Yamashita também chegou a esta conclusão in Repertório IOB de Jurisprudência nº 13/2000, pp. 328 e seg. Veja-se, também, os trabalhos de Ives Gandra da Silva Martins e Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 70, p. 150, e de Maria Ednalva de Lima, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 75, p. 144.

8 Esta conclusão não fica afastada quando o destinatário do recebimento for pessoa residente ou domiciliada no exterior, que efetivamente tem o direito e a titularidade sobre a receita, hipótese esta que pode perfeitamente ocorrer nas situações aqui enfocadas. Ainda que assim seja, a pessoa jurídica domiciliada no Brasil não tem capacidade contributiva na situação. Outrossim, o que em tese poderia ocorrer - dependendo de análise mais profunda de outros aspectos, como a vigência territorial da lei brasileira - seria a lei prescrever a incidência das contribuições para serem retidas na fonte de pagamento ou de transferência, caso em que, segundo o art. 121 do CTN, esta seria sujeito passivo por responsabilidade e a pessoa no exterior seria contribuinte, inclusive por deter a capacidade contributiva relativa a esse fato gerador.