Tributação e Desenvolvimento

Antonio Carlos Nogueira Reis

Advogado na Bahia. Professor de Direito Financeiro e Tributário da UCSal.

Equacionamento do Tema

1. Este trabalho foi apresentado na XVIII Conferência Nacional dos Advogados realizada em Salvador, Bahia, e serviu de base à conferência que pronunciamos em 14 de novembro de 2002 no Painel Reforma Tributária e Mudança Social. A abordagem do tema requer, conseqüentemente, uma visão crítica do atual sistema tributário, a identificação dos efeitos que produz no desenvolvimento econômico e social do País, para que possamos oferecer a nossa contribuição no sentido de corrigir as distorções existentes.

2. A necessidade de uma revisão, para uns, ou de verdadeira reforma, para outros, do atual sistema tributário, inclusive para adequá-lo à realidade do momento em que vivemos, é hoje praticamente uma unanimidade nacional.

O problema consiste em equacionar essa revisão, pois não me parece necessário uma reforma estrutural. A principal preocupação no momento consiste em reduzir a regressividade do atual sistema impositivo1 sem afetar o equilíbrio federativo e, ao mesmo tempo, permitir uma melhor distribuição de renda, tornando mais justa a tributação pela observância do princípio da capacidade contributiva enunciado no § 1º do art. 145 da Constituição Federal.

3. Penso, ainda hoje, como já o manifestara em 19922, que a estrutura básica do sistema concebido com a Reforma Tributária de 1965, consubstanciada na Emenda Constitucional nº 18 e no Código Tributário Nacional, deve ser preservada como ponto de partida para qualquer revisão que se pretenda fazer no atual sistema tributário. Isto porque as distorções que hoje se evidenciam no Texto Constitucional de 1988 são fruto exclusivo do desvirtuamento de conceitos fundamentais implementados na Reforma de 1965. Foram resultantes dos desvios de rota ditados por interesses políticos ocasionais, pressões dos Estados ou movimentos municipalistas. Disso tudo resultou o conjunto de normas que compõem o Sistema Tributário da Constituição Federal de 1988, alterado ou acrescido de novas disposições por nada menos do que seis emendas constitucionais3.

A Reforma Tributária de 1965

4. Não é demais recordarmos aqui as premissas da Reforma de 1965 e os seus objetivos delineados no Relatório da Comissão de Reforma Tributária encaminhado ao então Ministro da Fazenda, Octávio Gouveia de Bulhões:

“A Comissão está convicta de que a causa principal dos defeitos, por demais conhecidos para serem aqui relembrados pormenorizadamente, de que padece a atual discriminação de rendas é o fato de o assunto ser tratado como problema jurídico e não econômico. Desde 1891 vem sendo seguido o critério, peculiar à Constituições brasileiras, de partilhar tributos designados por suas denominações jurídicas usuais, posto que nem sempre pacíficas para os próprios juristas. Esse sistema tem provocado ou facilitado distorções econômicas, e mesmo problemas estritamente jurídicos, que o crescimento das necessidades financeiras do poder público e a conseqüente complexidade e onerosidade dos tributos federais, estaduais e municipais somente tendem a agravar.

Exemplo desta afirmativa é a proliferação de figuras tributárias, concebidas em termos puramente jurídico-formais, com que os três governos têm procurado alargar o campo de suas competências e fortalecer o montante de suas arrecadações (...). Isto sem falarmos nas sobreposições de tributos, do mesmo ou de outro poder, economicamente idênticos, e diferenciados apenas pelas roupagens jurídicas de que o legislador os reveste. Pode-se mesmo dizer, sem exagero, que existem hoje, no Brasil, mais tributos formalmente distintos que fatores econômicos substancialmente aptos a servir de base à tributação.”

Continua o Relatório:

“Não obstante esse espírito que a animou, a Comissão antecipa que o seu trabalho será provavelmente acusado de centralizador. Na realidade, porém, a distribuição proposta para os tributos federais, estaduais e municipais procurou observar rigorosamente a implantação recomendada pela natureza econômica e, quando pertinente, jurídica de cada um deles, sem esquecer, também, as características políticas e as condições administrativas próprias de cada um dos três governos que integram a Federação. É certo que os impostos atribuídos à União são em maior número, mas ao crítico informado e eqüitativo não escaparão dois aspectos compensatórios desse aparente desajustamento.

O primeiro desses aspectos é, cumulativamente, econômico e jurídico. Assim, são mantidos no governo central, ou a ele devolvidos, em primeiro lugar, os impostos inseparáveis de atribuições que a Constituição lhe comete, como o de exportação, instrumento regulatório do comércio exterior. Em segundo lugar, vêm os impostos que, por suas características jurídicas ou pelos seus efeitos econômicos, são federais por natureza, como os que incidem sobre atividades privadas de âmbito nacional. Finalmente, é o caso dos impostos, como o que incide sobre a renda e os ganhos de capital, cuja eficiência, como meios de produção de receita ou de atuação extra-fiscal, depende de uma legislação uniforme e sistemática e de uma administração centralizada.

O segundo dos aludidos aspectos compensatórios é, ao contrário, financeiro: um exame, mesmo perfunctório, dos dispositivos referentes à redistribuição das receitas tributárias mostrará que, ressalvada à União a receita necessária para atender a seus próprios encargos, os impostos federais têm, no sistema proposto, antes o caráter de tributos nacionais, de legislação uniforme e arrecadação centralizada, cujo produto é, porém, rateado com as demais entidades políticas por critérios, a um tempo, menos empíricos e mais seguros que os atualmente previstos quanto a apenas alguns impostos. Este é, aliás, somente um detalhe de um dos problemas a que a comissão dedicou esforço considerável. O atual sistema de participações na arrecadação é, com efeito, insatisfatório tanto no plano econômico-financeiro como no plano político-jurídico: as diretrizes observadas pela Comissão em sua tentativa de corrigir essas deficiências tiveram, portanto, de enfrentar problemas em todos esses terrenos.”

Em sua exposição de Motivos ao Presidente da República, ao encaminhar as propostas de Emenda Constitucional originárias da Comissão de Reforma, acrescenta o Ministro da Fazenda:

“O imposto de exportação e o imposto sobre transações financeiras - o denominado imposto de selo - são condenáveis se exigidos com a finalidade de suprir recursos de tesouraria, porque recaem sobre valores que, de forma alguma, expressam a capacidade de contribuir para os cofres públicos. Por outro lado, são excelentes meios de formação de reservas. Mostra a experiência a inegável vantagem de uma reserva monetária oriunda da retenção de parte do acréscimo de receita proveniente do aumento de preços internacionais dos produtos de exportação, como meio de compensar essa exportação em fase subseqüente de baixa dos preços. É, igualmente, recomendável o desestímulo a movimentos altistas em Bolsa, mediante a adoção de um tributo sobre tais transações, cuja receita pode ser empregada na formação de reservas que se destinem a financiar as compras de títulos em caso de especulação baixista. Idêntico processo fiscal compensatório pode ser adotado no mercado cambial. Como se vê, trata-se de um instrumento de política monetária que completa e, não poucas vezes, substitui o clássico processo de redesconto, nem sempre exeqüível, ou a intervenção direta no mercado de capitais, cujo êxito depende de uma sensibilidade financeira que ainda não conseguimos alcançar.”

Mais adiante, prossegue a Exposição de Motivos:

“O projeto de reforma constitucional que tenho a honra de submeter à consideração de Vossa Excelência não se limita, porém, à inovação da política fiscal-monetária. Para imprimir maior êxito a essa política e, principalmente, para assegurar um clima propício ao desenvolvimento econômico, fundamentado na estabilidade da moeda nacional, que impõe acentuada produtividade na produção e na comercialização dos produtos, é inadiável a reformulação do sistema tributário, em todo o seu conjunto.

Estão os que lidam com os problemas financeiros na União, nos Estados e nos Municípios acordes no imperativo de um reexame dos impostos da Federação, com o fim de instituir-se um sistema compatível com os requisitos do progresso econômico do País. A multiplicidade e a acumulação de incidências tributárias, a despeito da separação formal dos impostos, dificultam e oneram a produção. Os empecilhos ao progresso estão se tornando alarmantes.

(...) Temos cinco denominações diferentes de tributos recaindo todos eles da mesma maneira sobre o valor de uma mercadoria, tal como afirma a Comissão: ‘sobreposições de tributos, do mesmo ou de outro poder, economicamente idênticos e disfarçados apenas pela roupagem jurídica de que o legislador os reveste. Ao passar a mercadoria para outro Estado, novamente surge o imposto de vendas, acompanhado de taxas e adicionais e talvez do imposto de indústrias e profissões, cobrado com ‘roupagem diferente’, mas de incidência equivalente ao do imposto de vendas e consignações. De acumulação em acumulação, o produto, da fonte produtora ao consumo final, está arriscado a sofrer a majoração de mais trinta por cento.

Em quase todos os Estados, o imposto de vendas é acompanhado de uma seqüência de adicionais, destinados ao desenvolvimento, ao saneamento, à eletrificação, à educação, às rodovias, cobrados cumulativamente, de operação em operação.

Por outro lado, é impossível ignorar a enorme concentração do produto nacional na região Centro-Sul do País. É indispensável que os contribuintes dessa região não somente financiem os serviços públicos nas áreas onde residem, mas cooperem na complementação do custeio dos serviços públicos de outras regiões. É uma redistribuição da receita fiscal que se impõe, não somente por motivos de segurança nacional, mas, igualmente, em favor desses próprios contribuintes, em termos estritamente financeiros, uma vez que pela redistribuição da receita fiscal consegue-se generalizar e, conseqüentemente, intensificar o progresso econômico e social em todo o País.” (são nossos os destaques)

Examinando o aspecto das despesas públicas, tece o Ministro as seguintes considerações:

“Se persistirmos na política de eliminação dos desperdícios; se a União e os Estados entabolarem convênios para a supressão da inútil duplicidade de despesas na arrecadação dos impostos e na fiscalização tributária; se houver melhor entendimento na programação dos investimentos, nas diferentes esferas administrativas da Federação, é certo que chegaremos a substanciais reduções de dispêndio. E um dos meios de forçar as autoridades a se dedicarem à eficiência administrativa é o de obrigá-las a um comportamento de despesas compatível com a obtenção econômica dos recursos. (...) Tanto quanto possível, cumpre-nos reservar os impostos para a cobertura das despesas correntes ou de investimentos que contabilmente não registrem rentabilidade, embora sejam extraordinários impulsionadores de progresso, como são os investimentos em educação ou em saúde. Os demais empreendimentos, energia, transporte e comunicações, são nitidamente rentáveis e, desse modo, podem e devem ser financiados por meio de empréstimos públicos voluntários.”

5. Como se vê, a reforma de 1965 objetivou não apenas reconstruir o sistema tributário então vigente - originário da Constituição de 1946, com as alterações introduzidas pelas Emendas nº 5, de 1961, e nº 10, de 1964 - mas, sobretudo, preocupou-se com os reflexos positivos que um novo sistema tributário poderia causar à economia nacional, se utilizado como instrumento incentivador do desenvolvimento econômico e social do País.

6. É verdade que a realidade dos dias de hoje está a nos mostrar a necessidade de repensar o papel do Estado para redimensionar o alcance de sua atuação como agente propulsor do desenvolvimento econômico, reduzindo o seu raio de ação ao mínimo necessário para melhor prover os serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde, a seguridade social, a segurança pública e a justiça, e assim poder assegurar à população uma qualidade de vida mais condigna.

Soberania e Globalização

7. O próprio conceito de soberania, tradicionalmente vinculado à noção de Estado, há que ser amoldado em face das circunstâncias ditadas pelo “fenômeno da globalização”, que levou as Nações - Estados a se agruparem em blocos econômicos.

A necessidade de se adequarem a essa nova realidade fez com que até tradicionais inimigos, como a França e a Alemanha, quebrassem as antigas barreiras do nacionalismo para tornar possível a criação da Comunidade Econômica Européia. Hoje, além da CEE, a Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), o Mercosul, a Comunidade Andina de Nações (CAN), são exemplos dessa nova realidade.

8. Como bem observa Ernani de Paiva Simões4,

“os dez anos que antecedem ao fim do milênio mostram o fenômeno da globalização, gostemos ou não dos seus efeitos, uma realidade impossível de ignorar-se a menos que nos tranquemos em um sistema autárquico, semelhante ao de Cuba , ignorando a evolução da ciência e colocando-nos à margem de atualização tecnológica. O Tratado de Assunção, assinado pelo Poder Executivo e aprovado pelo Senado Federal, já significa renúncia à soberania plena do país, pois teremos de alterar a curto prazo nosso precário e deficiente sistema tributário, para adaptá-lo às exigências do Mercosul. É o exemplo de Portugal - continua ele - que teve de adequar sua constituição marxista da Revolução dos Cravos aos galopes, ignorando as inúmeras cláusulas pétreas, para inserir-se nos quadros da Comunidade Econômica Européia. Disposições de tratados da Comunidade Européia obrigaram à derrogação formal de textos da Constituição Portuguesa, protegidos com cláusulas pétreas, ali chamadas, no artigo 290, de limites materiais da revisão, de cerca de 4 dezenas a apenas 15 e isso somente na primeira revisão de 1982. O novo esquema de globalização alterou, pois, profundamente o velho conceito nacionalista de soberania.” (grifos do autor)

9. Para Ernani Simões, globalização significa “uma quebra, uma ruptura com o passado, já que as novas relações de produção, conduzidas pela velocidade enorme das informações, tendem a escapar às políticas locais, mesmo que protegidas pelos ditames das chamadas cláusulas pétreas”. E conclui:

“Cabe então, para restaurar o equilíbrio federativo, instituir um modelo fiscal de discriminação de rendas mais adequado à realidade de um estado que tende a transformar-se em república do Mercosul, pelos imperativos da globalização. O sistema tributário nacional, ora pleno de casuísmos constitucionais que não encontramos em qualquer nação, unitária ou federativa, seria desconstitucionalizado para inserir-se em grande Código Tributário Nacional. Com isso ficaríamos mais ágeis para, com quorum de maioria absoluta, alterar as regras jurídicas, à proporção que o fenômeno da globalização se fosse desenvolvendo em todo o mundo.”

10. Embora reconheça a necessidade de acompanharmos permanentemente a evolução causada em nossa economia pelo fenômeno da globalização, não comungo da idéia de “desconstitucionalizar” o sistema tributário nacional. Os princípios cardeais da tributação, verdadeiras cláusulas pétreas do atual sistema tributário, haverão de ser preservados no Texto Constitucional. A começar pelo princípio da capacidade contributiva inserido no art. 145, § 1º, há que assegurar-se na própria Constituição certos princípios basilares, como os da legalidade, isonomia, anterioridade, irretroatividade, a proibição do confisco e de limitações ao tráfego de pessoas ou de bens, previstos respectivamente nos incisos I, II, III, IV e V do art. 150. Não podemos prescindir, outrossim, dos princípios constitucionais da uniformidade em relação aos tributos federais (art. 151, inciso I), da generalidade, universalidade e progressividade quanto ao Imposto de Renda (art. 153, § 2º, inciso I), da seletividade em função da essencialidade do produto, obrigatoriamente para o IPI (art. 153, § 3º, I) e facultativamente para o ICMS (art. 155, § 2º, III), da não-cumulatividade para o IPI (art. 153, § 3º, II), para o ICMS (art. 155, § 2º, I) e para os eventuais impostos novos que venham a ser criados com base na competência residual conferida à União no art. 154, inciso I.

Nem seria possível “desconstitucionalizar” as limitações ao poder de tributar, a exemplo da imunidade que exclui da incidência do IPI, do ICMS e do ISS as exportações para o exterior de mercadorias e serviços, a imunidade recíproca dos entes públicos, a imunidade que protege de tributação o patrimônio, a renda e os serviços das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, a imunidade dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado a sua impressão, dentre outros obstáculos, opostos na Constituição, limitativos da própria competência tributária outorgada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Podemos, sim, expurgar do Texto Constitucional inúmeras disposições de conteúdo mais apropriado para serem veiculadas em leis complementares ou até pelo legislador ordinário, na esfera das respectivas competências.

Restabelecimento da Competência Federal quanto aos “Impostos Únicos”

11. Ao lado disso, há que reconhecer o erro estratégico do constituinte de 1988 ao retirar da competência federal os chamados Impostos Únicos que incidiam, em tributação unifásica - daí o seu nome -, sobre a energia elétrica, os combustíveis e lubrificantes líquidos e gasosos e os minerais do País. Ademais, a Carta de 1988 fez a União perder outros dois impostos federais incidentes sobre transportes e comunicações. Se o objetivo do legislador constituinte foi o de alargar o campo tributável do antigo ICM, nele incluindo novas áreas de incidência para proporcionar um aumento da receita tributária dos Estados, melhor seria redistribuir o produto arrecadado pela União com os impostos que lhe foram surrupiados, partilhando-o entre Estados e Municípios.

Sim, porque o retorno da competência privativa da União para tributar a energia elétrica, os combustíveis e lubrificantes líquidos e gasosos, os minerais (especialmente os minerais estratégicos para o País), os transportes e as comunicações significará que só a União Federal pode legislar a respeito, o que lhe permitirá implementar uma política nacional uniforme para todos esses setores da economia, livre da ingerência dos governos estaduais. E o que é melhor, livre de submissão à vontade dos Secretários de Fazenda dos Estados cuja preocupação fundamental, sabemos todos, é com os cofres do erário, não lhes sensibilizando qualquer estratégia de combate à elevação dos preços de produtos ou de serviços essenciais ao desenvolvimento nacional, tais como o preço da gasolina, do óleo diesel, do gás de cozinha, da energia elétrica, as tarifas telefônicas, etc.

Por isso, faz-se necessário, a nosso ver, o restabelecimento da competência tributária da União em relação a esses setores vitais para a economia nacional, independentemente da arrecadação que eles lhe proporcionem. O que se quer é o comando do instrumento tributário para utilizá-lo como elemento auxiliar à implementação de uma política de preços ágil e independente.

12. Não vejo inconveniente em se manter, paralelamente com o imposto único federal sobre lubrificantes e combustíveis, a Cide, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool etílico combustível. Esta nova contribuição especial, instituída com base na regra do art. 149 da Constituição Federal, pode servir como instrumento auxiliar da União na implementação, através da Agência Nacional do Petróleo, da política a ser adotada para o setor.

Por se tratar de uma contribuição parafiscal, a Cide permite maior flexibilidade no seu manejo e, sobretudo, o direcionamento dos recursos arrecadados para destinações específicas, tal como determina o § 1º do art. 1º da Lei nº 10.336, de 19 de dezembro de 2001, que a instituiu5.

Manutenção da CPMF

13. Outro assunto a merecer a nossa reflexão é a CPMF - Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira. Devemos preservá-la ou extingui-la?

Instituída com a finalidade de carrear recursos para a saúde, a “provisoriedade” dessa contribuição tributária tem sido posta em xeque devido às suas contínuas prorrogações. Crítico inicial de sua inclusão no sistema tributário nacional6 por não atender, entre outros, aos princípios da capacidade contributiva, da progressividade dos impostos pessoais e da não-cumulatividade da carga tributária, onerando generalizadamente toda e qualquer movimentação financeira nas contas bancárias do contribuinte, hoje me rendo à realidade dos fatos, que demonstram, inequivocamente, tratar-se de um tributo de fácil arrecadação e alta produtividade fiscal.

14. De acordo com os números oficiais, a União arrecadou de CPMF, no ano de 2001, R$ 17.157 milhões, equivalendo a 1,45% do PIB nacional, muito mais do que arrecadou, em conjunto, do IOF (0,30%), dos Impostos sobre o Comércio Exterior (0,77%), do Imposto Territorial Rural (0,02%) e das Taxas Federais (0,03%), totalizando 1,12% do PIB. Nesse mesmo ano, a CPMF representou 4,22% da receita tributária da União, enquanto todos aqueles tributos juntos alcançaram apenas 3,24%. Esses números dão a exata medida da produtividade fiscal da CPMF, o que torna problemático cogitar-se da sua extinção.

15. Há que reconhecer, por outro lado, a extrema simplicidade, rapidez e eficiência do seu mecanismo de arrecadação, a que se soma a facilidade de fiscalização pela Receita Federal, centralizada nas instituições financeiras, que operam como agentes de retenção do tributo na fonte.

16. Mas, além de tudo isto a CPMF oferece uma vantagem adicional que nenhum outro tributo é capaz de proporcionar: alcança os recursos financeiros movimentados através das contas bancárias pela economia informal, a chamada “economia invisível”. Desse modo, todas aquelas atividades econômicas que se desenvolvem de forma marginal e que não são tributadas pelos impostos pagos regularmente pelo empresário estabelecido, tornando-o vítima da concorrência desleal, passaram a ser atingidas pela CPMF. Isto porque o dinheiro proveniente da venda de mercadorias e serviços pela economia informal, ainda que obtido através de uma atividade marginal e fora do controle fiscal, passa necessariamente pelas contas bancárias de quem movimenta esses recursos.

17. O grande problema da CPMF é o da regressividade e cumulatividade de sua incidência. Tendo em vista que onera o produto brasileiro exportado para o exterior torna-se necessário criar-se um mecanismo de incidência e de controle dessa contribuição tributária capaz de permitir à União evitar os seus efeitos danosos para a economia nacional, dependente cada vez mais das divisas geradas pelas exportações. Isto se conseguiria, acredito eu, possibilitando-se ao contribuinte exportador deduzir do Imposto de Renda a pagar, em cada ano fiscal, o valor total que lhe seja cobrado, naquele mesmo ano, a título da CPMF.

18. Para neutralizar o caráter regressivo do tributo poder-se-ia estudar também a possibilidade de estender essa dedução, generalizadamente, a todos os contribuintes do Imposto de Renda, pessoas físicas e jurídicas, minimizando-se assim o efeito econômico cumulativo da incidência da CPMF. A adoção dessa medida de política fiscal viria ao encontro da necessidade de se premiar quem paga Imposto de Renda neste país, já que é reconhecidamente elevado o índice de sonegação do tributo.

19. Assentada a premissa da continuidade da CPMF - que perderia assim o seu caráter provisório para transformar-se em tributo permanente -, resta definir se o tributo seria mantido com a natureza jurídica de uma contribuição especial com destinação específica, regida pelo art. 149 e parágrafos da Constituição Federal, ou se passaria a constituir mais uma fonte de financiamento da seguridade social, somando-se às previstas no art. 195, incisos I a III, da Carta Magna. Ou ainda, como terceira alternativa, transformar-se-ia em imposto, permitindo à União utilizá-lo como mais uma fonte de recursos tributários para os gastos gerais do Governo Federal.

20. A alternativa que me parece mais aconselhável no momento, diante do atual quadro de dificuldades da seguridade social no Brasil, seria destinar os recursos arrecadados com a CPMF para reduzir o déficit do setor. Expurgados os defeitos dessa contribuição tributária com a adoção das providências antes recomendadas nos itens 16 e 17, tornar-se-ia a CPMF mais uma fonte de custeio da seguridade social.

Contribuições para a Seguridade Social

21. A questão do financiamento, mediante contribuições especiais, do sistema da seguridade social é mais um grave problema a ser enfrentado na reformulação do nosso sistema tributário.

De acordo com o art. 195 da Constituição Federal podem ser cobradas as seguintes contribuições para o custeio da seguridade social:

“I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento;

c) o lucro;

II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;

III - sobre a receita de concursos de prognósticos”.

22. A contribuição, a cargo das empresas, destinada diretamente ao INSS (Instituto Nacional da Seguridade Social) é a prevista no inciso I do art. 195, incidente sobre a folha de pagamentos.

Numa conjuntura em que a maior preocupação dos governantes é combater o desemprego (e não é uma particularidade brasileira, pois assume hoje proporções universais, atingindo tanto nações pobres como ricas), não me parece lógico manter-se essa forma de incidência tributária onerando, incoerentemente, as empresas que mantenham maior número de empregados.

Seria mais sensato, portanto, eliminar-se a contribuição social sobre a folha de pagamentos, compensando-se a perda dessa arrecadação com o ingresso dos recursos arrecadados pela CPMF.

23. Dir-se-á que seriam insuficientes os recursos gerados pela CPMF, pois representam, em 2001, 1,45% do PIB, enquanto a contribuição previdenciária equivale a 5,16%. Mas com a eliminação do efeito cumulativo das contribuições que incidem sobre a receita bruta das empresas, que teve início com o PIS/Pasep, através da edição da Medida Provisória nº 66, de 30 de agosto de 20027, pode ser revista a carga tributária dessas contribuições para adequá-las às necessidades de recursos para o sistema previdenciário.

24. Observe-se que a experiência iniciada com o PIS/Pasep não atingiu ainda a Cofins, que continua a gravar a receita bruta das empresas de forma cumulativa, onerando demasiadamente a produção nacional porquanto a sua arrecadação representou, no ano de 2001, nada menos do que o equivalente a 3,84% do PIB. Entre os tributos administrados pela Receita Federal a Cofins perde apenas, em termos de arrecadação, para o Imposto de Renda (8,56%) e para a contribuição previdenciária destinada ao INSS (5,16%).

25. Outrossim, considerando que as contribuições para o PIS/Pasep e Cofins incidem ambas sobre a receita bruta das empresas e se destinam hoje a custear a seguridade social, seria de todo recomendável que sejam elas unificadas, passando a constituir uma só contribuição social, adotando-se o mecanismo estabelecido na MP 66/2002 para retirar-lhe o efeito econômico cumulativo.

Problemas do ICMS

26. Não se poderia cogitar de qualquer revisão no atual sistema tributário sem questionar os problemas que envolvem o ICMS, um dos impostos de maior arrecadação nacional, que hoje representa algo em torno de 8% do PIB.

O ICMS - originalmente ICM, pois era cobrado apenas sobre a circulação de mercadorias - foi instituído pela Reforma Tributária de 1965 com a finalidade de substituir o antigo Imposto de Vendas e Consignações (IVC), que incidia “em cascata” causando forte pressão inflacionária devido ao seu efeito cumulativo sobre os preços dos produtos desde a fonte produtora até o consumo final. Visando eliminar esses efeitos prejudiciais para a economia nacional retirou-se do imposto esse seu aspecto cumulativo, através da implantação do princípio da não-cumulatividade8 aplicável ao ICMS e também ao IPI, sucessor do antigo Imposto de Consumo, onde já se experimentara, pioneiramente, antes mesmo da reforma de 1965, a sua adoção9.

Mediante sistema de escrituração, em livros fiscais próprios, de apuração periódica (atualmente mensal) de débitos e créditos do imposto, à semelhança de uma conta-corrente fiscal, coteja-se o valor total do imposto pago sobre as saídas de mercadorias (débitos) em confronto com o valor total do imposto pago (nas operações anteriores) sobre as mercadorias entradas (créditos) no estabelecimento do contribuinte e tem-se então o valor do imposto devido ou, havendo saldo credor, este é transferido para o mês subseqüente. A lei ordinária federal (IPI) ou a lei complementar tributária (ICMS) definem os produtos que dão direito a crédito para fins de apuração desses dois impostos.

27. Os problemas existentes no ICMS decorrem, em grande parte, de ter sido o imposto brasileiro inspirado em modelo de tributo instituído por países de regime unitário, a exemplo da França, onde o imposto é federal. No Brasil, por força da necessidade de assegurar-se um razoável equilíbrio na discriminação das receitas públicas entre as entidades federadas que detêm o poder tributário, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, o ICM foi instituído como imposto da competência estadual. Como o seu raio de ação atinge a circulação das mercadorias em suas sucessivas movimentações, desde a fonte produtora até o consumo final, a incidência do tributo se opera inclusive nas vendas e transferências interestaduais do produto, gerando problemas de controle e fiscalização por parte dos Estados produtores (remetentes da mercadoria) e consumidores (destinatários da mercadoria), além de distorções no mecanismo de distribuição da carga tributária em face das desigualdades regionais.

Para minimizar esses efeitos o legislador adota o regime da fixação de alíquotas diferenciadas nas operações interestaduais, de modo a permitir aos Estados destinatários das mercadorias, ditos consumidores, economicamente menos desenvolvidos, uma fatia maior na cobrança do ICMS sobre as operações realizadas em seu território.

28. Outro problema resultante da aplicação prática do ICMS é a chamada “guerra fiscal” entre os Estados, que oferecem incentivos tributários na tentativa de atrair empreendimentos novos para se instalarem em suas regiões, preferencialmente a implantação de indústrias germinativas, a exemplo da automobilística, capazes de estimular a instalação, em seu redor, de indústrias satélites, como as de autopeças.

29. É verdade que, por força de disposição constitucional expressa (art. 155, § 2º, XII, “g”), isenções, incentivos e benefícios fiscais somente podem ser concedidos ou revogados mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal10. Não obstante, a prática vem demonstrando que esse mecanismo de salvaguarda das economias estaduais não tem sido suficiente para evitar a “guerra fiscal”, tais são os artifícios (incentivos indiretos, através de financiamentos, subsídios financeiros, etc.) empregados pelos Estados para atrair investimentos.

30. Particularmente, não vejo nessa “guerra fiscal” o anti-Cristo que tantos enxergam como um mal a ser exorcizado a qualquer custo. Ao contrário, considero salutar o esforço empreendido pelos Estados no sentido de investir em infra-estrutura para oferecer melhores condições aos que se proponham a levar os seus empreendimentos às suas regiões, que se não fossem os atrativos fiscais possivelmente continuariam à margem do progresso social e econômico. Ao menos enquanto existirem no Brasil regiões menos desenvolvidas faz-se necessário a utilização do instrumento tributário como forma de captar investimentos produtores de riqueza para essas regiões.

31. Vale lembrar que a política de incentivos fiscais idealizada por Celso Furtado11, originalmente direcionada para a região Nordeste e mais tarde estendida à Amazônia, baseada em isenções, reduções fiscais e deduções do Imposto de Renda devido pelas pessoas jurídicas, funcionou como verdadeira mola propulsora do desenvolvimento dessas regiões. E ainda hoje se faz necessária, haja vista a recente prorrogação do prazo de fruição desses incentivos pelo legislador federal.

A Instituição do IVA Nacional

32. Fala-se na fusão de três dos principais impostos do sistema tributário nacional, o ICMS, o IPI e o ISS, para substituí-los por um IVA12 verde-amarelo.

Em princípio, sob o ponto de vista estritamente técnico, examinando-se a questão pelo ângulo puramente teórico, seria a melhor solução. Considerando que esses três impostos atuam na mesma área econômica, atingindo a circulação de bens e serviços destinados ao consumo, a sua unificação tenderia a simplificar o nosso sistema tributário, além de proporcionar considerável economia de custos para a Administração Fazendária e para os contribuintes. Não acredito, contudo, que se possa fazer a pretendida unificação sem quebra do desejável equilíbrio federativo, que pressupõe a autonomia política e financeira dos Estados e dos Municípios.

33. Esse equilíbrio será necessariamente atingido. Primeiro porque o imposto resultante da imaginada fusão, dê-se-lhe o nome de IVA ou mantenha-se o do atual ICMS13, teria que ser, penso eu, para funcionar a contento, atribuído à competência privativa da União. Assim, teria que ser disciplinado em legislação uniforme e centralizada, cabendo aos Estados as tarefas de arrecadação e fiscalização do tributo e, possivelmente, a expedição de normas regulamentadoras apenas para atender eventuais peculiaridades locais.

Em que pese haver condições técnicas operacionais por parte do sistema bancário para processar automaticamente a distribuição da receita arrecadada a quem lhe competir - e não entro nesta particularidade porquanto a repartição desses recursos envolveria um amplo pacto federativo -, a perda pelos Estados da competência tributária em relação ao seu principal imposto acarretará grave desequilíbrio para a Federação com repercussão na autonomia dos Estados, por lhes retirar instrumento fundamental para assegurar essa autonomia.

34. O mesmo se diga dos Municípios. O ISS representa para o erário municipal14 o que o ICMS representa para os cofres dos Estados.

Sendo incontestável que a autonomia municipal é assegurada sobretudo pela competência que a Constituição Federal confere aos Municípios para instituir e cobrar impostos privativos, a perda do seu principal imposto representaria um retrocesso histórico, um retorno ao período da Primeira República quando a Constituição de 1891 não outorgava competência tributária aos Municípios, vivendo estes da participação no produto da arrecadação de impostos estaduais.

35. Cogitou-se, é verdade, atribuir aos Municípios um imposto sobre vendas a varejo, o que me parece absolutamente equivocado. Qualquer tributo arrecadado na etapa final de consumo da mercadoria requer aparelhamento fiscal e estrutura administrativa que os Municípios brasileiros não dispõem. Nem mesmo os Estados, que preferem hoje concentrar a fiscalização tributária, sempre que possível, nas fontes de produção15, como o fazem com determinados produtos (cigarros, cervejas e refrigerantes, etc.), teriam condições de exercitar eficientemente a cobrança de um imposto incidente na ponta de consumo.

36. Em reforço desta nossa opinião recorde-se que o malfadado Imposto sobre Vendas a Varejo de Combustíveis Líquidos e Gasosos, que a Constituição de 1988 atribuiu à competência dos Municípios, teve vida curta, devido às dificuldades intransponíveis que oferecia para a sua arrecadação e fiscalização. Como é então que se pretende renovar agora tão desastrada experiência?

37. Outra alternativa oferecida em uma das diversas propostas de emenda à Constituição submetidas ao exame do Congresso Nacional consiste na substituição do IPI por um novo tributo, mantido sob a competência federal, denominado de Imposto sobre Consumos Especiais, que incidiria exclusivamente sobre determinados produtos de alta produtividade fiscal, a exemplo dos cigarros, bebidas alcoólicas, veículos automotores e outros. Não me parece uma boa solução desprezarmos toda a experiência adquirida no contínuo aperfeiçoamento do IPI para, em seu lugar, criar-se um novo imposto, com as mesmas características, apenas para limitar a tributação a alguns produtos.

38. Para reduzir-se o campo tributável do IPI não é preciso alterar o texto da Constituição Brasileira, pois ela própria já nos oferece o instrumental necessário para obtermos o mesmo resultado. Nem sequer há necessidade de lei, complementar ou ordinária, para fazê-lo, pois o § 1º do art. 153 da Constituição Federal excepcionou o IPI do princípio da legalidade facultando ao Poder Executivo alterar as suas alíquotas.

Ora, o simples manejo pelo Executivo da tabela de incidência do IPI permite, sem necessidade de autorização legislativa, que se atribua alíquota zero, ou o equivalente “NT” (não tributado), aos produtos que, a seu exclusivo critério, não devam sofrer tributação, mantendo-a tão-somente para alguns produtos considerados “especiais”.

39. Tal medida, no entanto, nos retiraria a possibilidade de utilizar o IPI para se atingir a finalidade social do imposto, através da adoção prática do princípio da seletividade em função da essencialidade do produto, assegurado no art. 153, § 3º, I, da Constituição Federal. Na atual conjuntura, em que se procura alcançar no Brasil uma menos pior distribuição de renda, não seria admissível abandonar-se um instrumento de tal importância na condução da política fiscal, que possibilita à União tributar mais pesadamente os produtos de consumo supérfluo, ou seja, aqueles que presumivelmente são consumidos pelas camadas de maior poder aquisitivo.

Seletividade no ICMS

40. O princípio da seletividade do imposto “em função da essencialidade do produto” está enunciado na Constituição Federal de forma determinante em relação ao IPI (“O imposto ... será seletivo...”, cf. art. 153, § 3º, I) e apenas facultativa para o ICMS (“O imposto ... poderá ser seletivo...”, cf. art. 155, § 2º, III).

Nada impede, portanto, que seja adotada a seletividade no ICMS pelo legislador ordinário, já que não se trata de matéria da alçada de lei complementar, como tantas outras expressamente mencionadas na Constituição Federal. Sendo assim, poder-se-á adotar alíquotas seletivas, mais elevadas para determinadas mercadorias de consumo considerado supérfluo ou não essencial (cigarros, charutos, fumos em geral, bebidas alcoólicas, certos artigos de perfumaria, produtos de beleza, jóias, etc.), isentando ou fixando alíquotas reduzidas para os gêneros alimentícios da cesta básica e outros produtos de primeira necessidade da população.

41. Com essa simples providência conseguiríamos atenuar significativamente a regressividade do ICMS, dando-lhe uma função extrafiscal. Até agora, lamentavelmente, o legislador do ICMS só se preocupa em adotar alíquotas “seletivas” quando a finalidade é majorar a carga tributária, como na tributação da energia elétrica, dos serviços de comunicações, etc.

Cálculo do ICMS “por fora”

42. Outra medida de fácil implantação e enormes vantagens na administração do ICMS, sobretudo por torná-lo mais transparente, seria modificar o mecanismo de cálculo do imposto para que seja ele cobrado por fora, aplicando-se a alíquota prevista na lei diretamente sobre o valor da operação (venda, transferência, etc.) ou prestação tributada, tal como se faz no IPI e no ISS.

Procura-se assim corrigir velha distorção gerada pela integração do valor do imposto à sua própria base de cálculo (calculado “por dentro”), mecanismo que possibilita aos Estados cobrarem o imposto à base de uma alíquota “real” mais elevada do que a alíquota nominal fixada na lei. Passando o ICMS a ser calculado “por fora”, seria reduzida a carga tributária sobre o preço das mercadorias porque o imposto estadual e o IPI incidiriam sobre o mesmo valor tributável: o preço da operação, fazendo-se as respectivas indicações na nota fiscal correspondente.

Um Imposto de Renda Progressivo

43. O Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza ou, simplificadamente, o Imposto de Renda, por alcançar a renda líquida do contribuinte é aquele que melhor se presta a medir a capacidade contributiva das pessoas. Em outras palavras, é o imposto que melhor atende ao ideal da justiça fiscal.

No entanto, para que se alcance esse objetivo torna-se necessário que a sua tributação seja progressiva, elevando-se a alíquota à medida em que também se eleva a base de cálculo (a renda líquida tributável). Não é sem razão que a progressividade do Imposto de Renda é elevada à categoria de princípio constitucional (art. 153, § 2º, I).

44. Ocorre que a tabela de incidência do imposto sobre os rendimentos auferidos por pessoas físicas, tributadas na fonte ou na declaração de ajuste anual, não está atendendo ao princípio da progressividade, pois a lei ordinária federal prevê apenas duas faixas de rendimentos tributáveis sobre os quais é calculado o imposto mediante a aplicação de duas alíquotas: uma de 15%, até determinado valor, e outra de 27,5% (25% da alíquota original acrescida do adicional ao imposto que vem sendo sucessivamente prorrogado) a partir daquele valor e até o infinito.

Mais justo seria fixar-se cinco ou seis faixas de rendimentos com alíquotas progressivas de, digamos, 10%, 15%, 20%, 25% e 30%, sendo esta última reservada exclusivamente para os rendimentos que ultrapassem determinado limite legal indicativo de real capacidade econômica. Teríamos uma distribuição mais eqüitativa (de forma horizontal e não vertical) da carga tributária com o aumento do universo de contribuintes, causando um efeito educativo para a cidadania: as pessoas de menor poder aquisitivo acostumar-se-iam a contribuir para o erário nacional com uma pequena parcela de sua renda, tal como já o fazem hoje com o pagamento das tarifas de água, luz e telefone.

Conclusões

45. Feitas estas considerações poderíamos oferecer, em resumo, as seguintes conclusões:

1ª) Não me parece necessário promover uma reforma do nosso sistema tributário. Mantendo-se a estrutura do atual sistema, fruto da Reforma Tributária instituída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1965, e complementada com a edição do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66), basta fazer uma revisão em alguns aspectos, seja para corrigir distorções resultantes de desvios equivocados do seu rumo original, seja para eliminar a superposição de tributos (contribuições sociais) incidentes sobre o mesmo fato econômico, todos eles constituindo sérios entraves ao desenvolvimento econômico e social do País.

2ª) Repudiamos qualquer tentativa no sentido de “desconstitucionalizar” o sistema tributário nacional, por considerarmos indispensável à segurança do contribuinte a manutenção, no texto da Constituição Federal, dos princípios basilares da tributação, verdadeiras cláusulas pétreas, tais como os princípios da capacidade contributiva, da legalidade, isonomia, anterioridade, irretroatividade, a proibição de tributo confiscatório e de limitações ao tráfego de pessoas ou de bens, os princípios da generalidade, universalidade e progressividade em relação ao Imposto de Renda, os princípios da seletividade e da não-cumulatividade para o IPI e ICMS. Considero igualmente essencial a preservação do conjunto de normas constitucionais limitativas do poder de tributar, inclusive a imunidade que exclui da incidência tributária as exportações para o exterior de mercadorias e serviços, a imunidade recíproca dos entes públicos, a imunidade das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, a imunidade dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado a sua impressão, dentre outras expressamente asseguradas na Constituição brasileira.

3ª) Sem prejuízo da destinação aos Estados do produto de sua arrecadação, deve ser restabelecida a competência privativa da União para instituir e cobrar Imposto Único sobre a energia elétrica, os minerais do País e os lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos, de modo a se permitir à União implementar uma política nacional uniforme em relação a esses setores vitais para o desenvolvimento do País. A contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) criada pela Lei nº 10.336, de 19 de dezembro de 2001, pode ser utilizada como instrumento auxiliar dessa política, mediante o controle de preços dos produtos derivados do petróleo, do gás natural e seus derivados e do álcool etílico.

4ª) Devido às suas características de simplicidade, facilidade de arrecadação e fiscalização, além da elevada produtividade fiscal, sou favorável a que se mantenha a CPMF, até porque é o único tributo do atual sistema capaz de atingir a chamada economia informal ou invisível. Considerando, porém, que a CPMF onera as exportações de produtos brasileiros para o exterior, posto que não há mecanismo que as isente do pagamento desse tributo, deveria a lei tributária permitir ao exportador deduzir do Imposto de Renda a pagar, em cada ano fiscal, o valor total da CPMF que lhe foi debitada pelas instituições financeiras no decorrer do ano. Para neutralizar o caráter regressivo da CPMF, poder-se-ia estender essa dedução, generalizadamente a todos os contribuintes do Imposto de Renda, de modo a premiar aquela minoria sacrificada que paga o imposto neste País.

5ª) A CPMF deve ser transformada em contribuição social permanente, destinando-se o produto de sua arrecadação ao custeio da Seguridade Social. A Seguridade Social deve ser custeada, além da CPMF, por uma contribuição única incidente sobre a receita bruta das empresas, resultante da fusão das atuais contribuições do PIS/Pasep e da Cofins, desde que assegurado por lei o mecanismo da não-cumulatividade no pagamento desses tributos introduzido pela Medida Provisória nº 66, de 30 de agosto de 2002, eliminando-se a contribuição sobre a folha de pagamentos por onerar mais quem absorve maior contingente de mão-de-obra, provocando um desestímulo ao emprego formal.

6ª) Enquanto existirem desigualdades regionais é legítima e plenamente justificável a competição entre Estados (a chamada “guerra fiscal”) através da adoção de mecanismos legais sob a forma de incentivos tributários e financeiros para atraírem investimentos industriais ou agropecuários capazes de aumentar a oferta de emprego em seus territórios, especialmente empreendimentos germinativos, como as indústrias automobilística, química e petroquímica, em torno das quais se implantem indústrias auxiliares ou satélites, gerando um efeito econômico multiplicador.

7ª) A pretendida instituição de um IVA brasileiro deve ser implementada sem prejuízo do equilíbrio federativo, sendo preferível manter-se o ICMS, escoimado das distorções que acumulou a partir da Constituição Federal de 1988, preservando-se, outrossim, a competência municipal para cobrar o ISS.

8ª) Ao invés de se criar um imposto novo em substituição ao IPI deve ser estimulada a aplicação do princípio da seletividade em relação a este imposto federal, tornando-o menos regressivo, nada impedindo que através dos mecanismos legais já existentes possa o IPI incidir sobre universo mais reduzido de produtos, especialmente aqueles geradores de maior arrecadação fiscal.

9º) Pode ser atenuada a regressividade do ICMS através da adoção de alíquotas seletivas, elevando-se a tributação sobre as mercadorias de consumo supérfluo ou não essencial, isentando ou fixando alíquotas reduzidas para os produtos alimentícios da cesta básica e os considerados de consumo essencial para a população.

10ª) O ICMS deve ser cobrado “por fora”, tal como o IPI e o ISS, calculando-se o imposto a partir da aplicação da alíquota prevista na lei sobre o valor da venda ou transferência da mercadoria indicada na nota fiscal. O imposto calculado “por dentro”, como é hoje, produz um aumento no preço dos produtos porque o valor do imposto integra a sua base de cálculo, criando-se o artifício de uma alíquota “real” mais elevada do que a alíquota nominal fixada na lei.

11ª) Atender-se-ia melhor ao princípio da capacidade contributiva se o legislador do Imposto de Renda, ao invés de apenas duas faixas de rendimentos, atualmente sujeitas às alíquotas de 15% e 27,5%, adotasse cinco ou seis faixas partindo de uma alíquota mínima de 10% até alcançar, com a alíquota máxima de 30%, os rendimentos que ultrapassassem determinado limite legal.

1 A regressividade do sistema tributário nacional deve-se sobretudo à elevada participação dos tributos indiretos (IPI, ICMS, ISS, PIS/Pasep, Cofins, etc.) na receita tributária, comparativamente com os impostos diretos (Imposto de Renda, IPTU, ITR, IPVA, ITIV, etc.). Os impostos indiretos são regressivos porque ao comprarem um mesmo produto os contribuintes pagam imposto igual, independentemente de sua renda pessoal.

2 Já afirmávamos em nosso livro Reforma Tributária - uma Proposta de Revisão do Sistema Tributário Nacional (edição do autor, Salvador, 1992, p. 6): “Consideramos, pois, que qualquer tentativa que se faça hoje no sentido de dotar o Brasil de um sistema tributário mais condizente com as atuais necessidades do País haverá de partir, necessariamente, daquelas bases erigidas na Reforma Tributária de 1965, fruto de criterioso trabalho de pesquisa, inclusive do direito comparado.”

3 A Emenda nº 3, de 1993, alterou o § 6º do art. 150 e acrescentou-lhe o § 7º, deu nova redação ao caput dos §§ 1º e 2º do art. 155 e ao § 3º deste mesmo artigo, modificou a redação do inciso III e § 3º do art. 156, assim como a do parágrafo único do art. 160, e, finalmente, eliminou do sistema tributário da Constituição de 1988 dois impostos: o Imposto sobre Vendas a Varejo de Combustíveis Líquidos e Gasosos, da competência dos Municípios e o Adicional ao Imposto de Renda (AIR), da competência dos Estados. A Emenda nº 12, de 1996, complementada pela Emenda nº 21, de 1999, acrescentando ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) o art. 74 autoriza a União a instituir a CPMF, desde que o produto da arrecadação seja destinado integralmente ao Fundo Nacional de Saúde, para financiamento das ações e serviços de saúde. Observe-se que anteriormente a Emenda nº 3, de 1993 (art. 2º), já outorgara competência à União para instituir imposto cobre a movimentação financeira (IMF), que viria a se transformar depois na atual CPMF. A Emenda nº 29, de 2000, deu nova redação à alínea “e” do inciso VII do art. 34 (relativa à aplicação da receita resultante de impostos estaduais), ao inciso III do art. 35 (idem quanto aos impostos municipais), ao § 1º do art. 156, ao parágrafo único do art. 160 (mais uma vez alterado), ao inciso IV do art. 167, e ainda acrescentou os §§ 2º e 3º ao art. 198 para determinar a obrigatoriedade da União, Estados, Distrito Federal e Municípios aplicarem anualmente recursos mínimos em ações e serviços de saúde. A Emenda nº 33, de 2001, por sua vez, altera o art. 149, que trata das contribuições especiais, para acrescentar-lhe os §§ 1º, 2º, 3º e 4º, regulando nestes novos dispositivos as contribuições de intervenção no domínio econômico (Cide), modifica a redação da alínea “a” do inciso IX, acrescenta as alíneas “h” e “i”, assim como os §§ 4º e 5º, ao inciso X, ambos do § 2º do art. 155, que trata do ICMS. Finalmente, a Emenda nº 37, de 2002, dá nova redação ao § 3º do art. 156, relativo aos impostos municipais.

4 Cf. “A Discriminação de Rendas na Constituição Federal de 1988 e a Busca de um Novo Modelo Federativo num Mundo Marcado pela Globalização dos Mercados”, na obra coletiva Estudos Tributários, organizada por Condorcet Rezende, Renovar, Rio de Janeiro, 1999, p. 208.

5 Estabelece o § 1º: “O produto da arrecadação da Cide será destinado, na forma da lei orçamentária, ao:

I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo;

II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e

III - financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.”

6 Cf. nosso Reforma Tributária, op. cit., pp. 32/34.

7 A MP 66/2002 institui um novo mecanismo de cálculo da contribuição para o PIS/Pasep com o objetivo de torná-la não-cumulativa, permitindo certas exclusões de sua base de cálculo e descontos de créditos na apuração do valor da contribuição devida.

8 O princípio da não-cumulatividade do tributo é assegurado hoje no art. 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal, nos seguintes termos:

“§ 2º O imposto previsto no inciso II (ICMS) atenderá ao seguinte:

I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”

9 A experiência pioneira no Brasil da adoção do mecanismo da não-cumulatividade deu-se com a Lei nº 4.502, de 1964, que possibilitava ao contribuinte do Imposto de Consumo abater do imposto devido o valor do crédito originário do imposto pago na aquisição de matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem empregados na fabricação de produto tributado.

10 A Lei Complementar nº 24, de 1975, dispõe sobre a celebração de convênio entre os Estados para a concessão de qualquer tipo de incentivo fiscal do ICMS. Esses convênios são aprovados pelo Conselho de Política Fazendária (Confaz), órgão de deliberação coletiva integrado pelos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal.

11 A política de incentivos fiscais posta em prática no Brasil por inspiração de Celso Furtado, através da concessão de benefícios no pagamento do Imposto de Renda das empresas, serviu de exemplo a outros países. A Itália implantou sistema semelhante para fomentar o desenvolvimento da região sul, carente de investimentos sociais.

12 O IVA é a sigla do conhecido Imposto sobre o Valor Agregado, originário do tributo de características não-cumulativas inicialmente instituído na França sob a denominação de taxe sur la valeur ajoutté e hoje adotado na Comunidade Econômica Européia.

13 A alternativa que me parece mais apropriada seria manter-se o nome atual (ICMS), porque já temos a cultura do imposto e a jurisprudência firmada em torno de muitas questões que o envolvem.

14 Aqui nos referimos àqueles Municípios que, de modo efetivo, cobram, fiscalizam e arrecadam satisfatoriamente o imposto, os quais, lastimavelmente, representam menos de 10% dos Municípios brasileiros. A esmagadora maioria não exerce a sua competência tributária, limitando-se a receber os recursos financeiros resultantes de sua participação na receita de certos impostos federais (Imposto de Renda, IPI e, sendo o caso, ITR - Imposto Territorial Rural) e estaduais (ICMS e IPVA).

15 São exemplo dessa política fiscal a substituição tributária para a frente, juridicamente discutível, que se opera com a cobrança do imposto antecipado, por parte do fabricante ou do distribuidor do produto, eliminando-se sua incidência nas etapas subseqüentes de circulação até o consumo final. Essa prática, embora condenada pela doutrina e rechaçada pela jurisprudência dos tribunais, tem hoje o respaldo de norma contida no § 7º do art. 150, acrescentada ao texto da Constituição Federal pela Emenda nº 3, de 1993.